sábado, 30 de dezembro de 2023

Monsenhor Orivaldo Robles (Uma para cada dois)


Fato bastante curioso, entre os muitos da minha longa atividade pastoral, foi a celebração das bodas de ouro (50 anos) de união de um casal amigo. Alguns dirão: “Grande coisa; qualquer padre faz isso”. Calma; não terminei. Dez anos depois, os filhos pediram a missa em ação de graças, desta vez, pelos 60 anos de matrimônio dos pais. Ainda não contei tudo. Outros dez anos passados e me pediram a celebração dos 70 anos da mesma união. Desse tipo foi o único caso que me aconteceu. E não haverá outro.

Quem esteve naquele 70° aniversário de casamento não esquecerá o que presenciou. A esposa sofria do mal de Alzheimer. Com mais de 90 anos de idade, o marido a tratava com uma ternura comovente. Ele quis ler em público uma oração que tinha preparado para a ocasião.

Agradeceu a Deus pelos filhos numerosos, todos vivos, honrados e motivo de orgulho para os pais. Depois, rendeu graças pela companheira de tantos anos. A ela creditou os méritos pela linda família e por tudo que conseguiu como profissional e como cidadão: “Graças vos dou, Senhor, pela mulher extraordinária que me destes por esposa. Sem ela não sei o que teria sido de mim e de minha querida família”.

O fato me veio à memória quando li, nesta semana, que nossa cidade tem uma separação para cada dois casamentos. A matéria falava de casamento civil, não do religioso. Ainda assim, a proporção é assustadora. Assisti a casamentos – diácono ou padre assistem; quem celebra são os noivos – que duram mais de 40 anos e os esposos continuam amando-se intensamente. Falo de amor, não de paixão sexual. Também assisti a casamentos que não duraram três meses.

Depois de 50 anos de matrimônio, uma vovó dizia: “Estamos juntos não porque é fácil, mas porque Deus nos deu a graça de sabermos nos amar”. O segredo está no binômio Deus e amor. Funciona melhor que todas as lições de psicologia, antropologia ou sociologia.

Já foi dito que muitos filhos hoje exigem, como seu direito inalienável, que os pais lhes deem felicidade. Seja qual for sua condição, os pais são obrigados a torná-los felizes. Eles não têm que fazer nada: aos pais é que competem, por ofício, todos os encargos. O dramático é que, em sua maioria, os pais aceitam esse figurino calcado no consumismo, no hedonismo, no materialismo e no subjetivismo. Muitos suportam até agressões verbais dentro de casa, sofrem privações pessoais para que aos filhos não faltem mimos que julgam seu dever oferecer-lhes. Quantos pais e mães vivem autêntico drama de consciência por não conseguir dar aos filhos o que eles exigem.

Assim fica difícil. Filhos que, dentro de casa, desde bebezinhos, jamais ouviram um “não” crescem convencidos de que o mundo existe para satisfazer aos seus caprichos. Quando se casam, esperam que a nova vida lhes assegure os mesmos privilégios de que, como pequenos ditadores, desfrutavam junto de pais fracos. Que não terão que encontrar dificuldade ou sofrimento de espécie nenhuma. Imaginam que na condição de casados prosseguirão com as veleidades costumeiras. Quando não, com verdadeiras extravagâncias. Como no seu tempo de solteiros (as).

Aí, meu amigo, quando descobrem que não têm capacidade para sua nova situação, só resta pular fora do barco. As dolorosas consequências sobram para os outros.

Como, aliás, sempre aconteceu.

Fonte> https://angelorigon.com.br/2014/05/03/uma-para-cada-dois/. 03.maio.2014.

Curso Online de Formação de Escritores (Início: 12 de março de 2024)

Aulas semanais ao vivo - curso inédito e exclusivo para todo o Brasil

O Curso Online de Formação de Escritores é um conjunto de oficinas que abordam aspectos estéticos, teóricos e comerciais para quem é ou deseja se tornar escritor, com ênfase em Escrita Criativa e Criação Literária. Com aulas semanais, o curso promove o contato com escritores profissionais reconhecidos, tornando-se uma experiência completa e transformadora para quem gosta de escrever, deseja publicar um livro ou trabalhar com a escrita. 

Desde 2015 ocorrendo de forma ininterrupta e com mais de 530 alunos formados, o curso é realizado em formato online, utilizando a transmissão de aulas semanais ao vivo (síncronas) feitas exclusivamente para os alunos matriculados nesta modalidade, além da disponibilização de vasto material multimídia e textos lidos e comentados por escritores profissionais. As turmas têm em média 25 alunos, um número que permite a participação efetiva e o diálogo com o professor. E caso você perca alguma aula ao vivo, pode assistir à gravação posteriormente.

Publicação de livro individual ao final do curso 

Além das aulas, ao longo do curso cada participante participará de coletânea paga pela própria editora e produzirá um livro individual, do gênero que escolher, e este livro, ao final do curso, poderá ser publicado pela Editora Metamorfose. Já foram mais de 250 livros publicados nestes anos de curso. Ou seja, é sua grande chance de publicar um livro individual com uma formação adequada para isso.

Curso feito por escritores e aulas ministradas por escritores 

O curso foi desenvolvido e é dirigido pelo Prof. Dr. Marcelo Spalding, escritor finalista do Prêmio Jabuti, editor, jornalista e professor com doutorado em Literatura pela UFRGS e pós-doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS, que há mais de 15 anos ministra oficinas literárias presenciais e online. Ao final, é emitido certificado de Curso Livre com 200 horas-aula.

