segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXVI


V. — O pássaro da verdade

Vimos anteriormente que a ajuda sobrenatural vem muitas vezes de um pássaro. Totem individual ou gênio protetor, esses animais alados são agentes de união, confidentes; em Florine., Serpentin vert, puxam a carruagem da bela que vai ao encontro de seu príncipe encantado. Simbolizam os sonhos ternos, os beijos, as carícias; são prestativos, permitem encontrar a coroa de ouro do rei (Grimm, Les deux compagnons en tournée) (Os dois companheiros em tournée); procura distrair os prisioneiros (Andersen, Les cygnes sauvages) (Os cisnes selvagens). Prince et princesse (Príncipe ou princesa), ou previnem dos perigos (Carnoy, Le fidèle Jean; tema do aprendiz feiticeiro). L’oiseau bleu (O pássaro azul) (Mme. d’Aulnoy) e ele próprio é o príncipe encantado amado por Florine.

O pássaro muitas vezes branco — desempenha papel primordial no tema de o pássaro da verdade. Para curar uma rainha; para defender uma pessoa, é preciso encontrar três objetos encantados: a árvore que canta, o pássaro que fala e a água de ouro (Carnoy, Contes français). Madrastas impelem crianças nessa aventura perigosa e num mundo desértico — o do Graal — moços foram transformados em pedra por não serem capazes de respeitar o pacto; o malefício desaparecerá assim que o herói conseguir apoderar-se dos objetos maravilhosos. Para atingir a Árvore da vida é preciso atravessar uma região desértica; ora, essa árvore está no centro do Paraíso terrestre, no centro de Jerusalém celeste; tem doze frutos e talvez devamos ver a concordância que há com os doze Aditias. Esse tema aproxima-se muito do. da demanda do Graal e aliás, conforme Orígenes, o próprio Cristo é a árvore da vida. “O Cristo que é a virtude de Deus, a Sabedoria de Deus é também a árvore da vida pela qual devemos ser tentados

Muitas vezes esse tema liga-se ao do Chevalier au cygne, romance da Idade Média. A mãe do rei anuncia falsamente que sua nora deu à luz cães e gatos com o intuito de mandar matar as crianças e repudiar a esposa detestada. Mas um vassalo condoído não pode cometer esse crime horrível; entrega as criancinhas a um eremita e apenas tira-lhes o colar de ouro. As crianças que perderam assim o poder de um pentáculo mágico, se transformam em cisnes. Depois de muitas tribulações, encontram novamente sua forma primitiva com a posse do seu colar.

Cosquin menciona essas variantes nos seus Contes lorrains (Contos lorenos). Mais conhecido do que o conto siamês (Asiatic Researches, 1836), é o de duas irmãs que têm ciúmes da irmã caçula nas Mil e uma noites, que se assemelha ao conto caucasiano traduzido por Schiefner (Mémoires de l’Académie des Sciences, t. XIX). Este último tema é o que mais liga ao tema inicial de Pássaro da verdade.

Pois finalmente toda a verdade é revelada por esse pássaro falador. Muitas vezes esse papel é desempenhado por um ancião (Grimm 96; Gubernatis; Carnoy). Mme d’Aulnoy retoma esse tema em La princesse Belle-Etoile (A princesa Bela-Estrela) e Henry Pourrat (Trésor des Contes, t. I (Tesouro dos Contos) aproveitou um conto semelhante.

Observemos que muitas vezes é uma jovem que leva a bom termo essa busca perigosa. Pela sua vontade, maior do que a sua força, ela fará com que cesse o malefício que reina na região e restitui dessa forma a vida a esses cavaleiros malogrados que foram transformados em pedra. O paralelo com o Graal é evidente. As vezes, porém, a jovem muito frágil, serve-se de um ardil: é o artifício de tampar os ouvidos com cera a fim de não ouvir o horroroso tumulto; o tema não é novo. A heroína se apodera de três objetos maravilhosos e ao voltar esposa o ancião compadecido, o que estava encarregado de aconselhar; é o eremita iniciador de João, o Urso. Com esse casamento o personagem é libertado e o ancião se transforma num príncipe encantado.

VI. — O chapeuzinho vermelho

1. — O motivo

Collin de Plancy descreve a história de uma camponesa de Finistère que deu ouvidos aos propósitos de um desconhecido; volta com o rosto enegrecido e macilento; encontrou o diabo, o espírito da astúcia. No conto de Grimm (26) e na maioria das outras versões a menina devorada pode ser retirada do ventre do lobo. Em Perrault o fim trágico é um castigo desproporcional ao erro.

