segunda-feira, 11 de março de 2024

Baú de Trovas 81


O sorriso é qual se fosse 
uma prece enternecida. 
É o modo mais belo e doce 
de dizer: "Eu amo a vida!”
A. A. de Assis 
Maringá/PR 
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Existe alguma verdade
dentro de cada mentira.
Sonho não é realidade
mas na verdade se inspira.
Abílio Kac 
Rio de Janeiro/RJ
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Empina a pipa, garoto,
enquanto o sol não descamba;
pois neste mundo maroto,
estamos na corda bamba.
Adamo Pasquarelli
São José dos Campos/SP
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Desde os tempos de Noé
o mundo pôs-se a saber,
que a manga só cai do pé,
porque não sabe descer.
Ademar Macedo +
Natal/RN
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Estendam as mãos, amigos,
mantendo o mundo seguro.
Dos jovens e dos antigos
depende o nosso futuro!
Agostinho Rodrigues
Campos dos Goytacazes/RJ
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Vi num jornal estampado
o perigo que há no beijo.
Antes ser contaminado
do que morrer de desejo!*
Alydio C. da Silva
Aracruz/ES, 1917 – 2001, Belo Horizonte/MG
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Con el mundo en nuestras manos
orando por paz y amor,
seríamos siempre hermanos
y el universo mejor.
Ángela Desirée Palacios
Venezuela
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Seja pedra no caminho
ou corrente que nos prende,
quem avança de mansinho
se liberta e não se rende.
Antonio Cabral Filho
Jacarepaguá/RJ
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Eu abri a porta errada
e caí numa arapuca:
em vez da noiva pelada,
vi a sogra sem peruca.
Antônio Francisco Pereira 
Belo Horizonte/MG
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Eu vi, ao nascer do dia,
a rosa despetalada
e o assassino que fugia:
o vento da madrugada!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG
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Na tristeza que me invade,
de uma paixão extinguida...
Sou montanha de saudade
na cordilheira da vida!
Armindo dos Santos Teodósio 
Brumadinho/MG
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Sofrer, chorar e morrer
eis o dilema ou questão:
sorrir, brincar e viver,
cabe a ti, a decisão.
Artemiza Correia 
Ocara/CE
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Sem demonstrar o fracasso  
por seu amor rejeitado,  
traz alegria o palhaço,  
com seu sorriso maquiado.
Arthur Thomaz da Silva Neto 
Sumaré/SP 
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Pobre louco apaixonado,
ai de mim! que não mais via,
que seu amor, pouco a pouco,**
esfriava dia a dia.
Autor Anônimo 
Trova Popular
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De lágrimas encenadas,
teu falso choro, infecundo,
são águas que decantadas,
mostram que há lama no fundo...
Cezar Augusto Defilippo 
Astolfo Dutra/MG
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Contra o perigo atual
já não há quem se previna
porque, do gênio do mal,
há um clone em cada esquina!
Clarindo Batista de Araújo
Jardim do Piranhas/RN, 1929– 2010, Natal/RN
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Doutor - peço que me ajude
nesta dúvida inclemente:
Se isto é Casa de Saúde,
como pode ter doente?!...
Colbert Rangel Coelho 
Pitangui / MG, 1925 – 1975, Rio de Janeiro/RJ
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Meu verso é barco largado
na pauta da inspiração;
tendo Deus sempre ao meu lado
não temo nem furacão!
Dáguima Verônica
Santa Juliana/MG
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Já fui comilão outrora!
Hoje, ao lembrar-me, acho graça:
vontade ainda tenho agora,
mas, como vem, logo passa!!!
Dalmir Pena
Volta Redonda/RJ 
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Quando alguns sonhos perdidos
acharam chegado ao fim,
você, em muitos sentidos,
deu novo sentido a mim.
Dodora Galinari 
Belo Horizonte/MG
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Deslizando em mar suave
ou revolto, em desatino,
não tem âncora que trave
a jangada do destino.
Dulcídio de Barros M. Sobrinho 
Juiz de Fora/MG
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Manhã... O sol vem nascendo...
E na montanha orvalhada,
vejo os seus raios varrendo
os restos da madrugada!...
Edmar Japiassú Maia
Miguel Couto/RJ
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Sou uma roça enflorada
quando ao sol de teu olhar,
me amanheço em alvorada
com meus sonhos a espigar!
Edna Valente Ferracini
São Paulo/SP
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Metade dos nossos ais
são das decisões que tens!...
Queres voltar quando vais;
queres partir quando vens!…
Edy Soares 
Vila Velha/ES
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Manhãs são novos começos,
festas da vida, alvorada
da fé que não vê tropeços,
mas a luz no fim da estrada…
Elias Pescador 
São Paulo/SP
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Às vezes aborrecida 
mas sorrindo a desventura... 
Mulher continua a lida 
com muito amor e ternura !
Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP
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A vida é uma mesa posta
com diversas iguarias;
se de amargores não gosta,
ponha doçura em seus dias.
Elisabete do Amaral Aguiar
Mangualde/Portugal 
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Na verdade, quando se ama,
o amor, transcende a razão
e infinito... acende a chama...
que enclausura um coração.
Fabiano de C. Magalhães 
Natal/RN
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Seja a paz um elo forte
na corrente da amizade,
que ela ao mundo inteiro exorte
ao amor, que é só verdade!
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS
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Se eu cultivar a alegria 
praticando o bem querer, 
terei no meu dia a dia 
mais coragem de viver!
Henriette Effenberger 
Bragança Paulista/SP
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O homem, de Deus tão distante,
hoje tornou-se, afinal,
uma nota dissonante
na harmonia universal.
Hilton Vargas
Niterói/RJ
