sexta-feira, 18 de abril de 2008

Amadeu Amaral (Novela e Conto: Psicologia do Boato)

O boato é um fenômeno social que bem merece uma preleção psicológica, como um capítulo, que de fato o é, da psicopatologia das multidões.

Nas multidões, ou nas turbas, os elementos estão reunidos em massas, num momento dado; os fenômenos sociais aí se realizam por explosão, por contágio súbito que tem como ponto de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes - os chefes de revolta, de arruaças etc.

É da natureza humana o não agir sem um estímulo exterior; nossa vida mental não passa de sugestão de célula a célula e nossa vida social uma contínua sugestão de pessoa a pessoa. Isso se conclui da opinião dos psicólogos que têm tratado desse assunto. A sugestão é um fenômeno geral no meio social. A imitação, a repetição universal, de que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro - Les Lois de l'Imitation - demonstrando sua universalidade, nada mais é do que a "sugestão" na significação mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o papel de microscópio, mostrando-nos a sugestão muito aumentada. S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as idéias de Tarde e mostra sua coincidência com as de Sergi (Psicose Epidêmica).

Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenômeno se realiza lentamente, porque os indivíduos estão esparsos; mas o fenômeno é da mesma natureza essencial dos que se dão nas turbas.

Que é o boato? É quase sempre uma criação fantasiosa de um indivíduo mau, de caráter abjeto, fantasia essa que se espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa cidade, num Estado. O boato nasce como realização ilusória de um desejo perverso, originário de uma paixão inconfessável - raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniário, político ou sexual.

O criador de um boato é sempre um imbecil (moral). A vítima é, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; é esse o seu único consolo...

O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira, a fantasia perversa. Esse momento é de alta importância, porque nele se acha a circunstância que dá aparência de verdade ao fato que se pretende propalar. Essa circunstância é mui variável de um caso a outro. Não é possível, por exemplo, divulgar a notícia de que um certo financeiro importante está louco (para dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visível a todo o mundo; é preciso que esteja ausente, fortuitamente. É a circunstância oportuna.

Não basta, porém, como explicação para o boato, essa circunstância e a possibilidade ou verossimilhança do fato a divulgar. É necessário o meio social apropriado para que o fenômeno se realize. A sociedade espelha o caráter de seus fatores antropológicos. A explicação é bem escabrosa e desoladora para o homem civilizado, mas é preciso repetir a verdade, ainda que muito nos custe.

"Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguém é um velho cacoete da alma humana. Talvez seja a música mais harmônica que existe, porque convibra bem com qualquer espírito". A frase é de Austregésilo, no livro O Mal da Vida.

Há em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade, de infâmia e de perversidade. As proporções dessa mistura é que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente o que há de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de sua consciência lhe permitem reconhecer e dominar a própria tendência perversa, até o malvado arrematado, cuja consciência estreita e sensibilidade moral embotada lhe não permitem reconhecer o mal que vive dentro dele, há nessa vasta série, a infinidade de caracteres que vemos diariamente na sociedade.

Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conceptión Arenal (Delito Coletivo) em que se repete a noção acima exposta, apenas por outras palavras; "lo más grave y lo más triste es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice, o, para hablar con más propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible revelación no es obra de ningún principio, de ninguna idea; es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos".

O trabalho secular da civilização tem sido exatamente o de reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansão e força ao que é bom. Aquele, porém, não se extingue; existe sempre, embora sufocado, como os Titãs da fábula que, vencidos pelos deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos pelas convulsões de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra.

Canto e Melo, no seu recente romance - Relíquias da Memória - lá diz a mesma verdade, à página 67: "pela primeira vez na vida, pensei na crueldade dos homens. Só os conhecera até então através dos artifícios da civilização e do convencionalismo da sociedade. Ao vê-los agora, no pleno viço das suas inclinações primitivas e bárbaras, convenci-me de que o homem é mais feroz do que as feras e, se não exerce a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, é porque o medo da represália lhe arrefece dentro do coração os nefandos impulsos da ferocidade inata".

A concepção freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson, admite na alma humana o inconsciente dinâmico como sede de todas as tendências e instintos maus recalcados pela civilização no correr dos séculos.

Nada, entretanto, é novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos observadores e psicólogos, conheciam muito bem esses assuntos e deles trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo simbolismo de sua linguagem.

Sabido isto, ainda que em súmula, temos aí o núcleo indispensável para a explicação do boato.

Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos.

"A felicidade de qualquer é desespero para muitos", diz muito bem Austregésilo no Mal da Vida.

Quem não tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do céu.

O sucesso, por si próprio, cria má disposição de ânimo nos outros. E essa indisposição vive no inconsciente; não é raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada sob múltiplos aspectos. Na espécie humana é a política o melhor campo de observação.

Entre os animais o fenômeno é grosseiro e por demais visível. Repare-se quando diversos cavalos comem numa só manjedoura, cada um com seu quinhão de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar, para ir escoicear os outros, embora não lhe falte comida. É o mesmo fenômeno que se encontra no meio social, muito abrandado, está visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem.

É inegável, pois, que no meio social, por toda a parte, existe sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa que vence na vida. Haverá alguém tão ingênuo que a desconheça?

Nessa atmosfera é que se acha o elemento vital indispensável à germinação e rápida florescência do boato.

A escuridão do anonimato dá ao boateiro o ânimo e a proteção de que carece para agir, como a escuridão da noite protege certos insetos nojentos que propagam repugnantes infecções. É mesmo essa uma das feições que distinguem o boato de outros fenômenos sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza em pleno dia, por contágio quase explosivo.

No fundo, na essência, os fatos são idênticos. As coisas se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnabá, da ópera Gioconda, provoca na praça um tumulto contra a cega, mãe de Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes a convicção de que fora a cega quem exercera "malefícios" e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnabá é uma criatura eterna na sociedade.

Mais belo exemplo se acha na tragédia Júlio César, é o magnífico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de sua alma, Shakespeare pôs na boca de Brutus as palavras inflamadas que levariam o povo a assassinar Antônio, se este não possuísse também a poderosa arte de dirigir a fera - a multidão - que o ameaçava.

A habilidade do boateiro está, como em regra nos fenômenos desse grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta humana mal amordaçada pelas coerções do meio civilizado.

O boateiro é sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indômita que existe na maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro, o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonância que sua tendência encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagação dos estados afetivos nas multidões ao efeito da onda sonora de uma nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera atingida pelas suas ondulações. É um principio geral nos fenômenos de contágio moral.

A perversidade influi com prontidão, porque é uma qualidade mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, não procuram fazer o mal, são passivos; os maus "querem" fazer o mal, são ativos.

Felizmente existem também almas nobres em que essa lepra já se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato não caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, é suscetível de aperfeiçoamento com o envolver da civilização; a consciência se alarga no correr da evolução. É ao menos um consolo lembrar que a civilização irá melhorando cada vez mais a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediáveis. Também, se o conhecedor da alma humana só enxergasse ai o que há de mal, morreria de pavor.

O aperfeiçoamento da consciência chegará a extinguir o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuição do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cúmplice do boateiro encontra um homem bom ele narra uma calúnia, mais ou menos nestes termos:

"Sabe que "se anda dizendo" de F...? Dizem que fez isto, aquilo e mais aquilo. Eu não creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou dizendo só aqui entre nós; não convém falar, porque talvez seja invencionice. Em todo o caso é uma pena, se é verdade."