Além do próprio Spalding, o corpo docente do curso conta com autores reconhecidos e premiados nacionalmente, profissionais do mercado editorial e jovens talentos formados pela principal faculdade de Escrita Criativa do país, a PUCRS.

Horário: QUATRO turmas online com inscrições abertas para você escolher:

• TERÇAS À TARDE: terças-feiras das 14h às 16h

• TERÇAS À NOITE: terças-feiras das 19h às 21h

• QUINTAS À NOITE: quintas-feiras das 19h às 21h

• SÁBADOS: um sábado por mês, das 9h às 16h

Duração: 15 meses

Início das aulas: 12 de março de 2024 

Preço fixo da mensalidade, não aumenta ao longo do tempo 

Investimento: matrícula de R$ 300,00 + 15 x R$ 250,00

Pagamento feito mês a mês, você não precisa pagar o curso todo agora nem usar o limite do seu cartão, além de poder interromper o curso antes do fim sem pagamento de multa 

Mais informações 

Fonte: Enviado por Marcelo Spalding.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 2 -

 

Mensagem na Garrafa – 66 -

Augusto Frederico Schmidt
Rio de Janeiro/RJ, 1906 – 1965

A AUSENTE

Os que se vão, vão depressa,
Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.
Ontem dizia adeus, ainda, da janela.
Ontem vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.

Os que se vão, vão depressa.
Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.
Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,
Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.
No entanto hoje, na festa, ela não estava.
Nem um vestígio dela, sequer,
Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados —
Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.

Os que se vão, vão depressa.
Mais depressa que os pássaros que passam no céu,
Mais depressa que o próprio tempo,
Mais depressa que a bondade dos homens,
Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,
Mais depressa que a estrela fugitiva
Que mal faz um traço no céu.
Os que se vão, vão depressa.
Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,
Só no coração sempre ferido do poeta
É que não vão depressa os que se vão.

Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,
E o seu coração era grande e infeliz.
Hoje, na festa ela não estava, nem a sua lembrança.
Vão depressa, tão depressa os que se vão…

Humberto de Campos (Os gêmeos)

O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu amor.

A ordem de partida fora, porém, terminativa: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra afora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos, monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitrária das flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.

A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.

- Estás linda, meu amor!

- E tu, forte, corado, bonito!

E novos beijos estalaram.

Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.

Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles pirralhinhos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo quarteirão.

- O meu caso senhor doutor, é este.

E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:

- Quantos meses o senhor passou fora?

- Dezoito, senhor doutor.

- E quantos filhos sua senhora teve, agora?

- Dois, gêmeos.

O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:

- Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?

- Nove.

- Então, está aí! - exclamou o médico.

E batendo-lhe na perna:

- Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que é que se admira?

O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela dúvida…

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Vidal Idony Stockler (Sons de Meu Sertão) 1


A cabocla sertaneja,
olhos verdes encantados,
face rubra de cereja
a colher flores nos prados.
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Alegre dia feliz,
bela voz do passarinho,
até parece que diz:
Meu cantar é só carinho.
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Araponga no sertão
lança seu grito de amor
com vibrante entonação
acordando o lenhador.
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A rola junto à cascata
arrulha linda canção,
livre no seio da mata,
na mata lá do sertão.
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As folhas rolam no chão,
a vida rola também;
Juriti dobra a canção
com a saudade de alguém.
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Canta a linda corruíra
a sua suave canção,
lá na árvore de embira
das matas do meu sertão.
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Cataratas e brancura
das águas em explosão
e no lago a saracura
são belezas do sertão.
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De pluma parda e amarela
canta aqui e também ali;
a beldade na janela
sorri ao canto... Bem-te-vi!
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E nas lendas brasileiras
aparece o boitatá,
fogo-fátuo, nas clareiras,
pois, noutro lugar não há.
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João-de-barro elegante,
o engenheiro passarinho,
constrói casa aconchegante
pra curtir o seu carinho.
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Lá na serra bem plantada
casinhola de bambu.
Longe, mia onça pintada,
perto, o cantar do nhambu.
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Luar e noite estrelada
lá no cume da colina,
a choupana abandonada,
choram as águas na mina.
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Luz de lamparina e vela
e também de lampião
produz réstia na janela
no ranchinho do sertão.
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Na plenitude da paz
em manhã ensolarada
a beleza que nos traz
o cantar da passarada.
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Nasce a aurora, novo dia,
corre a moça na sacada
vem ouvir a cotovia
na festa da passarada.
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No meu sítio há sanhaço
e canário cantador
e haja chuva ou mormaço
colibri visita a flor.
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No presídio da gaiola
desolado o passarinho;
o violeiro sem viola,
pássaro é, fora do ninho.
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No sertão, lindo luar,
panorama de canções
que não para de brilhar
e tocar os corações.
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O nordeste brasileiro
querência do Lampião,
Virgulino, o cangaceiro
mais temido do sertão.
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O pomar em florescência,
pássaros em revoada
mostrando linda existência
da vida toda encantada.
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O sabiá muito contente
solta a canção na floresta;
a palmeira sorridente
balança galhos em festa.
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Pássaros! Lindos gorjeios
em manhãs com arrebol,
belezas, suaves enleios
sob as luzes do rei sol!
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Pombinha branca da paz
revoa na luz do dia,
leva mensagem ou traz
arrulhando melodia.
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Rolam goteiras das telhas,
rebentam ondas no mar;
nas flores dançam abelhas,
gaivotas planam no ar.
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Sorri o sabiá na mata
e entoa bela canção,
os respingos da cascata
aplaudem com emoção.
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Sossegado, bem tranquilo
ouço o pássaro cantar
e vou curtindo a meu estilo
as belezas do lugar.
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Fonte:
Vidal Idony Stockler. Trovas. Curitiba: Juruá, 2001.