2. — Interpretações

Se Perrault vê nesse conto uma moral que proibe às moças conversarem com desconhecidos pelo caminho — tema da proibição violada — Husson pensa no mito védico de Vartica, no qual o Acvins são os crepúsculos e a adolescência, uma aurora interceptada pelo “sol devorador sob a forma de um lobo” Essa escuridão pode ainda ser o inverno (Lefèvre, Dillaye). Para Ploix o lobo é o inverno. Saintyves nele vê uma rainha de maio: a cor vermelha sugere a alegria, atemoriza as feiticeiras enquanto que o bolo e o vinho — o vinho de maio seriam oferendas rituais. Essa alegria mágica envolvendo o sol novo teria sido resumida na versão francesa onde o clima é mais sereno. As versões nórdicas são mais completas. Depois da permanência no corpo do lobo — espécie de aprisionamento que encontramos no conto O lobo e os sete cabritinhos, de Grimm — O chapeuzinho vermelho sai da barriga do lobo graças ao auxílio de um caçador. Pretendeu-se ver nessa lenda a interpretação do ciclo estacional.

VII — O Pequeno Polegar

Esse conto de origem iniciática interpreta a luta de uma criança franzina contra o papão.

1. — Interpretações

Para Husson, o Pequeno Polegar é a luz da manhã; — na floresta — durante a noite — ele joga seixos — as estrelas; o sol — o papão — devora suas crianças, os primeiros raios do alvorecer Saintyves pensa nas provações de iniciação; o Pequeno Polegar, franzino antes da iniciação, torna-se poderoso. Essa transformação para a virilidade efetua-se nesse recinto sagrado representado pela floresta. As fontes védicas são, desta forma, aparentes para Cosquin e P. Régnaud (1897).

2. — Os temas

É um anão ou uma criatura franzina; sua inteligência ativa permite-lhe triunfar do gigante de espírito lento. É também, Tom Ponce, cavaleiro do rei Artur (Brueyre); em Grimm, (37, 45) na Dinamarca, na Áustria, é pequeno como um dedinho. Prudente, o Pequeno Polegar demarca o caminho com o auxílio de pequenos seixos ou com um rasto de cinza (contos de Mekidech, Cabilia).

Graças à substituição de objetos, consegue fugir com seus irmãos. O papão — ou o diabo -. enganado mata a sua progenitora. Saintyves observa numerosas variantes deste tema que é encontrado nos contos berberes (H. Basset), ou nos de Lorraine (Histoire de Courtillon).

Finalmente, por meio de uma falsa inépcia, de uma fingida ignorância, o herói consegue livrar-se do próprio papão: por exemplo, pergunta ao feiticeiro como poderia penetrar num forno; o papão nele penetra e fica trancado. É o tema da caldeira que aparece nas variantes de Barba-Azul. Saintyves evoca desta forma a iniciação dos guerreiros, nas tribos do Sul da África, por ocasião da cerimônia da circuncisão.

3. — O papão

Pretendeu-se ver no papão o símbolo das devastações húngaras; mas para Gaston Paris, ele herdeiro dos racsas da Índia. O papão — ou diabo — Saintyves nele vê uma sobrevivência dos ritos de antropologia e refere os contos zulus, malgaxes (Renel). Para Loeffler-Delachaux ele é Saturno que devora seus filhos à medida que Cibele (a Terra) os põe no mundo.

4. — Os objetos mágicos

Os pantufos mágicos permitem a Chao Gnoh (Cambodge) viajar no ar. As botas de sete léguas são novamente mencionadas em Sébillot (Mélusine., III), Cosquin; os sapatos mágicos nos contos de Cachemira (Brihat-Katha), Madagascar (Capa), Pérsia (Tutiname); são da mesma natureza que o chapéu da invisibilidade ou a espada do poder. Hermes era o deus das sandálias aladas e ocultava os bois de Apolo como freqüentemente o faz o Pequeno Polegar (Gastão Paris).

A troca de trajes, túnicas, anéis, penteados, induz o papão ao erro (Saintyves, Deulin). No Ino de Eurípedes, Temisto mata seus filhos tendo Ino, sua rival, trocado as túnicas. L. Brueyre menciona uma variante escocesa, bem como Carnoy (Courtillon) e Sébillot (La Perle e le Petit-Peucerot) (A Pérola e o Pequeno Peucerot).