O homem bom fixa então os olhos semicerrados sobre o narrador e diz mentalmente:

"Miserável, infame! Não tens nem força para sufocar o prazer que isso te causa. Não inventaste, talvez, a mentira; mas o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma igual à dele, para colaborar no trabalho essencial - o da divulgação da infâmia. E tu contavas comigo, salafrário! porque não tens consciência do vil papel que neste momento representas."

Ora, aí está como as coisas se passam, embora excepcionalmente. Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vão logo adiante, confidencialmente, com ar muito contristado, na rara infâmia a um outro, e assim se espalha o boato com extrema rapidez. Ainda há pouco vimos como se espalhou no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da República, aqui em São Paulo, vaia que não passou de pura fantasia de um boateiro soez.

Há indivíduos mais afoitos, felizmente raros, que vão a um jornal e dão a falsa noticia da morte de um cidadão que está bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia... Os jornais já tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos são raríssimos. Vimos essa maldade praticada em São Paulo e não há muito anos.

Há uma diferença enorme entre o indivíduo que recebe com verdadeiro pesar uma falsa notícia e o cúmplice do boateiro, isto é, o que tem prazer em espalhá-la. O primeiro cala-se, ou procura saber de quem partiu a notícia; vai ao encontro da vitima e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro não; esconde a fonte de onde lhe viera a notícia; pactua com os malfeitores e finge pudor ou discrição, sem se lembrar que em tal caso não se trata disso; ao contrário, deve-se pôr tudo à luz do sol.

É muito difícil descobrir no meio dessa obra de colaboração anônima, o verdadeiro autor dessas infâmias. O professor Jung, de Zurique, conseguiu, no caso fácil e no meio restrito de um colégio de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez com que todos os conhecedores da notícia a escrevessem como a receberam. Notou ele o fato que nós expressamos no ditado português: "quem conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades que variavam entre os diversos narradores; só o núcleo essencial do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho e deixava perceber um desejo erótico que inconscientemente dominava a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso típico da mitomania de que tanto se ocupou Dupré, médico da prefeitura de Paris.

Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, é impossível descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores.

Há épocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento e divulgação do boato como há tanto tempo favorável às plantações na vida agrícola. São as épocas de intensas agitações emotivas - de guerra, de epidemia, de revolução política etc.

A ambição, outra tendência fundamental humana, permite também do mesmo modo que a maldade, a criação de uma atmosférica especial em que se observam curiosos episódios de sugestão e contágio, alguns dos quais revertem em castigo cômico contra os próprios ambiciosos. Temos o exemplo na célebre fortuna que se acreditou existir num banco inglês, pertencente a brasileiros, descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicólogo prático, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em São Paulo, há mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribuí-la aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um lhe mandasse apenas cinqüenta mil réis junto ao nome que o habilitasse como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome - Bueno, Silveira etc.
Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas de cinqüenta mil réis que deram magnífico resultado ao pândego mistificador.

Vimos nessa ocasião muita gente séria, carrancuda e circunspecta, entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe poderia caber.

Passado algum tempo, o insaciável advogado, precisando de mais dinheiro, mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruções muito especiais. Só podiam pagar novo tributo os que tinham tais e tais sobrenomes; os outros estavam excluídos. Muitos dos excluídos importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia; era preciso dar uma feição de seriedade a tal bandalheira. A nova colheita deu ainda magnífico resultado. A herança não apareceu até hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer... de viver um sonho por algum tempo.

É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que naquela época concorreram para os regabofes do advogado.

O boato nem sempre é expansão de malvadez recalcada; há o boato tendencioso e o boato inócuo. Sua origem primeira é sempre um desejo inconfessável e freqüentemente inconsciente.

A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve o boato, é sempre inconsciente.

Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornar consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode dominá-la. Ainda estamos longe da perfeição; não podemos exigir a extinção do boato.

Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de uma doutrina exposta em princípios gerais, é hoje moda e fundada em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato em lugarejo do interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmente descrito.
Franco da Rocha

Fonte:
www.biblio.com.br

Antonio Prata (Pra lua)

Não foi assim logo de cara. Claro, seu Julião e dona Neuza já tinham reparado numa coincidenciazinha aqui, uma sorte acolá, mas só foram perceber que Julinho tinha mesmo um dom especial no verão de 1984, em Caraguatatuba, assim que o moleque acabou de chupar o quinto picolé, de manga.

Quinze minutos antes, ao acabar o primeiro sorvete, um Fura-bolo, Julinho pulou de alegria: o palito viera premiado, dando direito a mais um. Até aí, nada de mais... Acontece que o segundo sorvete (um Esquimó) também dava direito a outro, assim como o terceiro (de coco), o quarto (tangerina) e provavelmente todos os que chupasse se, no quinto picolé — a barriga do garoto já estava parecendo uma tela do Pollock, tantas as gotas de diversas cores que escorriam em direção à sunga verde-limão—, o sorveteiro não tivesse dado com a tampa de isopor em sua cabeça e saído soltando os palavrões mais cabeludos, cujos significados Julinho só viria a descobrir muitos anos mais tarde, na perua do colégio, numa tarde de maio — o que não vem, absolutamente, ao caso.

O que nos interessa é que nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de toda a criançada de Caraguá, com quem trocava os palitos premiados por pipas, baldinhos de areia, favores e até uma bicicleta com buzina, cestinha e farol. (A bicicleta, infelizmente, teve que ser devolvida assim que uma mãe apareceu no guarda-sol da família, trazendo um filho choroso numa mão, 45 palitos premiados na outra e exigiu a anulação da troca.)

Apesar de já saberem que ali tinha coisa, foi só quando Julinho estava na quinta série, na época que surgiram as Raspadinhas, que seus pais realmente se deram conta do potencial econômico de seu dom. Enquanto a maioria dos mortais gastava tubos do dinheiro naqueles cartões lotéricos e, na melhor das hipóteses, ganhava 50 centavos — gastos em mais uma Raspadinha que, claro, não dava em nada —, Julinho sempre tirava a sorte grande: era só raspar a camada prateada e sair pro abraço.

Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado e jet ski. Não fosse o processo promovido pela Associação Brasileira dos Donos de Casas Lotéricas — que deu queixa na polícia dos prejuízos causados pelo gordinho que aparecia sempre chupando um picolé, comprava uma Raspadinha e limpava os caixas dos estabelecimentos — e a família, em pouco tempo, entraria nas listas das mais ricas do Brasil.

Em entrevista ao vivo no programa do Gugu, logo após serem absolvidos no processo — com o acordo de que Julinho jamais jogasse em qualquer tipo de loteria federal —, seu Julião, o pai, disse que não tinha truque nenhum: "O garoto é assim, desde pequeno: rabudo. Pede par, sai quatro, ímpar, dá cinco e, no amigo secreto do Natal, sempre é tirado pelo tio Leôncio, meu cunhado, que dá os melhores presentes." Dona Neuza, a mãe, acrescentou orgulhosa: "Hum-hum..,"

Desde o lance das Raspadinhas, seu Julião e dona Neuza já não trabalhavam: como os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se exclusivamente a desenvolver o talento do filho. Passavam o dia colocando tampas de margarina e embalagens de chocolate em envelopes e respondendo a perguntas tipo “qual é o sabão que deixa limpão"; "a bateria que nunca arria"; "o refrigerante que faz splash" ou "o absorvente da executiva moderna". Toda manhã, antes de ir para a escola, Julinho punha as cartas no correio: eram casas, caiaques, home theatres, férias em estâncias hidrominerais, fins de semana em hotéis-fazenda, um ano de supermercado grátis e outros prêmios que não acabavam mais.

