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quarta-feira, 25 de maio de 2011

Hercílio Pinheiro (1918 – 1958)




artigo publicado por José Lucas de Barros

ERCÍLIO OU HERCÍLIO PINHEIRO(Francisco Ercílio Pinheiro de Oliveira) – Luiz Gomes-RN, 18-11-1918 – Tabuleiro do Norte - CE, 09-04-1958, morreu com apenas 40 anos incompletos, mas deixou um respeitável nome na história da cantoria nordestina. Boa voz, dom de repentista, estudioso, carismático, impressionou fortemente a quantos o ouviram e com ele cantaram. Dizem que o velho Pinto do Monteiro foi ao Ceará somente para cantar com ele, e, não o encontrando por lá, disse:

“Eu subi ao Ceará,
que chamam terra da luz,
mas não cantar com Hercílio
é cravar-me numa cruz,
é como subir ao céu
e não falar com Jesus!”

Conta-se que, na cantoria em que os dois geniais repentistas realmente se encontraram, Hercílio brindou o mestre Pinto com esta magistral sextilha:

“Canta, Severino Pinto,
massa dos quatro elementos,
catadupa do improviso,
montanha de pensamentos,
grandeza de céus e mares,
força da rosa-dos-ventos!”

(Informante: Raimundo Lourival de Lima(Lourinho), funcionário do Banco do Nordeste, Currais Novos – RN, gerente, em 1985). O poeta José de Sousa tem uma versão desse repente de Hercílio que apresenta diferenças em alguns versos, mas não demonstrou a devida segurança para contestar a informação de Raimundo Lourival. Esse tipo de dúvida para trabalho de improviso que não foi gravado ou anotado no momento de sua criação é muito comum, e o pesquisador muitas vezes não tem como solucionar, optando por apresentar a forma mais aceitável, para não deixar de registrar um repente de alta expressão, como é o caso analisado.

Numa cantoria, quando o assunto girava em torno da fé em Deus, Hercílio, reconhecendo que sem Ele nada somos, improvisou:

“Eu fui, eu sou e serei...
São três coisas de mister.
Se eu fui foi porque Deus quis,
se eu sou é porque Deus quer,
e para o tempo futuro
eu serei, se Deus quiser.”

Hercílio cantava numa casa sertaneja quando o companheiro chamou sua atenção para uma lagartixa que caía do teto:


“Caiu um bicho nojento,
feio e sujo sem parelha!”

Hercílio resumiu com arte e graça:

“Caiu um bicho da telha,
parece uma lagartixa:
é carne que não se come,
é couro que não se espicha.
Eu peço ao dono da casa:
pegue um pau, mate essa bicha!”

Hercílio cantava com Dimas Batista em mútuos elogios. Dimas findou assim uma sextilha:

“Não vejo quem pague os versos
do grande Hercílio Pinheiro.”

Hercílio, inspirado e elegante, respondeu:

“Enfrentar meu companheiro,
cantando, ninguém se atreve.
No momento em que ele canta
Parece que Deus escreve
Com tinta da cor do céu,
Em papel feito de neve

Numa cantoria em que os repentistas falavam da Escritura Sagrada, Hercílio improvisou:

“Na Escritura Sagrada,
me lembro que Jesus disse:
“Quem tivesse pra dar, desse,
quem não tivesse, pedisse;
quem fosse triste chorasse,
quem fosse alegre sorrisse.”

Dimas Batista, em dura peleja com Hercílio, assanhou a fera:

O que eu fizer num minuto
Você num ano não faz.

Hercílio foi fulminante na reprimenda:

Você tem razão demais,
Porque nasceu desumano,
Mesmo este é o costume
Do povo pernambucano:
Fala a verdade um minuto
E mente o resto do ano.

Por fim, minha homenagem ao inesquecível Hercílio Pinheiro:

-Perdemos há meio século
Nosso grande violeiro
E, por todos os recantos,
Lamenta o Nordeste inteiro
O silêncio da viola
Do grande Hercílio Pinheiro.

Seu nome virou legenda
No mundo da cantoria;
Morreu jovem, mas deixou
Um rastro de poesia
Que ilustra as mais lindas páginas
De sua biografia.

Fonte:

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ana Célia Ellero (Olhos Vermelhos)




Depois de rolar várias vezes na cama tentando inutilmente dormir, Lúcia se levantou e foi à cozinha vasculhar o armário procurando encontrar biscoitos doces.

Sem sucesso em sua busca e sentindo seus olhos pesados, dirigiu-se ao banheiro e mirou-se no espelho na intenção de verificar como os mesmos estavam. Assim que a iluminação tomou conta do pequeno cômodo da casa que era composto por um vaso sanitário, um chuveiro exposto sem a proteção de um box e um pequeno jogo de pia e espelho, ela olhou para fora da janelinha que se abria deste banheiro para o telhado da casa vizinha.

Lá estava ele: branco, raquítico, alerta, olhos vermelhos — um gato albino.

O primeiro sentimento que a acometeu foi o de a mais profunda repulsa. A imagem daquele ser lhe era miserável, o resumo da inadaptação, do erro genético, do caminho oposto ao do comovente movimento harmonioso da Natureza.

Lúcia se esforçou para conseguir continuar a encará-lo e ambos permaneceram imobilizados por algum tempo. Depois desse momento de paralisia, o passo, enfim, foi dado pelo mais forte daquele encontro: saltando para o outro lado do telhado, o gato desapareceu.

Diante disso, ainda inebriada pela mescla da imagem bizarra do gato ao estado de insônia que sempre a deixava confusa, Lúcia voltou para seu quarto. Sentou-se na cama e passou supor, então: o gato albino deveria se esconder o dia todo para não ser agredido pela luminosidade do sol. Sairia somente à noite para se alimentar. Caminharia pela madrugada fuçando restos, sempre sozinho para que não tivesse que disputar o lixo com os outros animais fuçadores de lixo. Devido a sua compleição física, teria dificuldades em arranjar comida. Em uma disputa pelo alimento, a desvantagem sempre seria sua, já que não tinha forças para lutar. Difícil era receber a empatia de algum insone ou de um notívago disposto a lhe oferecer comida. Sempre expulso, carregaria pelas ruas escuras da cidade a sua imagem repugnante. Com sorte, após a batalha para adquirir pelo menos o mínimo que o permitiria estabelecer-se em pé, o herói da sobrevivência, voltaria para seu bueiro, com seu pequeno quinhão no estômago, sempre com suas costelas a se destacar, onde permaneceria até que a luz do dia não ferisse mais seus olhos.

Depois de se deixar envolver por essas breves, porém, intensas conjecturas, Lúcia sentiu-se impregnada de algo que lentamente se aproximava de uma manifestação emocional, cuja palavra mais próxima no sentido de descrevê-la seria “empatia”.

Esfregou seus olhos agressivamente, pois a falta de sono fazia com que os mesmos ficassem irritados. Sentiu-os como se os mesmos estivessem vermelhos e, com isso, uma comparação entre ela e o gato albino passou a configurar-se: também ela se considerava inapta diante da vida, também ela era a esquálida diante das pessoas que lhe cercavam. O cotidiano lhe era uma agressão: durante seu trabalho, concentrava-se apenas em realizar o que lhe era solicitado, buscando não se embrenhar em conversas que considerava tolas ou fazer parte da estrutura que exigia a competição selvagemente felina entre os seus.

Acostumara-se a essa sua condição e convivia com uma enorme comiseração por si mesma, todos os dias. Com a sensação de ser um grande blefe da vida, voltava para casa (bueiro?) com o alívio de mais um dia ter chegado ao fim.

Lúcia percebeu, porém, nesse momento que algo fundamental lhe diferenciava do gato albino. Este, em meio a sua luta para manter-se vivo, demonstrou uma solidez em seu ser não físico que pôde transmitir no olhar enviado a ela antes de saltar e ir embora. Olhar contrastante de um ser de pulsão forte em corpo frágil. Lúcia não tinha as estratégias de sobrevivência que pudessem torná-la também uma heroína em seu mundo, transformando sua inconsistência e seu desencanto em algo que a pudesse fortalecer diante da vida.

Ainda hoje, Lúcia busca todas as noites encontrar o gato albino no telhado ao lado de seu banheiro, com a expectativa de quem aguarda uma aparição divina. Pensa que se isso acontecer, ela poderá levá-lo para sua cama e oferecer-lhe leite morno. Poderá abraçá-lo, acariciá-lo, encará-lo em seus olhos vermelhos e aprender com ele.

Ela deseja intensamente que o gato albino volte, mas ele ainda não mais a visitou. Resta a Lúcia a fantasia de que, naquela noite em que se viram pela primeira e única vez, ela o acolheu para sempre como seu.
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Ana Célia Ellero é educadora com graduação e mestrado em Educação pela Unicamp. Já atuou em sala de aula e, trabalha como Assistente na Coordenadoria Setorial de Formação - Departamento Pedagógico, da Secretaria Municipal de Educação de Campinas. Já publicou um conto na Revista da Associação de Leitura do Brasil - ALB, sediada na UNICAMP, denominado “Praga Urbana”.

Fontes:
Projeto Releituras
Webartigos.com
Imagem = Colivre

Pedro Aparecido de Paulo (Poesias Avulsas)




MÃE, O MUNDO ENCANTADO

Sua doutrina Bendita
faz a vida mais bonita
mesmo na dificuldade.
Seu olhar tão meigo e puro
traz o seu filho seguro,
irradia felicidade.

Sua face tão serena,
de uma coisa tão pequena
faz transformação total.
A primeira frase do filho
faz-se seu nome estribilho
e o transforma em festival.

Suas mãos acariciam
seus afagos contagiam
trazendo tranquila paz.
Atrai a felicidade
amor e sinceridade
vejam, do que ela é capaz.

Seu coração envolvente
faz do seu filho inocente
um mar de sabedoria.
Ensina-o a cada passo
defendendo-o do fracasso
com prazer e alegria.

Pode ser uma rainha
ou uma mãe pobrezinha
não importa a diferença.
Se ela não tem riqueza
não sabe o que por na mesa
a Deus pede providência

TESTE DE PINCEL

Em você, o meu primeiro visual,
comecei a pintá-la, tornando-a imortal,
diante de seu corpo desnudo;
curvas e traços confundidos,
qual beleza inigualável em tudo.
Ao iniciar não revisei a tela,
não imaginei uma forma assim tão bela,
pois fora apenas um teste de pincel.
Riscos e cores traçados devagar,
não havia em mim razão para pintar,
pois seria somente em teste, o meu papel.
Aos primeiros traços que foram surgindo,
mudou tudo enfim, que quadro tão lindo,
arrumei a tela com profunda emoção!
Ao ver o seu corpo retratado ali
É indescritível tudo o que senti,
pois pintava alguém em meu próprio coração.
Vi com outros olhos pincéis e tela;
consertei os riscos, deixando-a mais bela.
No quadro, então, moldei-a, enfim.
Completei com júbilo seu corpo sem igual!
Tão rara imagem tornou-se imortal,
tenho essa musa, bem juntinho a mim!

