quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Arthur Thomaz (Arco-Íris de Trovas) = 1 =

 

Mensagem na Garrafa – 83 -


Clarice Lispector
(Chaya Pinkhasivna Lispector)
Chechelnyk/Ucrânia, 1920 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

DIVAGANDO SOBRE TOLICES

Depois de esporádicas e perplexas meditações sobre o cosmos, cheguei a várias conclusões óbvias (o óbvio é muito importante: garante certa veracidade). Em primeiro lugar concluí que há o infinito, isto é, o infinito não é uma abstração matemática, mas algo que existe. Nós estamos tão longe de compreender o mundo que nossa cabeça não consegue raciocinar senão à base de finitos.

Depois me ocorreu que se o cosmos fosse finito, eu de novo teria um problema nas mãos: pois, depois do finito, o que começaria? Depois cheguei à conclusão, muito humilde minha, de que Deus é o infinito. Nessas minhas divagações também me dei conta do pouco que sabia, e isso resultou numa alegria: a da esperança. Explico-me: o pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais.

O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito.

O infinito não esmaga, pois em relação a ele não se pode sequer falar em grandeza ou mesmo em incomensurabilidade. O que se pode fazer é aderir ao infinito. Sei o que é o absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. O que é uma segurança. A adjetivação é uma qualidade, e o inconsciente, como o infinito, não tem qualidades nem quantidades. Eu respiro o infinito. Olhando para o céu, fico tonta de mim mesma.

O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir-a-ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender de física e matemática para poder, nessa minha divagação gratuita, pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que sinto.

Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um modo do infinito.

Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao inconsciente, como já foi dito, este o admite pela simples razão de também sê-lo. Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo? Errei. O círculo é uma forma perfeita mas que pertence à nossa mente humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo seria um adjetivo inútil para o infinito. Um dos equívocos naturais nossos é achar que, a partir de nós, é o infinito. Nós não conseguimos pensar no existo sem tomarmos como ponto de vista o a partir de nós.

Para falar a verdade, já me perdi e nem sei mais do que estou falando. Bem, tenho mais o que fazer do que escrever tolices sobre o infinito. É, por exemplo, hora do almoço e a empregada avisou que já está servido. Era mesmo tempo de parar.

(em Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo. 
Publicado originalmente em 1967)

Newton Sampaio (Família)

| I |

Minha rica mulherzinha, que atende por este nome impossível: Eglantina Exupério Leão (na intimidade eu a chamo de Eglezinha. Nesse passo, ela se põe integralmente derretida...), é um amor de esposa. Não que a Eglantina seja dessas beldades afrodisíacas. Não são fatais os olhos seus, nem nunca o foram, em tempo algum. Seu sorriso não chega a criar pecados no cérebro dos franciscanos menos austeros. Seu corpo jamais executou, com perfeição, a sinfonia das curvas. Em predicados sinfônicos, até, minha rica mulherzinha não vai além do dueto do busto (um dueto, aliás, não muito forte, como convém às mulheres honestas...

O rosto sequer serve a sugerir longas fermatas a decadentes tenores napolitanos). Não, meus senhores. A Eglantina não é mulher que justifique, pela presença, a imensa asneira do casamento. E se eu — cidadão atacado de spleen, em pleno despertar dos trinta anos; eu, que não hei feito outra coisa senão torturar-me à procura da perfeição na forma e no ritmo, através de esculturas que fizeram meu renome de artista genuíno; eu — implacável no detalhe de um músculo, incansável no acabamento das expressões fugidias; se eu, apesar de tudo, recebi no altar, com todas as exigências sacramentais, a pessoa de Eglantina Exupério Leão, é porque encontrei na Eglezinha (ela se põe integralmente derretida, neste passo...) um predicado, comuníssimo nas mulheres, é bem verdade, mas não com a intensidade presente em minha esposa: a ignorância.

Eglantina, meus prezados amigos, é oceanicamente ignorante. Eglantina mal sabe assinar o nome, lê com extrema dificuldade, tropeçando, indagando, soletrando, e surpreende qualquer pessoa com o desconhecimento absoluto, absolutíssimo, que tem das coisas deste mundo.

Eglantina é um amor de esposa. Por isso eu a tornei como modelo à obra-prima que me incumbe realizar na escultura antes de morrer.

| II |

Minha sogra (que tem um nome farmacológico, assaz parecido com o de minha esposa: Ergotina) é o ideal das sogras, Dona Ergotina é muda. Dona Ergotina Exupério é completamente muda. E talvez fique surda no próximo ano, segundo prometeu o físico (especialista em otologia) que a examinou.

| III |

Minha cunhada mais velha é digna irmã de Eglantina e digna filha de Ergotina. Não aprendeu em tempo a sinfonia das curvas (um adepto de Schubert diria que ela é uma sinfonia inacabada. Mas eu não digo. Não digo porque acho muito besta essa piada).

| IV |

A cunhada número dois (eu tenho uma coleção delas) é flor que cresce em um monturo. Eis que sua beleza alucina todos os moçoilos válidos do bairro. Por causa dela, só por causa dela, a Assistência trabalhou onze vezes na rua dos Pássaros. Isto sugeriu a um vizinho — futebolista inveterado, torcedor do Vasco e muito crente de ser homem de espírito —, a constituição de um time: o time dos suicídios. 