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Os teus lábios tão risonhos,
resplandecem de doçura,
são estrelas no meus sonhos,
reluzindo em noite escura.
Iramar Meireles Gonçalves 
Cambuci/RJ
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O cansaço… a consumindo…
numa cadeira, ela escora…
Levanta o guri sorrindo:
- Eu guardei para a Senhora!…
Janete de Azevedo Guerra
Bandeirantes/PR
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Deus! Que beleza me deste!
- Penso que ela é toda minha -
mas no espaço azul celeste,
sou só uma nuvenzinha.
Janske Niemann
Curitiba/PR
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Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão:
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
Jérson Lima de Brito 
Porto Velho/RO
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Mãos erguidas, força unida,
no simbolismo que encerra:
a conservação da vida,
na preservação da Terra.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ
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Asqueroso é o avarento
que, de si, nada consome;
à família é rabugento,
por dinheiro, unha de fome.
Lairton Trovão de Andrade
Pinhalão/PR
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Para exercer liderança,
não basta a capacidade;
é preciso impor confiança
e respeito, sem vaidade!
Leonilda Yvonetti Spina 
Londrina/PR 
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Mirando pasar el tiempo
nos damos cuenta en la vida
que el amor no es pasatiempo
sino una lucha aguerrida.
Libia Beatriz Carciofetti
Argentina
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Este mundo gira, gira!
Gira tanto, tão veloz!
Ele gira ou é mentira?
Pois quem gira, somos nós!
Lisete Johnson +
Porto Alegre/RS
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Decisão precipitada
nos traz em algum momento,
glória da sorte lançada
ou grande arrependimento.
Lucélia Santos 
Patu/RN
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Que o sorrir mais se amplifique 
e que haja menos tristeza... 
Bondade se multiplique 
e o pão se divida à mesa!
Lucília Alzira Trindade Decarli 
Bandeirantes/PR
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Olhando o tempo passar,
no relógio da memória,
eu senti coisa invulgar,
pois revivi nossa história!
Luiz Carlos Abritta +
Belo Horizonte/MG
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Somos dois gritos calados
vivendo um sonho inaudito...
E como seres alados
voando para o infinito.
Luiz Gonzaga da Silva 
Natal/RN
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Na humildade dos seus passos,
lembre sempre a decisão
de dar a mão, nos fracassos,
a quem lhe estendeu a mão...!
Mara Melinni 
Caicó/RN
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Não sei se foi teu sorriso 
e, ainda hoje, eu não sei... 
mas se existe um paraíso 
em teu sorriso o encontrei!
Maria Lúcia Daloce 
Bandeirantes/PR 
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A pessoa, quando mente,
age qual rio infecundo
que, à tona, flui transparente
e esconde a lama no fundo...
Marília Oliveira 
Porto Alegre/RS
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Descobri, pela janela
das horas de minha vida,
que o futuro é uma aquarela
ainda a ser colorida.
Mário A. J. Zamataro
Curitiba/PR
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Minha passagem na terra 
tem a marca que eu queria, 
todo amor, sem qualquer guerra: 
– Doce viagem, que alegria!
Marli Voigt 
Curitiba/PR 
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No rastro dos desenganos,
registrei bem na memória,
que os erros mudam os planos
mas jamais mudam a história.
Messias da Rocha
Juiz de Fora/MG
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No oceano da vivência,
sentimentos e emoções,
veem na âncora a prudência
com marolas, turbilhões.
Nadja Cristina Lenzi Gadotti 
Balneário Camboriú/SC
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Poesía apasionada,
eres pimpollo, eres flor. 
Brotes de luz tu mirada,
tu perfume es el amor.
Nelly Noemí Nicolosi
Argentina
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O rostinho amarelado
encostado ao mostruário
cobiçava o tão sonhado
presente. Triste cenário!
Nemésio Prata
Fortaleza/CE
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Num reverso de aprendiz,
eu sigo vivendo em vão.
Nada guardei do que fiz,
esqueci toda a lição.
Oly Cesar Wolf 
Campo Largo/PR 
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Um abraço jamais se esquece
pelo bem que ele nos faz!
Quanto mais forte, mais cresce,
num simbolismo de paz!
Professor Garcia
Caicó/RN
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Num impulso de momento,
decisões, no dia a dia, 
são reféns do sentimento,
orquestrando a travessia.
Relva do Egypto R. Silveira 
Belo Horizonte/MG
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Desato o nó da lembrança
e um facho de luz sem fim
me traz de volta a criança
que o tempo levou de mim!
Rita M. Mourão
Ribeirão Preto/SP
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Por berço tive a montanha!
Sou camponês, trovador!
No universo da campanha,
meu estro virou condor!
Rui Cardoso Nunes
Porto Alegre/RS
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A brisa beija a roseira
e ao compasso das retretas,
a praça se envolve inteira
na festa das borboletas!
Selma Patti Spinelli 
São Paulo/SP
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Uma luz aconchegante 
faz na noite moradia 
e nesta paz radiante, 
avulta-se a estrela-guia! 
Solange Colombara 
São Paulo/SP
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A montanha neblinada,
quando foge à nossa vista,
é a natureza enciumada
que esconde o quadro do artista.
Tharcílio Gomes de Macedo
Taubaté/SP
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Finda a paixão proibida...
E ao seguir novos caminhos,
a decisão foi da vida,
que fez, de nós... dois sozinhos!
Therezinha Dieguez Brisolla 
São Paulo/SP
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NOTAS
* De acordo com a Conaprest da UBT, não são mais aceitas rimas tipo eijo/ejo; ágoa/água; oca/louca, etc.