DIÁLOGO DE UM FILHO

Mamãe, onde estará meu pai neste momento,
faz tanto tempo que ele partiu, não mais voltou.
Disse-me ainda que eu era forte e de talento,
enxugou minhas lágrimas e chorando me abraçou.

Foi um momento tão difícil e muito triste,
eu não podia imaginar que fosse assim,
meus cinco anos não me ensinaram ver que existem
coisas que marcam com lembrança tão ruim.

O tempo passa, eu pergunto à mãe querida,
será que papai se lembra ainda que eu existo?
Já completei meus quinze anos de vida,
este meu sonho um dia ainda conquisto.

Quantas vezes vejo minha mãe chorando,
mas ao me ver ela tenta disfarçar,
sei que ela passa também o que estou passando
meu pai querido, volte logo ao nosso lar.

Porém a nossa fé ainda é imensa
e o Pai do Céu vai nos dar essa vitória,
em todo sofrimento haverá a recompensa
um dia com papai, exaltaremos a sua glória.
––––––––––––


Pedro Aparecido de Paulo é técnico em elevadores. Nasceu em Sertanópolis – PR, no dia 21 de julho de 1946. Autor de Um pouquinho de Deus, de ti e de mim; Pedras e pétalas e Crepúsculo de saudade. Ocupa a Cadeira nº. 02 – Patrono: Alberto de Oliveira, da Academia de Letras de Maringá.

Fonte:
Academia de Letras de Maringá

domingo, 1 de maio de 2011

Roberto Couto (A Ladeira e a Árvore)

Ladeira da Morte, por Bajzek
A ladeira era muito íngreme. Ele resfolegava após um conjunto de passos. Parava a cada dúzia de metros e se lembrava dos anos de menino. Como era grande para ele, agora! Agigantava-se, todavia, com serena altivez. Os passos antes lépidos e desafiadores daquele íngreme pico diariamente conquistado foram trocados por outros, prudentes, seguidos de excitada aceleração no coração. Lá em cima, dissipava-se o cansaço, substituído pelo prazer de um afago no tronco daquela árvore caprichosamente ali nascida. No meio da rua.

Por longos momentos ficava parado, olhando sua rua. A imagem aterradora das aulas de direção, com suas tensas trocas de marcha na subida interminável, dissipava-se, tornando a visão do passado um remansoso prazer. Gostava de ficar ali naquela espaçada área de contemplação e achego. Lá em cima, aquele acidente geográfico era sua cidadela contra os ataques da cidade grande. Abrigara sua inocência e agora reconfortava suas lembranças duramente curtidas por um corpo enrijecido pelo tempo.

Aquela árvore parecia vergar-se para o aconchego de seu corpo. Algo como um gozo, que umedecesse o tronco generoso e aflorasse os galhos de onde despencavam gotas adocicadas. O cheiro era de carmim. Majestosa, exalava sua sensualidade, mesmo no outono, a cruel estação que expunha com crueldade sua nudez. A nudez de alguém entrado em anos, muitos anos. O verão, cruento, não vencia sua altivez. Ali, exposta, resistia com invencível bravura `as intempéries do calor ou da chuva.

Ele não a decepcionava, acariciando seu tronco, soprando a poeira e fuligem de suas folhas, separando o lixo que a insensibilidade moral dos vizinhos insistia em depositar a seus pés. Foram anos e anos. Recostava-se nela, de frente, sua visão decrépita se alongava para a ladeira, agora sob a escura folhagem das árvores que a ladeavam com exuberantes copas.

A relação de amor dos dois, com o tempo ,tramou insondáveis desejos, como arrancar a árvore para um passeio pela ladeira. E tal se deu, escorregando pelas pedras úmidas e agarradas ao tronco forte e vigoroso que ainda vicejava e esparramava sua gosma. À surrealista cena não desapontou a natureza das coisas ao acolher a ladeira, em seu útero, por entre suas pedras, os pequeninos grãos caídos da árvore, enraizados, protegidos pelos galhos que maternalmente se fechavam, um a um, em harmônica coreografia, enquanto a árvore, agora deitada, dormia, embalada no choro daquele homem.
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Roberto Couto é bacharel em Direito, carioca da gema, um dos maiores conhecedores do Leblon, figura querida entre seus moradores. Fora dos tribunais, é praticante do sapateado e reconhecido pelos bambas como exímio executor do tamborim. Na arte de escrever, colabora com artigos sobre sua profissão no “Jornal do Commércio” do Rio de Janeiro. Seus contos e crônicas têm sido mantidos guardados, talvez nas caixinhas chinesas. Agora, vem à luz um novo desses trabalhos de rara beleza.

Fontes:
Projeto Releituras

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ana Vieira Pereira (Do Intraduzível)


Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.
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Sobre a Autora
Ana Vieira Pereira tem 45 anos, é portuguesa e vive há 25 anos no Brasil. Doutora em Literatura Comparada pela USP, é professora de literatura do Ensino Médio e coordena o espaço QuintAventura - oficina de processos criativos, na cidade paulista de Botucatu. Entre os títulos publicados estão "Mistache malabona - as crônicas do alobairrodemétria" e "O que sobrevive" (poesia).

Fontes:
Projeto Releituras.
Imagem = http://acertodecontas.blog.br/economia/mais-uma-dvida-sobre-financiamento-imobilirio/

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Jorge Facury (Lançamento do Livro “Assim me Contaram”)

Todos têm histórias para contar, seja elas tristes, alegres, que trazem uma lição de vida, seja simplesmente divertidas para quem as escuta. O que faz toda a diferença, no entanto, é se essas histórias são externadas para outras pessoas ou guardadas somente para si. Partilhar trajetórias de vida e com elas levar uma mensagem às pessoas é o objetivo do livro “Assim me contaram”, do professor Jorge Facury Ferreira. A obra, fruto de um trabalho de quase dois anos do autor, será lançada neste sábado (11), no Gabinete de Leitura de Sorocaba (Praça Coronel Fernando Prestes, 27, Centro), às 19h30, pela Editora Crearte.

“Assim me contaram” reúne as mais diversas histórias contadas por pessoas próximas de Facury, desde causos divertidos e criativos até histórias reais de gente que sofreu, lutou e venceu na vida. O livro é resultado de anos de escuta e registro do autor, que, com muita sensibilidade e atenção, passou a escrever ao longo dos anos as vivências que ouvia, muitas delas contadas ao acaso.

Segundo Jorge, tudo começou há alguns anos, quando um amigo muito próximo lhe confiou uma história particular e rica em detalhes, mas acabou morrendo dias depois para a surpresa do escritor. A morte repentina do amigo despertou em Facury a necessidade de ouvir mais as pessoas, e registrar aquilo que têm para contar. “Eu sou muito observador e presto atenção em tudo o que os outros dizem. Às vezes, de uma conversa despretensiosa nascem reflexões e lições para nossa vida.”

Para o professor, poder partilhar passagens de vida com os demais é motivo de muito orgulho e alegria. “As pessoas ficaram muito felizes ao confiar a mim suas narrações, e eu me realizei em poder eternizar nas letras um saber pessoal, algo essencial no mundo delas.”

O DIÁRIO de Sorocaba vai contar a você, leitor, em primeira mão, duas interessantes histórias do livro, que divertem e levam à reflexão acerca da vida e do quanto vale a pena lutar por um objetivo maior.

“COISA À TOA” –
A primeira memória que o jornal partilha foi contada ao autor por Humberto Jairo Rodrigues Pereira, construtor civil de Sorocaba.

Na pequena cidade de Palmatória (CE), dois amigos saíram cedo de bicicleta para buscar lenha a fim de suprir o forno e garantir a comida. Tudo muito fácil: acha-se os galhos, faz-se um bom feixe amarrado na traseira da bike e pé no pedal! Aconteceu, contudo, que um deles voltou logo e o outro não. As horas passavam e nada de o rapaz aparecer...

Quando enfim retornou, estava embriagado, e, esquecido da tarefa essencial, encostou-se numa vendinha de beira de estrada e relaxou a tomar cachaça e jogar conversa fora. Pior que isso, reapareceu sem a bicicleta, esbaforido e cambaleante, contando a todos ter sido alvo de um atentado. O jovem bêbado estava convencido de que algum desconhecido lhe teria disparado um tiro, sem atingi-lo, e, ao cair, levantou-se, largou a bicicleta e fugiu desesperado, rezando para não ser novamente mirado. Na queda ralou os braços e perdeu os óculos.

Familiares e amigos inflamaram-se pelo caso. Gente simples, acostumada ao trabalho na roça, logo se reuniram, munidos de espingardas e armas brancas para pegar o suposto agressor. Partiram, então, na direção do ocorrido, guiados pela vítima, trôpega da cachaça. “Onde se viu atacar um homem bêbado? Quem seria covarde o suficiente? Era hora de dar uma bela lição!”, eis a indignação que habitava o consciente coletivo.

Chegando ao local, a bicicleta ainda estava lá, abandonada no mesmo ponto da queda. Isso já adiantava alguma conclusão: não era caso de roubo... Ao recolherem-na, constataram, ainda, que um dos pneus havia estourado. A conclusão do caso, então, foi objetiva e inequívoca: o estampido não fora de tiro nenhum! O bêbado infeliz assustara-se à toa com um simples estouro do pneu...

Todos, então, cravaram-lhe olhares com expressões indescritíveis, e ele, vendo-se rodeado de pessoas indignadas e incrédulas, não se fez de rogado... Com certa graça, justificou-se e já foi logo dizendo: “'Bão', já que foi um final feliz, que tal fazer um brinde na vendinha?”.

“LEMBRANÇA DO FUTURO” –
Outra história foi narrada por Amauri Brandi, dentista e marceneiro de Sorocaba. Esta é mais rica de detalhes e lições de vida que a anterior, mas não menos divertida.

Em algum tempo dos fins do século XIX, na esteira da fomentada imigração italiana, alguns membros da família Brandi chegaram à região da atual cidade de Presidente Bernardes, na região oeste do Estado de São Paulo. Como tantos, aqui chegaram em busca de melhores condições de vida e de trabalho. Aqueles que podiam, logo compravam terras baratas e tornavam-se pequenos proprietários - caso dos Brandi.