Cuido que a ideia vingou. Se não vingou por completo, permitiu ao menos um novo bloco carnavalesco na rua dos Pássaros. O que é um grande acontecimento.

| V |

A terceira irmã de Eglantina é metida a moderna. Vê, nos cinemas, as donzelas americanas morando em apartamentos, correndo nos automóveis dos amiguinhos, tomando whisky (coquetel), “abrideiras” etc., e quer agir como as donzelas de Tio Sam. Eu acho isso ridículo. Acho que a irmã de Eglantina tem sobre os ombros várias toneladas de preconceitos e sobre si pesa a cretinice de várias gerações anônimas. Ela quer ser moderna, quer ser sabida. Mas não consegue ser outra coisa que não uma recalcada.

| VI |

O outro membro da família não é mulher. É homem. Tem uma vintena de anos. E, como a maioria dos rapazes da cidade, leu, por descuido, uns vagos livros de sociologia, tomou umas vagas noções de economia ou direito e já se propôs a salvar o Brasil. Imaginem que ele quer, à viva força, tirar o país do caos. Fala mal da liberdade-democracia, chama o Sr. Vargas de nomes muito feios, diz não compreender o metafísico Sr. Gustavo (o tal do Ministério da Cultura), afirma, com o grito de quem descobriu a pólvora ou encontrou um novo continente, que o Brasil é uma colônia de banqueiros. E anda por aí, levantando o braço em saudações obscenas.

| VII |

O membro número cinco também quer salvar o Brasil. Faz, porém, o gesto oposto do irmão (afinal de contas, tudo vai dar numa questão de gestos). E andou, até bem pouco, pichando as paredes, defendendo um capitão sem compostura (um capitão que não tem sequer o talento do poeta do mesmo nome), escrevendo em jornais sem conceito, berrando em comícios terroristas. Hoje, o membro número cinco não pode mais salvar o Brasil (o que deploro...). E sem ser qualquer Marquesa de Santos, está passando uma temporada sobre o Pedro I... Dessa temporada poderá advir não uma duquesinha de Goiás, mas um libelo contra os opressores de consciências...

| VIII |

Neste ponto, o garoto que Eglantina me deu: Eutrópio (reminiscência dos meus estudos de latim), entra no escritório. Lê essas coisas que eu ando escrevendo e diz, com a liberdade que caracteriza as crianças hodiernas:

— Papai. Tu és uma besta, não achas?

Então eu compreendo que a Eglantina deu um gênio à família. Eis que o meu filho Eutrópio tem a intuição profunda das coisas…

(Publicado originalmente em O Dia, Curitiba, 01/02/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Luciano Dídimo (Nas águas da poesia) – 2 –


A POESIA

Às vezes, se o poema está contente,
Eu toco a poesia em instrumentos,
Cantando doces versos para os ventos,
Recebo a poesia na nascente.

Às vezes, se o poema está doente,
Eu sofro a poesia nos tormentos,
Gemendo amargos versos em lamentos,
Oferto a poesia no poente.

Nas Rosas, eu encontro a poesia,
Nas cores e no aroma, em cada espinho,
Nos versos que, das pétalas, escorrem.

Diferem os poemas, todavia,
Das rosas, em seu rápido caminho,
Que brotam, desabrocham, depois morrem!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A ROSA DO DESERTO

Quem dera se eu tivesse um coração
Que fosse feito a Rosa do Deserto,
Que emana formosura a céu aberto,
Na sua exuberante floração. 

Quem dera se eu tivesse a proteção
Que tem seu sangue em seiva recoberto
Por caule resistente que, decerto,
Suporta gigantesca sequidão. 

Assim meu coração palpitaria
Com toda a fortaleza dessa rosa
E por qualquer deserto eu passaria. 

Por onde quer que eu fosse, espalharia,
Também sua beleza graciosa,
E rosa no deserto então seria!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A SUPERLUA 

A lua, cor de pérola, reluz,
Transforma o grande mar em seu espelho,
Expulsa sutilmente o sol vermelho
E a noite escura acolhe a sua luz. 

A lua, assim gigante, me conduz
Por caminhos sem placa e sem conselho,
No silêncio, no qual eu me assemelho,
Beleza imensa que ninguém traduz. 

A superlua, cheia e esplendorosa,
Derrama em mim um brilho sedutor,
Inspirando um soneto que a desposa. 

A lua, em suas glórias, indiscreta,
Que faz da poesia o seu andor,
Se torna a grande musa do poeta!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

CEARENCÊS

Aqui no Ceará é “invocado”
O linguajar cantado e  bem rasteiro.
Todo cabra matuto é “beradeiro”
E aquele que tem pressa é “avexado”. 

Quem se mete a valente é “arrochado”,
Se cria muito caso é “bunequeiro”,
Se o cara é brincalhão, ele é “fuleiro”,
E se não “bate bem”, “abirobado”. 

Quem gosta de mexer é “buliçoso”
E aquele que tem fome,“esgalamido”.
“Só o pitel” é algo bem gostoso.

Chamamos de “ariado” o distraído,
“Bichim” é tratamento carinhoso,
Cearencês é mesmo divertido!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

NORDESTE

O sol com sua força incomplacente
Abraça o chão sedento do sertão,
Clamores se derramam na oração
Do povo tão sofrido e renitente.