Dona Neuza pôs botox, silicone, clareou os cabelos e entrou numas de Feng-Shui; seu Julião fez implante capilar, montou um bar espelhado na sala da cobertura e fazia churrasco todos os domingos; Julinho tinha um minibugue, fã-clube, todos os bonequinhos dos Comandos em Ação, Passaporte da Alegria vitalício no Playcenter e a Tilibra estava prestes a lançar uma linha de cadernos com sua foto na capa.

Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. Não havia nada que quisesse que não conseguisse: quando jogava futebol, para qualquer lugar que chutasse, a bola entrava; todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro e, quando ficava doente e perdia uma prova na escola, o professor faltava. Era muito fácil. Além do quê, não agüentava mais chupar picolé. Sem uma dificuldade, por menor que fosse, um empecilhozinho qualquer, as coisas perdiam a graça. Andando de lá para cá com seu minibugue pelas ruas do condomínio, Julinho lamentava: "Se ao menos eu tivesse que preencher algum formulário, ou pagar uma mensalidade, ou fazer duzentas abdominais toda manhã, eu sentiria que estou tendo algum trabalho, mas assim, do nada, não tem graça!". Tudo o que ele queria, como sempre nesse tipo de história, era ser como as outras crianças. Mas como?

Foi por acaso, caminhando pelo Centro de São Paulo, num dia desses em que o céu cinza parece apenas a metáfora que um escritor previsível criou para espelhar a nossa nublada configuração interna, que Julinho deu de cara com o lugar mais impressionante que seus olhos já haviam visto, um mercado onde se podiam encontrar ovos de dinossauros vietnamitas, videocassetes chineses, múmias maias, DVDs pornográficos da Hungria, parentes distantes, lança-mísseis russos e até amor verdadeiro — a galeria Pajé. E foi ali, entre um Rolex falsificado e um cachorrinho de pelúcia (que era ao mesmo tempo dicionário eletrônico, liquidificador e chapinha para cabelos), que Julinho encontrou a lâmpada árabe. Haddad, o vendedor, garantiu que a preciosidade era do século XIII e havia sido roubada pessoalmente do Museu de Bagdá, durante a invasão americana. Julinho, contando, como sempre, com a própria sorte, não vacilou.

Assim que chegou em casa e começou a lustrar a lâmpada com a manga da camisa, o ambiente encheu-se de fumaça, ouviu-se uma explosão e, depois de uma chuva de purpurina e lantejoulas, lá estava ele, translúcido e obeso, pairando a um metro do chão: o gênio da lâmpada!

— Ó amo querido, me libertaste da terrível prisão! Como recompensa, concedo-te três pedidos. Diz-me apenas quais são teus desejos e logo os satisfarei!

Julinho nem pestanejou:

— Primeiro eu queria ser como os outros, não ter tanta sorte: me dar bem às vezes, mal em outras, ter que me esforçar para conseguir o que quero. Segundo, já que a sorte me abandonará, quero apenas garantir uma regalia: que todas as mulheres que posam para a Playboy queiram fazer sexo comigo até o fim da vida. Terceiro, desde criança que penso nisso: por que chamam esse objeto dourado de lâmpada, se ele mais parece um bule?

O gênio, com aquela cara séria e atenta que gênio faz nessas horas, respondeu:

— Meu amo: teus desejos são uma ordem!

Mais fumaça, mais chuva de purpurina e lantejoulas e, quando tudo se acalmou, no lugar que antes o gênio sobrevoava, havia um bilhete:

“Caro amo, temo avisar-te que ocorreu uma falha na execução de teus desejos. Acontece uma vez a cada mil anos o que nós, gênios da lâmpada, chamamos de paradoxo retroativo. Teu primeiro desejo foi imediatamente aceito e teu azar, portanto, começou ali mesmo, fazendo com que os efeitos desse gênio não tenham efeito nenhum. Em outras palavras: tudo continuará como antes, tu continuarás sortudo. Se fizeres sexo com playmates ou descobrires por que esse bule é uma lâmpada será porque nasceste virado para a lua, não por conta de meus serviços. Agora, devo ir-me, haverá uma convenção de gênios da lâmpada no Rotary Club de Ribeirão Preto e não posso perdê-la por nada. Adeus e obrigado."

Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. E a toalha, no caso, era ele mesmo: olhou seu quarto pela última vez, derramou uma lágrima de despedida e saltou pela janela da cobertura. Enquanto caía, pensava no infortúnio de não ter nenhum infortúnio, na desgraça da graça a ele concedida e, sabe-se lá por quê, num short amarelo de que gostava muito quando era pequeno.

Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, lá estava ele, vivo e consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. Naquele momento, ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, que reclamava dos estragos causados ao veículo e perguntava como era que ele ia fazer agora para trazer o shimeji de Cotia todo dia, Julinho compreendeu sua sina: era imortal, sortudo demais para morrer.

Uns dizem que foi o tombo, outros comentam que a coisa já vinha de longe, que ele sempre teve um parafuso a menos, mas o fato é que todo dia, desde o salto, Julinho tenta, inutilmente, tirar a própria vida. Depois de beber cianeto (estava vencido), cortar os pulsos (a faca quebrou), enforcar-se (a árvore tombou) e tentar todos os outros métodos conhecidos e desconhecidos de suicídio — chegou até a alimentar-se por uma semana só de detergente de maçã —, Julinho perdeu de vez o juízo. Vaga doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. De vez em quando, engole espadas, caminha sobre brasas, deixa jamantas passarem por cima de seu corpo e faz cooper em campos minados de Angola, sempre em vão. Para piorar, uma multidão de fiéis o segue aonde vá, acreditando ser a volta de Jesus à Terra. Alguns rabinos discutem se é ou não o messias, as playmates não lhe dão sossego e produtores de televisão ligam todo dia, insistindo em fazer um documentário para o Discovery Channel.

Agora, por exemplo, Julinho está em Foz do Iguaçu, chorando arrependido da remota manhã em que foi pedir aquele maldito Fura-bolo em Caraguatatuba. Em instantes se atirará do alto da mais alta das cataratas — de onde será resgatado, alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de Bombeiros do Brasil.

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Sobre o Autor:
Antonio Prata (24/08/1977) é paulista e tem os seguintes livros publicados: "Cabras, Caderno de Viagem", com Paulo Werneck, Chico Matoso e Zé Vicente da Veiga, "Douglas e outras histórias", “As pernas da tia Corália” ,"Estive pensando" e "O inferno atrás da pia".

Fernando Morais, escritor reconhecido no Brasil e no exterior, assim se manifestou sobre “Douglas": ”... Seria um livro de contos? De ensaios? De reflexões sobre o mundo? Não sei dizer. O que eu sei é que é um dos mais espirituosos e divertidos livros que li nos últimos tempos. Não me pejo, assim, de (mais uma vez?) valer-me da fantasia de Ruy Castro: aconselho-os a acompanhar a carreira do jovem escritor Antonio Prata. Ele tem espantoso futuro. Continuem lendo e observando-o". E termina:"Pela qualidade do texto, fica dispensado o teste do DNA: Antonio é mesmo filho de Marta Góes e de Mario Prata".