A primeira atividade foi a agricultura; viçosos, os pés de café erguiam-se do solo roxo e as matas caíam. A autossubsistência e o plantio ancoraram a nova vida, sempre com muito sacrifício. Do encontro com outros da mesma pátria, restavam largas conversações, fala estranha aos naturais da terra.

Antônio Brandi conheceu Luiza Magon e os dois se apaixonaram. Do encanto mútuo, surgiu uma fuga e depois um casamento. O tempo passou, veio a decadência do produto cultivado e outros fatores cruciais que a história traz, compondo tempos difíceis de viver. O chefe da família Brandi viu-se submetido a uma situação dramática.

Homem de fibra, afeito à disciplina do trabalho, sofria ao ter de presenciar a mísera refeição da mulher e três filhos: um panelão com farinha de milho batida e água. Nesse período, João Brandi, o mais velho, aventurou-se a pé pondo-se a explorar uma parte das terras adquiridas que nunca eram visitadas por causa das características naturais impróprias para a agricultura. Tratava-se de um brejão nada convidativo.

Nessa exploração, acabou encontrando uma apreciável mina de água e, entusiasmado, foi ter com os pais e contar a novidade. Tiveram, então, a idéia de engarrafar água. Puseram-se a vendê-la como puríssima que, de fato, o era. A ideia resultou bem, uma vez que compradores vagarosamente apareceram. Entretanto, é provável que num tempo de quase nenhum comércio do gênero, muitos que buscavam a água tinham, na verdade, somente intenção de ajudar a pobre família. Era, afinal, uma forma de contribuir sem parecer que se punham a acudir.

O brejo, para onde Antônio agora se dirigia buscar água, era um lugar feio, cheio de animais peçonhentos e perigosos. Por isso, orientava em tom de ordem para que nenhum dos filhos aparecesse por lá. O filho mais velho, João, tinha perfeita consciência disso, mas se deixou levar pela curiosidade numa certa manhã e se embrenhou no lugar. Avançando além do que já tinha visto, dez minutos depois se encontrou num apuro: fora picado por uma cobra.

Ao voltar para casa com a má notícia, a família já se prontificou a buscar tratamento para o adoentado. Para tanto, receberam ajuda de pessoas que ofereceram uma viagem a Sorocaba. Lá, uma senhora negra os esperaria para acudi-los. O mais breve partiram e, chegando ao destino, o rapazinho recebeu o tratamento adequado.

Premidos pela circunstância, aproveitaram para conhecer a cidade e constataram várias fábricas: o progresso aqui estava. Calcula-se que quando desse acontecimento já deveriam correr os anos 30.

Prepararam-se, então, para a volta às terras do oeste paulista, deixando a hospitaleira senhora e sua família, de quem restou boa amizade. Tudo seguiu como outrora, a penúria infelizmente continuou por longo tempo. Certa manhã, Antônio sentou-se a conversar com a esposa e contou o que lhe corria pela mente e o que ditava seu coração no silêncio das madrugadas: gostara de Sorocaba e estava com a intuição de que poderiam refazer a vida por lá. Conversaram e amadureceram bem a idéia de uma mudança.

Da vontade manifesta à prática não custou muito, ainda mais agora que tinham com quem contar por aquelas bandas. A picada de cobra fora, afinal de contas, motivo incidental para o inesperado rumo novo. Juntaram o que podiam levar na viagem, despediram-se dos mais chegados e, com mínimos recursos, tomaram a estrada.

Desde que finalmente chegados a Sorocaba, Antônio Brandi externou uma notável certeza que causou estranheza total e absoluta em Luiza e filhos... Estando na rua que ora se denomina Visconde do Rio Branco, no atual bairro do Cerrado, o homem avistou uma casa, relativamente boa, e disse à mulher: “Eis a nossa casa! É aqui que vamos morar!”

A esposa, cansada da penosa viagem, suspirou e nada disse. O que haveria com o homem para fazer tal afirmação? Não tinham o que comer e ele falando em comprar uma casa! Teria tomado sol em demasia na cabeça?

Recebidos com grande satisfação pela senhora amiga, esta lhes estendeu as mãos dizendo que poderiam ficar tranquilos e desfrutar de sua casa à vontade, até que o homem encontrasse um trabalho. Brandi agradeceu e fez saber que não seria preciso, que dentro de alguns dias estariam em uma nova casa.

No outro dia, passava ele mais uma vez pela Rua Visconde do Rio Branco a observar a casa mencionada, quando alguém se aproximou. Era um vendedor de bilhetes que ofereceu: “Olhe, senhor! Compre este bilhete que trago, é seu! Pode comprar que vai ganhar. Não é conversa de vendedor não, é coisa pro senhor mesmo!”

O italiano respondeu que não tinha trocado suficiente para o valor do bilhete, e tirou uma nota amassada do bolso... “É o que basta!”, disse o bilheteiro, arrematando: “Quando o senhor tiver o prêmio em mãos, aceito que me dê uma ‘quirerinha’”. De saída, deixou as referências do local onde poderia ser encontrado.

Ora, o valoroso e determinado Brandi, ao conferir o bilhete no dia seguinte, viu que tinha tirado o primeiro prêmio no jogo do bicho oficial! Aquela foi uma notícia tão feliz quanto inacreditável para todos. Ele comprou a casa assim que recebeu o dinheiro, depois procurou o bilheteiro, que era um homem simples, e com grande gosto deu-lhe generosa soma.

Tanto quanto o vendedor de bilhetes fora objetivo e verdadeiro em suas palavras, certo é que o italiano mostrara-se dono, desde o princípio, de uma rara Afirmação Superior!

A vida alargou-se em oportunidades jamais cogitadas, de modo que até aumentou a família, com a adoção de uma menina. Brandi, por sua vez, tornou-se marceneiro e fez do ofício uma herança profissional aos filhos e aos netos, que hoje o exercem.

E o mais curioso da história toda: a figura estampada no bilhete premiado era a COBRA!

SOBRE O AUTOR -
Jorge Facury Ferreira é natural de Tatuí – SP, e reside em Sorocaba há mais de 15 anos. É educador, escritor e pesquisador de ufologia desde os 16 anos de idade. Publicou os livros "Um Brilho no Céu de Outubro", "Os viajantes" e "Rubião, o velho - contos de sonho acordado". É Membro do Conselho Editorial da Revista Ufo. Cronista colaborador de diversos jornais. Foi membro ativo do MORHAN - Movimento de Reabilitação do Hanseniano - nos anos 90.

O autor lembra que esta é só a primeira parte da obra, pois mais histórias estão surgindo para ser contadas. Caso você tenha algum fato interessante que gostaria de manifestar, entre em contato com Jorge pelo e-mail assimmecontaram@hotmail.com. O lançamento é aberto a todos.

Fontes:
- Cintian Moraes
Diário de Sorocaba. 6 dez 2010.
Balaio de Gato

sábado, 6 de novembro de 2010

Rafael Rodrigues (O Escritor Premiado)

Ilustração de Jairo Souza
No dia seguinte à chegada inesperada e retumbante, porém demorada, do sucesso, percebeu que suas roupas já não lhe serviam mais. Decidiu que iria imediatamente comprar calças, camisas, ternos e sapatos decentes, que fizessem jus a seu posto de mais talentoso e premiado escritor do ano.

Chegou a tirar o telefone do gancho, com intenção de ligar para a esposa e dizer “daqui a quinze minutos passo aí para te pegar”, mesmo que ainda fosse três da tarde e ela só estivesse livre do escritório às seis. O emprego dela não era mesmo grande coisa, seria até bom que abandonasse assim o expediente. Afinal, desde o dia anterior ela não era mais a esposa do escritor fracassado, de algumas centenas de livros vendidos e duas aparições na tevê (em matérias de cinco minutos cada, veiculadas no jornal local, nas quais deu declarações que, somadas, totalizam exatamente cento e setenta e sete segundos, de acordo com seu próprio cronômetro). Agora, ela seria a esposa de um dos expoentes da literatura contemporânea do país, que daria entrevistas a vários jornais, revistas e canais de televisão. Seria convidado da Flip, da Flap, do Flop e do Flup. Da Flep, não, porque esse evento é organizado por um de seus maiores desafetos. Mas quem precisa da Flep, afinal? Nem cachê eles pagam...

Abandonou o telefone porque lembrou-se da noite anterior. Depois de saber que seu livro inacreditavelmente fora eleito o melhor do ano por aquele bando de críticos que ele sempre julgou serem vendidos e, além disso, invejosos, idiotas, burros, analfabetos, safados, pilantras, mercenários e adjetivos outros que não cabem ser explicitados aqui, ele e sua esposa foram a um desses hipermercados que ficam abertos vinte e quatro horas comprar um vinho.

Mas não um vinho qualquer. A ocasião era por demais especial. Porque além de ter seu livro elogiadíssimo – os jurados do prêmio literário, na nota de divulgação do resultado final, diziam coisas como “um dos melhores romances da última década”, “com sua prosa arrojada, o autor entra para o seleto grupo de escritores que merecem o maior dos prêmios literários: a posteridade”, ou, ainda, “perturbador do início ao fim, este romance é uma obraprima” –, sua conta bancária em breve estaria recheada de centenas de mil dinheiros. Para ele, dinheiro não seria mais problema, e fazia questão de comprar o melhor vinho que estivesse à venda naquela espelunca.

Até então, nunca precisara comprar um bom vinho. Nem mesmo quando do casamento. Com tanta coisa para pagar – “e a casa, meu Deus, e a casa?”, ele pensava, na época, sempre desesperado para honrar o financiamento em 300 meses feito através da Caixa Econômica Federal –, o casamento foi simples – bem simples, mesmo – e o vinho, mais ainda. Mas isso não significa que ele não soubesse o que é um vinho decente. Em suas leituras – ele lia muito, afinal, é um escritor –, volta e meia apareciam personagens ricos, cultos – e esnobes –, apreciadores de bons vinhos. Geralmente literatura francesa, sendo que alguns escritores norte-americanos também faziam questão de explicitar seus conhecimentos vínicos. Tal característica em escritores que ele tanto admirava o deixou curioso e ele terminou por ler alguma coisa sobre vinhos.

Na seção de bebidas, perguntou à esposa que tipo de vinho ela preferia. Ouviu como resposta “Um bom, ué. Pode ser este aqui”. Estava segurando uma garrafa de Quinta do Morgado (tinto e suave). Há pouco mais de um mês um amigo lhes indicara aquela marca, da qual gostaram muito. Mas agora a situação era outra. Ele não poderia tomar um vinho daqueles, barato, que qualquer um pode comprar. Além disso, lembrou-se dos escritores cultos, esnobes – mas nem sempre ricos – e geralmente alcoólatras que lia. Decididamente, não compraria um vinho ridículo como aquele.