O sol com sua luz incandescente
Abraça as belas praias com paixão,
Gigante litoral em extensão
Com mares de água morna transparente.

A lua embala o frevo e a capoeira,
As dunas e falésias, cor dourada,
Cordel, literatura verdadeira.

Estrela que reluz na Pátria Amada,
Cultura que enriquece a terra inteira,
Nordeste, a minha terra abençoada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O MAR 

O mar, com soberana majestade,
Impõe-nos a vontade que lhe emana
Com toda intensidade e não engana
A solidez tirana da maldade. 

Com sua veterana autoridade,
Despreza a sociedade leviana,
Pois a salubridade é sua gana,
Não há ação insana que lhe agrade. 

Esconde em seus rochedos um rosário,
Pois, mesmo autoritário, tem seus medos,
Encontra em nossos dedos seu calvário. 

Espelho refratário de degredos,
Sepulcro de penedos, santuário,
O mar é relicário de segredos!

Hinos de Cidades Brasileiras (Joinville/SC)


Claudio Alvin Barbosa – Zininho (letra), 
Maestro Moacir Portes (arranjo musical)

Tu és a glória dos teus fundadores,
És monumento aos teus colonizadores,
Oh! Joinville Cidade dos Príncipes,
Oh! Joinville Cidade das Flores.

Às margens do Rio Cachoeira,
Um dia o audaz pioneiro,
Plantou do trabalho a bandeira
E se deu, corpo e alma, ao torrão brasileiro.

Depois foram lutas e penas,
Mas nunca o herói fraquejou,
Com sangue, suor e com lágrimas
Do seu próprio corpo teu solo irrigou.

Tu és a glória dos teus fundadores,
És monumento aos teus colonizadores,
Oh! Joinville Cidade dos Príncipes,
Oh! Joinville Cidade das Flores.

E se hoje o bravo imigrante,
Que tua semente plantou,
Com a força e o vigor de um gigante
Nas mãos com que, em preces, ao céu suplicou,

Te visse radiosa e pujante,
Nascida na mata hostil,
A imagem da Pátria distante
Veria, grandiosa, exaltando o Brasil!

Estante de Livros (“Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade)

Pauliceia Desvairada é uma coleção de poemas de Mário de Andrade, publicada em 1922. Foi a segunda coleção de poesia de Andrade e a mais polêmica e influente. O uso livre da métrica por Andrade introduziu ideias modernistas europeias revolucionárias na poesia brasileira, que antes era estritamente formal.

COMPOSIÇÃO

"Pauliceia " é o apelido de São Paulo, cidade natal de Andrade e cidade em que o livro foi publicado. Nos poemas individuais da coleção, Andrade ocasionalmente se refere à cidade como "Pauliceia". 

A coleção se passa em São Paulo e está ligada à cidade de inúmeras formas, tanto artística quanto historicamente. Ela nasceu diretamente das experiências de Andrade no centro da cena artística de São Paulo no ano que antecedeu a 1922, o divisor de águas do movimento modernista brasileiro do qual Andrade foi a principal figura literária. Na mitologia do livro que o próprio Andrade criou, surgiu de uma experiência transcendentemente alienante que Andrade teve em 1920: a raiva de sua família por ter comprado uma (na visão deles) uma escultura blasfema de Victor Brecheret. Não há dúvida de que Brecheret e os demais jovens artistas e escritores do círculo de Andrade - principalmente Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Emiliano Di Cavalcanti e Menotti del Picchia - influenciaram o desenvolvimento do livro. 

Foi escrito, como a obra-prima modernista paralela The Waste Land, ao contrário: Andrade explica no prefácio que ele começou com uma obra muito longa, escrita apressadamente e um tanto desestruturada que foi gradualmente reduzida ao seu estado final.

ESTRUTURA E ABORDAGEM

O livro é composto por 22 poemas curtos, cada um uma imagem única de um segmento da vida de São Paulo, seguido de um longo poema "As Enfibraturas do Ipiranga", descrito como "Um Oratório Profano" e completo com instruções de palco específicas, mas impossíveis: "Todos os 550 000 cantores rapidamente pigarreiam e respiram profundamente" (81). Andrade lê vários desses poemas durante a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, que ele organizou em colaboração com Di Cavalcanti, Malfatti, e vários outros. Ele também leu um ensaio, escrito depois que os poemas foram concluídos, descrevendo sua base teórica em retrospecto; este ensaio foi publicado como uma introdução à coleção, com o título irônico de "Prefácio Extremamente Interessante". O tom é irreverente e combativo e o ensaio traça um uso livremente musical dos versos.

Os poemas, que não apresentam métrica regular nem rima e que não são escritos principalmente em frases completas, mas em frases curtas e rítmicas, foram recebidos com vaias na leitura inicial, embora muitos na plateia ainda reconhecessem seu significado. Na forma, eles são totalmente novos; no tema eles podem ser eufóricos ou extremamente queixosos, preocupados com os cantos menos glamorosos da cidade, de uma forma que era totalmente nova para a poesia brasileira. "Tristura" começa:

Profundo. Imundo meu coração.
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios.
Minha alma corcunda como a avenida São João.