VIII — João, o Urso

Existe, assim, grande número de contos nos quais um grupo de crianças perde-se, intencionalmente, na floresta. O tema do Pequeno Polegar se aparenta ao do Cavaleiro do cisne, no qual os filhos do rei, perdidos intencionalmente por ordem de sua avó ciumenta, encontram um auxílio protetor antes de retornarem ao meio a que têm direito. Perseu, Édipo, Ciro, Páris, Rômulo são, da mesma forma, expostos à morte, mas salvos, cumprem, sozinhos, a prediçâo anunciada. Essas crianças solitárias são muitas vezes salvas por animais selvagens ou pastores, como Mowgli, o menino-lobo, imortalizado por Kipling. Houve, contudo, casos muito mais pungentes e precisamos nos lembrar particularmente daquelas pobres criaturas humanas, Amala e Camala, que viveram com animais e morreram em, aproximadamente, 1930. Moisés foi recolhido por uma princesa egípcia e João, por uma loba ou por uma ursa. O leite colhido desse animal compassivo deu-lhe uma força excepcional. Esse adolescente leva uma vida vegetativa até o dia em que encontra o primeiro homem, o iniciador; é a adolescência de Parsifal no Graal ou o de um dos numerosos heróis do Pássaro da Verdade. João, o Urso pode tornar-se um cavaleiro cortês e instruído, cuja força sobre-humana faz com que seja classificado acima dos seus companheiros,; ascende assim aos mais altos graus; contudo, continua um jovem de espírito estreito. Esse pesado gorducho vive nos contos de Cosquin (Contes lorrains), Grimm (Le jeune géant) (O jovem gigante), Asbjoernsen e essa estupidez aparece ainda no conto caucasiano Oreille d’ours (Orelha de urso). Geralmente, esse jovem que cresce em força e beleza executa trabalhos extraordinários; pode ter tido um nascimento comparável ao de Roberto, o Diabo; mas João, o Urso consegue triunfar continuando bom para os seus semelhantes; por fim desposa uma princesa (Carnoy, Contes français, 1885).
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

domingo, 27 de dezembro de 2009

Trova XCV - Neide Rocha Portugal (Bandeirantes/PR)

Olavo Bilac (As Estações)


O inverno

Coro das quatro estações:


Cantemos, irmãs, dancemos!
Espantemos a tristeza!
E dançando, celebremos
A glória da natureza!

O inverno:

Sou a estação do frio;
0 céu está sombrio,
E o sol não tem calor.
Que vento nos caminhos!
Trago a tristeza aos ninhos,
E trago a morte à flor.

Há névoa no horizonte,
No campo e sobre o monte,
No vale e sobre o mar.
Os pássaros se encolhem,
Os velhos se recolhem
À casa a tiritar.

Porém fora a tristeza!
Em breve a natureza
Dá flores ao jardim:
Abramos a janela!
Outra estação mais bela
Ja vem depois de mim.

Coro das quatro estações:

Cantemos, irmãs, dancemos!
Espantemos a tristeza!
E dançando, celebremos
A glória da natureza!

A primavera

Coro das quatro estações:

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a natureza!
Já nos voltou a alegria!

A primavera:

Eu sou a primavera!
Está limpa a atmosfera,
E o sol brilha sem véu!
Todos os passarinhos
Já saem dos seus ninhos,
Voando pelo céu.

Há risos na cascata,
Nos lagos e na mata,
Na serra e no vergel:*
Andam os beija-flores
Pousando sobre as flores,
Sugando-lhes o mel.

Dou vida aos verdes ramos,
Dou voz aos gaturamos
E paz aos corações;
Cubro as paredes de hera;
Eu sou a primavera,
A flor das estações!

Coro das quatro estações;

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a natureza!
Já nos voltou a alegria!

O verão

Coro das quatro estações:

Que calor, irmãs! Cantemos
Como ardem as ribanceiras
Cantemos, irmãs, dancemos,
À sombra destas mangueiras

0 verão:

Sou o verão ardente:
Que, vivo e resplendente,
Acaba de nascer;
Nas matas abrasadas,
0 fogo das queimadas
Começa a se acender.

Tudo de luz se cobre...
Dou alegria ao pobre;
Na roça a plantação
Expande-se, viceja,
Com a vinda benfazeja
Do próvido** verão.

Sou o verão fecundo!
Nasce no céu profundo
Mais rutilo o arrebol...
A vida se levanta...
A natureza canta...
Sou a estação do sol!

Coro das quatro estações:

Que calor, irmãs! Cantemos
Como ardem as ribanceiras
Cantemos, irmãs, dancemos,
À sombra destas mangueiras.

0 outono

Coro das quatro estações:

Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! Enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!

O outono:

Sou a sazão*** mais rica:
A árvore frutifica
Durante esta estação;
No tempo da colheita,
A gente satisfeita
Saúda a criação,

Concede a natureza
O prêmio da riqueza
Ao bom trabalhador,
E enche, contente e ufana,
De júbilo a choupana
De cada lavrador,

Vede como do galho,
Molhado inda de orvalho,
Maduro o fruto cai...
Interrompendo as danças,
Aproveitai, crianças!
Os frutos apanhai!