Disse à esposa, com todo o cuidado, que gostara muito do Quinta do Morgado, mas que a ocasião era especial e que deveriam comprar algo melhor e mais caro. Novamente pediu-lhe uma sugestão; ela disse-lhe que não entendia de vinhos, e que gostara bastante daquele que agora colocava de volta na prateleira.

Naquele momento, não lhe causou espanto ouvir sua esposa dizer que não entende de vinhos. Mas nos segundos que antecederam o abandono do telefone, notou que não poderia comprar roupas com uma mulher que nada entende de algo tão importante. Decidiu ir sozinho ao shopping.

O shopping. Ele odiava o shopping. Pessoas indo de um lado para o outro, subindo e descendo, olhando vitrines, tomando sorvetes, comendo sanduíches, pessoas berrando, bebendo, fumando, tropeçando nele, impedindo sua passagem, levando horas para sacar um maldito dinheiro num caixa eletrônico. Ia algumas vezes ao shopping apenas porque frequentava as duas livrarias que lá estavam abrigadas. Não fosse isso, jamais colocaria seus pés ali.

Mas, naquele dia, o shopping lhe pareceu muito agradável. Pessoas sorridentes, felizes, mães e pais andando de mãos dadas com seus filhos, casais de namorados abraçados, tudo na mais perfeita harmonia. Percorreu algumas lojas masculinas de grife e gastou o equivalente ao valor que ganhara em todo o mês anterior, com suas aulas de literatura num cursinho pré-vestibular e alguma coisa que pingava em sua conta bancária referente a direitos autorais. Entrou em uma das duas livrarias, mas não comprou nenhum livro. Sequer passeou seus olhos pelas estantes. Nem mesmo verificou se ainda estava lá o único exemplar do seu livro que restava na livraria, coisa que ele sempre fazia quando ia lá – naquela loja ele bateu seu recorde de vendas: 53 exemplares vendidos na noite de lançamento, há dois anos. Queria apenas tomar um capuccino e comer um cookie de chocolate.

Ao chegar em casa, pouco antes das seis horas da tarde, seus olhos ignoraram a foto que ele sempre mirava ao abrir a porta e que estava no mesmo lugar em que sempre esteve nos dois últimos anos: uma peça comprada por eles especificamente para aquele fim. Ela queria que uma fotografia dos dois, a que ela mais gostava, fosse uma espécie de cartão de visitas do casal a todo aquele que entrasse naquela casa.

Ela chegou pouco depois das seis e meia e ficou surpresa ao ver todas aquelas sacolas de compras ao lado da cama. Perguntou que novidade era essa, e ele respondeu dizendo que um escritor talentoso não podia mais vestir roupas comuns, de lojas de departamentos. Precisaria, a partir de agora, vestir-se bem, com elegância. Ela achou engraçado, disse que a esposa do escritor queria andar elegante também e foi tomar um banho. Ele chegou a pensar na possibilidade de irem comprar roupas novas para ela no dia seguinte, mas seus pensamentos se voltaram novamente para a noite anterior. Depois, pensou que uma mulher como ela, que trabalhava no setor administrativo de uma empresa de médio porte, não tinha motivos para andar elegante. Durante a maior parte do dia ela vestia a farda da empresa, e nos finais de semana eles pouco saíam juntos. Ela não gostava de ir a eventos literários e, enquanto ele estava em um lançamento de livro, assistindo a uma mesa redonda sobre literatura ou mesmo tomando um café com algum amigo escritor, ela aproveitava para visitar sua mãe ou receber a visita de alguma amiga. Para atividades como essas, estar elegante não era necessário.

Alguns minutos se passaram e ela foi à cozinha com intenção de tomar o café que ele sempre fazia antes de ela chegar. Mas não havia café. Ele não fizera. Perguntou sobre o café e ouviu-o dizer que esquecera. Ela acabou fazendo.

Enquanto ela comia – ele, não, “fiz um lanche no shopping”; “você, comendo no shopping?”; “é, um capuccino e um cookie, deu vontade” –, ele pensava que, dali em diante, sua vida jamais seria mais a mesma. Se aquele livro lhe rendera um prêmio tão importante, o que os próximos, que seriam melhores ainda, não poderiam conquistar? E os anteriores, que também eram bons, começariam a vender mais, ganhariam novas edições, finalmente seriam lidos pelos mesmos críticos que ele julgava serem vendidos e, além disso, invejosos, idiotas, burros, analfabetos, safados, pilantras, mercenários e adjetivos outros que não cabem ser explicitados aqui, e certamente esses mesmos críticos derramariam sobre suas obras elogios dos mais variados, como “um dos melhores livros de contos da última década”, “com sua prosa arrojada, o autor entra para o seleto grupo de escritores que merecem o maior dos prêmios literários: a posteridade”, ou, ainda, “perturbador do início ao fim, este volume de contos é uma obra-prima”. Editoras disputariam pra ter seu nome no catálogo, ele assinaria contratos de valores surreais e no máximo em três anos sua vida financeira estaria muito
bem, obrigado. Ele dava ênfase ao “muito bem”.

Sua esposa terminara o café e se aproximava para sentar-se ao seu lado. Com aquela voz doce que só as mulheres carinhosas têm, ela perguntou como estava o seu escritor favorito de todos os tempos. Ela sempre esteve ao seu lado. Foi uma das poucas pessoas que acreditaram no seu talento e, quando ele se permitia pensar em desistir da literatura, ela dizia que ele só faria isso se passasse por cima de seu cadáver. O corpo dele respondeu mecanicamente ao carinho, exceto seus lábios, que não
se moveram – nem para beijá-la, nem para dizer palavra.

Tão cedo ele não precisaria pensar em desistir da literatura, mas agora, enquanto forçosamente a abraçava, pensou que a ideia do cadáver não era de todo ruim.
–––––––––––––––––––-
O Autor
Baiano de Feira de Santana, Rafael Rodrigues colabora desde 2003 com sites literários, tendo textos (resenhas, contos, crônicas e alguma poesia) publicados internet afora. Colaborador da revista Conhecimento Prático Literatura, além de ser editor-assistente e colunista do site Digestivo Cultural. Música, literatura e cinema - temas deste blog - são suas paixões.

Fonte:
Suplemgnto Literário. N. 1330 – maio-junho 2010. Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais.

domingo, 17 de outubro de 2010

Graça Graúna (Manifesto)


...fragmento que sou
da fúria no choque cultural,
aqui, manifesto o meu receio
de não conhecer mais de perto
o que ainda resta
do cheiro da mata
da água
do fogo
da terra e do ar

Torno a dizer:
manifesto o meu receio
de não conhecer mais de perto
o cheiro da minha aldeia
onde ainda cunhantã
aprendi a ler a terra
sangrando por dentro
––––––––––-

Graça Graúna é natural do Rio Grande do Norte e tem doutorado em letras pela (UFPE). Em uma apresentação sua ao universo indígena expõe com inequívoca propriedade: “A literatura indígena é um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas ao longo da história há mais de 500 anos. Enraizada nas origens, esse instrumento de luta e sobrevivência vem se preservando na autohistória de escritores (as) indígenas e descendentes e na recepção de um público diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.” Graça participa ativamente do Overmundo e tem um blog próprio: http://ggrauna.blogspot.com/ onde apresenta suas ideias.
Membro do grupo de Escritores Indígenas, Educadora universitária na área de Literatura e Direitos Humanos.

Fonte:
Texto e imagem = http://ggrauna.blogspot.com/

Alfredo Brasílio De Araújo (Livro de Trovas)


Do galho mirando a água
do riacho que desliza
um sabiá canta em mágoa
vendo um rio que agoniza...

O mar tem lá suas manhas,
faz saltos ornamentais
tenta galgar as montanhas
e beijar Minas Gerais...

Eu descobri contrafeito,
felicidade tardia...
eras o sol do meu peito
que se apagava...eu não via...

Amor é suave presença
que uma ausência não desfaz
quanto mais nele se pensa,
mais presente ele se faz...

Deixo a chave na cancela,
iludo meu coração...
sonhador à espera que ela
retornando a encontre à mão...

Uma boquinha sugando
o seio da mãe querida,
é uma vida festejando
com vinho branco outra vida...

Ela surgiu de repente
na minha vida vazia...
como estrela, lentamente,
fugiu à luz do meu dia...

Num dilúvio de paixão,
despreparados os dois,
vimos nossa embarcação
naufragar logo depois...

Para sempre tu serás
meu trigo, minha videira,
meu alimento de paz,
que colhi a vida inteira...

Tanta graça, santo Deus,
essa menina me passa,
que ao olhar nos olhos seus
os meus se cobrem de graça...

Fonte:
UBT Nacional

sábado, 16 de outubro de 2010

Héber Sales (Livro de Poesias)


A FELICIDADE

é tão delicado
quanto cuidar de um pedaço de céu

estar de acordo com o ar
o fogo
a água da estação

e não tocar a terra
com ambição

A COLHEITA

guardar a palavra
que apenas a brisa conhece

ser por montanhas apascentado

quando a fruta madura estiver
um vale
sem esforço algum
a recolherá

LIVRE

o céu e a terra
não riem
não choram
com a chegada e a partida
de cada estação:

ser triste ou feliz
é pequeno demais

BOA SORTE

Já é outono por aqui. O céu
está a todo tempo encoberto.
Tem chovido muito. A casa
a praia andam cheias de sono
e à noite há sempre as pessoas
que buscam em vão as estrelas.

Mas eu hoje cedo, bem de manhã
acordei com a algazarra dos cães.
Lá fora os jasmins floresciam
a lembrança de outra estação.

O SENTIDO

Há rastros do silêncio
nas palavras, eu sinto
o predador informe
que nos respira -

uma selvageria me percorre.

Eu adivinho o êxtase
da refrega, o verso
que me acomete de vertigens

o olhar imponderável
da mais antiga fera.

* Releitura do poema publicado na Diversos Afins de novembro/2007.

O VELHO LIMOEIRO

À chuva bastou apenas
cuidar de um verde para a manhã.
O dia está de ave desde o arrebol.

O palavrário eu pus no quarador
para ver se pega cor de riso.
As horas, para ensaiar felicidade.

Em dias assim, o velho limoeiro
se toma um pouco mais de azul
acaba arremedando estrelas.
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Geraldo Lima (Zezão)



A figura atravessou a ponte e veio no rumo de casa. Menos que um homem visto assim mais de perto: um espantalho, um bicho.