DEDICATÓRIA

Publicado no final do mesmo ano da Semana de Arte Moderna, o sentido militante de inovação artística do livro está em primeiro plano, do início ao fim. A dedicatória é ao próprio Mário de Andrade e começa:

"Amado Mestre,
Nas muitas e breves horas que me fez passar ao seu lado, muitas vezes falou da sua fé na arte livre e sincera; e recebi a coragem da minha Verdade e o orgulho do meu Ideal não de mim mesmo, mas de sua experiência. Permita-me agora oferecer-lhe este livro que me veio de você. Por favor, Deus, que você nunca se irrite com a dúvida brutal de Adrien Sixte...

Respondendo ao apelo poético tradicional às musas clássicas e a Deus, Andrade coloca ambos dentro de si, e se pergunta para não sofrer a dúvida de Adrien Sixte, personagem de um romance de Paul Bourget, Le Disciple, que, como professor de filosofia, argumenta calma e racionalmente em favor do positivismo e do naturalismo sem admitir o pessimismo absoluto dessas ideias em sua própria vida tranquila, até que um estudante, levando-as talvez mais a sério do que ele, age sobre elas severamente e alguém morre. Para Andrade, ser Mário de Andrade significava nunca desistir da severidade das suas convicções. "

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 3 –

 

Mensagem na Garrafa – 82 –

George Abrão 
Maringá/PR

AMIGOS

Nosso grande poeta Vinicius de Moraes escreveu: “E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!”

E eu, na minha pequenez, afirmo: A nossa família Deus determina; os nossos amigos são irmãos com os quais Ele nos presenteia!

Desde que nascemos, temos a necessidade de amar e sermos amados, isso é primordial para a nossa existência. Então, nossos pais e nossos irmãos - se por felicidade tivermos - cercam-nos de carinho e afeto. Conforme vamos crescendo e outros horizontes abrindo-se para nós, encontramos na nossa vida escolar, na nossa vida social, outras pessoas com as quais convivemos em nosso dia a dia. Algumas delas passam com o tempo, mas outras ficam para todo o tempo, são os irmãos recebidos de Deus, são os irmãos recebidos da vida.

E esses amigos, muito embora e em muitas vezes, por contingências diversas separam-se de nós, do nosso convívio, ficam sempre presentes em nossa mente e em nosso coração, pois nem o tempo, nem a distância conseguem fazer com que nos olvidemos de uma amizade, de um amor verdadeiro!

E quando em uma ou outra ocasião nos reencontramos nos parece que o tempo não passou tamanha é a alegria que nos cumula o espírito. E a nossa convivência parece-nos que não sofreu um parêntese onde só restava a saudade. 

Amo os meus amigos e não tenho pejo em afirmar ou em lhes dizer isso, como não tenho pejo em lhes demonstrar o meu carinho, pois não existe amor mais puro e desinteressado que o amor fraterno, amor que sobrepuja todas as adversidades que a vida impõe. E sempre torço pelos seus sucessos; e sempre vibro quando algo de bom lhes acontece; e sempre choro quando, por uma ou outra razão, eles sofrem.

Na vida não se consegue fazer amigos, se ganha!

Fonte> George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Lâmpadas e ventiladores)

- A resistência física da mulher, Sr. conselheiro, - dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "ragtime" sobre "ragtime", "foxtrote" sobre "foxtrote", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.

- Perdão! - interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!

- Eu sei! eu sei! - tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. - Eu sei disso. É uma simples comparação!

E continuou:

- Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A musica retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" (tipo de automóvel) dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés arrebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...

A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento. as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande voo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:

- As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!

Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Octaviano Joba (Poemas Avulsos)


A DOR DA SAUDADE

Ontem, visitei um jardim que fora meu
E  o encontrei tristemente desbotado...
A cor de alegria que tinha desvaneceu
E a tristeza se instalou por todo o lado.

Mas entre folhas secas, paus e cacos
Resistem duas flores lindas em pranto
Diante de tanta imundice, aridez e buracos
Que consumiu todo o verde manto...

E desejei que essas flores fossemos nós:
Eu e tu abraçados doce e eternamente...
Mas sinto que nem alcanço ouvir a sua voz
E o seu último olhar foi mui deprimente…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

LEMBRANÇAS

Vivemos um Paraíso enquanto nos amamos
E tudo na vida tinha algo de belo e doce
Mas, aos poucos, o Paraíso acabou-se 
E o que seria eterno, num instante, injuriamos.

Se de almas gémeas tornamos rivais
E vemo-nos pela rua como gato e rato,
Quem lembrará e será tão grato
Por esse tempo que vivemos como casais?

Eu guardo comigo grandes lições de vida,
Também guardo comigo grandes momentos...
Faça revisão dos seus antigos sentimentos...
Quem sorria pra mim, toda florida?!

Saiba que, enquanto eu viver e tu víveres,
Haverá sempre algo que nos torne semelhantes: 
(não olhe pro lado das coisas humilhantes)
- Lembraremos os mesmos beijos...os mesmos prazeres.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

RETRATO DE UM SONHADOR

Sou o que sempre fui, — eu mesmo.
E para sempre serei único e igual.
Não sou guiado pelo vento, não vivo à esmo. 
Serei igual ao que sou e fui: natural. 