** Antes da fundação da UBT, não havia a obrigatoriedade de rimar o 1. verso com o 3. verso. Para concursos de trovas, é obrigatória a rima do 1. verso com 3. verso, 2. verso com 4. verso. (Sistema ABAB)

George Abrão (O salão nobre)

Em Jaguariaíva (no Paraná), no Colégio Estadual “Rodrigues Alves”, existe um salão para eventos denominado Salão Nobre. Nos anos sessenta, do século passado, época deste relato, o salão era utilizado para festas de aula inaugural, sessões cívicas, formaturas, apresentação de peças teatrais ou de musicais ou de concertos e de soirées, que naqueles tempos eram chamadas de “brincadeiras dançantes” ou simplesmente de “brincadeiras”.

Essas “brincadeiras”, com a anuência da diretoria da escola, davam-se sempre aos sábados a partir das 21h, programadas e realizadas pela comissão de formatura do ano. Avisava-se com antecedência e praticamente toda a juventude jaguariaivense se fazia presente, pois era a principal diversão nos finais de semana. Na maioria das vezes a festa era animada com som mecânico, pois lá existia uma radiola onde se tocavam discos de vinil, e excelentes caixas de som. Os discos executados eram, na maioria das vezes, das orquestras e bandas: Ray Conniff, Tijuana Bras, The Beatles, The Rolling Stones, The Fevers, Glen Miller; e dos cantores: Roberto Carlos, Wanderléa, Erasmo Carlos, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Altemar Dutra (para os mais românticos). Felizmente naquele tempo ainda não existiam os funks, raps e afins, nem a música sertaneja (da qual particularmente não gosto).

E sob a muito usada luz negra ou globo de luzes coloridas, os casais dançavam juntos embalados pelos variados ritmos tocados, ou separados quando era rock and rool ou twist. Mesmo com a música mais romântica, quando dançavam de rosto colado, não haviam excessos, pois ao menor sinal disso, um dos integrantes da comissão de formatura aproximava-se e, sem nada dizer, só olhava para o partner que se recompunha.

Durante a festa sempre havia uma equipe que realizava a brincadeira de salão “correio elegante” que consistia na troca de bilhetinhos entre as moças e rapazes e vice-versa onde as frases eram variadas: “Você é o queijo da minha goiabada! Quer ser meu par?”, “Eu não fiz nada pra esse amor nascer, mas faço tudo pra não se acabar!”, “Beijo vem do verbo beijar que só dois lábios podem conjugar… Quer tentar?”, “Me apaixonei por você pela segunda vez nessa semana. Me perco e me encontro só em você.”, “Não te doem as pernas de fugir dos meus sonhos todas as noites?” e outras, algumas de cunho romântico, outras nem tanto. Dessa brincadeira surgiram muitos namoros que às vezes foram até ao casamento.

As bebidas consumidas durante a festa iam do refrigerante aos coquetéis: Cuba Libre (rum com coca-cola e limão). Hi-Fi (Vodka com Fanta), Samba (cachaça com coca), Gin-Tônica (que ficava azul sob o efeito da luz negra) e outros inventados na hora. Mas não havia excesso nas bebedeiras e nem as costumeiras brigas que atualmente se veem muito por aí.

Por volta das 2hs a festa acabava como o combinado, só que sempre sob protestos, pois todos queriam mais. Então o pessoal que ia para casa na mesma direção saia em grupos, “entregando” as moças em suas respectivas residências que se localizavam no trajeto.

Anos dourados e saudosos! Se hoje fizéssemos uma reunião no Salão Nobre com todos os habitués da época, ela seria engraçada, pois já somos todos sexagenários ou alguns quase chegando lá.

Fonte> George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.

Hinos de Cidades Brasileiras (Garibaldi/RS)


Nesta data gloriosa
De tua emancipação
Nós queremos jubilosos
Te saudar numa oração!
Salve, salve, Garibaldi
Neste dia trinta e um
Salve! Salve!

Imigrantes te construíram, com bravura e destemor
Sacrifícios não mediram, pois te ergueram com amor
Garibaldi tua riqueza, são teus vinhos, teus trigais
Tuas colinas verdejantes, tuas belezas naturais.

O teu povo idealista, é também hospitaleiro
Sente-se em casa o turista nacional e estrangeiro
Tua igreja é das mais lindas, tua praça é um primor
Lá no alto a doce Ermida, testemunha fé e amor.

Tuas crianças, lindas flores, são alegres e sadias,
Com seus risos e folguedos, enchem tudo de harmonia
Tuas escolas são pra-frente, estudante são aos mil
Jovens fortes e briosos, esperança do Brasil.

Aparecido Raimundo de Souza (Sobre gatos e bichanos)

DAÍRA AVISTOU a Lisandra saindo de sua residência no exato momento em que vizinha trancava o cadeado no portão. Ambas moravam na mesma rua. Daíra vivia com a família na casa de número trinta e cinco e Lisandra, na casa de número quarenta e oito, ou seja, as habitações ficavam exatamente uma em frente à outra. Daíra gostava de cachorros, mas não possuía nenhum animal. Apreciava somente de longe, distanciado o máximo possível de seus calcanhares. Já a Lisandra, adorava de paixão, não os cachorros, mas os gatos. Metida a saber tudo, Daíra, assim que viu a amiga, atravessou a rua, e, com aquela voz de taquara rachada, tirada a sabedora, sinalizou que queria trocar algumas palavras com ela. 

