sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Hinos de Cidades Brasileiras (Caicó/RN)


(Felinto Lúcio Dantas e José Lucas de Barros)
 
Co’ o vaqueiro da prece lendária
Surge o marco do amor de Sant’Ana:
Caicó, jovial centenária,
Que aos seus filhos queridos ufana.
 
Pela voz das cachoeiras
“Barra Nova” e “Seridó”
Cantam cantigas de inverno
Saudação a Caicó.
 
Caicó das missões do Rosário,
De alvoradas em belas manhãs,
Sê tranquila no teu centenário
Como as águas tranquilas do Itans
 
Teu berço de duras rochas
Te fez forte, Caicó,
E o trabalho te elegeu
A rainha do Seridó
 
Teus bovinos que, em longas manadas,
Se apascentam por vales e serras,
Simbolizam as lides passadas
Na conquista penosa das terras.
 
Quadro de lutas e letras,
De Inteligência e civismo,
Nunca um filho teu negou
Tributo ao patriotismo!
 
Atalaia do alto sertão,
Não te vencem cruéis empecilhos.
Caicó, és farol de instrução
aclarando o talento dos filhos.
 
Terra de luz e calor,
Fibras longas do mocó,
ó rainha centenária,
Coração do Seridó!

Guy de Maupassant (Uma Aventura Parisiense)

Haverá na mulher sentimento mais vivo que a curiosidade? Ah!, saber, conhecer, chegar àquilo
que se sonhou! Do que seria ela capaz para o conseguir! Uma mulher, quando a sua curiosidade impaciente desperta, será capaz de cometer todas as loucuras, todas as imprudências, todas as audácias, não recuará diante de nada. Falo das mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas daquele espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos estão cheios: um, de inquietação feminina sempre agitada; outro, de manha colorida de boa-fé, daquela astúcia dos devotos, sofisticada e temível; e o último, por fim, de canalhice encantadora, de refinado embuste, de deliciosa perfídia, de todas aquelas perversas qualidades que levam ao suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que deixam os outros encantados.

Esta cuja aventura pretendo contar era uma pobre provinciana, até então insipidamente honesta. A sua vida, aparentemente calma, decorria no lar, entre um marido muito ocupado e dois filhos, que ela educava como mulher irrepreensível que era. Mas o seu coração fremia de uma insaciada curiosidade, de uma sofreguidão de desconhecido. Pensava em Paris incessantemente e lia avidamente os jornais mundanos. A descrição das festas, das toaletes, das alegrias, punha-lhe os desejos a ferver; mas o que sobretudo misteriosamente a perturbava eram os ecos cheios de subentendidos, os véus mal soerguidos em frases hábeis, e que deixam entrever horizontes de prazeres culposos e devastadores.

Lá de longe, via Paris numa apoteose de luxo magnífico e corrupto. E durante as longas noites de sonhos, embalada pelo ressonar compassado do marido que dormia a seu lado, deitada de costas, com um lenço na cabeça, pensava naqueles homens conhecidos cujos nomes aparecem nas primeiras páginas dos jornais como sendo grandes estrelas num céu escuro; e imaginava a vida entontecedora que levavam, com constantes deboches, orgias à antiga assustadoramente voluptuosas e refinamentos de sensualidade tão complicados que nem sequer era capaz de imaginá-los.

Os bulevares pareciam-lhe ser uma espécie de abismo das paixões humanas; e todas as suas casas tinham de certeza lá dentro prodigiosos mistérios de amor.

Ela, porém, sentia-se envelhecer. Envelhecia sem nada ter conhecido da vida, a não ser aquelas ocupações regulares, odiosamente monótonas e banais que constituem, segundo se diz, a felicidade do lar. Era bonita ainda, conservada naquela existência tranquila como um fruto de inverno num armário fechado; mas roída, devastada, transtornada por secretos ardores. Perguntava a si mesma se haveria de morrer sem ter conhecido todas aquelas exaltações de embriaguez condenatória, sem se ter lançado inteirinha uma vez, ao menos uma só vez, naquela onda de volúpias parisienses.

Com uma longa perseverança, preparou uma viagem a Paris, inventou um pretexto, fez-se convidada por uns parentes, e, como o marido não podia acompanhá-la, foi sozinha. Mal chegou, foi capaz de imaginar razões que, se fosse preciso, lhe permitiriam ausentar-se dois dias ou, antes, duas noites, na melhor das hipóteses, por ter encontrado, dizia ela, uns amigos que viviam no campo perto da cidade.

E procurou. Percorreu os bulevares sem ver nada, a não ser o vício errante e numerado. Sondou com os próprios olhos os grandes cafés, leu atentamente a pequena correspondência do Fígaro que lhe surgia em cada manhã como um toque a rebate, uma chamada ao amor. E nunca nada a punha na pista daquelas grandes orgias de artistas e de atrizes; nada lhe revelava os templos daqueles deboches que imaginava fechados por uma palavra mágica como a caverna das Mil e Uma Noites e aquelas catacumbas de Roma, onde se oficiavam em segredo os mistérios de uma religião perseguida.