Transformo-me na melhor versão de mim
Passando de geração em geração. . . 
Para tudo há Começo, Meio e Fim;
Também seguirá esta ordem o meu coração. 

Quem disser que sou mau que o diga:
Até Jesus foi entregue pelos seus. . . 
A amizade é uma semente, uma espiga, 
A da parábola que Jesus aprendeu de Deus. 

Valorizo a beleza e simplicidade da Natureza: 
Sou tão igual à qualquer indígena . 
Sobre o futuro, evito ter absoluta certeza 
Como esse que se expressa como alienígena. 

Tento ser humano, e o sou. . . Sou honesto:
Só engano a mim mesmo nas horas vagas. 
Uns dizem que valho, outros, que não presto, 
E é por isso que me lançam pragas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

POEMA DA CONSTERNAÇÃO

De repente fez-se caco, o que era diamante
Fez-se cacto, o que era flor
Fez-se indiferença, o que era amor
De repente fez-se pálido, o que era brilhante.

De repente fez-se deserto, o que era mar 
Tornou-se inferno, o que paraíso
Tornou-se rugoso o que era liso
De repente fez-se selva, o que era pomar.

De repente fez-se inverno, o que era verão
Fez-se outono, o que era primavera
Fez-se pano, o que era bandeira
De repente fez-se crocodilo, o que era leão.

De repente fez-se calvário, o que era jardim
Fez-se desespero, o que era esperança
Fez-se tempestade, o que era bonança
De repente fez-se tristeza, o que era festim.

De repente fez-se mendigo, quem era patrão
Fez-se promessa do que seria o presente
Fez-se presente está dor insolente
De repente fez-se migalha, o que era pão. 

De repente fez-se Diabo, quem era Santo
Fez-se pagão, quem era Jesus
Fez-se apagão, o que era luz 
De repente tornou-se repulsa, o que era encanto. 

De repente fez-se agitação, do que era a paz
Fez-se paz, do que era agitação
Fez-se o que se faz numa "sã nação"(...)
De repente tornou-se cinza, o que era lilás.

De repente fez-se pimenta, o que era refresco
Fez-se burlesco, o que era sério 
Fez-se por emoção, o que seria por  critério
De repente fez-se pó, o que era gigantesco. 

De repente tornou-se velho, o "Homem-novo"
Tornou-se de um, o que seria comum
Enfim, tornou-se espinho o nosso "atum"
De repente separou-se a clara da gema (do antigo ovo).

Sempre de pedra a pedra, levando pedrada
De sol em sol, nos golpes das mãos em punho ...
Haverá uma luz que brilhe, sim, um outro Junho
Mais pomposo e glorioso que qualquer fada. 

De repente..."não mais que de repente"
"A mão armada" fez-se  "a mão amada"
"A mão amada" fez-se "a  mão armada"...
Vivemos feito relâmpagos(...) sempre de repente!

Quem olhar dentro de nós e ver algo, assim, eterno, 
Será em sonho, ou numa simples imaginação...
Eu, por exemplo, veterano da reincidente desilusão,
Só acredito em mim sonhando-me sempiterno.

e facebook Poetas amigos de Isabel Furini

Hinos de Cidades Brasileiras (São José dos Campos/SP)


Letra: Vítor Machado de Carvalho

Hino do Segundo Centenário

Ei-la envolta na neblina,
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José, a hospitaleira,
São José, bicentenária.

Das mãos de Anchieta nascida,
Desta terra legendária,
Que alegre vivas, unida,
No teu trabalho febril.
Que o orgulho sejas do Vale
"A cidade que mais cresce"
Pois o título desvanece
Todo São Paulo, e o Brasil.

Ei-la envolta na neblina
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José, a hospitaleira,
São José, bicentenária.

De operário a estudante,
Teu sangue novo, estuante,
Flui da escola à oficina.
E da fé, que te ilumina,
Unes o livro ao esmeril.

Terra do obreiro e do bardo,
Que tens Cassiano Ricardo,
O Poeta do Brasil.

Maria Amália Vaz de Carvalho (A propósito de um livro)

Há momentos em que eu não posso deixar de me sentir desconsolada. Parece-me nesses momentos que a humanidade está passando por uma das crises mais graves da sua vida de tantos séculos.

E quem terá forças para conservar-se espectador indiferente dessa dolorosa tragédia de que é teatro o mundo inteiro!

Teorias que se atropelam e se contradizem, sistemas políticos que mutuamente se combatem, opiniões tão variadas, acerca das coisas graves e das coisas insignificantes, que não nos resta meio algum de descortinar a verdade em meio de tão babilônica confusão.

Na prática o desmentido formal e permanente a todas as doutrinas que se pregam e se propagam!

Celebra-se a apoteose da família, e a família decadente, desnorteada, desunida, apresenta o reflexo fiel desta quadra de desalento e de incerteza!

Enquanto os sonhadores erguem um altar à justiça, como a deusa moderna que mais cultos merece, a injustiça aclamada, protegida, triunfante campeia neste mundo onde a vitória já não pertence ao mais forte, mas sim ao mais astuto!