Corremos pra dentro de casa. De lá, espiando pela greta da janela o ser desgrenhado especado ali no terreiro. Nosso pai veio lá do curral e se aproximou dele. Com certa alegria, a voz do nosso pai: Ora, mas se não é o Zezão de guerra! Quem é vivo sempre aparece... Abrimos então a janela: ali, à nossa frente, no ser maltrapilho, a lendária figura de Zezão. Com quantas festas acabara? Havia roubado a mulher de quem? Duas mortes nas costas, nenhum peso na consciência.

Louco. Andara pelas estradas e pelos ermos. Nos campos, entre o gado, roendo coco e chupando ingá — João Batista, no deserto, sobrevivendo com quase nada. Noção nenhuma de vida e morte. De cócoras, quase nu diante da nossa casa. Por pudor, as mulheres lá na cozinha. Em troca da roupa limpa, a mão suja estendida cheia de coco indaiá. Um quase sorriso em meio à barba cerrada. Ruína de dentes. Tudo o que lhe restara: o silêncio e uma generosidade insana.
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Sobre o Autor
Geraldo Lima nasceu em Planaltina, GO. Professor e escritor, é autor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Cultural, FCDF), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora) e UM (romance, LGE Editora/FAC). É um dos colunistas do site O Bule

Fonte:
http://diversos-afins.blogspot.com/

sábado, 18 de setembro de 2010

Robert Silverberg (O Homem que Jamais Esquecia)


Ele a viu na fila de um grande cinema de Los Angeles, na manhã de uma terça-feira ligeiramente nevoenta. Era delgada e pálida, de finos e compridos cabelos de trigo, mal teria quinze anos, e estava só. Lembrava-se dela, naturalmente.

Podia ser engano, mas, atravessando a rua, caminhou ao longo da fila até o lugar onde ela se encontrava.
- Alô! - disse.

Ela voltou-se, encarou-o impassível, passou rapidamente nos lábios a pontinha da língua...
- Creio que... creio que não...
- Sou Tom Niles - disse ele. - Pasadena, ano-novo de 1955. Sentou-se junto de mim no Estado de Ohio 20 versus Califórnia do Sul. Não se lembra?
- Num jogo de futebol? Mas eu raramente... isto é... sinto muito... eu...

Alguém na fila avançou para ele com aspecto ameaçador. Niles sabia quando estava vencido. Sorriu desculpando-se e disse:
- Sinto muito, senhorita. Acho que me enganei. Confundi-a com alguém que conhecia, uma certa Miss Bete Torrance. Desculpe!

E afastou-se rapidamente. Não andou mais de dez pés, quando ouviu um pequeno ofego e as palavras “Mas eu sou Bete Torrance!”... Ele, porém, continuou andando.
“Eu devia ter mais juízo aos vinte e oito anos”, pensou amargamente. “É que me esqueço do fato básico: de que, embora eu me lembre das pessoas, estas necessariamente não se lembram de mim...”

Abatido, caminhou até a esquina, virou à direita, pôs-se a descer uma nova rua – rua cujas lojas lhe eram completamente estranhas, e que, por isso mesmo, nunca antes visitara. Sua mente, como boa máquina que era, estimulada pelo incidente da fila de cinema, vomitou, até alcançar o diapasão normal de atividade, um exército de lembranças tangenciais.

1º de janeiro de 1955, no Rose Bowl de Pasadena, Califórnia, número do assento, G126; dia quente, muito úmido, cheguei ao estádio às doze e três, horário padrão do Pacífico. Fui sozinho. A moça ao lado trazia um vestido azul de algodão e tênis branco, carregava uma fâmula do Califórnia do Sul. Falei com ela. Nome, Bete Torrance, aluna adiantada do Califórnia do Sul, curso especializado. Tinha companheiro para o jogo, mas o rapaz adoecera com sintomas de gripe no dia anterior e insistiu para que ela fosse assistir à disputa futebolística mesmo sozinha. O assento ao lado dela, vazio. Comprei-lhe um cachorro-quente, vinte cents (sem mostarda...).”

Havia mais, muito mais. Porém Niles recalcou as lembranças. Havia entretanto o relatório virtualmente estenográfico da sua conversação durante todo aquele dia:

(“...Espero que ganhemos. Assisti ao último Rose Bowl que ganhamos, faz dois anos...)
(“...Sim, foi em 1953. Califórnia do Sul 7, Wisconsin 0... e duas vitórias completas sobre Washington e Tennessee...)
(“...Puxa, conhece futebol a fundo! Costuma decorar o livro de scores? “)

E as antigas lembranças... O berro escarnecedor de Joe Merrit, o Sardento, naquele caloroso dia de abril de 1937: “Quem você pensa que é, Einstein?” E Buddy Call dizendo acerbamente a 8 de novembro de 1939: “Aí vem Tommy Niles, a máquina humana de somar. Agarrem-no!” Depois, a dor aguda de uma bola de neve acertando logo abaixo da sua clavícula esquerda - dor que ele podia evocar com a mesma facilidade com que evocava quaisquer outras lembranças de dor que trazia consigo. Piscou e fechou repentinamente os olhos, como que golpeado pela gélida pelota, ali, numa rua de Los Angeles, numa manhã nevoenta de terça-feira...

Já não mais o chamavam de “máquina humana de somar”, mas de “gravador humano”: os termos irônicos tinham de emparelhar-se com as décadas que passavam. Só o próprio Niles permaneceu inalterado. O Menino de Cérebro de Esponja virou Homem de Cérebro de Esponja, sempre condenado ao mesmo dom terrível. Sua mente coalhada de dados lhe doía. Viu um minúsculo carro esporte estacionar no outro lado da rua, e pelo feitio, modelo, cor e número da licença, reconheceu-o como pertencente a Leslie F. Marshall, de vinte e seis anos, cabelos louros, olhos azuis, ator de televisão com as seguintes habilitações...

Estremecendo, Niles desligou o circuito e apagou os dados que se avolumavam. Estivera uma vez com Marshall, fazia seis meses, numa festa oferecida por um amigo comum - um amigo de outrora; Niles achava difícil continuar amigo de alguém por muito tempo. Conversara talvez dez minutos com o ator e acrescentara mais isso à sua bagagem mental.

Era tempo de seguir adiante, pensou Niles. Residira dez meses em Los Angeles. O fardo de lembranças acumuladas se lhe tornara excessivamente pesado; cumprimentava um número demasiado de pessoas que já o haviam esquecido. “Ao diabo com o meu quociente, John. Tamanho normal, cinco pés e nove polegadas, cento e sessenta e três libras; cabelos castanhos, olhos castanhos, nenhum traço fisionômico indevidamente saliente, nenhuma cicatriz visível, exceto as de dentro”, pensou. Tencionava voltar para San Francisco, mas desistiu. Fazia apenas um ano que lá estivera; em Pasadena, fazia dois. Percebeu que chegara o dia de uma outra excursão para o leste...

“Para a frente e para trás na superfície da América, lá vai Thomas Richard Niles, o Holandês Voador, o Judeu Errante, o Espírito do Natal Passado, o Gravador Humano...” Sorriu para um jornaleiro que lhe vendera um exemplar do Examiner do último dia 13, recebeu de volta o costumeiro olhar inexpressivo, e dirigiu-se para o terminal de ônibus mais próximo.

Para Niles, a longa viagem começara a 11 de outubro de 1929, na pequena cidade de Lowry Bridge, Ohio. Era o terceiro de três filhos, nascido de pais aparentemente normais, Henry Niles (nascido em 1896), Mary Niles (nascida em 1899). Seus irmãos mais velhos não tinham revelado qualquer manifestação extraordinária; ao contrário de Tom, que revelara...

Tudo começou quando ele principiou a soletrar; uma vizinha, espiando do alpendre para dentro da casa dele, viu-o brincando e observou a Mary Niles:
- Veja como ele está crescendo!

Nessa ocasião, Tom contava menos de um ano, e respondera, virtualmente, no mesmo tom de voz: “Veja como ele está crescendo!”

Foi uma sensação, embora se tratasse de pura mímica, não de discurso. Passou seus primeiros doze anos em Lowry Bridge, Ohio. Tempos depois cismava frequentemente em como fora capaz de ali permanecer tanto tempo. Entrou para a escola aos quatro anos, pois não havia como retê-lo; seus colegas de classe tinham cinco ou seis anos, eram vastamente superiores a ele em coordenação física, vastamente inferiores em tudo o mais. De certo modo, Tom sabia ler, podia até mesmo escrever, embora seus músculos infantis logo se cansassem de segurar a caneta. E podia... lembrar.

Lembrava-se de tudo. Lembrava-se das rixas de seus pais e repetia exatamente suas palavras a quem quisesse ouvir, até que seu pai lhe deu uma surra e ameaçou matá-lo se ele viesse a repeti-las. Também se lembrava disso. Lembrava-se das mentiras contadas por seu irmão e sua irmã, e se esforçava em repeti-las com exatidão. Finalmente, aprendeu a não fazer mais isso. Lembrava-se das coisas ditas por pessoas, e até mesmo as corrigia quando mais tarde elas contrariavam as suas primeiras declarações.

Lembrava tudo.

Certa vez leu um manual, e absorveu-o todo. Quando o professor fazia uma pergunta baseada na lição do dia, o braço magricela de Tommy Niles era o primeiro a se levantar, antes mesmo que os outros a tivessem ao menos assimilado. Passado algum tempo, o professor lhe explicou que ele não podia responder a todas as perguntas, tivesse ou não resposta para elas; havia na escola mais vinte alunos, os quais lhe ensinaram isso fartamente... depois da aula.

Ganhou na Escola Dominical o Concurso de Memorização de Versículos Bíblicos. Barry Harman estudara muitas semanas esperando ganhar a luva de boxe que seu pai lhe prometera se tirasse o primeiro lugar; mas quando chegou a vez de Tommy Niles, assim começou ele: “No princípio Deus criou o céu e a terra”, continuando com “Estas são as origens do céu e da terra, quando foram criados: no dia em que o Senhor Deus fez a terra e o céu”, descambando para “Ora, a serpente era a mais astuta de todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito”; era de presumir que tivesse recitado todo o Gênese, o Êxodo e o Livro de Josué, não tivesse o aturdido professor mandado que ele se calasse, declarando-o vencedor.

Barry Harman não ganhou a luva; em vez disso, Tommy Niles ganhou um olho preto. Começava a perceber que era diferente dos outros. Levou tempo para descobrir que os outros estavam sempre a esquecer coisas, e que, em vez de admirá-lo por lembrá-las, ao contrário, odiavam-no. Era difícil para um menino de oito anos, embora este fosse Tommy Niles, compreender por que o detestavam; mas ele o descobriu finalmente, de modo que começou a aprender como ocultar seu talento.