Contos das Mil e Uma Noites (Judar, o pescador, e o saco encantado)

Conta-se, ó afortunado rei, que vivia certa vez um mercador chamado Omar. Tinha ele três filhos: Salim I, Salim II e Judar, o mais jovem. Havia-os criado até a maturidade; porém sempre preferiu Judar, o que levava seus dois irmãos invejá-lo e odiá-lo. Quando Omar, que era muito velho, notou esse ódio, receou que Judar fosse molestado por seus irmãos após a sua morte e, na presença do cádi, partilhou seus bens em quatro partes iguais: uma para cada filho e uma para a mulher. 

Após a morte do pai, os três irmãos arruinaram-se em processos que Salim e Salim moveram contra Judar. Depois, Salim e Salim maltrataram, burlaram e roubaram a mãe. E ela se refugiou junto a Judar, o qual, embora empobrecido, a acolheu com todo carinho. Os dois Salim caíram rapidamente na miséria, pois não conheciam profissão alguma e eram preguiçosos e mal vistos.

Procuraram a mãe, chorando. Uma mãe é sempre compassiva. Passou a servir-lhes as sobras da casa de Judar, dizendo-lhes, todavia: “Comei rapidamente e saí. Se vosso irmão vos surpreender aqui, poderá virar-se contra mim.” 

Um dia, contudo, enquanto comiam, Judar chegou. Mas em vez de zangar-se, sorriu para seus irmãos, abraçou-os e convidou-os a morar com ele. Sua mãe gritou: “Meu filho, possa Alá abençoar-te e aumentar tua prosperidade: és o mais generoso de todos nós.” 

Judar ia cada manhã lançar sua rede ao mar, e viviam, ele, a mãe e os irmãos, do produto de sua pesca. Certa vez, jogou a rede três dias seguidos sem nada apanhar. No quarto dia, foi a uma praia mais distante no lago Karun e enquanto se preparava para lançar a rede às águas, viu um mouro deslocando-se em sua direção, montado numa mula. 

O mouro apeou, cumprimentou Judar e disse-lhe: “Ó Judar, filho de Omar, preciso de teus préstimos. Se me obedeceres, recolherás grandes vantagens. Serás meu amigo e o encarregado de meus negócios.” O jovem prometeu obedecer. 

Disse o mouro: “Recita a Fatiha* para dar à tua promessa um caráter sagrado.” Judar recitou a Fatiha. Disse então o mouro: “Amarra meus braços atrás das minhas costas com estas cordas, joga-me no mar e espera. Se as minhas mãos saírem da água em primeiro lugar, lança tua rede e traze-me às costas. Pois não sei nadar. Mas se forem meus pés que emergirem primeiro, considera-me morto. Leva então esta mula e este saco ao mercado e procura por Chamaia, o judeu. Pagar-te-á cem dinares pela mula. Teu único dever será guardar o segredo.” 

Judar seguiu as instruções do mouro, e ao ver os pés emergirem primeiro, montou a mula e foi ao mercado onde localizou o judeu. O judeu pagou-lhe os cem dinares prometidos e e recomendou-lhe o segredo por sua vez. Judar levou muitas provisões para casa, onde encontrou os irmãos famintos. 

No dia seguinte, voltou à mesma praia e foi abordado por outro mouro igual ao primeiro; e tudo se passou exatamente como no dia anterior. No terceiro dia, outro mouro apareceu, e Judar amarrou-o e jogou-o às águas da mesma forma. Mas, desta vez, foram as mãos e a cabeça do mouro que emergiram. Judar lançou sua rede e salvou o homem. Quando ele chegou à costa, Judar reparou que ele segurava um peixe vermelho em cada mão.

“Por Alá,” disse a Judar, “salvaste-me a vida.” 

Retrucou Judar: “Por recompensa, conta-me a história de teus dois irmãos afogados, destes dois peixes e do judeu Chamaia.” 

- Como adivinhaste, os dois mouros que se afogaram eram meus irmãos, chamados Abdel-Salam e Abdel-Ahad. Meu nome é Abdel-Samad. O que tomaste por judeu é também meu irmão, um verdadeiro muçulmano. Nosso pai, Abdel-Uadud, era um mágico poderoso. Ensinou-nos a magia, a feitiçaria, a arte de descobrir e levantar os tesouros mais bem escondidos. Tornou-nos capazes de mandar nos Jins, nos Marids e nos Afarit. “Todavia, para levar-nos a competir entre nós e nos aprimorar na luta com o mundo, deixou escondido o maior de todos os tesouros, o Chamardal, que contém três objetos milagrosos: primeiro, um anel tão extraordinário que seu possuidor torna-se dono do mundo, capaz de derrotar reis e sultões; segundo, um globo que permite a seu possuidor visitar todas as regiões da terra sem sair de casa, pois, ao virar o globo, cada região visada se desliga e vem até o dono do globo; terceiro, um unguento que, passado nas pálpebras, permite ver os tesouros escondidos em qualquer montanha ou planície. 