Lisandra estancou os passos e mandou um bom dia sem esperar que a confinante lhe respondesse. Conhecia de longa data a fronteiriça. Estudavam na mesma escola, todavia, em salas diferentes. Sabia, de antemão, nessas ocasiões de esbarros e encontrões, a dondoca se fazia totalmente chata e descomedida. Trazia sempre uma pedra escondida na manga e nunca abandonava aquele ar de superioridade infernal. Nessas raras colisões, se fazia acompanhada de uma impostação inconveniente na voz tonitruante e imponente, contudo, propícia a quem se achava a maioral, a superior e, por conta disso, entendia poder pisotear em quem quer que desejasse. Face a esse jeito aparvalhado resolveu, na cara dura, testar a amiga em relação aos seus bichanos com os quais (diga-se de passagem) tinha um cuidado deveras especial.

Daíra:
— Lisandra, você sabe tudo sobre gatos não é mesmo?

A amiga encarou a vizinha. Pensou com seus botões: “lá vem besteira.” 

Lisandra:
— Sim. Por qual motivo a pergunta? 
Daíra:
— Curiosidade...
Lisandra:
— Então vá em frente. Pergunte o que quiser.
Daíra:
— Qual o coletivo de gato?
Lisandra:
— Gatos. 
Daíra:
— Quantos gatos você tem hoje em sua casa?
Lisandra:
— Oito. 
Daíra:
Então, Lisandra, você diria que tem oito gatos englobando todos os oitos num só terminal numerário e coletivo?
Lisandra:
— Sim. Como igualmente poderia responder que tenho um “grupo de oito gatos” ou uma “gataria em número de oito.” Nada me impediria de dizer também que possuo uma “cambada de oito gatos,” como uma “bicharada de oito gatos.” A ordem da nomenclatura ou a terminologia da chamada dos bichanos não alteraria o fator de todos eles miarem, caso resolvessem latir ao mesmo tempo...
Daíra:
— Latir? Oxe! Gato late?
Lisandra:
— No bom sentido, Daíra, no bom sentido, se é que entende o que digo!
Daíra, desconversando:
— E quando alguém fala pra você: “ali naquela casa tem um “bando de gatos” soltos no telhado.””  É correto o uso desse termo?
Lisandra:
— Sim. Corretíssimo. Um “bando de gatos” está no telhado, ou um “bando de gatos” dorme no sofá da sala, ou na porta da cozinha, ou na mesa do café que fica em desuso a noite inteira na varanda...
Daíra:
— E qual a expressão ou a lista mais comum para definir “gatos de rua” que, por algum motivo invadiram as dependências do vizinho?
Lisandra:
— Simples, amiga. Uma “cambada de gatos” vadios adentrou ou ocupou ou granjeou para a casa do vizinho, do seu Paulo, apenas como exemplo, conquistando o precário da sua fragilidade.
Daíra:
— “Bicharada” se adaptaria ou se “adequararia” aos gatos?  — Como seria?
Lisandra:
— Com toda certeza, Daíra. Eu não diria “adequararia,” mas  que adequaria... seria mais bonito e correto...
Daira, completamente sem graça:
— Como você se dirigiria a alguém do nosso conhecimento explicando essa situação?
Lisandra:
— De uma forma simples e até bem corriqueira e usual. Eu falaria: aqui na nossa vizinhança, há “uma bicharada enorme” disputando território. 
Daíra:
— Lisandra, que maneira boba, mas acertada eu poderia usar sem achar que estaria fazendo feio ou dando bandeira ao mencionar “gatos” sem um lugar certo ou distanciados de um ponto de apoio para ficarem?
Lisandra:
— Tenho um exemplo típico aqui perto de nós. Minha avó Totonha, que você conhece tanto quanto eu..., aquela velhinha linda e simpática da casa dois, no começo da nossa rua.  Ela cuida de uma “gataria abandonada” que encontrou à beira da morte na praça do colégio onde estudamos. Lembra disso? Não faz muito tempo... 

Daíra, pra lá de furiosa com as respostas, resolveu tirar dos cafundós da sua arrogância a última cartada. Desta feita, segundo seus pensamentos mirabolantes, derrubaria a amiga presunçosa que se vangloriava de saber tudo sobre esses mamíferos domésticos e carnívoros oriundos da família Felidae. Mandou bala: 
 — Quando você vê um monte de gente que tem a mesma mania que você (mas não a coragem de assumir o amor pelo bicho declaradamente como a sua generosidade) e, por conta, faz entrega de uma porção deles à uma “instituição que acolhe esses animais,” como você os classificaria? Falo especificamente da ordenação desses gatos dentro dessa... dessa vamos colocar, fundação...
Lisandra:
— Essa “instituição” ou “fundação,” como você mesma deixou claro – já existe aqui no bairro próximo ao nosso. Saiba que está a todo vapor. Inclusive, vou lhe fazer um convite. 
Daíra:
— Um convite? Qual, amiga? Que eu aparecesse no seu serviço vestida de gata?
Lisandra:
— Engraçadinha. Você vestida de gata, ainda que de botas, espantaria os filhotinhos. Eu trabalho lá. É uma ONG, ou uma instituição, tipo uma fundação, como entenda melhor. O dia que você resolver aparecer (e fica aqui o convite), se deparará com uma “gatorrada” limpa. Essa seria a “classificação,” ou a graduação. A gente cuida do banho, da higienização, da tosa, do corte dos pelos e das unhas..., observamos se as vacinas estão em dia e o melhor de tudo: temos animaizinhos à espera de um lar, ou seja, de pessoas de corações abertos (como o seu) que buscam por adoção.