Coro das quatro estações:

Ha tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! Enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!
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* Vergel = jardim, pomar
* * Próvido =abundante, cheio
*** Sazão =o mesmo que estação

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Andréa Donadon-Leal (Os Quatro Meninos)



Os meninos saíam da escola como sempre, numa gritaria danada. Luizinho, moleque rechonchudo e bagunceiro dava trabalho para os professores. Metido a valentão, de vez em quando dava uma coça nos colegas e ainda não sabia flexionar os verbos. Guto, colado sempre em Luizinho, era um garoto meigo, mais inteligente dos meninos, responsável nos deveres ; magrinho, olhos grandes e óculos ainda maiores. João, cabeça de abóbora, como todos chamavam, era sistemático, falava pouco e acertado. Só tinha fixação por coisas que botavam medo nas pessoas. Uma vez, colocou na porta de dentro da sala de aula, um boneco grande pendurado numa corda, cheia de sangue de galinha, assustando até a professora, coitada, grávida de oito meses, quase ganhou o bebê na sala de aula.

Osvaldo, colecionava piadas, charadas e revistinhas. Era extrovertido e aonde chegava à molecada se reunia para escutar suas histórias engraçadas. Os meninos, na faixa de dez a doze anos, estudavam na mesma sala. Não se largavam pra nada, nem nas brigas.Véspera de férias escolares, animação na primeira semana. Iriam passar um final de semana na fazenda antiga, afastada da cidade. Pertencia ao pai de Luizinho. Os quatro desciam as escadas da galeria da escola juntos, aos berros, cada um querendo falar ao mesmo tempo. Ainda no pátio Luizinho gritou:

- Falando sério agora, gente! Ocês tão sabendo, né, caras! Amanhã, nóis vai levantá junto com as galinha. Ocês já preparam a mala, vara de pesca, as barraca? Fica espertos, ocês! Papai já pediu pras suas mães e elas deixaram ocês ir com papai e eu pra fazenda em Alvinópolis! Vamo azará muito neste final de semana.

Na manhã seguinte o pai de Luizinho esquentava o motor da caminhonete velha para a viagem. Buzinou na casa do Guto, João e Osvaldinho e todos aguardaram na porta de casa com suas mães que pediam de novo: não esqueça dos conselhos de ontem, vê se não .. não! Saíam correndo afoitos pro carro, deixando as mães falando para os ventos.

Na viagem, tagarelices de João que não parava de falar em assombração, Guto, calado e azedo de medo, Osvaldinho dava gargalhadas e Luizinho não flexionava os verbos.

Viajaram duas horas na estrada de poeira, buracos e mato alto. A paisagem de repente, começou a mudar... Pedras escuras, montanhas altas, neblina densa. O sol havia ficado para trás, e o céu se transformou em cinza escuro. De longe, surgiu um telhado pontiagudo escuro de musgo no topo das encostas. Parecia torre de igreja de tão pontudo. Silêncio no carro...

Os meninos prenderam a respiração, até o Osvaldinho com suas gargalhadas dementes. A casa, uma mansão velha. O jardim tinha morrido, ficaram os galhos secos das árvores. Uma fonte seca, adornada com a estátua de um homem de bengala de ferro presa em suas mãos gigantescas. Uma cara sem graça, semblante carrancudo.

Pularam do carro, carregaram as malas pra dentro da casa grande. Uma sala de estar que parecia maior que o pátio da escola. Quadros nas paredes, infestados de poeira e teias de aranhas. Seu José, pai de Luizinho explicou que a casa estava mal cuidada e havia tempos que ele não ia pra lá. Afoitos foram conhecer a casa, percorrendo os cômodos espaçosos.

Seu José colocou Luizinho e Guto num quarto grande, João e Osvaldinho do lado do quarto dos meninos. Disse que a cozinheira chegaria logo para preparar o almoço, limpar a casa e fechou-se no escritório. A dona cozinheira apareceu de uniforme preto, cabelos presos em um coque alto, rosto quadrado, nariz grande e olhos esbugalhados... Parecia que tinha saído dos contos de assombração de tão feia e estranha. Estavam na cozinha, os quatro, caçando algo para comer e de repente aparece àquela mulher esquisita. Assustados saíram aos berros. Seu José saiu imediatamente do escritório assustado com a gritaria. Os quatro meninos rubros de vergonha com a dona e seu José pediram desculpas.

O pai de Luizinho dirigiu-se para o escritório batendo a porta pesada de madeira. A dona torceu a cara feia, deu de ombros e desapareceu na cozinha. Osvaldinho chorava de tanto rir da correria. Até ele tinha zunado no pé de medo. Guto, ainda branco como boneco de cera. João, misterioso fazendo planos para suas peças. Luizinho estava com a perna bamba tremendo de susto. O almoço, feito pela dona estava horrível: um punhado de folhas verdes amargas com um arroz que mais parecia um angu de tão cozido. De tarde, foram conhecer o resto da fazenda. Seu José tinha explicado que ficaria o tempo todo no escritório trabalhando. Foram para o sótão da casa. Sujeira, teias de aranhas, mais quadros de gente. Pessoas horríveis, cabeludas demais. No canto do sótão, livros de números, estantes que iam até o teto de livros.