“Ganhará os três objetos milagrosos de Chamardal aquele de nós que apanhar estes dois peixes vermelhos e conseguir a cooperação de Judar, filho de Omar, que só pode ser encontrado nas margens do lago Karun. Meus dois irmãos morreram na tentativa de apanhar estes dois peixes. Eu os consegui e te encontrei. Queres vir comigo ao Marrocos, perto das cidades de Fez e Meknes, e ajudar-me a localizar e levar o tesouro? Dar-te-ei tudo que me pedires e serás meu irmão para sempre. E poderás voltar quando quiseres para teu país e tua casa.” 

- Ó meu senhor, respondeu Judar, tenho minha mãe e dois irmãos a sustentar. Quem os alimentará se viajar contigo? 

- Toma estes mil dinares e entrega-os a tua mãe, e promete-lhe que estarás de volta dentro de quatro meses. 

Judar foi entregar os mil dinares à mãe e obter sua bênção. Quando voltou, o mouro colocou-o atrás de si nas costas da mula e voaram. No caminho, Judar sentiu fome e disse ao mouro: “Senhor, acho que esqueceste de trazer provisões para a viagem.” 

- Não preciso trazer provisões. Tenho este saco encantado. Dele posso tirar todos os pratos que desejar. Estás com fome? Judar reconheceu que estava. Num instante, o mouro tirou do saco peixes, aves, carnes, frutas, doces, todos preparados com requinte e servidos em pratos de ouro. 

– Come, meu amigo, disse o mouro. 

- Meu senhor, com certeza colocaste no saco antes da viagem vários cozinheiros e muitos mantimentos. 

- O saco é encantado, só isso! respondeu o mouro com um sorriso. É servido por um Afrit que nos traria num piscar de olhos até mil pratos árabes, mil pratos egípcios, mil pratos indianos, mil pratos chineses. 

No decorrer da viagem, o mouro perguntou a Judar: “Sabes a que distância já estamos do Cairo?” 

- Por Alá. não! 

- Nestas duas horas, disse o mouro, já percorremos um mês de viagem. Pois esta mula é uma jiniêh e viaja um ano num dia. 

Quando chegaram a Fez, foram à casa do mouro. Descarregaram a mula. O mouro pronunciou umas palavras mágicas, e ela sumiu no ventre da terra. Semanas depois, disse Abdel-Samad: “Chegou o dia em que vamos recuperar o tesouro de Chamardal. Para tanto devemos superar diversas provas, cada uma mais difícil que a outra. Sentes-te preparado? 

- Sim, respondeu Judar. 

Foram então ao lugar indicado no meio do deserto onde, sob o efeito de palavras mágicas, portas misteriosas se abriram, dando acesso a galerias, jardins, casas, palácios. Numa das casas, encontraram a mãe de Judar. Era a primeira prova. Judar, seguindo as instruções de Abdel-Samad, ordenou à mãe: “Despe-te.” 

- Meu filho, gritou a mulher, eu sou tua mãe.

- Despe-te, repetiu Judar. Senão, corto-te a cabeça. 

Na realidade, não era sua mãe e sim uma mera aparição. Mas se ele tivesse fraquejado e tido pena dela, teria sido imediatamente abatido por gênios malvados. Após dias passados assim em meio a aparições mágicas, provas imprevistas e outras manifestações de terror, Abdel-Samad salvou o tesouro de Chamardal. Agradeceu a Judar pela indispensável cooperação e convidou-o a pedir o que quisesse. Judar pediu o saco encantado. O mouro entregou-o sem hesitar e acrescentou: “Devo-te mais que este saco. Leva também este outro saco, cheio de ouro e joias, para que nunca mais conheças a preocupação em tua vida.” 

Judar agradeceu e, montado na mula mágica, voltou para o Cairo e foi diretamente à sua casa. E qual foi a sua pena quando viu a mãe vestida de farrapos e sentada na soleira da porta a pedir esmolas. Ela contou-lhe que seus irmãos a haviam maltratado e arrancado dela todo o dinheiro que lhe dera. Vendo a casa vazia, Judar encheu-a imediatamente de mantimentos, graças ao saco encantado. 

Quando Salim e Salim souberam da volta do irmão e de suas riquezas, procuraram-no mais uma vez, e ele recebeu-os mais uma vez festivamente. E viveram juntos, comendo o que lhes apetecesse. Mas a natureza incuravelmente malvada daqueles dois irmãos prevaleceu de novo. Observando e aproveitando a indiscrição da mãe, souberam do saco encantado e roubaram-no. Depois, tramaram com o capitão de um navio, e este enviou seus marinheiros para raptar Judar e jogá-lo no porão, acorrentado. Mas Deus teve pena dele. Um mercador de Jedá passou por acaso no porão, viu Judar, gostou dele e tomou-o a seu serviço numa peregrinação a Meca. Lá, outro acaso feliz o pôs no caminho de Abdel-Samad, que estava cumprindo o dever da peregrinação. Reconheceu-o e mostrou-lhe a bondade de um pai. Presenteou-o com quinhentos dinares e ofereceu-lhe o anel mágico que fazia parte do tesouro de Chamardal. Judar voltou para casa mais uma vez rico e honrado, e acolheu novamente seus irmãos e perdoou-lhes todas as ignomínias. E, aproveitando o anel mágico, mandou o Afrit edificar um palácio mais suntuoso que o palácio real. 