Os parentes, pequenos burgueses, não podiam dar-lhe a conhecer nenhum daqueles homens conhecidos cujos nomes lhe zumbiam na cabeça; e, desesperada, pensava já em não pensar mais nisso, quando o acaso veio em seu auxílio. 

Um dia, descia ela a rua da Chaussée-d’Antin, parou a contemplar uma loja cheia daqueles bibelôs japoneses tão coloridos que põem nos olhos uma espécie de alegria. Estava examinando os pequenos marfins cómicos, os grandes vasos de esmaltes flamejantes, os estranhos bronzes, e eis que ouviu, no interior da loja, o patrão que, com grandes reverências, mostrava a um senhor gordo e baixo, de cabeça calva e queixo cinzento, um enorme mono barrigudo, peça única, dizia ele.

E a cada frase do comerciante, o nome do amador, um nome célebre, soava como um toque de clarim. Os outros clientes, mulheres novas, senhores elegantes, contemplavam com uma olhadela furtiva e rápida, com um olhar conveniente e manifestamente respeitoso, o famoso escritor que, por seu lado, contemplava apaixonadamente o mono de porcelana. Eram tão feios um como o outro, feios como dois irmãos saídos da mesma costela.

O comerciante dizia: «Por ser para si, senhor Jean Varin, deixo-o por mil francos; é precisamente o que ele me custa. Para qualquer outra pessoa seriam mil e quinhentos; mas eu tenho consideração pela minha clientela de artistas e faço-lhe preços especiais. Vêm todos à minha casa, senhor Jean Varin. Ainda ontem o senhor Busnach me comprou uma grande taça antiga. No outro dia vendi dois tocheiros como estes (são ou não são uma beleza?) ao senhor Alexandre Dumas. Olhe, essa peça que aí tem, se o senhor Zola a visse já estaria vendida, senhor Varin.» 

O escritor, muito perplexo, hesitava, solicitado pelo objeto, mas a pensar no montante de dinheiro; e dava tanta atenção aos olhares como se estivesse sozinho num deserto. 

Ela tinha entrado temerosa, de olhos descaradamente postos nele, e nem sequer perguntava a si mesma se era belo, elegante ou jovem. Era Jean Varin em pessoa. Jean Varin! 

Depois de uma longa luta, de uma dolorosa hesitação, ele pousou o vaso em cima de uma mesa. «Não, é caro demais.»

O comerciante redobrava de eloquência. «Oh, senhor Jean Varin, caro demais? Isto vale à vontade uns dois mil francos!»

O homem de letras replicou tristemente sem deixar de olhar para o homenzinho de olhos de esmalte: «Não digo que não; mas é caro demais para mim.»

Então, ela, tomada de uma audácia enlouquecida, avançou: «Para mim, quanto vale este bonequinho?»

O comerciante, surpreendido, replicou: «Mil e quinhentos francos, minha senhora.»

«Fico com ele.»

O escritor, que até então nem sequer tinha dado por ela, virou-se de repente e olhou-a dos pés à cabeça com olhos semicerrados de observador; depois, com olhos de conhecedor, observou-a minuciosamente.

Era encantadora, animada, estava de súbito iluminada por aquela chama que até então estava adormecida dentro dela. E além disso uma mulher que compra assim um bibelô por mil e quinhentos francos não é uma qualquer.

Ela teve então um gesto de sedutora delicadeza: virando-se para ele, com a voz a tremer, disse-lhe: «Desculpe, cavalheiro, eu fui decerto um pouco precipitada; provavelmente o senhor ainda não tinha dito a sua última palavra.»

Ele inclinou-se: «Já a tinha dito, minha senhora.»

E logo ela, muito emocionada: «Enfim, meu caro senhor, hoje ou mais tarde, se lhe convier mudar de opinião, este bibelô é seu. Eu só o comprei porque ele lhe tinha agradado.»

Ele sorriu, visivelmente lisonjeado. «Quer dizer que me conhece?», disse.

Então ela falou-lhe da sua admiração, citou-lhe as obras, foi eloquente.

Para conversar, ele tinha-se encostado a um móvel, enquanto mergulhava nela os seus olhos penetrantes. Procurava adivinhá-la. De vez em quando, o lojista, satisfeito por ter na mão aquela publicidade viva, como tinham entrado novos clientes gritava na outra extremidade da loja: «Ora veja-me isto, senhor Jean Varin, não é belo?» Então todas as cabeças se endireitavam, e ela estremecia de prazer por ser vista assim a conversar intimamente com um ilustre personagem.

Finalmente inebriada, foi então capaz de uma audácia suprema, como a dos generais que vão proceder ao assalto. «Caro senhor, disse ela, dê-me um grande, um grande prazer. Permita-me que lhe ofereça este mono como recordação de uma mulher que o admira apaixonadamente e que o senhor conheceu apenas durante dez minutos.»

Ele recusou. Ela insistia. Ele resistiu, muito divertido, rindo com vontade.

Ela, obstinada, disse-lhe: «Muito bem! Vou entregá-lo já em sua casa; onde é que mora?»