Fonte:
PRATA, Antonio. O inferno atrás da pia. RJ: Editora Objetiva, 2004.
http://www.releituras.com/

Antonio Prata (Receita)

Fazer um texto não é difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de muitos estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas norte-americanas, juntei conhecimento suficiente para produzir um pequeno tratado sobre o tema. Se o publico aqui não é por vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser compartido. Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia em que todo o saber humano poderá ser reunido e centralizado em um único programa de computador, ou software — que é o termo correto — e vendido a preços módicos nas bancas de jornal, postos de gasolina ou virão grátis nas compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo(*). Aí vai, portanto, a minha modesta contribuição.

Como escrever um texto

Assim como para fazer uma sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto é necessário, primeiramente, selecionar as palavras que vamos usar. Se para os ingredientes da sopa vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras recorremos ao dicionário.

Algumas considerações desnecessárias (porém interessantes)

O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia — como ocorre com os legumes no mercado —, posto que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da sala, o que seria impossível de se fazer com um mercado — não por sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e sim escrever um texto). Há uma diferença básica entre os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que fiquem velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser velho é condição sine qua non para estarem ali. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom mercado, como mercado em um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos ao tema em questão: como escrever um texto.

Agora sim, como escrever um texto, parte I: Ritmo

Tanto os pergaminhos ciganos da Checoslováquia como os cientistas norte-americanos estão de acordo em um ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. Um método infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos uma curta, como chá, lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como halterofilismo, mononucleose ou antropomorficamente.

Assim que você sentir que já tem em mãos um bom número de palavras curtas e longas — isso depende do tamanho do texto que quiser escrever —, parta para a busca de um número igual de palavras médias, tais como sudorese, abobado ou alicate. Aconselha-se anotar essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou datilografá-las num computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições infra-estruturais de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara, dependendo não só das condições infra-estruturais como do efeito desejado. Isso fica a cargo do autor.)

Parte II: Etiqueta ou bom senso

Se para uma sopa de batatas precisamos de muitas batatas e para uma sopa de beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para um texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semi-erótico de palavras semi-eróticas. Se o autor tem em vista um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as palavras lantejoula ou meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita.

Parte III: Pontuação

Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras, harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação.

Algumas dicas: para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula, pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre ou o curry na culinária.

Parte IV: Prosa e poesia

Tendo os ingredientes e os temperos todos à frente , é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso, vale a pena seguir alguns passos.

1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações. São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar no exemplo a seguir:

Antes:
Havia casas azuis.
Depois:
Oh! Havia casas... Azuis?!

Caso o futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa, não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho. Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo.

Os antigos pergaminhos da Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas, exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas.

Por último, cabe destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e não precisa ser resfriado nem muito menos congelado.

Apesar das considerações anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa. Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa: todos, em algum momento, chegamos ao fim.

(*) Promoção válida apenas para as lojas Mambo em São Paulo (capital), Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Macapá, Acre e Roraima: que se danem!

Fonte:
PRATA, Antonio. As pernas da tia Corália. RJ: Editora Objetiva, 2003
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Antônio Torres (Por Um Pé de Feijão)

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.
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Sobre o Autor:
Antônio Torres nasceu no dia 13 de setembro de 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal "Última Hora". Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária se deu com o romance "Um Cão Uivando nas Trevas", publicado em 1972. Em seguida, viria a publicar mais quatro romances: "Os Homens dos Pés Redondos" (1973), "Essa Terra" (1976), "Carta ao Bispo" (1979), "Adeus, Velho" (1981), "Um Táxi para Viena D´Áustria" (1991), "Balada da Infância Perdida" (1996), "O Cachorro e o Lobo" (1997) e "Meu Querido Canibal" (2000), entre outros. Pelo conjunto de sua obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos, que publicou em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

Fonte:
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. RJ: Editora Objetiva, 2000.
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Artur de Carvalho (Uma Gata)

Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando, continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando de CD. A música sertaneja invadiu as FMs. Ele era do tempo em que as FMs só tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se lembrar. E agora... só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar. Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas. Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV Eles nem sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas na sua barriga. Ela não agüentava cócegas na barriga. Se davam bem.

Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha umas bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas de maizena.

É o que há.

Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como quem a pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores.

Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite. Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia. Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava, acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios, garotas loiras de biquíni. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia o filme, depois nem isso. Dormiu.

Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado. Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu.

Ela sempre voltava.
14 de julho de 1998
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Sobre o autor:

O cartunista e escritor Custódio fala sobre o autor:
"Artur de Carvalho poderia ser muita coisa na vida. Poderia ser arquiteto ou junkie, dono de padaria ou desenhista, pai careta ou um bicho grilo amalucado. Poderia ainda ser galã easygoing ou um marido correto, profissional talentoso e sujeito de bom caráter. Mas isso seria pouco. Artur resolveu ser então...
Tudo isso. TUDO.

Na luta para incorporar todos esses personagens em sua Távola Redonda, Artur, rei de múltiplas faces, acabou adquirindo bronquite crônica, cirrose crônica, e uma crônica humanidade que lhe dá uma força tão grande quanto desapercebida. Claro, Artur virou cronista. Da felicidade dele em descobrir sua verdadeira vocação, vem a nossa, de descobrir seus textos leves, suas observações reluzentes, seu humor doído de tão humano.

E assim, sem podermos ter as múltiplas faces que o autor colecionou pela vida, somos brindados pela doce viagem de sermos sócios delas, e entrarmos em sua casa, sua família, sua Votuporanga, que poderia ser Porto Alegre, São Paulo ou Nova Iorque. O Incrível Homem de Quatro Olhos é um livro arrebatador. Não arrebatador como aqueles torpedos certeiros que partem de uma esquadra bem armada. Mas sim arrebatador como uma brisa suave* que venha carregada de lembranças felizes.

*Brisa Suave, em tupi, é Votuporanga".
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Artur de Carvalho colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003, que acaba de chegar às livrarias.
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Fonte:
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Artur de Carvalho (Rindo pra não chorar)

Todos os dias eu chego em casa e me sento na frente da TV, ansioso, esperando começar o horário eleitoral. Para dar umas risadas, sabe? São tão poucos os motivos para se rir hoje em dia que a gente não pode perder a oportunidade de ver um louco de pedra gritando de punhos fechados que a solução para São Paulo é um trem bala. Eu simplesmente rolo de rir. E o mais engraçado é quando o candidato a governador (é, o cara é candidato a governador) obriga seus partidários (sim, o maluco tem partidários) a vestirem uma camisa da seleção brasileira e gritarem juntos “rumo à vitória”, todos dando um soco no ar, de punhos fechados, como se tivessem feito um gol. Mas o que é isso, meu Deus? Alguém tem de internar aqueles caras imediatamente num sanatório antes que eles cometam algum ato mais violento, ou até mesmo alguma perversidade.

E falando em Deus, tem um outro que diz que vai entregar São Paulo nas Mãos de Deus. Pelo menos esse aí tem lá uma certa dose de razão e de sinceridade. Ninguém dá conta mesmo de arrumar essa bagunça, melhor entregar logo nas mãos de Deus e acabar de vez com toda essa anarquia.

E aí, entra o Enéas.

Bem, a gente pode falar qualquer coisa do Enéas, menos que ele não seja uma figuraça. Tirando aquelas encanações dele com a bomba atômica, daria para confundi-lo com aqueles loucos mansos de cidade do interior, sabe? As crianças assobiam e os malucos saem correndo e babando atrás das crianças, mas quando alcançam não fazem nada e todo mundo acaba dando risada. Eu sou fã do Enéas. Se eu fosse ele, nas próximas eleições me candidatava a uma vaga na “A Praça é Nossa”.