Com o tempo, o rei, Chams Ad-Daula, ouviu falar de Judar e do esplendor de seu palácio. Um dia, foi visitá-lo. Por sua vez, Judar ouviu falar da filha do rei, uma adolescente mais bela que a plena lra, e pediu-a em casamento. O rei concordou. Os dois jovens foram unidos pelos laços do matrimônio e por uma ardente paixão recíproca, que aumentou ainda mais a amizade entre Judar e Chams Ad-Daula. Judar foi nomeado vizir. E quando o rei morreu, foi ele mesmo proclamado rei, sendo sempre tolerante e generoso para com seus irmãos. 

Mas estes nunca conseguiram superar sua inveja e sua perversidade. Um deles, aproveitando a oportunidade de um banquete real do qual participava, colocou veneno no prato do rei seu irmão e o matou.

O povo chorou o rei bondoso Judar, e os sábios disseram que ele foi vítima tanto de seus irmãos malvados quanto de sua própria generosidade, excessiva e indiscriminada. Pois o provérbio diz: “Faça o bem, mas saiba a quem.” 

Num sentido aproximado, Kisra, o grande rei da Pérsia, escrevera ao filho: “Meu filho, cuidado com a compaixão: ela enfraquece o governo; e cuidado com a falta de compaixão: ela provoca a rebelião.
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* Fatiha = A Sura Al-Fatiha "A Abertura", é o primeiro capítulo do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. Seus sete versos são uma oração por orientação divina e um louvor ao senhorio e à misericórdia de Deus.


Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Caicó/RN)


(Felinto Lúcio Dantas e José Lucas de Barros)
 
Co’ o vaqueiro da prece lendária
Surge o marco do amor de Sant’Ana:
Caicó, jovial centenária,
Que aos seus filhos queridos ufana.
 
Pela voz das cachoeiras
“Barra Nova” e “Seridó”
Cantam cantigas de inverno
Saudação a Caicó.
 
Caicó das missões do Rosário,
De alvoradas em belas manhãs,
Sê tranquila no teu centenário
Como as águas tranquilas do Itans
 
Teu berço de duras rochas
Te fez forte, Caicó,
E o trabalho te elegeu
A rainha do Seridó
 
Teus bovinos que, em longas manadas,
Se apascentam por vales e serras,
Simbolizam as lides passadas
Na conquista penosa das terras.
 
Quadro de lutas e letras,
De Inteligência e civismo,
Nunca um filho teu negou
Tributo ao patriotismo!
 
Atalaia do alto sertão,
Não te vencem cruéis empecilhos.
Caicó, és farol de instrução
aclarando o talento dos filhos.
 
Terra de luz e calor,
Fibras longas do mocó,
ó rainha centenária,
Coração do Seridó!

Guy de Maupassant (Uma Aventura Parisiense)

Haverá na mulher sentimento mais vivo que a curiosidade? Ah!, saber, conhecer, chegar àquilo
que se sonhou! Do que seria ela capaz para o conseguir! Uma mulher, quando a sua curiosidade impaciente desperta, será capaz de cometer todas as loucuras, todas as imprudências, todas as audácias, não recuará diante de nada. Falo das mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas daquele espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos estão cheios: um, de inquietação feminina sempre agitada; outro, de manha colorida de boa-fé, daquela astúcia dos devotos, sofisticada e temível; e o último, por fim, de canalhice encantadora, de refinado embuste, de deliciosa perfídia, de todas aquelas perversas qualidades que levam ao suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que deixam os outros encantados.

Esta cuja aventura pretendo contar era uma pobre provinciana, até então insipidamente honesta. A sua vida, aparentemente calma, decorria no lar, entre um marido muito ocupado e dois filhos, que ela educava como mulher irrepreensível que era. Mas o seu coração fremia de uma insaciada curiosidade, de uma sofreguidão de desconhecido. Pensava em Paris incessantemente e lia avidamente os jornais mundanos. A descrição das festas, das toaletes, das alegrias, punha-lhe os desejos a ferver; mas o que sobretudo misteriosamente a perturbava eram os ecos cheios de subentendidos, os véus mal soerguidos em frases hábeis, e que deixam entrever horizontes de prazeres culposos e devastadores.

Lá de longe, via Paris numa apoteose de luxo magnífico e corrupto. E durante as longas noites de sonhos, embalada pelo ressonar compassado do marido que dormia a seu lado, deitada de costas, com um lenço na cabeça, pensava naqueles homens conhecidos cujos nomes aparecem nas primeiras páginas dos jornais como sendo grandes estrelas num céu escuro; e imaginava a vida entontecedora que levavam, com constantes deboches, orgias à antiga assustadoramente voluptuosas e refinamentos de sensualidade tão complicados que nem sequer era capaz de imaginá-los.

Os bulevares pareciam-lhe ser uma espécie de abismo das paixões humanas; e todas as suas casas tinham de certeza lá dentro prodigiosos mistérios de amor.

Ela, porém, sentia-se envelhecer. Envelhecia sem nada ter conhecido da vida, a não ser aquelas ocupações regulares, odiosamente monótonas e banais que constituem, segundo se diz, a felicidade do lar. Era bonita ainda, conservada naquela existência tranquila como um fruto de inverno num armário fechado; mas roída, devastada, transtornada por secretos ardores. Perguntava a si mesma se haveria de morrer sem ter conhecido todas aquelas exaltações de embriaguez condenatória, sem se ter lançado inteirinha uma vez, ao menos uma só vez, naquela onda de volúpias parisienses.