Daíra, com essa porrada meio que desferida à luva de pelica, fechou a carranca e empacotou a risada falsa. Voltou irritada e se afastou, catando cavaco. Pensou que daria um chega pra lá em sua amiga. Aconteceu exatamente o contrário. Foi a amiga Lisandra que, sem perder o mavioso do rosto e a ternura da voz, colocou a metida e soberba intocável em seu devido lugar.   

Fonte: Texto enviado pelo autor      

domingo, 10 de março de 2024

Varal de Trovas n. 596

 

Eduardo Affonso (A culpa é do estagiário)

O sujeito que inventou a língua portuguesa deixou algumas partes a cargo do estagiário, e não fez o chequiliste das funcionalidades antes de colocar o produto no mercado.

Isso que temos aí para nos expressar é, claramente, uma versão beta.

Duvida?

“Fulano acabou de ser visto saindo do motel com sua mulher”.

Antes de ir tomar satisfações, a questão que se coloca é: esse “sua” é a sua mesmo (pessoa com que eu faço a intriga) ou a dele (pessoa em cuja vida eu não tinha nada que estar me metendo, já que a mulher é dele e eles vão aonde quiserem)?

São coisas bem distintas ir ao motel com a mulher alheia (falta de decoro) e com a própria mulher (falta de imaginação).

Imagine quantas D.R.s e crimes passionais poderiam ter sido evitados se o idioma fosse um pouco mais profissional. Como o inglês, por exemplo, em que “your” ou “his”/”her” esclarecem tudo.

Outro exemplo: “Temos que manter acesa a chama do amor em nossos corações”.

Como assim “nossos corações”? “Em nossos pulmões” (ou rins), tudo bem, porque temos dois. Mas coração a gente só tem um. Poucas pessoas – as que fizeram transplante, por exemplo – podem usar essa frase sem incorrer em dubiedade.

Por outro lado, dizer “em nosso coração” dá a impressão de termos um coração só, compartilhado.

Um estagiário além do 5º período teria pensado numa fórmula melhor para essas situações – algo como um plural só meu e um plural envolvendo mais gente.

Graças aos bombeiros, nossas vidas foram salvas”, poderiam dizer dois gatos (7 vidas cada um). Mas para duas pessoas, a coisa – mesmo para quem leva vida dupla – soa estranha.

Temos 5 vogais (mais o Y, que parece vogal mas é gênero fluído) e 19 consoantes (mais o H, que é não binário). Dá pra fazer um sem número de combinações, permutações e arranjos. E, no entanto, a preguiça do estagiário fez com que tivéssemos uma penca de repetições.

“Vir” é tanto o infinitivo de um verbo (“Direito de ir e vir”) quanto o subjuntivo futuro do verbo “ver” (“Se eu vir você indo e vindo, você vai ver!”).

“Eu pulo” pode significar que estou polindo ou pulando. Mas se polir, não pule; se pular, não pula.

“Morto” é o particípio passado de “morrer” e de “matar”. É preciso uma análise jurídica e sintática para saber se se trata do réu ou da vítima.

Sem contar que o tal estagiário era adepto da lei do menor esforço. Só isso explica “em cima” e “encima”, “embaixo” e “em baixo”, “senão” e “se não”, “agente” e “a gente”, “acerca” e “a cerca”, “aparte” e “à parte”, “decerto” e “de certo”, “afim” e “a fim”, “haver” e “a ver”, “haja” e “aja”, “hora” e “ora”; e – aí era motivo para justa causa – “por que”, “por quê”, “porque” e “porquê”.

Eu, como qualquer falante do português, contrataria um profissional para revisar o idioma. E não ficar dependendo, como na sentença anterior, de uma vírgula para evitar mal entendidos.

Carolina Ramos (Ramalhete de Versos) – 1


A VIAGEM DOLOROSA

Enfrento, combalida, a jornada que assume
dimensões de montanha e nuvens de incerteza.
A dúvida recobre o intransponível cume.
A vida tumultua a própria correnteza.

Rochas, por toda a parte... e flores sem perfume!
Por todo o lado, a escarpa, o abismo sem beleza!
Por todo o tempo, a noite a se estender sem lume,
tornando negro o verde e o azul da natureza.

Mas, seguirei ferindo as mãos pelos espinhos.
E seguirei cortando os pés pelos caminhos,
sem temer empecilho e sem temer fracassos,

se souber que me espera apenas uma rosa
e esta viagem, por fim, tão triste e dolorosa,
me der repouso e paz, no ninho dos teus braços...
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IDOLATRIA

Se amar fosse pecado, quem seria
livre de culpas neste pobre mundo?!
Mundo que pede amor, dia após dia,
e apenas por Amor se faz fecundo!

Se amor fosse pecado, eu bendiria
esta culpa de amar, de que me inundo
neste amor que se estende à idolatria,
e é tão imenso e puro, quão profundo!

Bem vês, Senhor, quanta sublimidade,
no amor-renúncia envolto na saudade,
que minha alma não sabe mais conter!

Caso o mereça, Teu perdão imploro!
Digo, temendo mesmo Te ofender,
que nem sei mais se a um deus somente adoro!
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MILIONÁRIOS DE AMOR

Vivíamos? - Não sei... nem sabes! A verdade
é que, existir somente, é pouco à criatura.
Ninguém vive sem ter do amor a realidade,
nem transportando ao sonho o anseia de ventura!

Tão distante era a vida! Agora, uma saudade
nossos passos conduz, mas, cessou a procura,
porque vimos de perto o que é felicidade
e o que é provar o amor, em taça de ternura!