Mas o mais engraçado mesmo são aqueles candidatos que ficam com os olhinhos mexendo, tentando ler o texto que está escondido atrás das câmeras. Normalmente o texto se resume a algo assim: “Eu sou Fulano de Tal, apóio Sicrano de Tal, o meu número é tal”. São apenas três frases, e o pobre coitado não consegue decorar! O que é que ele vai querer fazer lá na assembléia legislativa se ele não consegue decorar nem três frases seguidas, puxa vida?

Sei que, desde que o horário eleitoral começou, eu venho me esbaldando de tanto rir. Toda noite eu estouro umas pipocas, ligo a televisão e quando o programa acaba eu estou com o fígado completamente desopilado. Parei até de tomar uns comprimidos para os nervos que o médico tinha me receitado.

Eu só fico bravo mesmo quando aparecem uns estraga-prazeres que resolvem baixar o astral do programa. Tá todo mundo dando risada e se divertindo, e de repente aparecem esses sujeitos de cara fechada e voz embargada. Eles abrem uns papéis e começam a expor uns tais planos de governo. E ficam falando dos problemas da educação. Mostram favelas e criancinhas com fome. Falam que não sei quantos seqüestros estão acontecendo por semana. Do crime organizado. Que a dívida no exterior não sei o quê. Que os juros brasileiros são os mais altos do mundo. Esse tipo de coisa que não leva a lugar algum.

Será que ninguém vê que desse jeito o programa vai acabar perdendo totalmente a graça?

Fonte:
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Artur de Carvalho (Marcelo, Marmelo, Martelo)

Ao Marcelo Andrade e ao Marcelo Martinez. Dois amigos.

Não tem erro pior no mundo que trocar o nome de alguém. Ainda mais quando são pessoas mais ou menos chegadas. E não sei se é problema de idade, ou o quê, mas ultimamente está acontecendo comigo com mais freqüência do que meu estoque de desculpas esfarrapadas permite. É, porque a gente sempre arruma uma desculpa:

- E aí, Marcelo?

- Marcelo? Que Marcelo?

- Você... quer dizer...

- Meu nome é Hélio, Artur.

- Ah, é... Hélio... Mas onde é que estava com a cabeça? Sabe o que é, Hélio? É que eu estava aqui, pensando num quadro que tenho de pendurar na parede... E não conseguia encontrar o martelo...

- E o que é que tem?

- Você entende, né? Martelo... Marcelo... Me atrapalhei... Desculpa aí...

A sorte é que existem pessoas que entendem o nosso constrangimento. Outro dia desses, eu precisava falar com o diretor da escola da minha filha, o seu Agenor. Entrei na sala dele, minha filha ficou esperando do lado de fora.

- Bom dia, seu Agenor? Como vão as coisas?

- Tudo bem, Artur... Sente-se.

- E a família? Como vai a dona Estela?

- Tudo bem também...

Conversamos mais ou menos uns dez minutos. Ele, um homem super educado. Na hora da saída, ainda se lembrou da minha esposa.

- Manda um abraço para a dona Telma, Artur...

- Pode deixar, seu Agenor. Eu mando.

Saí da sala dele. Chamei minha filha e fomos embora. No caminho, a minha filha perguntou:

- E aí, pai? O que é que o seu Angelo queria?

- Angelo? Que Angelo?

- O diretor da escola, uai...

- Angelo, é? Mas não é Agenor?

- Não. É Angelo.

- E... Vem cá, filha... Por um acaso você sabe se a mulher dele se chama Estela?

- Não sei, por que?

- Nada não. Deixa pra lá...

Mas o que me deixa razoavelmente tranqüilo é que essas coisas não acontecem só comigo. As outras pessoas também, volta e meia, trocam o meu nome... Não sei porque cargas d'água, sempre aparece um que me chama de Raul... Olha que de Artur para Raul tem uma diferença e tanto. Mas não adianta. Outro dia desses, por exemplo, eu estava num evento aqui em Votuporanga, fazendo uma noite de autógrafos para o meu livro recém lançado. Chegaram uma mãe e sua filha de uns doze anos. A mãe veio logo se chegando, e dizendo que eu era o ídolo da filha dela. E cutucava a garota com o cotovelo:

- Fala pra ele, filha...- e a filha não falava nada.

E ela continuava:

- Porque a minha filha não perde uma crônica sua no jornal... não é filha? - e cutucava a filha. E a filha nada. Aí a mulher comprou um livro e pediu um autógrafo. Para a filha, é claro. Eu perguntei como era o nome da menina. E a mãe:

- Silvia. Silvinha.

E eu, todo orgulhoso, peguei a caneta e escrevi ali, na contracapa "para a silvinha, com um beijão".

Assinei e entreguei o livro para a garota. Ela se encolheu. Ficou vermelha. Não sabia onde colocar as mãos. Aí a mãe deu outro cutucão.

- Agradece o seu ídolo, filha!

E a garota:

- Muito obrigado, seu Raul.

Eu fico pensando. Será que alguém erra o nome do Michael Jackson?

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Artur de Carvalho (Fábrica de Casamento)

Chegamos correndo. O casamento estava marcado para as sete horas. Já era sete e meia.

Apressamos o passo até onde permitia o salto alto da minha mulher.

— Calma, querido...

— Olha lá... já começou...

— Eu vou acabar quebrando o salto...

Entramos. Os noivos já estavam no altar.

— Tá vendo? Nem vimos a noiva entrando.

Os noivos lá, de costas. Eu conhecia um ou outro padrinho.

— Você sabia que o Almeida era padrinho?

— O Almeida?

— É... Olha ele lá.

— Puxa vida. Eu nem sabia que o Almeida conhecia os noivos...

O casal na frente da gente, além de ser o mais alto da igreja, não sentava nas horas que a cerimônia exigia.

Minha esposa e eu ficávamos olhando por entre os ombros deles.

— Quem é aquela, com o Ubiratam?

— O Ubiratam também é padrinho?

— Não. Olha ele ali, no terceiro banco. Quem é aquela com ele?

— Sei lá. Não é a esposa?

— Não. Deve ter separado.

— Separado? O Ubiratam?

As luzes das câmeras de vídeo atrapalhavam a visão. Ficavam atrás dos noivos, e não dava pra ver nada. O casal na nossa frente se abraçava. A gente tentava olhar em volta.

— Você viu o vestido da noiva?

— É. Eu sempre gostei de vestidos beges.

— Quem é que disse que é bege? É branco.

— Branco nada. Não tá vendo?

Os alto-falantes estavam com um pouco de microfonia, mas deu pra ouvir o sim dos dois.

— Você ouviu a voz dela? Deve estar chorando.

— É. Ela sempre fica emocionada nessas ocasiões. Imagine agora, no casamento...

— Olha lá... Aquela é a mãe dela?

— Sei lá... Eu não conheço... Mas deve ser...

— Nova, né?

As luzes das câmeras estavam mesmo insuportáveis. Ofuscavam tudo. Mas deu pra perceber que a cerimônia já estava acabando. Os padrinhos fizeram um círculo em torno dos noivos. Estavam descendo do altar.

— Vem cá. Vamos tentar ficar aqui perto, pra ela ver que a gente veio.

— Mas tem muita gente.

— Vem cá!