Com uma longa perseverança, preparou uma viagem a Paris, inventou um pretexto, fez-se convidada por uns parentes, e, como o marido não podia acompanhá-la, foi sozinha. Mal chegou, foi capaz de imaginar razões que, se fosse preciso, lhe permitiriam ausentar-se dois dias ou, antes, duas noites, na melhor das hipóteses, por ter encontrado, dizia ela, uns amigos que viviam no campo perto da cidade.

E procurou. Percorreu os bulevares sem ver nada, a não ser o vício errante e numerado. Sondou com os próprios olhos os grandes cafés, leu atentamente a pequena correspondência do Fígaro que lhe surgia em cada manhã como um toque a rebate, uma chamada ao amor. E nunca nada a punha na pista daquelas grandes orgias de artistas e de atrizes; nada lhe revelava os templos daqueles deboches que imaginava fechados por uma palavra mágica como a caverna das Mil e Uma Noites e aquelas catacumbas de Roma, onde se oficiavam em segredo os mistérios de uma religião perseguida.

Os parentes, pequenos burgueses, não podiam dar-lhe a conhecer nenhum daqueles homens conhecidos cujos nomes lhe zumbiam na cabeça; e, desesperada, pensava já em não pensar mais nisso, quando o acaso veio em seu auxílio. 

Um dia, descia ela a rua da Chaussée-d’Antin, parou a contemplar uma loja cheia daqueles bibelôs japoneses tão coloridos que põem nos olhos uma espécie de alegria. Estava examinando os pequenos marfins cómicos, os grandes vasos de esmaltes flamejantes, os estranhos bronzes, e eis que ouviu, no interior da loja, o patrão que, com grandes reverências, mostrava a um senhor gordo e baixo, de cabeça calva e queixo cinzento, um enorme mono barrigudo, peça única, dizia ele.

E a cada frase do comerciante, o nome do amador, um nome célebre, soava como um toque de clarim. Os outros clientes, mulheres novas, senhores elegantes, contemplavam com uma olhadela furtiva e rápida, com um olhar conveniente e manifestamente respeitoso, o famoso escritor que, por seu lado, contemplava apaixonadamente o mono de porcelana. Eram tão feios um como o outro, feios como dois irmãos saídos da mesma costela.

O comerciante dizia: «Por ser para si, senhor Jean Varin, deixo-o por mil francos; é precisamente o que ele me custa. Para qualquer outra pessoa seriam mil e quinhentos; mas eu tenho consideração pela minha clientela de artistas e faço-lhe preços especiais. Vêm todos à minha casa, senhor Jean Varin. Ainda ontem o senhor Busnach me comprou uma grande taça antiga. No outro dia vendi dois tocheiros como estes (são ou não são uma beleza?) ao senhor Alexandre Dumas. Olhe, essa peça que aí tem, se o senhor Zola a visse já estaria vendida, senhor Varin.» 

O escritor, muito perplexo, hesitava, solicitado pelo objeto, mas a pensar no montante de dinheiro; e dava tanta atenção aos olhares como se estivesse sozinho num deserto. 

Ela tinha entrado temerosa, de olhos descaradamente postos nele, e nem sequer perguntava a si mesma se era belo, elegante ou jovem. Era Jean Varin em pessoa. Jean Varin! 

Depois de uma longa luta, de uma dolorosa hesitação, ele pousou o vaso em cima de uma mesa. «Não, é caro demais.»

O comerciante redobrava de eloquência. «Oh, senhor Jean Varin, caro demais? Isto vale à vontade uns dois mil francos!»

O homem de letras replicou tristemente sem deixar de olhar para o homenzinho de olhos de esmalte: «Não digo que não; mas é caro demais para mim.»

Então, ela, tomada de uma audácia enlouquecida, avançou: «Para mim, quanto vale este bonequinho?»

O comerciante, surpreendido, replicou: «Mil e quinhentos francos, minha senhora.»

«Fico com ele.»

O escritor, que até então nem sequer tinha dado por ela, virou-se de repente e olhou-a dos pés à cabeça com olhos semicerrados de observador; depois, com olhos de conhecedor, observou-a minuciosamente.

Era encantadora, animada, estava de súbito iluminada por aquela chama que até então estava adormecida dentro dela. E além disso uma mulher que compra assim um bibelô por mil e quinhentos francos não é uma qualquer.

Ela teve então um gesto de sedutora delicadeza: virando-se para ele, com a voz a tremer, disse-lhe: «Desculpe, cavalheiro, eu fui decerto um pouco precipitada; provavelmente o senhor ainda não tinha dito a sua última palavra.»

Ele inclinou-se: «Já a tinha dito, minha senhora.»

E logo ela, muito emocionada: «Enfim, meu caro senhor, hoje ou mais tarde, se lhe convier mudar de opinião, este bibelô é seu. Eu só o comprei porque ele lhe tinha agradado.»

Ele sorriu, visivelmente lisonjeado. «Quer dizer que me conhece?», disse.

Então ela falou-lhe da sua admiração, citou-lhe as obras, foi eloquente.