Ele recusou-se a dar-lhe o endereço; mas ela ficou a conhecê-la porque a pediu ao lojista e, uma vez paga a compra, escapuliu-se e foi direta a um trem de praça. O escritor correu para a alcançar, pois não queria expor-se a receber aquele presente que não saberia a quem atribuir. Apanhou-a quando ela ia a subir para a tipoia e precipitou-se, quase caiu por cima dela, empurrado pelo carro que começava a andar; e então sentou-se a seu lado, muito aborrecido. 

Por mais que ele pedisse, que insistisse, ela mostrou-se intratável. Quando iam a chegar diante da porta, ela apresentou as suas condições: «Aceito não lhe entregar isto se o senhor cumprir hoje todas as minhas vontades.»

A coisa pareceu-lhe tão cómica que ele aceitou.

Ela perguntou: «Habitualmente que é que faz a esta hora?»

Depois de alguma hesitação ele respondeu: «Ando a passear.»

Então, em voz resoluta, ela ordenou ao cocheiro: «Para o Bosque!»

E partiram para lá.

Ele foi obrigado a indicar-lhe os nomes de todas as mulheres conhecidas, sobretudo as devassas, com pormenores íntimos acerca delas, da sua vida, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus vícios.

Caiu a tarde. «Que faz o senhor todos os dias a esta hora?», disse ela.

Ele respondeu a rir: «Tomo absinto.»

Então, com uma expressão séria, ela acrescentou: «Então, meu caro senhor, vamos tomar absinto.»

Entraram num grande café do bulevar que ele frequentava e onde foi encontrar confrades. Apresentou-os a todos. Ela estava louca de alegria. E na sua cabeça ressoavam incessantemente estas palavras: «Até que enfim! Até que enfim!»

O tempo passava e ela perguntou: «São horas do seu jantar?»

Ele respondeu: «Pois são, minha senhora.»

«Então, caro senhor, vamos jantar.»

E à saída do café Bignon: «E à noite, que é que faz?», perguntou ela.

Ele olhou-a fixamente: «Depende. Às vezes vou ao teatro.»

«Muito bem, vamos ao teatro.»

Entraram no Vaudeville, com entradas de favor graças a ele, e, glória suprema, toda a sala a viu ao lado dele, sentada no balcão.

Quando o espetáculo acabou ele beijou-lhe galantemente a mão: «Resta-me, minha senhora, agradecer-lhe este dia delicioso…» 

Ela interrompeu-o: «A estas horas que é que faz todas as noites?»

«Ora… bem… volto para casa.»

Ela desatou a rir, num riso que tremia.

«Pois bem, caro senhor, vamos para sua casa.»

E não falaram mais. Ela estremecia de vez em quando, sacudida dos pés à cabeça, com vontade de fugir e vontade de ficar, mas no fundo do coração com um muito firme desejo de ir até ao fim.

Na escada, agarrava-se ao corrimão, de tão viva que era a emoção que sentia; e ele subia à frente, ofegante, com um fósforo aceso na mão.

Quando chegou ao quarto ela despiu-se muito depressa e deslizou para dentro da cama sem dizer palavra; e ficou à espera, encolhida contra a parede.

Mas era uma mulher simples, tanto quanto o pode ser a esposa legítima de um notário da província, e ele mais exigente que um paxá de três caudatários. Não se entenderam em nada. Então ele adormeceu. A noite passou-se, apenas perturbada pelo tiquetaque do relógio, enquanto ela, imóvel, pensava nas noites conjugais; e sob os raios amarelados de uma lanterna chinesa olhava, pesarosa, para aquele homenzinho de costas, ao seu lado, redondinho, cuja barriga soerguia o lençol como uma bola cheia de gás. Ressonava com o ruído de um tubo de órgão, fungava prolongadamente, com estrangulamentos cómicos. Os seus vinte cabelos aproveitavam o repouso para se arrepiarem esquisitamente, fartos da sua longa permanência imóvel por cima da cabeça nua cujos estragos era sua obrigação tapar. E de um canto da boca entreaberta escorria-lhe um fio de saliva.

A aurora insinuou por fim um pouco de luz do dia por entre os cortinados corridos. Ela levantou-se, vestiu-se sem ruído e já tinha a porta meio aberta quando fez ranger a fechadura e ele acordou a esfregar os olhos.

Deixou-se ficar alguns segundos até recuperar completamente a consciência, e depois, quando recordou toda a aventura, perguntou: «Então, vai-se embora?»

Ela permanecia de pé, confusa. Balbuciou: «Pois, já é de manhã.»

Ele sentou-se na cama: «Bem, disse, é a minha vez de ter qualquer coisa a pedir-lhe.»

Ela não respondia. Ele continuou: «Meu Deus, a senhora desde ontem que me deixa espantado. Seja franca, confesse-me porque é que fez isto tudo; é que eu não estou a perceber nada.»

Ela aproximou-se devagarinho, a corar como uma virgem. «Eu quis conhecer… o… o vício… e, pois é… bem… não tem graça nenhuma.»

Fugiu, desceu a escada, precipitou-se para a rua.

O exército dos varredores varria. Varriam os passeios, as calçadas, empurrando todas as imundícies para a valeta. Com o mesmo gesto regular, com um gesto de ceifeiros nos prados, empurravam as lamas em semicírculo à sua frente; e, de rua em rua, ela ia deparando com eles como fantoches montados, caminhando automaticamente movidos pela mesma mola. E pareceu-lhe que também nela acabavam de varrer qualquer coisa, de empurrar para a valeta,  ara o esgoto, os seus sonhos excessivamente exaltados.