Guto, muito intelectual se esbaldou nos livros de medicina, plantas, matemática, história... João encontrou um livro de contos de assombração e ficou lendo avidamente as páginas amareladas. Luizinho ficou de pé namorando as armas antigas penduradas da parede, sua mão coçava para tirar uma pequena do lugar e brincar de bang-bang.

Osvaldinho cínico como só ele, correu os olhos pelo sótão sem muito interesse, encontrou um livro antigo de piadas e soltou algumas gargalhadas sarcásticas.

- Luizinho, essas piadas são mais velhas que a criação do mundo! Dá vontade até de chorar! Raaaa

- Ô seu prego, já que ocê tem imaginação fértil, porque não aproveita grande escritor, e refaz todas elas?!

- Ô Luizinho, você de vez em quando solta uma boa pela boca. Idéia irada.

Ficaram até tarde no sótão até escutaram uns ecos estranhos de vozes que vinha lá de cima chamando-os para o jantar. Nem deram ouvidos. Quando a noite caiu no céu, o sótão ficou repleto de trevas. As luzes não acenderam, estavam queimadas. O Guto pediu pra tentar de novo, mas nada. Começaram com a neurose do medo, medo do escuro... Todos pediram ao mesmo tempo para Luizinho parar com a brincadeira sem graça e acender as luzes. Escutaram uivos de lobo, portas abrindo e fechando... Tremeram de medo, correndo desvairados para cozinha e gritaram ainda mais com a dona que os aguardava no pé da porta do sótão com o corpo estremecido de gargalhadas maldosas..

- Meninos da cidade grande! Metidos, arrogantes e medrosos. Tremem feito gelatina.

No jantar mais comida ruim da dona. Não tinha batata frita, macarrão ... Folhas verdes e amargas à vontade e o arroz empapado foi colorido com beterraba. Jantaram fazendo caretas simulando repulsa. Seu José fulminava os meninos com o olhar, passando sermão sobre o benefício do consumo dos legumes e verduras para uma vida saudável. Após a gororoba, Seu José explicou para os meninos que dona Otila tinha arrumado todas as camas e para eles não esquecerem de escovar os dentes antes de dormir... Depois dirigiu-se para o escritório, desaparecendo na escuridão do corredor cumprido. A dona bruxa, pegou o casaco, chapéu e sombrinha pendurados no cabideiro, despedindo-se dos meninos:

- Meninos, não façam xixi no colchão à noite! Se escutarem algum barulho estranho, não saem do quarto! Lembrem-se: não saiam do quarto até amanhecer! Tenham, se possível, uma boa-noite. Esbravejou a dona virando as costas para os meninos, rodopiando os pés e batendo a porta da sala com força. Tiveram tempo de espiá-la pela janela de vidro da sala.

Ela conversava e gesticulava sozinha. Seu José trancado no escritório, passava horas no trabalho. Os meninos assistiram alguns filmes sem graça na televisão que ora pegava, ora saía do ar. Olharam para o relógio grande e já eram onze e meia da noite. Correram para os quartos. Luzinho e Guto foram pro primeiro do corredor e Osvaldinho e João para o segundo. No quarto não havia sequer um abajur. Guto perguntou se não havia uma vela na casa porque tinha medo do escuro. Luizinho, metido a machão:

- Guto deixa disso cara! Eu não tô aqui co cê?! Cê já pensô se ficasse num quarto sozinho? Tá com medo de quê? Esse quarto nem tão escuro é! Ói! Apagou a luz e tomei um susto com o breu! Não via nada, só escuridão.

- Viu, Luizinho? Não dá pra ver um palmo de luz!

- Tá bem, molenga! Vou deixá as cortina da janela aberta e a lua alumia o quarto. Agora vá deitar que amanhã nóis vai nadá no rio e pescá uns peixe grande. Guto, ainda com medo, começou a rezar baixinho o credo, ave-marias, pai-nossos, salve rainha ... Luizinho também com medo dos quadros de gente morta, da dona bruxa, do sótão sinistro... De repente escutaram portas batendo com força, passos arrastando nas tábuas... Um frio gelado no quarto, vento soprando no rosto; janela do quarto batendo! Luizinho e Guto engoliram gritos de pavor, cada um em sua cama! Guto rangia os dentes de medo chamando atônito Luizinho:

- Luizinho! Cochichou. Você tá escutando o que estou? Têm umas portas rangendo! O frio no quarto tá gelando meus ossos. Estou com medooooo...