A política, que parecia dever ser aquela ciência complexa e respeitável de conduzir as sociedades ao mais alto grau de aperfeiçoamento material e moral, não é senão um mercado abjeto, onde se debatem os mesquinhos interesses individuais, não aqueles interesses que são a base do bem coletivo, mas os que se traduzem na exploração do homem pelo homem.

A guerra aqui acesa e selvagem, de uma selvageria refinada e científica, acolá disfarçada e hipócrita, arma-se por toda a parte, como nos séculos que lá vão, igualmente funesta, embora a revistam mais prestigiosos aspectos.

Fala-se em paz, em fraternidade universal, prega-se uma religião humana que parece querer e dever suprir a religião divina, mas os modernos crentes d’esse dogma que assenta no direito, na justiça, no amor universal, atraiçoam tanto as suas doutrinas, como atraiçoavam a sua fé os católicos mal esclarecidos das épocas de ascetismo rude, e de fanática superstição.

Para onde vamos nós?

Se vamos para o Bem, o que é que origina esta dolorosa inquietação, que avassala e confrange todas as almas, este contraste incompreensível, entre o que se pratica e o que se pensa?

Se vamos para o Mal, para que nos falam do progresso, da perfectibilidade humana, das conquistas da civilização, dos arrojos felizes da ciência, de tudo que parece preparar ao homem uma quadra luminosa, feliz, nunca realizada até agora?

Dantes, nestas horas de dúvida, de angústia opressiva, íamos nós procurar consolação na palavra animadora e harmoniosa dos que, com os olhos fitos na estrela do ideal, indicavam ao homem o rumo que ele tinha a seguir, para não se perder na sua gloriosa ascensão.

Hoje, esses pilotos da nau do futuro estão mudos ou descreem também!

Mais doloroso ainda que o silencio desalentado, é o “rictus” sarcástico com que eles assistem a luta estranha e confusa de tantos elementos contraditórios e incompatíveis.

Depois a literatura, que é o espelho da alma das sociedades, é hoje por toda a parte um brado unanime de negação.

Não reconstrói, não modifica o que está feito, trata de o desmoronar pedra por pedra!

Há um homem em França que refaz, colocado num ponto de vista diverso, a obra colossal de Balzac.

O romancista mais admirável da França, aquele que fez do romance um ramo das ciências sociais, fez num momento, que tem por força de ficar, a síntese de sua época.

Pintou, e com que potência da verdade! Os reis, e os operários, as duquesas sentimentais, e os artistas convulsionados pela nevrose do seu tempo, os políticos, os sábios, os pensadores, os literatos; as pecadoras do alto mundo, e as pecadoras do mundo equívoco; os financeiros, e os lutadores ambiciosos; os que vinham perder a alma e gastar o corpo nessa Paris elétrica e absorvente, que atrai os gênios e os monstros, e os que vinham ali conquistar a fortuna, o poder, a soberania omnipotente.

Na sua obra complexa, enorme, que às vezes tem na distância um não sei que de monstruoso, encontra-se viva, palpitante, com os seus vícios, com as suas paixões, com o seu talento ardente, com a sua magnética e irresistível sedução, uma das épocas mais características da civilização da França, o que significa a civilização da Europa.

Se em Balzac encontramos as florescências rubras do mal, nem por isso nos seduzem menos as suavidades castas da virtude.

Ao pé de Madame de Marneffe, a pequenina e graciosa fera parisiense, felina e nervosa, com carícias que mordem e furores que acariciam, há a doce figura de Eugenia Grandet, a mais dolorosa virgem, que a imaginação moderna ainda concebeu e idealizou.

Ao pé de Luciano de Rubempré o ambicioso efeminado e mórbido; de Vautrin o brutal lutador que seria um líder do século XVI e que só pôde ser um forçado no século XIX; ao pé de Marsay o político sagaz, que faz dos homens, das mulheres e das coisas, meros instrumentos da sua fortuna, que não tem lei nem fé, e que é capaz de assassinar com um sorriso de dândi, temos de Artes o pensador austero, e pobre escritor para quem a literatura é um magistério e não um ofício, temos Cesar Birotteau, a sublimidade burguesa, o honesto comerciante que tem palavra de duque, que é perfumista com a mesma nobreza de abnegação e de honradez, com que se é sacerdote, e que glorifica toda uma classe de que se riem os frívolos, sem saber quanta heroicidade é precisa para saber guardar imaculada em um peito de burguês, a honra de um paladino.

Dizem que o vício poluía na obra de Balzac com uma exuberância de vegetação inacreditável.

Ele não foi mais do que o analista apaixonado da sua época.

Adorou-a pelo que ela tinha de grande, compreendeu que lhe podia desnudar as chagas, visto que ao lado delas podia mostrar tão admiráveis belezas.

Foi implacável na sua justiça.

O seu tempo seduziu-o pelo que havia de brilhante nos seus vícios, de fecundo e poderoso nas suas paixões, de arrebatado e criador no seu gênio, de raro e dedicado nas suas virtudes.

Hoje no artista que segue as pisadas de Balzac, que não tem a sua potência criadora, mas que tem como ele, e talvez mais metodicamente do que ele, o estudo paciente e investigador, que vemos nós que possa dar-nos aquela sensação de prazer agudo que a leitura conscienciosa de Balzac dá a um verdadeiro artista?

Emilio Zola também descreve a sua época.

É artista, porque sente e sabe fazer sentir.