Voltou a casa ofegante, gelada, guardando apenas na cabeça a sensação daquele gesto das vassouras que limpam Paris de manhãzinha.

E, mal chegou ao seu quarto, caiu em soluços.

Fonte: Guy de Maupassant. Contos escolhidos. Publicado originalmente em 1881. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 19

 

Mensagem na Garrafa – 65 –

Salathiel de Souza 
Itu/SP

ENTRE SAPOS E BICICLETAS

Como dizem por aí, a inveja é uma porcaria. Todos temos muitos amigos e conhecidos, parentes e colegas torcendo pelo nosso sucesso e contribuindo para a nossa felicidade. Infelizmente somos obrigados a conviver também com certos tipos que parecem escalados para nos chatear e prejudicar, denegrir e enervar. Esses querem que sejamos infelizes e que os nossos projetos não evoluam. Seu desejo é nos ver na lama, afogados em problemas e com a vida atolada nas preocupações.

Não vou ficar filosofando sobre o porquê de a vida ser assim. O que sei é apenas isso: que a vida é assim mesmo. Para mal ou para bem, ela é cheia de fases. Como numa montanha-russa, ora estamos lá em cima e ora lá embaixo. Creio que viver seja muito mais que um passatempo. O grande segredo da nossa existência consiste em aproveitar ao máximo as coisas boas da vida e agradecer por elas, bem como enfrentar as dificuldades e aprender com elas.

Se os amigos nos incentivam nessa linha de pensamento, os inimigos têm outro discurso. Para eles não adiantam os nossos esforços e sacrifícios: tudo será inútil, dizem. No fundo desejam nos deixar paralisados, pressionados pelo medo de um futuro tenebroso que, afinal, nem sabemos se chegará a se concretizar. O erro mais grave seria dar ouvidos a essas pessoas. O que fazem elas além de se preocupar com a vida alheia e ficar metendo o bedelho onde não foram chamados? Ainda se fizessem isso como uma crítica construtiva, vá lá. Mas não. Seu único objetivo é nos intoxicar com seu veneno...

Há uma música que afirma: “A vida é como andar de bicicleta: se parar, você cai”. Por isso não podemos nos deixar paralisar. Digam o que quiserem, afirmem o que quiserem, é responsabilidade pessoal de cada um dar continuidade a seus projetos de vida. Afinal, cada pessoa tem uma vida só para ser feliz. E ninguém pode ser feliz no lugar de ninguém. Devemos prosseguir, sem parar. E caso alguém pare e acabe caindo, o que infelizmente não é muito difícil de ocorrer, deve se levantar o mais rápido possível. Às vezes é educativo cair, levar uns tombos, ver o mundo por baixo. Melhor ainda é usar a experiência para levantar e continuar pedalando a vida.

Ouvi certa vez a história de uma comunidade de sapos. Todos entre eles tentavam pular até a janela de uma casa de dois andares, numa espécie de competição para descobrir quem conseguiria. Um a um os sapos tentaram e não conseguiram. Até que veio um sapo estrangeiro e também quis tentar. Os companheiros lhe diziam: “Você não vai conseguir! Nós tentamos e não conseguimos!”. Pulou a primeira vez e não conseguiu mesmo. Disseram: “Ta vendo? É impossível!” Mas o sapinho foi insistindo: pulou a segunda, a terceira e a quarta vez. Os outros, sempre negativos: “Pare com isso. Não está vendo que não vai dar?”

Pois na quinta tentativa o sapinho conseguiu pular até o alto da janela. Todos ficaram espantados. O que teria aquele sapo de tão excepcional para conseguir tal feito? Resposta: ele era surdo. Simplesmente não ouviu os desestímulos de seus companheiros. Não deu ouvidos aos que torciam contra ele. Simplesmente insistiu em suas vontades e no cumprimento dos seus objetivos.

Como esse sapinho, não podemos nos deixar desanimar pelos outros. Não devemos dar ouvidos aos que não torcem pela gente. Mais vale a nossa insistência na realização de nossas metas e na consequente busca da nossa felicidade. Se assim fizermos, certamente chegaremos ao alto da janela. E os que duvidaram da nossa capacidade vão ficar coaxando lá em baixo, como sempre...

Essa é a minha visão de mundo.

Qual é a sua?

Fonte: http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=556.htm Acesso em 09.01.2016

Pedro Milan (Miopia)

- Pai, aquele casal é cego?

- Que é isso, menino! Fala baixo! E aí, por que tá dizendo isso?

- Oi, pai, o homem está com as meias no avesso e a mulher pisou no cocô do Batuta e nem se tocou.

- Êta moleque bisbilhoteiro. Vai, brincar, vai.

Mas até que o danado tinha razão. Terêncio e Ambrósia, o  dito casal que o guri pensava ser cego, estava bem próximo disso. Enxergavam muito mal, mas, cá entre nós, recusavam-se terminantemente a admitir tal deficiência. Isso gerava, vez por outra, brigas homéricas, o que não raramente chegava a alarmar a vizinhança. Somente concordavam com a própria miopia quando lhes era conveniente.