Para conversar, ele tinha-se encostado a um móvel, enquanto mergulhava nela os seus olhos penetrantes. Procurava adivinhá-la. De vez em quando, o lojista, satisfeito por ter na mão aquela publicidade viva, como tinham entrado novos clientes gritava na outra extremidade da loja: «Ora veja-me isto, senhor Jean Varin, não é belo?» Então todas as cabeças se endireitavam, e ela estremecia de prazer por ser vista assim a conversar intimamente com um ilustre personagem.

Finalmente inebriada, foi então capaz de uma audácia suprema, como a dos generais que vão proceder ao assalto. «Caro senhor, disse ela, dê-me um grande, um grande prazer. Permita-me que lhe ofereça este mono como recordação de uma mulher que o admira apaixonadamente e que o senhor conheceu apenas durante dez minutos.»

Ele recusou. Ela insistia. Ele resistiu, muito divertido, rindo com vontade.

Ela, obstinada, disse-lhe: «Muito bem! Vou entregá-lo já em sua casa; onde é que mora?»

Ele recusou-se a dar-lhe o endereço; mas ela ficou a conhecê-la porque a pediu ao lojista e, uma vez paga a compra, escapuliu-se e foi direta a um trem de praça. O escritor correu para a alcançar, pois não queria expor-se a receber aquele presente que não saberia a quem atribuir. Apanhou-a quando ela ia a subir para a tipoia e precipitou-se, quase caiu por cima dela, empurrado pelo carro que começava a andar; e então sentou-se a seu lado, muito aborrecido. 

Por mais que ele pedisse, que insistisse, ela mostrou-se intratável. Quando iam a chegar diante da porta, ela apresentou as suas condições: «Aceito não lhe entregar isto se o senhor cumprir hoje todas as minhas vontades.»

A coisa pareceu-lhe tão cómica que ele aceitou.

Ela perguntou: «Habitualmente que é que faz a esta hora?»

Depois de alguma hesitação ele respondeu: «Ando a passear.»

Então, em voz resoluta, ela ordenou ao cocheiro: «Para o Bosque!»

E partiram para lá.

Ele foi obrigado a indicar-lhe os nomes de todas as mulheres conhecidas, sobretudo as devassas, com pormenores íntimos acerca delas, da sua vida, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus vícios.

Caiu a tarde. «Que faz o senhor todos os dias a esta hora?», disse ela.

Ele respondeu a rir: «Tomo absinto.»

Então, com uma expressão séria, ela acrescentou: «Então, meu caro senhor, vamos tomar absinto.»

Entraram num grande café do bulevar que ele frequentava e onde foi encontrar confrades. Apresentou-os a todos. Ela estava louca de alegria. E na sua cabeça ressoavam incessantemente estas palavras: «Até que enfim! Até que enfim!»

O tempo passava e ela perguntou: «São horas do seu jantar?»

Ele respondeu: «Pois são, minha senhora.»

«Então, caro senhor, vamos jantar.»

E à saída do café Bignon: «E à noite, que é que faz?», perguntou ela.

Ele olhou-a fixamente: «Depende. Às vezes vou ao teatro.»

«Muito bem, vamos ao teatro.»

Entraram no Vaudeville, com entradas de favor graças a ele, e, glória suprema, toda a sala a viu ao lado dele, sentada no balcão.

Quando o espetáculo acabou ele beijou-lhe galantemente a mão: «Resta-me, minha senhora, agradecer-lhe este dia delicioso…» 

Ela interrompeu-o: «A estas horas que é que faz todas as noites?»

«Ora… bem… volto para casa.»

Ela desatou a rir, num riso que tremia.

«Pois bem, caro senhor, vamos para sua casa.»

E não falaram mais. Ela estremecia de vez em quando, sacudida dos pés à cabeça, com vontade de fugir e vontade de ficar, mas no fundo do coração com um muito firme desejo de ir até ao fim.

Na escada, agarrava-se ao corrimão, de tão viva que era a emoção que sentia; e ele subia à frente, ofegante, com um fósforo aceso na mão.

Quando chegou ao quarto ela despiu-se muito depressa e deslizou para dentro da cama sem dizer palavra; e ficou à espera, encolhida contra a parede.

Mas era uma mulher simples, tanto quanto o pode ser a esposa legítima de um notário da província, e ele mais exigente que um paxá de três caudatários. Não se entenderam em nada. Então ele adormeceu. A noite passou-se, apenas perturbada pelo tiquetaque do relógio, enquanto ela, imóvel, pensava nas noites conjugais; e sob os raios amarelados de uma lanterna chinesa olhava, pesarosa, para aquele homenzinho de costas, ao seu lado, redondinho, cuja barriga soerguia o lençol como uma bola cheia de gás. Ressonava com o ruído de um tubo de órgão, fungava prolongadamente, com estrangulamentos cómicos. Os seus vinte cabelos aproveitavam o repouso para se arrepiarem esquisitamente, fartos da sua longa permanência imóvel por cima da cabeça nua cujos estragos era sua obrigação tapar. E de um canto da boca entreaberta escorria-lhe um fio de saliva.

A aurora insinuou por fim um pouco de luz do dia por entre os cortinados corridos. Ela levantou-se, vestiu-se sem ruído e já tinha a porta meio aberta quando fez ranger a fechadura e ele acordou a esfregar os olhos.

Deixou-se ficar alguns segundos até recuperar completamente a consciência, e depois, quando recordou toda a aventura, perguntou: «Então, vai-se embora?»

Ela permanecia de pé, confusa. Balbuciou: «Pois, já é de manhã.»

