domingo, 21 de julho de 2013

Marcos Pasche (Assis Lima, de cântico e de corte)

Por vezes nos deparamos com uma assertiva a dizer que certos autores, ao desenvolverem sua bibliografia, estão escrevendo e reescrevendo sempre o mesmo livro. Alargando um pouco mais a ideia, muito me chama a atenção a hipótese de certos autores nordestinos formarem uma família antropoliterária, os quais traçam e trançam na mesma renda a inesgotável e árida epopeia da vida e da morte agrestes.

Vou omitir, por falta de lembrança ou de conhecimento, nomes importantes, mas penso que tal família tenha seu precursor em Augusto dos Anjos, sendo configurada por Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ronaldo Correia de Brito e Daniel Mazza. Não se pode negligenciar as miríades de poetas cordelistas e cantadores espalhados pelas feiras e empalhados nas prateleiras do menoscabo da “alta cultura”.

Tais autores irmanam-se ao tomarem mutuamente os procedimentos formais e os temas constantes da obra de seus entes, sem que isso nos cause, admiravelmente, a sensação de previsibilidade ou mau epigonismo. Todos eles desautorizam a visão pitoresca do espaço sertanejo, encravam a caatinga em seus parágrafos e estrofes, tornando-a metáfora de espaços e tempos de todos os lugares e épocas, sejam as ágoras mitológicas da Grécia, sejam os bíblicos e empoeirados caminhos da Palestina. São eles xilos ou litogravadores da palavra, visto lançarem-se de encontro ao hiperbólico mosaico da linguagem para dele extrair ou nele imprimir, à mão de faca, a palavra certa e seca. Sublimadores da brutalidade, valem-se de mão de vaqueiro, que por um instante é capaz de domar a vida: domadores do discurso, penduram a encharcada escrita à cerca e ao sol para que se lhe retire toda a gordura, até que sobre apenas o substantivo couro. Alunos dos seixos, concebem a partir do vento quente e da areia seca, pois tanto o sopro como o barro têm uma saúde incoerente para esta gênese.

Assis Lima pertence à linhagem desses escritores, umbilicalmente ligados ao sertão e espiritualmente dados ao mundo. Nascido no Crato, interior do Ceará, Assis, médico de profissão, fixou residência na urbaníssima São Paulo. Nela desenvolveu o notável estudo Conto popular e comunidade narrativa, que a um só tempo registra e abraça a vocação do povo nordestino para a oralidade, a qual, de tão bem aprendida com os gregos, tornou-se invenção patrimonial sua. Como poeta, Assis presentificou os aspectos mais representativos de sua genealogia artística em Poemas arcanos, livro repleto de evocações locais e translocais, todas enoveladas em cantigas, “incelenças”, lendas e evangelhos.

E para perpetuar o movimento contínuo de ressurreição de sua família autoral e assinalar seu fio particular, Assis Lima dá ao primeiro texto do seu Marco misterioso o aqui infiltrado título de “Água”, com o qual diz não e sim à sua sina – “O deserto esteve fincado dentro de mim” (…) // “Que me cubra o nevoeiro!”. Essa peleja, típica do homem em apreço e repulsa pela matéria de que se constitui, tem presença cativa em diversas passagens do livro, e em textos como “Caleidoscópio” ganham a feição de arena onde duelam ser e transcender: “As pedras, uma extensão de mim. / E dentro das nuvens, a extensão de todas as pedras”.

Assis Lima é a assinatura literária de Francisco Assis de Sousa Lima (com o nome civil ele registrou sua tese acadêmica). Há nessa heteronímia o amálgama de símbolos próprios da literatura que o autor desenvolve e da casta à qual pertence. Francisco (de) Assis é nome de um dos mais expressivos personagens bíblicos, ao passo que “sousa” – registram os dicionários portugueses – é um tipo de pombo aguerrido, não por acaso tomado como imagem de brasões familiares. No Brasil, Sousa é uma cidade do sertão paraibano. Já então se vê o anelo do local e do universal, ao qual se liga a fusão da figura do santo e do bicho guerreiro, ambos imagens diletas da cultura nordestina. “Lima” é uma fruta cítrica, ácida, cortante, e mais ainda o é a lâmina com que o autor decepou sua identidade em consonância com o corte literário: os Poemas arcanos, da primeira para a segunda edição, foram reduzidos a quase metade, e este Marco misterioso já vem ao mundo com uma seção amputada, visto ser e não ser pertencente ao conjunto do que agora se publica. E não nos esqueçamos: o Rio São Francisco encrava-se gigantesco no solo e na sola do Nordeste, cercado de seco por todos os lados, cortando-o de ponta a ponta.

Mas a coisa não se fia por aqui: dentro deste volume a escrita se mostra mais muscular quanto mais se depura da carne das palavras, como se fosse (e é) possível enrijecer-se de ossos. É o que se observa no finamente geométrico engenho de “Ângelo Monteiro”, ou no obsessivamente talhado “Sem título”:

Pelo verso
e avesso
em teu colo
me teço.

Por teu vinho
e chama
minha sede
clama.

Em teu seio
redoma
me rendo
genoma.

Essa poética busca uma dicção quite em seus desacordos, e o poeta desgarra-se do parentesco a fim de tanger os próprios passos e o próprio canto. Por isso o leitor verá também um feito marcante do livro no caudaloso “Via Sacra pela morte do filho”. Trata-se de um poema de alta voltagem dramática, construído a partir do arranjo das vozes do pai consternado e do coro que se encarrega de verbalizar o roteiro fúnebre:
“Prepara-te, corpo
que chegou teu dia,
recebe esta roupa,
vai em boa companhia”.

E dentro do rio turvado de lágrimas brotam as teimosas águas de “Vida de violeiro”, poema nordestiníssimo por suas cores e sons. O ritmo cantante da redondilha heptassilábica embola na malha do texto a evocação de cantadores lendários, como Cego Aderaldo e Zé Limeira, quando toda a embolada ganha o tom de uma ciranda, viva porque cantada:
“‘Quem não canta neste mundo
no outro fica engasgado,
pois o nosso mundo é este,
que o outro, é do outro lado,
por isso cante com a alma
que a vida lhe deu de agrado
para alegrar quem não canta
e alegrar quem está calado!’”.

Foi o poeta-violeiro quem mandou. Que a sua leitura seja, portanto, a rima a unir poesia, alma, corpo e alegria.
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    (Marcos Pasche nasceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1981. Cursa doutorado e leciona Literatura Brasileira na UFRJ. É crítico literário, autor de “De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos e outros nem tanto”. Neste momento, pede aos acidentais leitores que não deixem de assistir ao documentário “Garapa”, de José Padilha)

Fonte:
8Oa. Leva da Revista Diversos Afins; entre caminhos e palavras, (http://diversosafins.com.br/), in Aperitivo da Palavra

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