Os noivos desceram do altar. Todo mundo se aglomerou ao lado do corredor central, ornado com um tapete vermelho. Um homem me deu uma cotovelada, quando tentei passar à sua frente. Ficamos, minha mulher e eu, cercados por uma pequena multidão.

— Ela está passando! Ela está passando!

— Você viu o vestido? Eu falei que era bege!

— É branco. Não tá vendo?

Os noivos passaram. Atrás, os padrinhos. Deu pra ver o Almeida. Ele sorriu e fez um meneio com a cabeça. Eu sorri pra ele. Os ocupantes dos bancos foram se dispersando pela igreja. Começaram a chegar os convidados para o outro casamento. A coisa ficou meio tumultuada.

— Vamos embora, querida?

— Mas nós não vamos cumprimentar os noivos?

— Não. Vamos embora.

— Mas a gente precisa ver os noivos. Quer dizer, os noivos precisam ver a gente. Depois vão falar que a gente não veio.

— O Almeida me viu.

— Viu nada.

Saímos da igreja e fomos cumprimentar os noivos. Tinha fila. Uma confusão na frente da igreja. O outro casamento já ia começar. Ouvimos um sino. A nova noiva já estava entrando.

— Nossa.. Mas é um atrás do outro, hem?

— É. Parece fábrica.

Finalmente, chegou a nossa vez. A noiva estava de costas, cumprimentando o Ubiratam. Ela estava de branco, afinal de contas. Aí, a noiva se virou. Minha mulher arregalou os olhos. Eu disfarcei. Dei um beijo, desejei felicidades. Minha mulher fez o mesmo.

Saímos da fila e voltamos correndo para dentro da igreja. Minha mulher reclamou.

— Calma... Cuidado com o salto.

Entramos e olhamos para o altar. Os noivos já estavam lá, de costas.

— Caramba... Será que agora são eles?

Fonte:
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segunda-feira, 14 de abril de 2008

Rubem Fonseca (1925 - )

"Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim." (Pequenas criaturas - "Começo")

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas.

Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio.

Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Reconhecidamente uma pessoa que, como Dalton Trevisan, adora o anonimato (o único registro fotográfico que conseguimos foi feito há muitos anos), é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor.

Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com inúmeros prêmios literários, abaixo descritos.

Sendo profundamente interessado na arte cinematográfica, escreve também roteiros para filmes, muitos deles premiados:
- Coruja de ouro, roteiro Relatório de um homem casado, filme dirigido por Flávio Tambelini.
- Kikito de ouro do Festival de Gramado, roteiro de Stelinha, dirigido por Miguel Faria.
- Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, roteiro de A grande arte, filme dirigido por Walter Salles Jr.
Seus livros são publicado no Brasil e no exterior, com grande sucesso de crítica e de público:

LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:
Os prisioneiros (contos, 1963),
A coleira do cão (contos, 1965)
Lúcia McCartney (contos, 1967)
O caso Morel (romance, 1973)
Feliz Ano Novo (contos, 1975)
O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)
O cobrador (contos, 1979)
A grande arte (romance, 1983)
Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
Agosto (romance, 1990)
Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
O selvagem da ópera (romance, 1994)
Contos reunidos (contos, 1994)
O Buraco na parede (contos, 1995)
Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996.
Histórias de Amor (contos, 1997)
Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
Confraria dos Espadas (contos, 1998)
O doente Molière (novela, 2000)
Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
Pequenas criaturas (contos, 2002)
Diário de um Fescenino (contos, 2003)
64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004)
Ela e outras mulheres (contos, 2006)
O romance morreu (crônicas, 2007)

Todos estes livros, com exceção de O homem de fevereiro ou março (editora Artenova), foram editados ou reeditados pela Companhia das Letras. Os romances O caso Morel e A grande arte foram publicados (em 1998) pela Record/Altaya, na coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”, para venda em bancas. O romance Agosto está na coleção “Mestres da Literatura Contemporânea” (1995) editora Record/Altaya, também para venda em bancas. Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, foi publicado pela Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996. Na antologia Onze em campo e um banco de primeira, da Editora Relume Dumará, Rio, 1998, foi inserido o conto Abril, no Rio, em 1970, originalmente editado no livro Feliz ano novo. Na antologia Trabalhadores do Brasil, da editora Geração Editorial, Rio, 1998, foi incluído o conto O agente, originalmente editado no livro Os prisioneiros. Na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, editora Objetiva, Rio, 2000, foram publicados os contos A força humana, Passeio noturno I, Passeio noturno II, Feliz ano novo e A confraria dos espadas. A antologia Contos para um Natal brasileiro, da Editora Relume Dumará, Rio, 2001, em companhia de C. D. Andrade, João Ubaldo Ribeiro, Lygia F. Telles e outros, traz conto sobre a data.

PRÊMIOS LITERÁRIOS:
- Pen Club do Brasil, A coleira do cão.
- Fundação Cultural do Paraná, Lucia McCartney
- Fundação Cultural de Brasília, Lucia McCartney
- Jabuti (Conto), da Câmara do Livro de São Paulo, A coleira do cão
- Associação Paulista de Críticos de Arte, O cobrador
- Prêmio Estácio de Sá, O cobrador
- Prêmio Goethe (Brasil), A grande arte
- Jabuti (Romance) A grande arte
- Prêmio Pedro Nava do Museu de Literatura, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
- Prêmio Giuseppe Acerbi (Mantova, Itália), Vaste emozione e pensie imperfeti
- Jabuti (Conto) O buraco na parede
- Prêmio Machado de Assis (Biblioteca Nacional), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
- Prêmio Eça de Queiroz (contos) da União Brasileira de Escritores, A confraria dos Espadas
- Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), para O doente Molière (2000)
- Prêmio Luis de Camões, considerado o "Nobel" da língua portuguesa, concedido pelos governos do Brasil e Portugal, pelo conjunto da obra, anunciado em 13/05/2003.
- 14º Prêmio de Literatura Latinoamericana e Caribe Juan Rulfo, concedido durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara - México, em 2003.

OBRAS PUBLICADAS NO EXTERIOR:

1 - ROMANCES
O caso Morel
A grande arte
Bufo & Spallanzani
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
Agosto
O selvagem da ópera
E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

2 - CONTOS
Os prisioneiros
A coleira do cão
Lúcia McCartney
Feliz ano novo
O cobrador
Romance negro
O buraco na parede
Histórias de amor
A confraria dos espadas
Secreções, excreções e desatinos
Coletâneas de contos

ADAPTAÇÕES POR TERCEIROS DE OBRAS DE RUBEM FONSECA:

PARA TEATRO
*O gravador (1977), adaptação e direção de Roberto Vignatti
*Os cavalos (1979), direção coletiva e adaptação Grupo Panapaná
* Lúcia McCartney (1987), adaptação de Geraldo Carneiro, direção de Miguel Falabella
*O cobrador (1990), adaptação coletiva, direção de Bete Lopes
*Idiotas que falam outra língua(1999), adaptação e direção de Fernando Guerreiro
*Agosto (2000), “construção de uma trama entre dança, música e cenografia”. Adaptação e direção de Eliana e Sofia Cavalcante

PARA TELEVISÃO
*Nau Catarineta,(1978) adaptação e direção de Antunes Filho, TV Cultura.
*Mandrake (1983) adaptação de Euclides Marinho, direção de Roberto Farias, TV Globo.
* Agosto (1993) adaptação de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, direção de Paulo José, Denise Sarraceni e José Henrique Fonseca, TV Globo
*Lúcia McCartney (1994) adaptação de Geraldo Carneiro, direção Roberto Talma, TV Globo
*A coleira do cão (2001), adaptação de Antonio Calmon, direção de Roberto Farias, TV Globo