Na vitrina do espaço, etérea, inatingível,
qual fugaz ilusão, qual um sonho impossível,
a vida, para nós, era um caro adereço:

- Fascinante rubi, da mais intensa cor!
E essa joia, afinal, milionários de amor,
nós compramos sorrindo... e sem olhar o preço!
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PASMO

Estranha sensação! - Sentir chegar o outono
de rosas perfumado e haurir toda a doçura
do beijo de uma flor, que pende em abandono,
entre botões de sonho e acenos de ventura!

Adormecer feliz, entregue ao próprio sono.
E, de repente, abrindo os olhos, com ternura,
descobrir na amplidão uma estrela sem dono,
que veio iluminar a noite, outrora escura!

Ah! Que emoção imensa em meu peito palpita!
De tal forma a crescer, numa ânsia infinita,
os pensamentos vão se esgarçando, dispersos...

Minha lira emudece... ou cantar não mais sabe!
A cigarra se cala: - a Vida não mais cabe
na estreita dimensão destes meus pobres versos!
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PRESENÇA

Nas horas em que partes para longe,
o mundo se esvazia de repente!
Pesa-me a solidão!... E, triste monge
no exílio, o coração assim se sente!

Chegas! Floresce a vida! E, porta aberta,
ganham fulgor as coisas que eram baças!
O monge, não mais só, a alma liberta,
e cora, ante o calor com que me abraças!
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ROSAS

Eram de terra e pedras os caminhos
que palmilhávamos e o céu, sem lume.
O encontro!... E uma vereda, só de espinhos,
abriu-se aos nossos pés. Flores, perfume

nos prometia, ao fim! E quantos ninhos
nós rejeitamos, quase com ciúme
a cercar de pureza esses carinhos
que o mundo não entende e em mal resume.

Há luz nos céus! Nos olhos meus, nos teus,
há um grande Amor! Há grande crença em Deus!
E sem fugir às sendas espinhosas,

mesmo de pés em sangue e olhos em pranto,
há de chegar o dia, só de encanto,
de sorrindo, afinal, colhermos rosas!
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TEMPO DE AMAR

Amor!... E o que é o Amor? - chama bendita
que nasce, vive, cresce e nos ampara.
E, por vezes, sepulta na alma aflita
o vazio dos sonhos sem seara.

Em qualquer tempo - Amor! - a vida grita.
Amor sublime, o de Francisco e Clara.
Amor Romeu - Julieta, amor desdita...
Amor paixão; Dr. Jivago e Lara!

Pode a neve pratear nossos cabelos
e os minutos fugirem... se retê-los
nos impede o destino, a contrapor,

há os instantes de excelsa magnitude,
que a vida é breve, muita vez ilude,
mas, nunca é tarde para o Grande Amor!
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Fonte> Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.  
Livro enviado pela poetisa.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 107

Viver ou ficar esgueirando entre os espinhos do dia a dia?  E a alegria? O riso?  A gargalhada?  O frenesi? Não valem nada ?

A faina diária, sim!  Enfrentar como quem vai bebericando uma sopa quente, com cautela, olhos grandes, em silêncio, pelas beiradas, sem receios, buscando o intento.

Vale a pena brigar por coisas banais, futilidades, muitas vezes em benefício de terceiros de quem pouco ou nada sabemos? Em nome de crenças, ideologias, fanatismos, demônios?

De tudo que construímos e realizamos, nada levamos.  Viver a realidade otimista das horas, dos dias, da vida.  Benesses granjeadas, graciosas, grandiloquentes.     

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Arthur de Azevedo (Contos em Versos) Bem feito!

A mulher do Vilella
Não era uma Penélope; os vizinhos
Viam de vez em quando em casa dela
Entrar um moço de altos colarinhos,
Polainas e cartola. Não seria
Caso para estranhar, e aquela gente
À língua não daria,
Se não escolhesse o moço justamente,
Para as suas visitas,
As horas infinitas
Em que o dono da casa estava ausente.

Defronte, um cidadão austero e grave,
Marido e pai de umas senhoras feias,
Que, zeloso, ao sair, fechava à chave,
Sentia o sangue lhe ferver nas veias
Sempre que via aquele sujeitinho,
Desrespeitando a vizinhança honrada,
Em casa entrar do crédulo vizinho.
Por isso, resolveu — coisa impensada! —
Dizer tudo ao marido,
Que não era, aliás, seu conhecido,

E ter com ele foi, um belo dia,
Lá na secretaria
Onde o pobre diabo era empregado.

— Falo ao senhor Vilella? — A um seu criado. —
— Pois, meu caro senhor, fique ciente
De estar aqui presente
Joaquim Belmonte, funcionário honrado,
Há muito aposentado,
Pai de família honesta,
Respeitável, pacífica, modesta. —
Vilella respondeu: — Senhor Belmonte,

De vista já o conheço desde o dia
Em que um prédio aluguei mesmo defronte
De vossa senhoria.
Eu tenho a honra de ser seu vizinho. —
— Bem sei, e é justamente
O que me traz. — Parece que adivinho:
Comigo aqui ter veio,
Muito provavelmente,
Para comigo combinar o meio
De fazer com que a nossa
Municipalidade,
Que tão pouco se ocupa da cidade,
E que às reclamações faz vista grossa,
Mande limpar aquela imunda vala
Da nossa rua, que nos contraria
Pelo cheiro que exala
E há de ser causa de uma epidemia... —

— Não, não venho tratar da vala; eu venho
Tratar de coisa muito mais nociva,
E por cuja extinção muito me empenho,
E hei de empenhar-me creia, enquanto viva,
A coisa não depende
Da Municipalidade,
Mas do senhor, — entende?
— Para falar verdade,
Não entendo, — Meu caro, eu poderia
Escrever-lhe uma carta,
Que não assinaria;
Mas sou digno de haver nascido em Esparta:
Acho as cartas anônimas infames,
E uma infâmia jamais cometeria,
Embora me expusesse a mil vexames. —