No decorrer do nono e décimo anos, exercitou-se na normalidade, e foi quase bem sucedido; as surras de após as aulas cessaram, e ele conseguiu obter alguns “B” nos boletins, ao invés de renques de “A”. Crescia; aprendia a fingir Os vizinhos soltavam suspiros de alívio, agora que o terrível diabrete dos Niles já não mais fazia aquelas coisas malucas...

Mas por dentro ele era o mesmo de sempre, e percebia que em breve teria de sair de Lowry Bridge. Conhecia demais a todos e a cada um. Dez vezes por semana apanhava-os mentindo; até mesmo Mr. Lawrence, o ministro, que certa vez rejeitou um convite dos Niles para uma função social, dizendo: “Na verdade tenho de aprontar meu sermão de domingo”, quando, havia apenas três dias, Tommy o ouvira dizer a Miss Emery, secretária da igreja, que ele experimentara um repentino estro de inspiração e escrevera três sermões de uma assentada, de modo que agora teria tempo livre para o resto do mês...

Como veem, até Mr. Lawrence mentia... E era o melhor dos homens. Quanto aos outros...

Tommy esperou até completar doze anos. Era grande demais para a idade e pensou poder agir por si mesmo. Tomou vinte dólares de empréstimo da pseudo-secreta caixinha do fundo da prateleira da cozinha (fazia cinco anos que sua mãe mencionara sua existência e ele ouvira), e saiu às escondidas de casa, às três da madrugada. Tomou o trem de carga para Chillicothe e pôs-se a caminho. Havia umas trinta pessoas no ônibus que deixou Los Angeles. Niles sentou-se sozinho na parte traseira, junto ao banco situado logo em cima da roda de trás. Conhecia de nome três pessoas que viajavam no ônibus - mas confiava em que elas já o houvessem esquecido e não se mexeu.

Negócio incômodo. Se dissesse “alô” a alguém que o esquecera, pensariam que ele era um criador de casos ou um achacador. E se passasse por alguém, pensando que ele o esquecera, quando, ao contrário, isso não acontecia, então, que tipinho mais esnobe que ele era! Niles balançava-se entre esses dois polos cinco vezes por dia. Via alguém, por exemplo a moça Bete Torrance, e recebia de volta um olhar gelado, impassível; ou passava por outra pessoa, acreditando que esta não se lembrava dele mas andando depressa para escapar a um possível reconhecimento, e ouvia um irado “Bem! Que diacho você pensa que é?” acompanhando-lhe a retirada.

Agora estava só, sacolejando para cima e para baixo a cada revolução da roda, com a sua única maleta contendo seus pertences a pular constantemente no compartimento de bagagens sobre a sua cabeça. Uma vantagem do seu talento: poder viajar sem bagagem. Não precisava conservar os livros depois que os lia, e não era proveitoso entesourar pertences de qualquer espécie; estes se tornavam demasiado conhecidos, para não dizer cacetes.

Niles olhava as tabuletas da estrada. Já estavam bem entrados em Nevada. A antiga e cansativa retirada prosseguia. Não podia permanecer demais numa só cidade. Era-lhe preciso dirigir-se a um novo território, a algum lugar desconhecido, do qual não tivesse lembranças, onde ninguém o conhecesse, onde não conhecesse ninguém. Nos dezesseis anos que se passaram desde que saíra de casa, cobrira muito terreno.

Lembrava-se dos empregos que tivera.

Fora revisor de uma casa editora de Chicago. Fazia o trabalho de dois homens. Segundo o costume, um homem lia o manuscrito enquanto o outro conferia as provas. Niles tinha um método mais simples: lendo o manuscrito, decorava-o, depois apenas conferia as provas em busca de discrepâncias. Ganhou por algum tempo cinquenta dólares semanais, antes que chegasse a hora de seguir adiante. Certa vez fora trabalhar como atração num parque de diversões ambulante que fazia o circuito regular de Alabama-Mississípi-Geórgia. Nessa época estava realmente a nenhum. Lembrava-se de como arranjara esse emprego: agarrando o dono do parque pela lapela e pedindo-lhe um teste:

- Leia-me qualquer coisa... qualquer coisa... e eu me lembrarei!

O sujeito estava meio cético e não via nenhuma utilidade num ato desses, mas finalmente cedeu quando Niles praticamente desmaiou de fome no escritório dele. O homem leu para ele o editorial de um semanário do interior do Mississípi, e, quando acabou, Niles recitou-o inteirinho, palavra por palavra. Obteve o emprego de quinze dólares por semana mais as refeições, e ficava sentado numa tenda sob a tabuleta que dizia: “O Gravador Humano”. As pessoas liam-lhe ou diziam-lhe coisas e ele as repetia. Era um trabalho monótono. Às vezes lhe diziam coisas sórdidas, e na maior parte dos casos, daí a minutos nem ao menos se lembravam do que haviam dito. Ficou no parque quatro semanas, e quando se despediu ninguém lhe achou falta.

O ônibus rodava na noite que o nevoeiro bloqueava. Mas ainda houve outros empregos: bons empregos, maus empregos... Nenhum durou muito tempo. Também houve algumas garotas, porém nenhuma delas durara muito. Todas elas descobriram-lhe o talento especial - mesmo aquelas das quais tentara escondê-lo - e o abandonaram. Não era possível ficar junto de um homem que jamais esquecia, um homem que sempre podia catar fraquezas de ontem no reservatório que era a sua mente e lançá-las inopinadamente em público. Um homem de memória perfeita jamais poderia viver muito tempo entre seres humanos imperfeitos.

“Perdoar é esquecer”, pensava ele. A lembrança de velhos insultos e discussões se dissipa, e as relações se refazem. Mas para ele não podia existir esquecimento, e, em consequência, só poderia haver pouco perdão.

Niles fechou os olhos após algum tempo e encostou-se na dura almofada de couro da poltrona. A cadência ritmada do ônibus deu-lhe sono. Durante o sono, sua mente descansava; ele podia enfim repousar a memória. Nunca sonhava. Em Salt Lake City pagou a passagem, desceu do ônibus com a mala na mão e partiu na primeira direção à sua frente. Não queria se afastar muito a leste naquele ônibus.

Sua reserva monetária era agora de sessenta e três dólares, e tinha de fazê-la durar. Descobriu um emprego de lava-pratos num restaurante do centro da cidade, conservou–o o bastante para acumular uma centena de dólares e tornou a partir, desta vez viajando de carona para Cheyenne. Ficou um mês ali, depois tomou um ônibus noturno para Denver, e quando deixou Denver foi para dirigir-se a Wichita.

De Wichita para Des Moines, de Des Moines para Minneapolis, de Minneapolis para Milwaukee, depois através de Illinois, cuidadosamente evitando Chicago, e daí para Indianápolis. Essa viagem era para ele história antiga. Celebrou melancolicamente o seu vigésimo nono aniversário sozinho, numa casa de cômodos de Indianápolis, num dia garoento de outubro, e com o propósito de alegrar a ocasião evocou as velhas lembranças da festa do seu quarto aniversário, em 1933 - uma das poucas datas perfeitamente felizes de sua vida.

Todos estavam lá - seus amigos e seus pais, e seu irmão Hank com um ar muito importante para os seus oito anos, e sua irmã Marian, e havia velas e lembranças festivas, ponche, bolos. Mrs. Heinsohn, vizinha do lado, entrara dizendo: “Ele parece um homenzinho!”, e seu pais ficaram radiantes, todos cantaram e divertiram-se. Depois, jogado o último jogo, aberto o derradeiro presente, quando os meninos e as meninas acenaram um boa-noite e desapareceram rua acima, os adultos sentaram-se em roda e falaram do novo presidente e das muitas coisas estranhas que aconteciam no país, e o pequeno Tom sentou-se no meio do assoalho, ouvindo e gravando tudo e cordialmente satisfeito, pois durante toda a tarde ninguém lhe fizera ou dissera algo cruel. Dia feliz, aquele, e, ao deitar-se, ele ainda se sentia cheio de felicidade.

Niles relembrou a festa duas vezes, como um velho filme ao qual amasse; a imagem nunca aparecia defeituosa e o som continuava tão claro e distinto como nunca. Niles podia provar o doce travo do ponche, podia reviver o calor daquele dia no qual, mercê de algum acidente, os outros lhe haviam permitido um pouco de felicidade. Finalmente deixou se dissipar o brilho da festa, e novamente achou-se em Indianápolis, numa tarde cinzenta e sombria, sozinho num quarto mobiliado, de oito dólares por semana.

“Desejo-me feliz aniversário”, pensou amargamente. “Feliz aniversário.”

Fitou a parede verde cheia de manchas com uma gravura barata de Corot dependurada um pouco de viés. “Bem que eu podia ser algo especial”, cismava ele, “uma dessas maravilhas do mundo. Em vez disso, não passo de um sorrateiro excêntrico que mora nos fundos de um terceiro andar, e não me atrevo a deixar que o mundo saiba o que sei fazer.”

Fez um esforço e conseguiu se lembrar da execução, por Toscanini, da Nona sinfonia de Beethoven, que ouvira no Carnegie Hall certa vez em que estivera em Nova Iorque Estava infinitamente melhor do que a última execução que o mesmo Toscanini aprovara para gravação, todavia nenhum microfone a registrou; exceto na mente de um homem, a fulgurante execução era tão impossível de captar como uma chama soprada há cinco minutos. Mas Niles captara-a: a majestosa entrada dos tímpanos, o ressoante contrabaixo produzindo a grande melodia do finale, até mesmo o balanço do oboé que devia enfurecer o maestro, a tosse exasperadora dos ouvintes no momento mais suave do adágio, o dolorido apertão dos sapatos de Niles, que se inclinava para a frente na poltrona...

Ele gravara tudo, com a mais alta fidelidade.

Três meses depois, numa noite sem lua chegou a uma cidadezinha. Era uma noite de janeiro, fria e cortante, quando o vento de inverno soprava do norte, penetrando-lhe os ossos através da roupa fina e tornando quase insuportável o peso da mala para suas mãos dormentes e sem luvas. Não tivera a intenção de ir para lá, mas em Kentucky ficara sem dinheiro e não tivera escolha. Estava a caminho de Nova Iorque, onde poderia viver anonimamente durante meses sem amolação e onde sabia não ser notada a sua grosseria caso lhe acontecesse esbarrar em alguém ou cumprimentar alguma pessoa que o houvesse esquecido.

Mas Nova Iorque ainda se encontrava a centenas de milhas de distância - bem poderiam ser milhões naquela noite de janeiro. Viu um letreiro: “BAR”. Avançou para a luz pisca-pisca de neon. Ordinariamente não bebia, mas agora precisava do calor do álcool, e talvez o dono do bar precisasse de alguém para ajudar, ou talvez pudesse lhe alugar um quarto em troca do pouco dinheiro que tinha nos bolsos.