- Bró, (esse era o apelido que ele lhe pusera), passa essa camisa pra mim?

- Ah! Nem vem! Você mesmo diz que eu não enxergo bem. Vai que fica mal passada  e eu vou ter que escutar até o Natal. Amanhã a empregada passa.

Ou então:

- Terê, me leva até a casa da mamãe?

- Negativo! Você sabe muito bem que eu não enxergo direito para dirigir a noite. E se acontecer alguma coisa...? Vai de ônibus ou toma um táxi.

E assim por diante.

Uma coisa não se pode negar: na hora da eventual emergência havia um alto espírito de solidariedade entre eles. Esqueciam-se as divergências e o socorro ao vitimado era de uma prontidão de dar inveja.

Um dia, por exemplo, o Terêncio  estava tranquilamente lendo, ou melhor, tentando ler o seu jornal, quando foi  abruptamente arrancado de seu delicioso torpor pelos berros de Ambrósia:

- Terê!  - Gritava ela. – Vem matar uma perereca  aqui no banheiro!

Sabendo do pavor que ela nutria por anfíbios, o  homem encheu-se de coragem, armou-se do chinelo e partiu resoluto pensando fixamente em eliminar o terrível monstro que molestava sua companheira.

Chegando à porta do banheiro, indagou:

- Onde está o bicho?

- Está ali, atrás do vaso.

- Vaso!? Que vaso!? Você colocou planta no banheiro, mulher!?

- Vaso sanitário, idiota! Privada! Sabe o que é privada?

Diante de tal grosseria Terêncio bem que pensou em recusar-se a prestar o serviço, o que , por certo, faria com que Ambrósia não deixasse barato. Até um divórcio não ficaria fora de cogitação. Mas Terê ainda teve que ouvir:

- Vai logo, homem! Tá com medo?

Receoso de que tal interpretação pudesse repercutir entre os vizinhos e amigos, partiu para o ataque do suposto animal, sem antes  dirigir um olhar fulminante e dar um “chega prá lá” na mulher. Embora algo temeroso, debruçou-se sobre o tal “vaso”, levantou o chinelo, relutou, e depois, disse:

- Isto aqui não me parece ser sapo, ou coisa assim. Tem mais jeito de mariposa. E das pequenas.

Mal terminava a frase e já a cara-metade empunhava valentemente o frasco se inseticida. Fsssss...     Fssssss....  Fssss...

- Chega, mulher! Desse jeito quem vai morrer somos nós!

- Então, espia lá e vê se o bicho já morreu.

Movido por outro arroubo de coragem, Terêncio empurrou com a ponta do chinelo aquela horrenda criatura, levando-a até um ponto onde a luz que vinha da janela permitia ver melhor  (ou simplesmente ver).

Vocês podem não acreditar, mas o que causou esta enorme tensão e por pouco não acaba com aquela perfeita união, era apenas e tão somente um “band-aid” usado, que  um deles havia tentado lançar ao cesto do banheiro, e errou o alvo.

Fonte: www.sorocult.com/el/view.php-cod=1463.htm (desativado). Acesso em 09.01.2016.

Afrânio Peixoto (Trovas populares brasileiras) – 19

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. Muito cuidado, também, pois atualmente não são admitidos os cacófatos, quando uma palavra forma uma segunda, ou duas formam uma terceira, como é por ex. o caso da número 1 e da 14, “como” tem sentido de comer também. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.



1
Abre a boca como a rosa
aos orvalhos do verão.
Dize ao menos que me amas,
e terás meu coração.
2
Amar a duas pessoas
não pode um coração.
Deus formou uma só Eva
por ter feito um só Adão.
3
Coração que ama a dois
que firmeza pode ter?
Já te dei o desengano,
não pretendo mais te ver.
4
Coração que a muitos ama
não sabe o que é querer bem,
pois faz carinhos a todos,
mas não contenta a ninguém.
5
Desde o dia em que te vi,
de te amar fiz a intenção.
É justo, pois, prenda minha,
que me dês teu coração.
6
Lá se vai meu coração
para te servir de prenda.
Não o maltrates, benzinho,
que não tem quem o defenda.
7
Lá vai o meu coração,
é a prenda que te mando.
Ele lá vai ser feliz,
eu por cá fico chorando.
8
Meu coração está vazio,
está com escritos agora:
Se o quiserem alugar
dou preferência à senhora.
9
Meu pai, para me ver casada,
prometeu-me uma panela,
mas depois que me casei...
não vi nem um caco dela.
10
Muito padece quem ama,
muito sofre um coração.
De dia apanha poeira,
de noite, constipação!
11
Nada tenho pra te dar
do jardim deste meu peito:
Se queres meu coração,
mete a mão, tira-o com jeito…
12
Não posso mais, nem que queira
ter paz, nem satisfação!
0 olhar desta morena
espinhou meu coração...
13
Não te dou meu coração
porque não posso tirar...
Se tirar eu sei que morro,
morro e não posso te amar...
14
Negaste-me a formosura,
que a natureza te deu.
Nesse teu peito não tens
um coração como o meu.
15
No meu rosto ninguém vê
nenhum sinal de aflição...
Minha pena, meu cuidado
eu guardo no coração.
16
Nos sertões aonde moro
tenho terras, tenho gado,
e o que tenho será teu
se isto for do teu agrado.
17
0 amor, quando é tecido,
não pode ser desmanchado.
Dois corações bem unidos,
não podem ser apartados.
18
Pega lá meu coração
vinga nele os meus delitos,
crava-lhe um punhal agudo
não te embaracem meus gritos.
19
Pena por seres magrinha,-
miudinha de feição,
num peitinho delicado
está mais perto o coração.
20
Quando a boca diz que sim,
a cabeça diz que não.
Ora, que me diz a mim
o que sente o coração?
21
Rua abaixo, rua acima,
sempre com o chapéu na mão...
Não achei quem me dissesse
cobre-te, meu coração!
22
Sou meirinho, à tua porta,
venho fazer citação,
estás intimada, ingrata,
a me dar teu coração.
23
Tenho o coração magoado,
coberto de cicatrizes:
E como roçado novo,
queimado e cheio de raízes...
24
Uma esmolinha, chorando,
te pediu meu coração… 
Nem ao menos lhe disseste;
Deus te ajude, meu irmão!
25
Você diz que eu sou escura...
mas é claro o coração:
Muito branco é parecido
com capucho do algodão.
26
Vou-me embora desta terra,
é mentira não vou não...
Quem vai lá é o corpo só,
mas não vai o coração.