Depois desse preâmbulo,
O Vilella ficou pasmado e mudo;
Parecia um sonâmbulo.
O outro continuou, grave e sisudo:
— O senhor é casado,
Ou, se o não é, parece, — pelo menos
Vive na sua casa acompanhado
De uma senhora e de mais dois pequenos. —
— Mulher e filhos meus, disse o Vilella. —
— Abra o olho com ela!
Quando o senhor não está, vai visitá-la
Um janota, e, reflita,
Não é de cerimônia essa visita,
Pois não lhe abrem a sala... —

Vilella deu um pulo
Da cadeira em que estava, e ficou fulo;
Mas o velho puxou-o pelo casaco
E obrigou-o a sentar-se,
Dizendo-lhe: — Vá lá! Não seja fraco!
Ouça o resto, e disfarce...
Naquele bairro inteiro
O escândalo comentam,
E o vendeiro, o açougueiro e o quitandeiro
Mil horrores inventam,
Dizendo que o senhor sabe de tudo,
Mas faz de conta que de nada sabe!
Eu não sou abelhudo,
E outro papel no caso não me cabe
A não ser a defesa do decoro
De minhas filhas, que esse desaforo
Profundamente ofende.
Não pode aquilo continuar, entende?

Disse o Vilella enfim: — Velho maldito,
Se tudo quanto para aí tens dito
Não for verdade, apanhas uma coça!
Livrar-te destas mãos não há quem possa! —
— Faça uma coisa, respondeu tranquilo
O velho: quer saber se é certo aquilo?
Pois amanhã, quando sair, não venha
Para a repartição: em minha casa
Entre, e lá se detenha.
Fique certo de que não perde a vaza.

Escondido por trás da veneziana,
Verá entrar o biltre que o engana,
Está dito? — Está dito! — Lá o espero,
Sou velho honrado. Convence-lo quero. —

Foi-se o Belmonte, e o mísero marido
Ficou estarrecido;
Mas de tal modo disfarçou o estado
Em que o deixara o velho estonteado,
Que, entrando em casa à costumada hora,
Não notou a senhora
Nenhuma alteração, — e, no outro dia,
Posto à janela do denunciante,
Que, fechada, discreta parecia,
Viu entrar o amante,
Que ele não conhecia.

Correu Vilella à casa num rompante,
Antes que o outro lhe embargasse os passos,
Ou lhe pusesse os braços,
E um barulho infernal se ouviu da rua
Subitamente alvoroçada, e cheia
Dessa canalha vil que tumultua
Quando vê novidade em casa alheia.

O corpo do janota pela escada
Rolou como uma bola,
E a luzente cartola
Na rua, encapelada,
Antes do dono apareceu. A vaia

Que ele apanhou foi tal, tão formidável,
Que, viva ele cem anos, é provável
Que da memória nunca mais lhe saia.

Mas, oh, astúcia de mulher, quem pode
Sondar os teus arcanos,
Medir os teus recursos?!
Um Hércules não há que não engode
O ardil dos teus enganos
Ou o mel dos teus discursos!

E o Vilella não era
Precisamente um Hércules, coitado!
A esposa, que ele amava, e por quem dera,
Feliz, entusiasmado,
A vida, se ela a vida lhe pedisse,
A esposa... que lhe disse?
Que o janota não era o seu amante,
Mas o seu mestre de francês; queria
Aprender essa língua, que humilhante
Era viver na roda em que vivia,
Sem saber o francês... Ele, o marido,
Já meio convencido,
Lhe perguntou por que razão queria
Aprender em segredo,
E ela, pondo-lhe um dedo
No lábio inferior, pôs-se a agitá-lo,
Como se fosse um berimbau, e disse:
— Eu queria fazer-te uma surpresa.

Passado o grande abalo,
O bom Vilella, sem que ninguém visse,
Pôs-se na esquina à caça do Belmonte,
E — oh, que não sei de nojo como o conte! —
Deu-lhe uma tunda mestra, e derreado
Dois meses o deixou. Foi coisa nova
Apanhar uma sova
Um grave funcionário aposentado.

Mas, passada tão longa penitência,
Quando se ergueu do leito,
O velho interrogou a consciência,
E a consciência respondeu: — Bem feito!

Fonte> Artur de Azevedo. Contos em verso (contos brasileiros). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

Hinos de Cidades Brasileiras (Andirá/PR)


composição: Prof. Luiz Faria

Salve, salve, ó Andirá!
Salve, salve, ó cidade progresso!
Teu futuro deslinda o horizonte,
Anseio de liberdade incessante!

No passado, um dia de festa
Desejamos, com amor, exaltar.
Andirá, com orgulho trouxestes
Esta data para celebrar !

Refrão
Andirá - nova estrela
Que hora brilha numa constelação!...
Realidade alcançada
Conquistando um passado de amor!

Campo e indústria - duas colunas...
O comércio para te sustentar...
Seguem avante a saúde e o ensino,
Luz divina para te guiar...

O teu povo laborioso
É exemplo e ensina a fazer,
Construindo esta bela cidade,
Onde, em paz, aprendeu a viver!

Refrão
Andirá - nova estrela
Que hora brilha numa constelação!...
Realidade alcançada
Conquistando um passado de amor !

Celebramos assim,
Numa grande emoção
Esta data feliz
De tua emancipação.