Diz-se imparcial!

Faz viver nos seus livros a sociedade de que faz parte; entra nos palacetes de pedraria rendilhada dos modernos financeiros, os reis do mundo atual, percorre os salões dourados e os vestuários femininos fantasistas, as salas de jantar, onde se reúnem as relíquias mais preciosas de umas poucas de civilizações, janta nos restaurantes de mais fama, visita nos seus camarotes da ópera ou dos italianos as mundanas mais elegantes, as altas sociedades mais admiradas e invejadas, está no segredo de todas as operações da Bolsa, escutou a uma porta todas as combinações e convênios diplomáticos, penetrou com a sua perspicácia tenaz no interior da alma que anima o seu tempo, falou com os artistas, com os sábios, com os poetas, com as mulheres; subiu aos oitavos andares onde dormem amalgamados numa dolorosa e medonha promiscuidade os miseráveis dessa Paris, cuja superfície é tão sedutora e tão brilhante; viu os farrapos que cobriam o corpo desses indigentes, e os vermes que corroíam a alma desses párias; escutou as perfumadas confidências que murmuram devagarinho uns lábios frescos e vermelhos, por detrás dum leque onde dançam a gavotte (dança) umas pastorinhas de Watteau.

Observou de perto o que há de mais brilhante e o que há de mais abjeto, o que há de mais puro e o que há de mais ignóbil.

Dessa observação tão variada e tão completa que resultado colheu?

Não o posso dizer ao certo, sei só que não há nada mais desolador e mais triste do que a leitura de um livro de Zola.

E Zola é, depois de Tlambert, o grande mestre que morreu, o escritor de mais pulso da moderna geração realista.

Os outros não têm o talento dele, não têm o alcance funesto ou bom, mas em todo o caso poderosíssimo da sua obra, não têm a sua paciência de beneditino, exercida com os processos da nova escola.

Isto não é dizer mal dos que trabalham agora, é notar e assinalar um dos assinalar da confusão que hoje nos desnorteia.

Acudiam-me todos estes pensamentos, imagina como, leitora?

Ao ler um novo livro de Feuillet, ultimamente publicado em Paris Le journal d’une femme.

Feuillet é por excelência o escritor elegante e delicado.

No fundo, pode ser que a obra dele tomada no seu conjunto não seja de uma moralidade tão cauterizadora como a que resulta dos livros de Zola.

Ninguém diga que Zola é um escritor imoral, não; ele é simplesmente um escritor misantropo: vê as coisas pelo lado mais negro, e as suas bacantes, nuas como são, não têm efeitos enervantes, doem como um cáustico aplicado sobre uma úlcera aberta.

Ao lê-lo, a gente não tem de certas tentações de imitar os seus deploráveis heróis; pelo contrário. Sente-se ferida, humilhada, quase que angustiada, e exclama tristemente: Meu Deus! Pois a humanidade é isto!

Octavio Feuillet é, por assim dizer, o contraste do seu ilustre contemporâneo.

Escreve das mulheres e para as mulheres com pena de ouro e nácar.

Feuillet é o último romântico, depois do romantismo ter morrido, como Balzac é o primeiro realista antes do realismo nascer.

Para Feuillet, o delicado observador, as paixões são doenças da alma; para Zola, o anatomista implacável, as paixões são doenças do corpo.

O convulso e repugnante histerismo das mulheres de Zola não tem nada que ver com a sentimentalidade melancólica das mulheres de Feuillet.

Nenhuma delas — deixe-se isto bem claramente registrado para honra e felicidade do sexo feminino — nenhuma delas é a verdadeira mulher, a que tinha a obrigação de ser a mulher do futuro, já me não atrevo a dizer da que o será.

Octavio Feuillet, que está talvez perto demais das cruas pinturas do realismo, intentou neste seu último livro, chamado Le journal d’une femme, reabilitar as ideias românticas, que visto perderem tantas mulheres, podem também salvar algumas.

Ele que sabe tão bem dar vida às suas pálidas e nervosas heroínas, que têm na boca o sorriso da esfinge, que têm na voz uns feitiços misteriosos, que têm no gesto uma graça irrequieta e caprichosa, que sabem arrastar o homem até a beira do crime com um aceno das suas mãos esguias e aristocratas, ele, o criador do Conde de Camors, esse último produto da literatura byroniana, que endoideceu de amor literário tanta mulher, ei-lo que se propõe desta vez o difícil tema de explicar a que nobres e altos sacrifícios o romantismo bem entendido pode levantar uma mulher.

Foi arrojada a empresa; arrojada, mas feliz.

Le journal d’une femme, livro que eu já daqui recomendo a todas as minhas leitoras, é uma joia admirável, cinzelada pela mão de um artista de coração.

E depois são tais os exageros e desmandos da chamada escola realista, é tal o amesquinhamento a que ela reduz a humanidade, que é bom que um escritor de tão prestigiosa eloquência como é Octavio Feuillet mostre que, ao fim de contas, nem tudo era mal na geração que os moços de hoje tentam destronar com tão arrogante desdém.

Roubar ao homem e sobretudo a mulher aquele ideal em que até agora todos punham a mira embora o julgassem inacessível, é despir a vida das poucas flores que ela pôde ter.