- Guto, tem medo não! Né nada não, seu medroso! É meu pai que tá abrindo e fechando as portas. Ele tem esta mania! Falou pouco convincente. O vento estava vindo da janela aberta. Luizinho atordoado de medo, mas firme para Guto.

- Pra você não ficar sozinho aí na cama, pode vim dormir comigo aqui na cama, cabe nós dois. A dona bruxa, aquela vaca sem consciência, deixou a janela aberta para matar os meninos de susto. Guto apertou o interruptor da luz e nada. De novo a escuridão. Não tinha luz. Nem vela. Luizinho levantou da cama e foi tremendo fechar a janela. Topou de cara com os olhos de vidro de uma coruja no galho seco de uma árvore, logo em frente da janela do quarto. Gritaram horrores de medo e pavor, Luizinho, Guto e a coruja... Fechou de uma vez a janela pesada de madeira.

- Tenho que admitir, Guto, tô com medo. E mais medo vinha por aí. Os dois deitados juntos na cama, escutavam uivos de lobo, pios de corujas, correntes batendo no chão da casa velha... Tremeram de pavor. A noite demorava pra terminar. Lembraram do conselho da dona bruxa, não podiam sair do quarto...No quarto ao lado, Osvaldinho e João jogavam conversa fora deitados nas camas espaçosas. João satisfeito com a casa assombrada da fazenda. Osvaldinho cheio de histórias para contar para os colegas da escola. Apagaram a luz e foram dormir, pois já passava das duas horas da madrugada. Osvaldinho escutou sons dentro do quarto, alguém abriu cortina abruptamente e a luz da lua invadiu o quarto escuro.

- João, por que abriu as cortinas?

- Eu?! Ia perguntar o mesmo para você, seu engraçadinho.

- Fui eu não, moleque! Não gosto de luz no quarto quando estou dormindo! João levantou com má vontade e fechou a cortina de renda. Antes de chegar à cama, de repente, a cortina abriu novamente. João, assustado, acendeu as luzes do quarto e Osvaldinho estava de pé com os olhos arregalados, balbuciando:

- Cê viu cara? Viiiiu?.... Sombras de chifres e rabo correndo pelo quarto! É você né, seu prego? Cadê a fantasia, moleque sem graça!

- Você pirou de vez! Não fui eu! Quem abriu as cortinas do quarto, quando eu estava perto da cama? Foi você?

- Não...As luzes do quarto começaram a piscar, como se a energia começasse a falhar. Osvaldinho foi até o interruptor para apagar as luzes e nada. O interruptor enguiçou. Os dois viam sombras nas paredes do quarto, chifres e rabo andando em círculos. Os quadros do quarto de cabeça pra baixo. Os tapetes pendurados no teto. Urros de bichos... Osvaldinho e João, abraçados correram até a porta do quarto e a maçaneta queimou a mão de João. Os dois corajosos estavam com as calças molhadas. Gritavam em vão, ninguém escutou os berros! A noite demorou a passar para os meninos presos nos quartos da casa grande. Gritos, uivos de lobisomem, correntes que arrastavam pelo chão, quadros e cortinas mexiam sozinhos, figuras fantasmagóricas nas sombras das paredes, pio de coruja, tapete pendurado no teto. Os meninos abraçados e molhados de xixi! Se tivessem problemas cardíacos de manhã seus corpos estariam estirados no chão do quarto, mortos de tanto susto.

Ficaram a noite inteira acordados. Finalmente os raios do sol invadiram os quartos. Levantaram rapidamente das camas molhadas. Luizinho e Guto trocaram de roupa e desceram para a cozinha, mortos de fome, com olhos inchados, afônicos... Lá já estavam Osvaldinho e João, olharam para os dois, não dormiram também! Estavam todos emburrados com os cabelos em pé, olheiras fundas... Sentaram nas cadeiras altas da cozinha esperando o desjejum matinal. A dona bruxa abriu a porta da cozinha, olhou para os quatro meninos e perguntou:

- Já de pé!? Tiveram uma boa noite, meninos da cidade grande?

Nem esperou resposta; olhou fundo para cada um deles, levantou uma das sobrancelhas grossas e riu alto, como uma desvairada, a dona bruxa!