Fonte:
www.releituras.com

Rubem Fonseca (O Vendedor de Seguros)

Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

- Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.
- Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?
- Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.
- Você não tem ganho muito ultimamente.
- A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.
- Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, - as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?
- Ainda não vi isso.
- Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?
- Só você.
- Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.
- É você?
- Quem podia ser?, eu disse.
- Diz a senha.
- Cara, você anda vendo filmes demais.
- É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.
- Foz do Iguaçu.
- Tenho um seguro para você.
- Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.
- Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?
- Isso não interessa.
- Quando acaba?
- Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.
- Acho que você anda meio promíscuo.
- Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.
- Que ruído é esse?
- Não ouvi nenhum ruído.
- Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.
- Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.
- Troca de celular.
- Estou com ele há menos de dois meses.
- É muito tempo. Eu troco todos os meses.
- Você é um corretor.
- O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.
- Acabou?
- Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

- Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?
- Está bem.
- Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.
- Confesso que não gosto de comida chinesa.
- Você só gosta de bacalhau.
- Está tirando sarro comigo?
- Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?
- Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?
- Não conheço mulheres elegantes.
- Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.
- Onde que isso acontece?
- Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.
- Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?
- Se aparecer, o que você faz?
- Não sei. Isso ainda não aconteceu.
- E você foi vender seguro numa joalheria hoje?
- Não.
- Mas levou o revólver.
- Virou hábito. É pistola.
- Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

- Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
- Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

- Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

- Voltou?
- Quanto tempo demora isso?, perguntei.
- Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

- Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

- Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.
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"A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: "Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo." Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária."
Esta é a opinião de Thomas Pynchon, um dos maiores mitos contemporâneos da literatura americana. Ele, como o autor, alcançou tal condição não à custa de uma sobreposição da imagem, mas exatamente pelo processo oposto, ou seja, o anonimato.
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Fonte:
FONSECA, Rubem. A Confraria dos Espadas. SP: Companhia das Letras , 1998.
http://www.releituras.com/

Rubem Fonseca (Família)

Ernestino e Dora se casaram dispostos a dar ao mundo muitos filhos. Planejavam ter três meninos e duas meninas, mas não se incomodariam se fossem quatro meninas e um menino, desde que o primeiro a nascer fosse do sexo, masculino.

Dora morreu ao dar à luz uma menina, cujo nome veio a ser também Dora. Todos pensavam que Ernestino se casaria novamente, ele era um homem bonito, herdara do pai uma empresa e ampliara os negócios, um bom partido para qualquer mulher, mesmo tendo uma filha pequena para criar. Agindo como bons alcoviteiros, os casais amigos, convictos de que Ernestino devia se casar novamente, afinal a pequena Dora precisava de uma mãe e ele, cedo ou tarde, necessitaria do carinho de uma mulher, se revezavam apresentando ao viúvo jovens mulheres prendadas e virtuosas. Mas Ernestino não se interessava por nenhuma delas e o tempo foi passando até que os amigos, percebendo que Ernestino jamais se casaria novamente, desistiram de seus propósitos casamenteiros.

Quando Dora fez seis anos, Ernestino, assoberbado pelos seus negócios que não paravam de crescer, matriculou a menina num colégio interno de freiras. Dora se lembra do primeiro dia em que foi para o colégio. Eles subiram a serra de carro num dia de forte neblina, que escondia os morros e até mesmo as ruas por onde trafegavam. O pai comprara vários sacos de balas para ela e Dora fizera a viagem se deliciando com aquelas guloseimas. No carro o pai lhe mostrara uma pequena mala, dizendo que ali estava o seu enxoval, as roupas que usaria no colégio. Ernestino, apesar de fazer a viagem mais calado do que o seu normal, parou duas vezes no acostamento da estrada para abraçar e beijar a filha. Tudo isso a deixara muito feliz.

Quando chegaram, depois de uma hora e meia de viagem, Dora já havia chupado todas as balas. O colégio era um edifício, que lhe pareceu imenso, bonito e um pouco assustador. Foram recebidos por duas freiras uma a madre superiora, velha e de aspecto majestoso, e outra, mais jovem, que seria a orientadora e mestra de classe de Dora. A freira mais jovem convidou Dora para ir até a janela ver as arvores e os jardins. Enquanto ela contemplava o arvoredo coberto de neblina, o pai e as freiras conversaram em voz baixa. Em seguida, o pai depois de abraçá-la com tanta força que a deixou sem fôlego, disse que ia comprar mais balas, foi embora e não voltou. Era um domingo e Dora só o veria novamente no domingo seguinte.

Os primeiros dias foram terríveis. Dora se sentia abandonada e chorava sem parar. Ela dormia num grande salão com outras meninas da sua idade. Sua roupa intima — calcinhas largas de algodão, que com o tempo alargavam ainda mais, e camisolões de manga comprida fechados no pescoço (ela só usaria sutiã, também de algodão, anos depois) — era guardada numa mesinha alta de cabeceira, e os uniformes ficavam dependurados num cabide comprido numa das paredes. A freira orientadora reunia diariamente as meninas para uma preleção em que falava em Deus e na Caridade. Ela tratava Dora com muito carinho, ainda mais porque a menina sofria de asma, agravada pelo clima úmido da cidade. Depois de algum tempo, Dora parou de chorar diariamente. Chorava apenas aos domingos, quando o pai ia vê-la.

Mas ela não demorou muito a gostar do colégio. Na hora de dormir, sob os cobertores de lã que a aqueciam, Dona criava uma vida só dela, feita de fantasias inocentes. Até mesmo o carrilhão da torre da igreja, que soava a cada quinze minutos, era ouvido com prazer. Às quinze para as seis da manhã, a freira que pernoitava com elas no dormitório caminhava entre as camas tocando uma sineta de mão e dizendo, sursum corda e as meninas acordavam murmurando, habemus ad dominum. Dora, que fora criada sem qualquer disciplina por um pai ausente e babás displicentes, apreciava os cerimoniais do colégio. Vestidas em seus uniformes de saia azul-marinho presa por tiras largas cruzadas no, peito e nas costas, blusa azul-clara, sapatos pretos e meias brancas, as meninas, quando encontravam uma freira nos corredores, tinham que parar de pés juntos, unir as duas mãos e cumprimentar com a cabeça. Caso fosse a madre superiora ou a diretora do colégio deviam parar, se estivessem andando, ou levantar-se, se estivessem sentadas, e fazer uma reverência, que consistia em juntar os dois pés, encostar o calcanhar do pé direito no pé esquerdo, girar a ponta do pé direito, para o lado e. após colocar horizontalmente a palma da mão, direita sobre a palma da mão esquerda, flexionar ligeiramente os joelhos. Dora sentia-se bem fazendo essa mesura e ficava feliz quando, por qualquer motivo, encontrava uma dessas freiras graduadas. Os rituais do colégio — notadamente as orações em latim ou em francês, e os cantos gregorianos acompanhados pelo órgão, dos quais todas as alunas participavam nas missas dos domingos — possuíam um esplendor que deixava Dora encantada e fascinada. Mas sempre que pensava no pai, ela sentia muita saudade e ficava triste.