Fonte: Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. Disponível em Domínio Público.

Artur de Azevedo (Um Médico da Roça)

Aos vinte e um anos Tolentino Abrantes
Da vida a primavera desfrutava,
Figurando entre os piores estudantes,
Pois que não estudava,
Muito embora na Escola
De Medicina, que ele frequentava,
Dissesse toda a gente
Ter ele muito fósforo na bola,
E ser, talvez, o mais inteligente
Da sua turma. O nosso rapazola,
Que dos paternos cabedais dispunha,
Metendo-lhes a unha
Tão facilmente como se a metesse
Num fofo pão de ló, não conhecia
Da pobreza os açoites,
E, nesta vida tudo lhe sorria.
Antes os conhecesse:
Na pândega não passaria as noites.

O pai, sujeito honrado,
Que no comércio havia enriquecido,
Foi por alguns amigos prevenido
Da vida que levava o seu morgado,
E corrigi-lo quis, mas era tarde,
Porém o velho, sem fazer alarde,
Resolveu, de repente,
Suspender-lhe a pecúnia, declarando
Categoricamente
Que só dinheiro lhe daria quando
Ele quisesse entrar no bom caminho,
E andasse «muito, muito direitinho».
— Um meio há de o fazeres,
O bom pai aduziu: troca essa vida
De festas e prazeres
Pela vida em família. A Margarida,
Filha do meu amigo Castro Motta,
Gosta muito de ti; é moça, é bela,
O pai é rico e certamente a dota.
Serás feliz casando-te com ela.
Esse o meio será de prosseguires
Nos estudos. O meu conselho segue,
E olha: se o não seguires,
Para o diabo vai que te carregue!

Não foi para o diabo o nosso Abrantes,
Que, três meses depois desse conselho,
Sendo embora um fedelho,
Sem conhecer do mundo as cambiantes,
Casado estava e muito bem casado.

Durante meses, no seu novo estado,
Foi dos maridos jovens o modelo:
Fazia gosto vê-lo
Sempre ao lado da sua mulherzinha,

Que uma afeição puríssima lhe tinha;
Mas, depois de formado,
(Sim, porque o moço conseguiu a beca),
Daquele dueto se sentiu cansado
E fez coisas da breca,
— Tantas e tais, que Castro Motta, o sogro,
Observando o malogro
Da ventura da filha amada, um dia
Não quis que ela nem mais uma semana
Vivesse em companhia
Daquele doidejana,
Que a deixava ficar sozinha em casa
Dias e noites, nem perdia vaza
De se exibir escandalosamente,
Com mulheres perdidas, nos lugares
Onde havia mais gente,
Sem dares nem tomares.
Carregou-a dali. — Pois satisfeito
(Podeis acreditar) ficou Abrantes
Quando, ao entrar, com passos vacilantes,
No seu quarto, lá pela madrugada,
Achou vazio o leito
Onde a esposa devia estar deitada,
E sobre o travesseiro
Um papel em que havia este letreiro:
«Vou para casa de meu pai.» Mais nada.

O médico, durante alguns instantes,
Pensou em Margarida...
— Fugiu? Melhor! É’ tão desenxabida! —
Era um patife Tolentino Abrantes.

Mas como o pai do lado o houvesse posto,
E do sogro infeliz secasse a teta,
E doente nenhum fizesse gosto
Em recorrer à sua medicina,
Em breve Abrantes se apanhou sem cheta*,
E passou existência bem mofina.

Não tinha o pobre diabo
O que fazer da vida, e já pensava
Em dela enfim dar cabo,
Quando um roceiro, que na corte estava,
Propôs leva-lo para certa vila
Ignorada e tranquila
Onde faltava um médico; podia,
Se não fazer fortuna,
Pelo menos ganhar grossa maquia**.