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/
Imagem = http://portugalporreiro.blogspot.com

Alex Giostri (O plano B de cada Autor Brasileiro )




Não é de hoje que venho trabalhando com autores. Autores teatrais, autores literários, roteiristas, dramaturgos, autores de poemas nada poéticos, Adicionar imagemautores de textos banais, autores consagrados, autores equivocados, enfim, seres humanos que por causalidade da vida, por alguma circunstância, que não serei eu a dizer aqui qual foi, optou pelo fazer textual, seja lá qual o seu destino, a sua bitola, como se diz no cinema. Talvez a palavra opção não seja a melhor, pois há os que não tem outra senão o escrever, o que invalida o tal livre-arbítrio neste sentido e o põe na posição de necessitado, de um homem (ou mulher) que não conhece o mundo senão sob o olhar de suas palavras, que necessita e se salva no mundo das palavras, o que, aqui, na realidade, não nos importa, menos ainda se escreve bem ou mal. Não nos cabe um julgamento de valor, um critério se isso ou aquilo é bom ou nos agrada enquanto leitores.

O fato é que há autores espalhados pelos quatro cantos do país. Novos, velhos, jovens, idosos, rapazes, meninas, pessoas que são o que poderíamos chamar de a reciclagem do que se diz literatura. E o que é a literatura? E o que ou quem são essas novas pessoas? O que querem?

Naturalmente, alguns querem levar seus discursos adiante, mostrar ao que vieram e ampliar os seus universos aos universos de seus cobiçados leitores, outros querem se salvar de si mesmos, vomitar na tela do computador tudo aquilo que não são, ou o que são, ou o que querem ser e não conseguem. Há também os deslumbrados que querem ficar famosos, reconhecidos internacionalmente, assediados pelos pedestres nas ruas, enfim, há de tudo, como em qualquer ramo profissional.

Independente do objetivo de cada um, que é a única coisa que não nos importa aqui, cada escritor, e eu me incluo nesse pacote, quer sobreviver de seu ofício, de suas obras, de seu campo de pesquisa.

Para isso, há de se ter uma enorme coragem. Sim, coragem. Não está no mérito o talento de cada um. Talento é á ultima característica que é vista. Há de se ter uma enorme coragem para dizer para si mesmo que o que quer se tornar é um escritor, mesmo aqueles que dizem não terem escolha – a sua não escolha, torna-se também uma escolha -, mesmo esses, todos; há de se ter coragem para encarar a vida com uma tela de computador, um teclado, um mouse e idéias na cabeça. Há de se ter coragem para perder um ano e escrever um livro, sem saber se o resultado será satisfatório, se corresponderá às próprias expectativas, se toda a pesquisa feita sobre o assunto tratado na obra será bem direcionada, se os conflitos que entrarão no enredo serão bem conduzidos, se os personagens ficarão verossímeis, mesmo se a verossimilhança pretendida seja uma inverossimilhança quando postos numa balança de peso e medida no campo da vida real, se o tempo pretendido dentro da obra será bem delineado para absorver toda a narrativa imaginada, há de se ter coragem.

Mas não acabou. Com a obra pronta, há de se ter coragem para encarar a vida e as portas nas caras das editoras que quando muito, dizem: não, muito obrigado, volte amanhã. E há de se ter coragem quando, depois de três quatro anos da obra escrita, alguma alma generosa interessa-se pela obra e a publica. Está tudo resolvido. Não. É aí que começam os novos problemas, as novas agonias, as novas investidas no há de se ter coragem. Uma vez publicada, uma obra deve ter toda uma assessoria de imprensa. A assessoria de imprensa só se levantará de sua cadeira se o autor tiver alguma evidência na mídia, se for notícia, ou se a editora tiver um poder de compra muito alto.

Uma vez assessorado, o autor então começa a frequentar os programas de TV, de rádio e colunas literárias, tudo para que o seu livro alce vôo e saia como pássaro das livrarias, direto para casa dos futuros leitores. No entanto, a obra não sai. E por quê? Mas como, se foi tudo feito tão minuciosamente? Ninguém lê? Ninguém compra? Sim, naturalmente sim. Mas não o seu livro. Não o livro do João das Couves que chegou ontem. E essa é a realidade nua e crua, sem demagogia. Nem mesmo o poder de imprensa fará com que um livro seja vendido assim, de uma hora para outra. Há de se ter um gancho, há de se ter coragem para continuar tentando.

Aí então, o escritor, inconformado, depois de lamentar a sua existência sobre os pacotes de seus livros na sala de sua casa, passa para o plano B. Arruma um emprego num banco, vai trabalhar numa loja de shopping, vira balconista, faz faculdade de odontologia, de direito, casa-se com alguém que o financie, endivida-se num banco, ou então, respira fundo e passa a mais uma pesquisa, para uma nova obra, dessa vez a infalível, a que o tirará do fundo do poço, da lama. A palavra mais adequada a isso tudo é a persistência. É dela que se frutificará o alicerce sólido de cada escritor. É dessa persistência que será arrancada a sede de querer conquistar os próprios ideais, os sonhos realizados e o próprio sustento. Agora, essa persistência é muito dura de ser enfrentada sozinho.