Havia cinco homens lá dentro. Pareciam choferes de caminhão. Niles deixou cair a mala à esquerda da porta, esfregou as mãos endurecidas, exalou uma nuvem branca pela boca... O dono do bar arreganhou-lhe um sorriso.
- Frio que baste lá fora, hein?

Niles conseguiu sorrir.
- Não estava suando muito... Dê-me algo quente. Uma dose dupla de uísque, talvez.

Isso custava noventa cents: ele tinha apenas sete dólares e trinta e quatro cents. Niles acalentou a bebida quando ela veio, bebericou devagar, deixou-a escorrer pela garganta... Lembrava-se do verão em que fora parar em Washington, uma semana inteira de noventa e sete graus de temperatura e noventa e sete por cento de umidade, e a vívida memória concorreu para lhe acalmar alguns dos efeitos psicológicos do frio. Logo distendia os nervos, cobrava calor... Atrás dele, o rumor penetrante de uma discussão.
-...digo-lhe que Joe Louis fez de Schmeling uma massa na segunda vez! Nocauteou-o no primeiro round!
- Está maluco! Louis simplesmente o derrubou numa luta de quinze rounds: por pontos, no segundo...
- Parece que...
- Aposto dinheiro. Dez dólares numa decisão por pontos em quinze rounds, Mac.

Risadas confiantes se fizeram ouvir.
- Não quero ganhar tão fácil seu dinheiro, companheiro. Todos sabem que foi nocaute.
- Ofereci dez dólares.

Niles voltou-se para ver o que estava acontecendo. Dois dos choferes de caminhão, homens atarracados, de jaqueta cor de ervilha, encostavam um no outro os respectivos narizes. A ideia lhe veio automaticamente: “Louis pôs Schmeling nocaute no primeiro round, no Yankee Stadium, Nova Iorque, 22 de junho de 1938”. Niles nunca fora grande esportista, e especialmente aborrecia-lhe o boxe, mas certa vez dera uma vista d’olhos na página de um almanaque que catalogava as lutas pelo título, e os dados, naturalmente, lhe ficaram gravados no cérebro.

Olhava indiferente enquanto o maior dos choferes batia na mesa uma nota de dez dólares; o outro imitou-o. Então o primeiro, olhando para o dono do bar, disse o seguinte:
- Certo, mano. Você é um sujeito esperto. Quem acertou nessa segunda luta de Louis e Schmeling?

O dono do bar era um homem de rosto inexpressivo, de meia-idade, já meio careca, com olhos mansos e vazios. Mordeu o lábio um instante, encolheu os ombros, hesitou, finalmente disse:
- Difícil lembrar. Foi há vinte e cinco anos essa luta.
“Vinte”, pensou Niles.
- Vejamos - prosseguiu o dono do bar. - Parece que me lembro... sim, é isso mesmo.

Foram quinze rounds e os juizes deram a vitória a Louis. Houve um grande protesto; os jornais disseram que Joe devia tê-lo matado muito antes disso.

Um sorriso triunfante se esboçou na cara do motorista maior, que destramente empolgou ambas as notas.

O outro homem fez uma careta e soltou um berro:
- Ei! Vocês dois combinaram a coisa de antemão. Sei perfeitamente que Louis nocauteou o alemão em um!
- Ouviu o que o homem disse: o dinheiro é meu.
- Não - disse Niles repentinamente numa voz tranquila, que se diria ecoar até a metade do bar.

“Fique calado”, disse freneticamente com seus botões. “Isso não lhe diz respeito. Fique de fora.”
Mas era demasiadamente tarde.

- O que está dizendo? - perguntou o tal que pusera os dez dólares na mesa.
- Digo que está sendo logrado. Louis venceu a luta em um round, conforme você diz, a 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium. O dono do bar está pensando na luta de Arturo Godoy. Essa foi de quinze rounds, completos, a 9 de fevereiro de 1940.
- Está vendo? Eu bem disse! Devolva-me o dinheiro!

Mas o outro chofer não fez caso do grito e voltou-se para encarar Niles. Era um homem de expressão fria, atarracado, e seus punhos começavam a se crispar...
- Espertinho, hein? Especialista em boxe?
- Eu só não queria ver alguém logrado - disse Niles obstinadamente. Mas já previa o que vinha em seguida. O chofer, embriagado, ia trocando as pernas em sua direção; o dono do bar berrava, os outros campeões recuavam...

O primeiro soco acertou Niles nas costelas; ele gemeu, recuou cambaleando para ser agarrado pela garganta e esbofeteado três vezes. Ouviu vagamente uma voz que dizia:
- Olhe aí, solte o rapaz! Ele não queria nada! E você quer matá-lo?

Uma rajada de golpes fizeram-no curvar-se; um soco inchou-lhe a pálpebra direita, outro golpeou-lhe o ombro esquerdo, adormecendo-o. Niles rodou a esmo, sabendo que sua mente se recordaria permanentemente de cada momento dessa agonia. De olhos semicerrados viu os outros arrancando o chofer enfurecido de cima dele; o homem contorcia-se nas garras de três outros, mas desferiu um último pontapé desesperado no estômago de Niles, atingindo uma costela, e finalmente foi subjugado.

Niles ficou sozinho no meio da sala, esforçando-se para ficar de pé, tentando suportar as súbitas pontadas que o incomodavam numa dúzia de lugares.
- Você está bem? - perguntou uma voz solícita. - Diacho! Esses caras jogam duro. Não devia se meter com eles.
- Estou bem - disse Niles numa voz cavernosa. - Mas espere um pouco... deixe-me recuperar o fôlego.
- Isso. Sente-se. Tome um trago. Isso lhe dará ânimo.
- Não - disse Niles. - Não posso ficar aqui. Tenho de ir andando. Logo estarei bom - murmurou sem convencer ninguém. Apanhou a mala, enrolou-se no sobretudo e saiu do bar, passo a passo...

Andou quinze pés antes que a dor se lhe fizesse insuportável. De repente amontoou-se no chão e caiu de bruços no escuro, sentindo de encontro às faces a terra enregelada e dura como aço. Em vão tentou levantar-se. E ali ficou, lembrando-se das muitas dores que sofrera na vida, as surras, a crueldade... Mas quando o peso da memória se lhe tornou demasiado, perdeu os sentidos.

A cama era tépida, os lençóis limpos, frescos e macios. Niles despertou lentamente, sentindo uma momentânea sensação de tontura, mas a sua infalível memória supriu os dados do seu desmaio na neve e ele percebeu que se encontrava num hospital. Tentou abrir os olhos; um se fechara, de tão inchado que estava, mas conseguiu descerrar as pálpebras do outro. Achava-se no quarto de um pequeno hospital – nada de um lustroso pavilhão metropolitano, mas de uma pequena clínica de condado com vistosos objetos moldados nas paredes e cortinas de renda caseira, através das quais penetrava o sol da tarde.

Fora encontrado e conduzido ao hospital. Isso era bom. Podia facilmente ter morrido lá fora, na neve; mas alguém tropeçara nele e o recolhera. Era uma novidade alguém ter-se incomodado em socorrê-lo; o tratamento que recebera na véspera naquele bar - fora mesmo na véspera? - era mais condizente com o que até então o mundo lhe havia dado. Em dezenove anos, ele de algum modo fracassara em aprender a se esconder e se disfarçar adequadamente, por via do que sofria, diariamente, terríveis consequências. Era-lhe tão difícil lembrar (ele, que de tudo se lembrava) que as outras pessoas não eram como ele, e que além disso o odiavam por ele ser o que era.

Apalpou cautelosamente o flanco. Parecia não haver nenhuma costela quebrada – apenas machucaduras. Um dia ou dois de repouso e decerto lhe dariam alta, deixando–o continuar a viagem.

Nisto, uma voz animada lhe falou:
- Oh, já acordou, Mr. Niles? Está melhor? Vou trazer-lhe um pouco de chá.

Ele ergueu a vista e sentiu uma súbita pontada muito aguda. Era uma enfermeira – vinte e dois, vinte e três anos, talvez nova no emprego, com uma ondulante massa de louros cachos e grandes olhos azuis, límpidos e redondos... Sorria, e pareceu a Niles que o sorriso não era meramente profissional.
- Sou Miss Carroll, enfermeira diurna. Tudo vai bem?
- Otimamente - disse Niles com certa hesitação. - Onde estou?
- No Hospital Central Geral do Condado. Trouxeram-no ontem à noite - pelo visto tinha sido espancado e largado na Rodovia 32. Foi uma sorte Mr. Mark McKenzie estar passeando com seu cão, Mr. Niles. - E fitou-o gravemente. - Lembra-se de ontem à noite, não se lembra? Quero dizer... o choque... a amnésia...

Niles riu para si mesmo.
- Essa é a última indisposição no mundo que hei de recear - disse. - Sou Thomas Richard Niles, e me lembro muito bem do que sucedeu. Até que ponto me avariaram?
- Ferimentos superficiais, um pequeno choque, um leve caso de queimadura pelo frio - resumiu ela. - Vai viver. Daqui a pouco o Dr. Hammond lhe fará um exame geral; depois que o senhor comer. Vou buscar-lhe um pouco de chá.

Niles observou a esbelta figura que desaparecia no corredor.

Era certamente uma moça muito bonita, pensou: olhos límpidos... alerta... viva. “O clichê é antigo: o paciente se apaixonando pela enfermeira. Porém ela não é para mim. Receio que não.”

A porta abriu-se abruptamente e a enfermeira tornou a entrar, carregando uma bandejinha esmaltada com o serviço de chá.
- Não adivinha? Tenho uma surpresa para o senhor, Mr. Niles. Uma visita. Sua mãe.
- Minha mãe...
- Ela leu a notícia no jornal do condado. Está esperando lá fora; disse-me que não o vê há uns dezessete anos. Quer que eu a mande entrar?
- Acho que sim - disse Niles com voz seca e frágil. A enfermeira saiu pela segunda vez.

“Meu Deus”, pensou Niles. “Se eu soubesse que estava tão perto de casa, teria ficado fora de Ohio de uma vez!”

A última pessoa que desejaria ver no mundo era sua mãe. Pôs-se a tremer debaixo das cobertas. As mais antigas e as mais terríveis lembranças irrompiam do escuro compartimento de sua mente, onde as julgava para sempre aprisionadas. A súbita emergência do calor para o frio, da treva para a luz, a vibrante pancada contra o seu traseiro, a dor cruciante ao saber que se acabara a sua segurança, e que, de agora em diante, viveria, e que, por isso, seria infeliz...