Parabéns, Andirá,
Jovem em seu ardor!
És para o Paraná
Exaltação de amor!

Hans Christian Andersen (O Companheiro de viagem)

Quando o pai de Johannes faleceu, o menino ficou terrivelmente triste. Ele não tinha mãe e agora estava sozinho. É por isso que ele decidiu pegar a estrada no dia seguinte ao funeral de seu pai.

Na primeira noite, ele teve que dormir no feno, mas Johannes não se importou. O tempo estava bom e a lua brilhava forte no céu. 

Naquela noite, Johannes sonhou com uma linda garota com uma coroa de ouro na cabeça. Ele também viu seu pai que lhe disse: ‘Viva sempre bem, Johannes! Veja que linda noiva você terá então.’ 

Na manhã seguinte, Johannes acordou satisfeito e com a intenção de viver uma vida boa e gentil.

Na noite seguinte, o tempo estava péssimo e Johannes não conseguia dormir ao relento. Ele decidiu se abrigar em uma pequena igreja. Sentou-se num canto e adormeceu. 

Por volta da meia-noite, ele foi acordado por vozes. Ao luar viu que havia um caixão no meio da igreja, mas o homem ainda não estava enterrado. Ao redor do caixão estavam dois homens maus que queriam ferir o homem no caixão. 

‘Ei! O que você está fazendo?’ disse Johannes corajosamente. 

‘Este homem nos deve dinheiro, mas agora ele está morto e não recebemos nada. Então, como vingança, vamos expulsá-lo da igreja.’ 

‘Você pode ficar com o meu dinheiro’, disse Johannes, ‘não é muito, mas é toda a minha herança. Mas você terá que deixar o homem em paz’. 

Os dois homens malvados riram, pegaram o dinheiro e foram embora.

Quando Johannes continuou sua viagem na manhã seguinte, ele ouviu uma voz chamá-lo. 

‘Ei amigo, onde você está indo?’ disse o estranho. 

“Estou indo para o mundo inteiro”, respondeu Johannes. 

‘Eu também’, disse o estranho, ‘vamos juntos?’ 

Johannes achou uma boa ideia e logo eles se tornaram amigos íntimos.

O companheiro de viagem revelou-se um homem estranho. Ele não apenas sabia muito sobre o mundo, mas também tinha uma pomada mágica. Com esta pomada ele curou a perna quebrada de uma velha e deu vida aos bonecos de um marionetista. Em troca, ele ganhou três vassouras da velha e uma espada do marionetista. A espada veio a calhar quando se depararam com um cisne morto, o companheiro de viagem quis levar as asas consigo.

Não muito depois chegaram a uma cidade onde morava o rei. Eles ouviram que o rei era um homem bom, mas que sua filha era uma princesa má. Todo homem que quisesse se casar com ela tinha que resolver três enigmas. Se eles não conseguissem, ela os mataria. Muitos homens tentaram, mas nenhum conseguiu.

No dia seguinte, Johannes viu a princesa cavalgando pelas ruas. Ela era tão linda e parecia a garota que ele tinha visto em seus sonhos! Ela não podia ser má, podia? Na hora, ele decidiu que queria se casar com ela. E mesmo que todos tentassem fazê-lo mudar de ideia, ele queria tentar.

Enquanto Johannes dormia, o companheiro de viagem fez um plano. Ele amarrou as asas do cisne nas costas e pegou uma vassoura da velha. Então ele voou para o castelo. Aí ele viu como a princesa voou de sua janela com grandes asas negras. 

O companheiro de viagem se fez invisível e voou atrás dela enquanto a golpeava com sua vassoura. Quando ela chegou a uma grande montanha, ela mergulhou em uma caverna. Um troll feio estava dando uma festa lá. O companheiro de viagem ouviu a princesa dizer ao troll que um novo pretendente havia chegado para pedir sua mão em casamento e o troll respondeu que o pretendente teria que adivinhar o que ela estava pensando. E ela teria que pensar em seus sapatos.

Na manhã seguinte, o companheiro de viagem disse a Johannes que havia sonhado com a princesa e que ela estaria pensando em seus sapatos. Johannes acreditou nele imediatamente. Isso tinha que ser um sinal! Ele foi ao castelo e respondeu sem hesitar à pergunta da princesa. Oh, como ela ficou surpresa quando ele respondeu corretamente.

Naquela noite, o companheiro de viagem fez a mesma coisa e desta vez ouviu que a princesa estaria pensando em sua luva. E novamente Johannes estava certo no dia seguinte. 

Naquela noite, o companheiro de viagem voltou ao castelo novamente. Ele seguiu a princesa, viu como ela estava dançando com o troll e os seguiu quando eles voaram de volta para o castelo. O troll sussurrou: ‘Pense na minha cabeça.’ E quando a princesa voltou para seu quarto, o companheiro de viagem cortou a cabeça do troll feio. Ele o colocou em um lenço e disse a Johannes na manhã seguinte que precisava abrir o pacote na frente da princesa.

Todos ficaram em choque quando viram a cabeça do troll, mas Johannes deu à princesa a resposta certa. 

Naquela noite eles se casaram. A princesa estava muito infeliz, mas felizmente o companheiro de viagem disse a Johannes como acabar com seu feitiço. A partir desse momento, a princesa amou muito Johannes.

No dia seguinte ao casamento, o companheiro de viagem veio se despedir. 

‘Devo ir agora’, disse ele, ‘Paguei minha dívida com você. Eu sou o homem morto cuja dívida você pagou aos homens maus. Muito obrigado.’ 

E com essas palavras ele desapareceu. E Johannes e sua princesa viveram felizes para sempre.

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público