Ele sentou-se na cama: «Bem, disse, é a minha vez de ter qualquer coisa a pedir-lhe.»

Ela não respondia. Ele continuou: «Meu Deus, a senhora desde ontem que me deixa espantado. Seja franca, confesse-me porque é que fez isto tudo; é que eu não estou a perceber nada.»

Ela aproximou-se devagarinho, a corar como uma virgem. «Eu quis conhecer… o… o vício… e, pois é… bem… não tem graça nenhuma.»

Fugiu, desceu a escada, precipitou-se para a rua.

O exército dos varredores varria. Varriam os passeios, as calçadas, empurrando todas as imundícies para a valeta. Com o mesmo gesto regular, com um gesto de ceifeiros nos prados, empurravam as lamas em semicírculo à sua frente; e, de rua em rua, ela ia deparando com eles como fantoches montados, caminhando automaticamente movidos pela mesma mola. E pareceu-lhe que também nela acabavam de varrer qualquer coisa, de empurrar para a valeta,  ara o esgoto, os seus sonhos excessivamente exaltados.

Voltou a casa ofegante, gelada, guardando apenas na cabeça a sensação daquele gesto das vassouras que limpam Paris de manhãzinha.

E, mal chegou ao seu quarto, caiu em soluços.

Fonte: Guy de Maupassant. Contos escolhidos. Publicado originalmente em 1881. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 19

 

Mensagem na Garrafa – 65 –

Salathiel de Souza 
Itu/SP

ENTRE SAPOS E BICICLETAS

Como dizem por aí, a inveja é uma porcaria. Todos temos muitos amigos e conhecidos, parentes e colegas torcendo pelo nosso sucesso e contribuindo para a nossa felicidade. Infelizmente somos obrigados a conviver também com certos tipos que parecem escalados para nos chatear e prejudicar, denegrir e enervar. Esses querem que sejamos infelizes e que os nossos projetos não evoluam. Seu desejo é nos ver na lama, afogados em problemas e com a vida atolada nas preocupações.

Não vou ficar filosofando sobre o porquê de a vida ser assim. O que sei é apenas isso: que a vida é assim mesmo. Para mal ou para bem, ela é cheia de fases. Como numa montanha-russa, ora estamos lá em cima e ora lá embaixo. Creio que viver seja muito mais que um passatempo. O grande segredo da nossa existência consiste em aproveitar ao máximo as coisas boas da vida e agradecer por elas, bem como enfrentar as dificuldades e aprender com elas.

Se os amigos nos incentivam nessa linha de pensamento, os inimigos têm outro discurso. Para eles não adiantam os nossos esforços e sacrifícios: tudo será inútil, dizem. No fundo desejam nos deixar paralisados, pressionados pelo medo de um futuro tenebroso que, afinal, nem sabemos se chegará a se concretizar. O erro mais grave seria dar ouvidos a essas pessoas. O que fazem elas além de se preocupar com a vida alheia e ficar metendo o bedelho onde não foram chamados? Ainda se fizessem isso como uma crítica construtiva, vá lá. Mas não. Seu único objetivo é nos intoxicar com seu veneno...

Há uma música que afirma: “A vida é como andar de bicicleta: se parar, você cai”. Por isso não podemos nos deixar paralisar. Digam o que quiserem, afirmem o que quiserem, é responsabilidade pessoal de cada um dar continuidade a seus projetos de vida. Afinal, cada pessoa tem uma vida só para ser feliz. E ninguém pode ser feliz no lugar de ninguém. Devemos prosseguir, sem parar. E caso alguém pare e acabe caindo, o que infelizmente não é muito difícil de ocorrer, deve se levantar o mais rápido possível. Às vezes é educativo cair, levar uns tombos, ver o mundo por baixo. Melhor ainda é usar a experiência para levantar e continuar pedalando a vida.

Ouvi certa vez a história de uma comunidade de sapos. Todos entre eles tentavam pular até a janela de uma casa de dois andares, numa espécie de competição para descobrir quem conseguiria. Um a um os sapos tentaram e não conseguiram. Até que veio um sapo estrangeiro e também quis tentar. Os companheiros lhe diziam: “Você não vai conseguir! Nós tentamos e não conseguimos!”. Pulou a primeira vez e não conseguiu mesmo. Disseram: “Ta vendo? É impossível!” Mas o sapinho foi insistindo: pulou a segunda, a terceira e a quarta vez. Os outros, sempre negativos: “Pare com isso. Não está vendo que não vai dar?”

Pois na quinta tentativa o sapinho conseguiu pular até o alto da janela. Todos ficaram espantados. O que teria aquele sapo de tão excepcional para conseguir tal feito? Resposta: ele era surdo. Simplesmente não ouviu os desestímulos de seus companheiros. Não deu ouvidos aos que torciam contra ele. Simplesmente insistiu em suas vontades e no cumprimento dos seus objetivos.

Como esse sapinho, não podemos nos deixar desanimar pelos outros. Não devemos dar ouvidos aos que não torcem pela gente. Mais vale a nossa insistência na realização de nossas metas e na consequente busca da nossa felicidade. Se assim fizermos, certamente chegaremos ao alto da janela. E os que duvidaram da nossa capacidade vão ficar coaxando lá em baixo, como sempre...

Essa é a minha visão de mundo.

Qual é a sua?

Fonte: http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=556.htm Acesso em 09.01.2016