A proposta oportuna
Abrantes aceitou; foi para a roça,
Quinze anos respirou, num mundo a parte,
O oxigênio do mato, que remoça,
E, aprendendo a sua arte
No corpo dos escravos, nas fazendas,
Afinal ganhou fama
De haver feito umas curas estupendas,
Moribundos erguendo até da cama!
Regenerou-se. O ver constantemente
As moléstias alheias,
Fez-lhe voltar o coração ausente,
Deu-lhe boas ideias;

Tinha Abrantes agora
Fundos remorsos do viver de outrora.

Sim, quinze anos esteve
Naquela redondeza. Um dia, teve
Desejos de ir à capital do Estado,
Afim de espairecer o seu bocado,
E, indo ao teatro, viu num camarote
Uma linda mulher; impressionado,
Pretendeu dar-lhe um bote:
Subiu ao corredor num intervalo...
Qual foi o seu abalo,
Reconhecendo nela,
Vista de perto, a pobre Margarida,
Que não lhe pareceu desenxabida!
Muito mais gorda, mas também mais bela
Estava. O porte altivo e majestoso,
Lânguido o olhar velado e misterioso...
Tão formosa não era a própria Vênus!...
Que singular acaso!
Surpreso ele ficou; pudera! — o caso
Não era para menos.

— Gosta dela, doutor? disse-lhe rindo,
Um conhecido que passava. — Gosto.
— Não se lhe dava de a apanhar, aposto!
Anjo não há mais lindo!
Pois bem: tire daí o pensamento:
É casada. — Casada? — Sim, casada!

O marido não tarda aí um momento:
É engenheiro da Estrada.
Há dias aqui estão, vindos do Rio. —
Outro indivíduo, tipo de vadio,
Que passava também parou e disse:
— Casada? Que tolice!
Eles não são casados!
O marido era um médico: deixou-a
E nunca mais nem novas nem mandados
Deu da sua pessoa.
Depois de abandonada,
Ela viveu com o pai pura e honrada.
Mas o velho morreu; ela, coitada!
Do engenheiro gostou, e não podendo
Casar-se, ficou sendo
A mais fiel das amantes.

Foi para o hotel Abrantes,
E, na manhã seguinte,
No trem das seis e vinte
Para a roça voltou, bem castigado
De todo o seu passado.

Hoje ele é morto, e é ela a esposa amada
Do engenheiro da Estrada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Cheta = qualquer quantia pequena de dinheiro.
** Maquia = gorjeta; lucro.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

João da Câmara (O Ventura)

Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de vapor. Faziam apenas concorrência aos catraeiros de Belém os ônibus imensos da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquela estrada afora até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por cabeça.

A vida de barqueiro não era então das piores; e o José da Anastácia com o seu bom gênio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava os dentes amarelados pelo tabaco, quase da cor do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistara as simpatias de muitos, que preferiam o bote dele e a viva conversa do algarvio, à velocidade pacata dos churriões (carruagem grande e pesada) da Companhia.

Era vê-lo quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço a família do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portuguesa, dádiva das meninas, e que flutuava lá no alto, no angulo da vela, com mais donaire e, com o ser pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha de uma nau da Índia.

O Conselheiro, muito amigo dele, nunca lhe chamava senão o Ventura. Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão junto aos sobrolhos e os olhos semicerrados por causa do sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a flutuar lá em cima, e a proa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao Pontal de Cacilhas.

E os véus azuis das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo vento. À volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para entreter, contava histórias e fazia reflexões, que as meninas aprovavam, meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslizavam lentamente. E ele, fincados os pés no banco dianteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os músculos possantes dos braços cabeludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria numa felicidade santa e levantava compassadamente os remos, de onde caiam enfiadas de pérolas, que os últimos raios do sol cravejavam de pontos luminosos.

A Anastácia, uma velhinha, que morava numa agua furtada, quase ao cimo da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emaranhada, beijava com ânsia, mil vezes, sobre os cabelos secos e duros, o amparo querido da sua viuvez.

Ele, um homenzarrão com vinte e tantos anos, adormecia, logo depois da ceia, com a cabeça reclinada no colo da mãe, cansado, mas feliz, contente naquele ninho.

—José, vamos, acorda, dizia ela, dobrando o serão, quando na torre da Boa Hora batiam vagarosamente as dez.

O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de sono.

—Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!

Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, murmurando:

—Sua bênção, minha mãe.

E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.
*
* *
Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fora, até Monsanto.

Ia passeando devagarinho.

O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquela volta, e o José achavalhe jeitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas caindo do alto, lá por detrás, ao pé da Costa. 

Diabo do inverno! Começava cedo.

O sol descia. O José parou um bocado a vê-lo mergulhar na espuma. Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desapareceu, fechava o horizonte uma lista negra, franjada de oiro, que ameaçava engrossar. 

Pois paciência! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos os anos havia inverno e na casa dele nunca houvera fome, graças a Deus. E o José levou a mão ao barrete.

Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a ele nada lhe faltava e a muitos faltava tudo. Lembraram-lhe então certas historias. Aquela mulher a quem uma vez alugara o bote, porque a encontrara a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sozinhos em Caparica e estava ali com um vintém na algibeira; e ele alugara-lhe o bote pelo vintém, que aceitara, porque não queria envergonha-la. E outra vez que ele se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus, que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e ele sem dinheiro para lhe comprar o caustico?