A lembrança do grito agônico do seu nascimento ressoou-lhe na mente. Nunca se esqueceria de que nascera. E entre todas, sua mãe era a única pessoa que ele jamais perdoaria, uma vez que ela o pusera no mundo que ele odiava. Tinha horror às mulheres, mas...
- Olá, Tom. Faz tanto tempo...

Dezessete anos haviam-na murchado, marcado de rugas o seu rosto e tornado suas faces mais balofas, os cerúleos olhos menos brilhantes, os cabelos castanhos de um cinzento de camundongo. Ela sorria. E para seu próprio espanto, Niles conseguiu retribuir-lhe o sorriso.
- Mãe.
- Li a notícia no jornal. Dizia que um homem de aproximadamente trinta anos fora encontrado nas cercanias da cidade com papéis que traziam o nome de Thomas R. Niles, e fora conduzido ao Hospital Central Geral do Condado. Por isso vim, apenas para me certificar de que era você mesmo!

Uma mentira aforou à superfície de sua mente, uma mentira piedosa... e ele a disse:
- Eu voltava para visitá-la, mãe. Vim de carona. Mas sofri um pequeno acidente na estrada.
- Folgo em saber que você resolveu voltar, Tom. Fiquei tão só depois da morte de seu pai, e, naturalmente, Hank se casou, Marian também... é bom tornar a vê-lo. Pensei que nunca mais o veria.

Ele continuou deitado, perplexo, pensando por que não lhe vinha a costumeira maré de ódio. Só sentia ternura por ela; estava contente em revê-la.
- E como foram todos esses anos, Tom? Não foram fáceis, não? Estou vendo. Percebo em sua cara...
- Sim, não foram fáceis - respondeu. - Sabe por que fugi?

Ela fez com a cabeça um aceno afirmativo:
- Por causa do jeito que você tem. Aquela história de jamais esquecer seja lá o que for... Eu sabia. Sabe que seu avô tinha o mesmo dom...
- Meu avô... mas...
- Você puxou a ele. Eu nunca lhe contei. Ele não se dava bem com nenhum de nós. Abandonou minha mãe quando eu era menina e nunca se soube para onde foi. Por isso sempre pensei que você se fora do mesmo modo que ele. Mas você voltou. Está casado?

Ele sacudiu a cabeça.
- Então já é tempo de decidir, Tom. Tem quase trinta anos!

A porta do quarto abriu-se e entrou um médico de aspecto eficiente.
- Receio que a sua hora já se tenha esgotado, senhora. Mais tarde poderá voltar a vê-lo. Vou examiná-lo, agora que está acordado.
- Naturalmente, doutor. - E sorriu para ele, depois para Niles. - Voltarei mais tarde, Tom.
- Decerto, mãe.

Niles recostou-se, fazendo carrancas à medida que o médico o cutucava aqui e acolá. “Eu não a odiava.” Um crescente maravilhamento o invadia, e ele pensava que havia muito já devia ter voltado. Mudara interiormente, mesmo sem perceber. Fugir foi sua primeira fase de crescimento - fase necessária. Porém querer voltar aconteceu mais tarde e era sinal de maturidade. Voltara. E repentinamente viu que fora terrivelmente idiota durante toda a sua amarga vida de adulto. Possuía um dom, um grande dom, um dom terrífico. Até agora lhe fora demasiado pesado. Condoendo-se de si próprio, atormentando-se, até então se recusara a perdoar as faltas das pessoas que esqueciam, e pagara o preço do ódio delas. Mas não podia andar fugindo a vida inteira. Tempo viria em que teria de crescer o suficiente para dominar o dom, para aprender a viver com ele ao invés de gemer na dramática angústia que a si próprio se infligia. E esse tempo era agora. Já de há muito devia ter chegado.

Seu avô possuíra o dom - nunca lhe haviam dito isso. De modo que a coisa era geneticamente transmissível. Podia casar, ter filhos... e também estes jamais se esqueceriam. Era seu dever não consentir que o dom morresse com ele. Outros de sua espécie, menos sensíveis, de pele menos fina, viriam após ele, e também estes saberiam como evocar uma sinfonia de Beethoven ou um fiapo de conversa, depois de uma década. Pela primeira vez desde aquele quarto aniversário, Tom sentiu um hesitante lampejo de felicidade. Os dias de correria tinham findado; estava de novo em casa.

“Se eu aprender a viver com os outros, decerto também eles aprenderão a viver comigo.” Viu então as coisas de que precisava: uma mulher, um lar, filhos...
-... Alguns dias de repouso, muita bebida quente, e ficará bom como novo, Mr. Niles - disse o médico. - Gostaria que agora eu lhe trouxesse alguma coisa?
- Sim - disse Niles. - Mande-me a enfermeira, sim? Quero dizer, Miss Carroll.

O médico esboçou um sorrisinho e saiu. Niles aguardou cheio de expectativa, exultando no seu novo eu. Ligou a mente para o terceiro ato dos Mestres cantores - jubilosa música de fundo - e deixou que a ternura o invadisse. Quando ela entrou no quarto ele sorria, pensando em como diria o que tinha para lhe dizer.

Fonte:
SILVERBERG, Robert. Outros tempos, outros mundos. SP: Círculo do Livro, 1990.

Imagem = montagem por José Feldman

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Ialmar Pio Schneider (1942)



Nasceu no município de Sertão, RS, em 26/8/1942.

Residiu por mais de 20 anos em Canoas, e atualmente reside em Porto Alegre.

Poeta, advogado, cronista e bancário aposentado,

Entidades a que pertence:
Casa do Poeta Rio-Grandense,
União Brasileira de Trovadores - Sede de Porto Alegre,
Grêmio Literário Castro Alves,
Agei - Associação Gaúcha dos Escritores Independentes,
Casa do Poeta de Canoas,
entre outras.

domingo, 27 de junho de 2010

Rodolpho Abbud (Baú de Trovas)


Nasceu em Nova Friburgo/RJ, em 21 de outubro de 1926; filho de Dona Ana Jankowsky Abbud e de Ralim Abbud. Radialista, Locutor Esportivo, Poeta e Trovador, foi sempre muito bom em tudo aquilo que fez ou faz.

Contam até que, certa vez, transmitindo um jogo do Friburguense, teve a sua visão do campo totalmente coberta pelos torcedores. Sem perder a calma, e com sua habitual presença de espirito, continuou a transmissão assim: - "Se o Friburguense mantém a sua formação habitual, a bola deve estar com o zagueiro central, no bico esquerdo da área grande..."

Tem um livro de Trovas intitulado: "Cantigas que vêm da Montanha", e, recebeu, com inteira justiça e por voto unânime de todos os Trovadores que ostentam essa honra, o titulo de "Magnífico Trovador".

Na vida, lutar, correr,
não me cansa tanto assim...
O que me cansa é saber
que estás cansada de mim!

Naquele hotel de terceira,
que a policia já fechou,
a Maria arrumadeira
muitas vezes se arrumou!

Enquanto um velho comenta
sobre a vida: -"Ah! Se eu soubesse..."
um outro vem e acrescenta
já descrente: -"Ah! Se eu pudesse..."

Foram tais os meus pesares
quando, em silêncio partiste,
que, afinal, se tu voltares,
talvez me tornes mais triste...

Depois do sonho desfeito,
louvo o porvir que, risonho,
não me recusa o direito
de escolher um novo sonho!

Soube o marido da Aurora,
ela não sabe por quem,
que o vizinho dorme fora,
quando ele dorme também...

Seja doce a minha sina
e, num porvir de esplendor,
nunca transforme em rotina
os nossos beijos de amor...

-"Dê carona ao seu vizinho!"
E a Zezé, colaborando,
vai seguindo o meu caminho
e me dá de vez em quando!...

Na vida, em toscos degraus,
entre tropeços a sustos,
mais que a revolta dos maus,
temo a revolta dos justos!

Minha magoa e desencanto
foi ver, no adeus, indeciso:
- Eu disfarçando o meu pranto...
- Tu disfarçando um sorriso...

Em seus comícios, nas praças,
o casal cria alvoroços:
- Vai ele inflamando as massas!
- Vai ela inflamando os moços...

Vamos brincar de mãos dadas,
crianças pretas e brancas!...
O sol de nossas calçadas
não tem porteiras nem trancas!

Um Deputado ao rogar
ao Senhor, em suas preces,
pede que o verbo "caçar"
não se escreva com dois esses!...

À noite, ao passar das horas,
esqueço os dias tristonhos,
pois tuas longas demoras
dão-me folga para os sonhos!

Chegaste a sorrir, brejeira,
depois da tarde sem fim...
E, nunca uma noite inteira
foi tão curta para mim!...

Ao se banhar num riacho,
distraída, minha prima
lembrou da peça de baixo
quando tirava a de cima ....

Vejo em minhas fantasias,
em Friburgo, pelas ruas,
mil sois enfeitando os dias
e, à noite, a luz de mil luas.

Na ansiedade das demoras,
quando chegas e me encantas,
mesmo sendo às tantas horas,
as horas já não são tantas...

Nessa paixão que me assalta,
misto de encanto e de dor,
quanto mais você me falta
mais aumenta o meu amor!...

Hei de vencer esta sina
que num capricho qualquer,
me fez amar-te menina
depois negou-me a mulher!...

Vem amor, vem por quem és!
Pois já tens, em sonhos vãos,
minhas noites a teus pés,
meus dias em tuas mãos!...

Toda noite sai "na marra",
Dizendo à mulher: -"Não Torra!"
Se na rua vai a farra,
em casa ela vai à forra!...

Um longo teste ela fez
de cantora, com requinte...
Cantou somente uma vez,
mas foi cantada umas vinte!...

Vendo a viuva a chorar,
muito linda, em seu cantinho,
todos queriam levar
a "coroa" do vizinho...

Não sei como não soubeste
mas o amor veio, infeliz...
Eu te quis, tu me quiseste,
mas o Destino não quis...

Provando em definitivo
que o Brasil é de outros mundos,
há muito "fantasma" vivo
passando cheques sem fundos...

Nosso encontro ...O beijo a medo...
A caricia fugidia...
Nosso amor era segredo,
mas todo mundo sabia...

Aproveita, criançada,
o tempo, alegre, ligeiro,
que da a uma simples calçada,
dimensões do mundo inteiro!

Cama nova, ele sem pressa
ante a noivinha assustada,
quer examinar a peça
julgando já ser usada!...

Em tudo o que já vivi,
nessa passagem terrena,
se um pecado eu cometi
com ela, valeu a pena!...

Fonte:
UBT Juiz de Fora.