As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam, uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista; depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. Era um procedimento trabalhoso e desconfortável que Dora e muitas meninas realizavam, porém, com boa vontade. Uma vez por semana, no dormitório, toda menina sentava-se num banco à frente de uma freira, que lhe passava meticulosamente pela cabeça um pente fino. Não havia piolhos naquele internato.

No colégio Dora conheceu Eunice, que se tornou a sua melhor amiga. E à medida que cresciam — as duas ficaram todo o primário e o ginásio no mesmo colégio interno — se tomaram mais íntimas. Sempre que possível ficavam de mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso. Eunice era órfã, e quem a visitava nos domingos era um guardião que a tratava com um carinho artificial. Eunice e o seu guardião se agrupavam com Dora e o pai, nos domingos e também nos dias em que as alunas tinham permissão para sair do colégio, em companhia dos responsáveis, para passear em Petrópolis. Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e disseram que nunca deixariam de se amar.

Dora e Eunice cursaram o colegial em estabelecimentos de ensino diferentes. Vieram a se reencontrar na faculdade de direito, anos depois, e reataram com o mesmo vigor a amizade de antes. Abriram um escritório e advogavam juntas causas pertinentes ao direito da família. Dora às vezes ia dormir na casa de Eunice, ainda que Ernestino reclamasse carinhosamente do fato de a filha deixá-lo sozinho com a empregada. Ele sentia-se doente e planejava se afastar dos negócios. O seu sonho era ver a filha casar e lhe dar um neto homem, que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a tradição da família.

Mas Dora, que se tornara uma mulher de grande beleza, recusava todos os seus pretendentes, que eram muitos. Saía com eles, ia jantar fora, ia ao cinema, mas, muito recatada, evitava qualquer intimidade com esses homens, nem mesmo permitia que a beijassem. Um dia o pai a chamou para ter com ela o que chamou de uma longa conversa. Ernestino disse à filha que estava indicando um dos seus antigos funcionários para assumir o comando dos negócios, pois estava se sentindo cada vez mais fraco e o seu médico, depois de um rigoroso exame, diagnosticara uma doença neurológica progressiva que dentro de alguns anos, não sabia quantos, o levaria à morte. E ele não queria morrer sem ver a sua filha casada e sem ter a suprema alegria de ter um neto. Ernestino disse isso com voz emocionada, segurando na mão da filha. Me promete, ele pediu, assim eu morrerei em paz. Dora prometeu, mas pediu algum tempo para realizar o desejo do pai.

Nesse dia Dora foi dormir com Eunice. A amiga mandara fazer calças largas de algodão iguais às que usavam no colégio de freiras, e que não existiam para ser compradas nas lojas. Vestidas apenas com essas calças, que apesar de toscas, ou talvez por isso, tornavam ainda mais atraentes os seus corpos delgados, as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. Isso sim, é bêtise, disse Eunice, e as duas riram muito. Depois, Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família.

Ernestino agora precisava de uma cadeira de rodas para se locomover e um enfermeiro foi contratado para tomar conta dele. O médico disse que com cuidados adequados Ernestino poderia viver alguns anos, mas que a sua doença infelizmente não tinha cura, o que Dora podia fazer era lhe propiciar a melhor qualidade de vida possível, num ambiente tranqüilo de amor. O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria. Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para morrer em paz.

Após cada uma das suas cada vez mais raras noites de bêtise as duas amantes sempre voltavam a esse tema, como conseguir que Ernestino morresse em paz. E a maneira de resolver esse delicado e angustiante problema era sempre a mesma, uma solução final, por elas considerada um gesto de amor absoluto. A morte era sempre uma bênção para os doentes desenganados.

O enfermeiro, precisava tirar umas férias e em vez de contratar um outro Dora disse que ela mesma cuidaria do pai. Ernestino se emocionou com o desvelo da filha, que passava os dias e as noites ao seu lado. E também estava muito feliz, pois Dora prometera que assim que o pai melhorasse um pouco ela se casaria e teria um filho.

Transcorrido um mês, Ernestino morreu de uma súbita insuficiência respiratória. O médico confirmou que aquela era mesmo uma doença insidiosa de difícil prognóstico. No enterro Dora e Eunice choraram muito. O sofrimento de Dora foi tão grande que ela teve que ser internada num hospital para se recuperar.

Depois, Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe.

Fonte:
FONSECA, Rubem. Histórias de Amor. SP: Cia. das Letras, 1997.
http://www.releituras.com/

Rubem Braga (1913 - 1990)

"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa: "Eu sou lá de Cachoeiro..."

Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor Rubem Braga reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.

A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.

Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Iniciou seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio, revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro e pediu ao pai para sair da escola. Sua família o enviou para Niterói, onde moravam alguns parentes, para estudar no Colégio Salesiano. Iniciou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932, depois de ter participado, como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução Constitucionalista, em Minas Gerais — no front da Mantiqueira conheceu Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.

Na capital mineira se casou, em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe de seu único filho Roberto Braga.

Foi correspondente de guerra do Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro "Com a FEB na Itália", em 1945, sendo que lá fez amizade com Joel Silveira. De volta ao Brasil morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, numa casa no Posto Seis, em Copacabana, e por fim num apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema.

Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes, e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.

Seu primeiro livro, "O Conde e o Passarinho", foi publicado em 1936, quando o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título, escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde." De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista ficou famoso pelo seu temperamento introspectivo e por gostar da solidão. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade. Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento."

Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.

Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza."

A chave para entendermos a popularidade de sua obra, toda ela composta de volumes de crônicas sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões ("A grande dor das coisas que passaram") fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma. Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples.

Como jornalista, Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foi correspondente de "O Globo" em Paris, em 1947, e do "Correio da Manhã" em 1950. Amigo de Café Filho (vice-presidente e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países.
Quando faleceu, era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, que o levou para lá, disse: "O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu o levei para a Globo... Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular."

Bibliografia:
CRÔNICAS:
- O Conde e o Passarinho, 1936
- O Morro do Isolamento, 1944
- Com a FEB na Itália, 1945
- Um Pé de Milho, 1948
- O Homem Rouco, 1949
- 50 Crônicas Escolhidas, 1951
- Três Primitivos, 1954
- A Borboleta Amarela, 1955
- A Cidade e a Roça, 1957
- 100 Crônicas Escolhidas, 1958
- Ai de ti, Copacabana, 1960
- O Conde e o Passarinho e O Morro do Isolamento, 1961
- Crônicas de Guerra - Com a FEB na Itália, 1964
- A Cidade e a Roça e Três Primitivos, 1964
- A Traição das Elegantes, 1967
- As Boas Coisas da Vida, 1988
- O Verão e as Mulheres, 1990
- 200 Crônicas Escolhidas
- Casa dos Braga: Memória de Infância (destinado ao público juvenil)
- Uma fada no front
- Histórias do Homem Rouco
- Os melhores contos de Rubem Braga (seleção Davi Arrigucci)
- O Menino e o Tuim
- Recado de Primavera
- Um Cartão de Paris
- Pequena Antologia do Braga

ROMANCES:
- Casa do Braga

No volume publicado, também de crônicas, "As Coisas Boas da Vida", em 1988, Rubem Braga enumera, no texto que dá título ao livro "as dez coisas que fazem a vida valer a pena". A última delas: "Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte — o assim chamado descanso eterno".

Fonte:
http://www.releituras.com

Rubem Braga (Aula de Inglês)

— Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

— No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

— Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

— No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

— Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

— No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

— Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

— Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

— Very well! Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

-- It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

Fonte:
BRAGA, Rubem. Um pé de milho. RJ: Editora do Autor, 1964.
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