Havia tanta pobreza!

Ele nada lhe faltava e até na algibeira trazia quase sempre uns cobres, para o que desse e viesse. E como levava sede, entrou numa taberna e pediu dois decilitros. O taberneiro tinha saído. Foi a filha quem veio servir.

O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe trouxe o copo transbordando, deixando cair no pires de barro grosso, branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ela molhava a unha do polegar. 

Para o gosto dele nunca vira mulher assim!

Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:

—Muito obrigado.

E ficou-se a olhar para ela, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe ocorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véu no entendimento, que o apoquentavam.

Era uma rapariga alta, magra, de cabelos castanhos muito finos, muito compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco branquíssimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar duma pequena quebra; a boca um quase nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azuis escuros, que entonteceram o José, quando Welles demorou os seus.

Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada também pela ingénua admiração que percebia causar àquele homem, lavava os copos num alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e colocava-os depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se alastravam grandes nódoas roxas rebeldes à limpeza.

A noite vinha-se aproximando. A taberneira raspou um fósforo na prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, acendeu o candeeiro de petróleo.

—Muito boa noite, disse.

—Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco.

E nunca música para ele valera aquela voz.

O vento fora soprava rijo e o ramo de loiro à porta raspava na parede.

O José levantou-se e abriu o saquinho de algodão. Com voz sumida pediu por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever a mais palavra. 

Por toda a estrada veio pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada na memória, e até nas mais pequenas particularidades, uns sinaizinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a pálpebra um pouco mais acentuado.

E repetia mentalmente, muito enlevado, as únicas palavras que lhe ouvira:—«Muito boa noite. Muito boa noite.»
*
* *

A mãe estranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como costumava, pregou os olhos no teto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz castelo no ar, que os vê cair de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares perscrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos óculos.

Mas de repente a pobre Anastácia deu-lhe o coração um baque. E ela que nunca se lembrara daquilo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de acontecer? E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passara, murmurou com os olhos embaciados:

—Queira Deus que seja para bem.

O José encarou-a, despertado por aquela voz.

Ergueu-se e aproximou-se da janela, que abriu.

O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas cordas de água entraram no quarto.

—O inverno! disse ele, fechando a janela.

A velha encolheu os ombros.

E depois, com certo ar malicioso, já conformada:

—Ainda agora para ti começa a primavera!
*
* *
Pouco tempo durou.

Uma noite, o José sentou-se tristemente à proa do bote e remou devagar para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Pôs-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nódoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no pano negro dos caixões. Estava triste o José naquela noite.

E quando reparou, à popa do barco, na alcunha dele—Ventura—pintada em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com ironia:—Ventura!

O bote arrastado pela vazante passou para além da Torre, e o José perdeu de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio baloiçando-se sobre a faixa projetada, tremeluzente.

Que tristeza aquela!

O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia frio, e o Ventura encharcado, tremia.

De repente, o candeio desapareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cair os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal.

O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião parecia examina-lo com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote passou entre os dois faróis.

As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica delas era triste como o coração do Ventura.

E fora o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrara o primeiro espinho!

Ao principio correra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que todos o Conselheiro.

—Nada! dizia ele ao Ventura, batendo-lhe com a mão no ombro. Estes progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um belo dia...

—Zaz!... Pum!... concluía José, rindo muito e imitando com os braços um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar.

E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos sinais desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, pronto a largar.

Bem lhe tinha dito o pai da Maria Eduarda:

—Muda de vida, José, ou prego-te a peça.

E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a peça ao Ventura.

Foi num dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois tostões. E, em vez de os entregar à mãe, foi à loja da esquina comprar um colar de contas para levar à namorada.

—Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater.

—Saiu, respondeu lá de dentro a voz do pai. Queres-lhe alguma coisa?

—Nada, respondeu.

E ficou encostado à porta, esperando a noiva.

Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver. E o Ventura à porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.

—Olá, seu Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa de oleado deitado para traz. Já vieram as senhoras?

—Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse à mãe que haviam de voltar cedo por você cá vir... Seu maroto!...

—Ó seu Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra...

—Mau! mau!

E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao ouvido:

—Olhe que a ceia está pronta e tenho ali uma pinga...!

O Ventura à porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, escondia o pé descalço atrás da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã esburacado. E logo voltando, num desespero, atirou ao chão a caixa do colar. E as contas de vidro foram adiante dele saltando por longo tempo, fazendo uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.

E a mãe àquela hora tinha fome...! E fora talvez a fome que a matara!

Lá estava enterrada na vala dos pobres, lá muito longe, por detrás daqueles montes, que a lua a nascer, espargindo uma embaçada claridade, azulava docemente. 

Estavam fora da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia.
*
* *
No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de S. Julião, um bote abandonado, que tinha à popa escrito numa variegada rosa dos ventos o nome do Ventura.

E quando soube da triste nova, enquanto aos olhos das filhas subiam saudosas e sentidas lágrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que durara a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.

Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por Jfeldman.