Não; o homem não é só um ser organizado que pensa, é também uma alma que ama, espera e crê!

Nesta era de transformação e de incerta claridade, é bom que uma voz se erga e diga bem alto que a paixão só é criminosa quando mal dirigida, que o excesso do sentimento só é ridículo quando mal aplicado, que a abnegação inteira e absoluta tem gozos superiores a todos os gozos da matéria, e que as almas boas e as almas grandes descobriram uma linguagem misteriosa, na qual falam com Deus.

Não basta descrever minuciosamente com uma perversão de gosto, deveras deplorável, tudo que há mau, grotesco, ou vicioso na criação; não basta ter em si tão acentuada preocupação horrível, que se deseje ver com o microscópio do naturalista, para bem lhe distinguir os defeitos, as anfractuosidades, as máculas, os vermes, de tudo que à simples vista seria harmonioso e belo.

Aquele a quem se roubam todas as ilusões salutares cumpre apontar para algum bem que ainda lhe ficará na terra, bem verdadeiro que o compense de todas as suas perdidas alegrias mentirosas!

Não basta negar, é necessário afirmar com convicção robusta; não basta demolir, é preciso ao lado dos edifícios que se derrubam e desmoronam construir novos edifícios mais ricos e mais seguros.

Octavio Feuillet fez este livro, como um protesto de escola, sem, contudo, perder com esta qualidade um tanto dogmática, o seu interesse dramático, a vida intensa, tão indispensável às verdadeiras obras d’arte.

Dado o caso de se chamar romantismo ao excesso de certos e determinados sentimentos, a concepção mais ou menos quimérica que temos das coisas da vida, resta provar se o romantismo pode ou não pode ser nocivo conforme o terreno em que medrar e o meio em que se desenvolver.

A principal heroína do romance, aquela que escreve o seu Diário, ao qual dá o título de livro, é uma rapariga apaixonadamente romântica, tudo quanto há mais romântico, quer dizer tudo quanto há de menos prático e real.

Por isso sendo moça, formosíssima, sentindo cantar dentro da sua alma a festiva e triunfante formosíssima dos vinte anos, tendo uma destas belezas características que dão a certas mulheres um aspecto de deusas, amando com aquela primeira e casta ternura das virgens um homem em tudo digno dela, sacrifica todas estas superioridades da natureza, todas estas radiosas promessas de felicidade a quem? A que?

A um pobre mutilado que morria de amor por ela, a um soldado que voltara da guerra sem uma perna e sem um braço, informe, grotesco, irremediavelmente desgraçado, e que, assim mesmo do fundo do abismo em que o destino o lançara, ousou amar aquela mulher olímpica, e teve a audácia de tentar morrer por causa dela.

Enquanto ele viveu, foi-lhe fiel como as mulheres dignas o sabem ser, consolou-o de tudo que perdera, levou a luz da sua caridade bendita aos antros em que aquela pobre alma se debatera inutilmente por tanto tempo.

Mais tarde quando o marido morre, abençoando-a como se abençoa um anjo, ela, livre de novo, torna a encontrar o homem que amou uma vez, e que não soube esquecer.

Esse é então marido da amiga, da infância, da juvenil viúva.

Não são felizes, os dois, mas ela, a intrépida, a caridosa criatura, lá está tentando da abnegação de cada um deles fazer a felicidade de ambos.

Não o consegue, e quando a amiga, culpada e arrependida se mata para fugir ao horror de mentir eternamente a seu marido, só ela no mundo recebe a confidência do seu crime, confidência que numa carta repassada de dor a doída criança lhe pede que transmita ao esposo ultrajado.

Ficaram ambos livres em face um do outro, ambos viúvos, ambos tendo cumprido a missão que o destino lhe confiara.

Nada os desune agora, nada, a não ser uma dúvida que punge o ânimo daquele, que hoje ela ama perdidamente com a paixão concentrada de tantos anos de sacrifício.

— Porque foi que a minha mulher se matou? – pergunta ele então. Às vezes lembro-me que foi talvez o desamor que eu não soube ocultar bastante. Se assim for, fugirei. Não quero gozar uma ventura de que não sou digno. Se eu matei uma inocente e casta criança, quem me dá direito de ser ainda feliz na terra?

Só ela o sabe, só dela depende aquela ventura divina, de que o dever e a caridade a fizeram fugir noutro tempo.

Pois a ninguém revelou o segredo da sua amiga morta, da doce criatura que a paixão fustigara e que a paixão matou!

Calou-se, deixou que o noivo da sua alma se afastasse para sempre, pungido por um remorso que o separava da ventura, e olhando para o berço da filha escreveu estas palavras que vertem lágrimas, as santas lágrimas, que os realistas não conhecem:

«Restas-me tu, minha filha... Escrevo estas linhas ao pé do teu bercinho... Espero que um dia estas páginas façam parte do teu enxoval de noiva; talvez elas te digam que queiras muito a tua pobre mãe, tão romântica!... Dela saberás talvez que a paixão e o romance podem ser bons, com a ajuda de Deus, porque elevam os corações e ensinam-lhes os deveres superiores, os grandes sacrifícios, as elevadas alegrias da vida. É verdade que eu choro ao dizer-te isto, mas olha que há lagrimas que causam inveja aos anjos.”

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.