Um escritor lutando sozinho não terá forças o suficiente. Mas isso é para qualquer ideal, como uma frase clichê que nem me lembro de quem é, mas não é minha que diz “que um sonho sonhado sozinho não é realidade”. Isso numa reflexão superficial já nos apresenta escancaradamente que o há de se ter coragem tão dito ao longo do texto significa que é fundamental que todos tenham coragem de permanecer no campo de batalha e que todos, principalmente os novos e idealistas, tenham sua força na força do outro, que se amparem e juntos formem o que está por vir, o que será... que é o que a literatura dita clássica hoje já foi; um dia ela também foi o que será, e pelos mesmos jovens que ontem eram cada um dos novos escritores de hoje e que hoje são tudo aquilo que os novos escritores, os reais novos escritores, querem para si, o ser apenas um escritor, reconhecidos e respeitados como tal, sobrevivendo modestamente e com dignidade de seu ofício, sejam indo pelo plano B ou não, mas juntos e unidos, sempre, ao longo da vida. Nunca sozinhos.

Fonte:
http://www.alexgiostri.com.br/artigos.html

Sérgio Antonio Costa Gomes (O Anão)



A impossibilidade de satisfazer um desejo o torna ainda mais intenso; isso é um fato. Alguns desejos, de tão intensos que são, podem levar à loucura; essa é outra verdade.

Buscaremos a comprovação de tal tese em um ambiente e com pessoas bastante improváveis.

Melquisedeque era um anão. Por conta disso, talvez, muitos pudessem duvidar que um coração tão pequeno pudesse conter um amor tão grande. O pequenino homem tinha uma aparência engraçada: as pernas curtas e roliças lhe conferiam um andar semelhante ao de um pinguim, a cabeça exageradamente grande, a testa proeminente, lhe davam um aspecto caricato, muito embora, não obstante a aparência um tanto quanto estranha, fosse quase impossível não se contagiar com seu sorriso largo e espontâneo – todos gostavam dele – diziam os mais íntimos que um gigante se escondia sob suas proporções bizarras. Trabalhava como assistente de palhaços no Danúbio Azul, um misto de circo e parque de diversões de quinta categoria. Um mero coadjuvante, em cores espalhafatosas, vestia-se de bobo da corte em suas apresentações e sofria com as travessuras diabólicas de seus companheiros de picadeiro.

O Danúbio Azul, apesar de ser um local destinado a diversões, não tinha um ambiente agradável: a qualidade precária de suas instalações, aliada ao mau-gosto dos entretenimentos oferecidos, só poderia atrair pessoas pouco exigentes ou até mesmo mentalmente degeneradas. Operários de baixa-renda, bêbados, vadios e alguns mal-intencionados se constituíam em seu público predominante. O medonho parque era uma das poucas possibilidades de diversão oferecidas por seus mundinhos reduzidos.

O sombrio local estava a algum tempo na mira da polícia. Crimes sequenciais, com as características predominantes da ação de um serial killer, ocorriam com certa frequência nas adjacências de onde o Danúbio Azul costumava se instalar. As vítimas, sempre do sexo masculino, empaladas por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, tingiam o chão onde jaziam com o produto mais íntimo de suas carnes.

Carlos Mariano era o soturno proprietário do Danúbio Azul. Era um homem enorme e desagradável; bronco e de feições endurecidas, pouco afeito aos hábitos da higiene, tinha um aspecto seboso, salientado pelos bigodes compridos e grisalhos, amarelados pelo hábito do fumo. Ambicioso, sugava seus funcionários até o tutano dos ossos e pouco se importava com as condições precárias em que viviam. Indiferente aos crimes que ocorriam nas redondezas de seu parque de diversões, interpelado diversas vezes pela polícia, enquanto esbaforia a fumaça fedorenta de seu inseparável cachimbo nos rostos dos agentes da lei, dizia que não tinha nenhuma pista, que era trabalho deles prender o autor de tais atrocidades.

Alheios ao que se passava além do cercado que isolava seu local de trabalho dos bairros periféricos por onde passavam, Melquisedeque e seus colegas mantinham o ritmo normal de suas atividades; tentavam dar o melhor de si no intuito de trazer alguma alegria à paupérrima população que se constituía em seu público fiel.

Amigo de todos, Melquisedeque tinha uma predileção especial por Ananias, o contorcionista e por Nora, a mulher-gorda, por quem nutria uma intensa e anônima paixão, conhecida apenas por Ananias, seu melhor amigo. Sempre envoltos em uma cortina de fumaça de cigarro, juntos, tomavam umas “branquinhas” para aliviar as amarguras da vida. Nessa noite, impulsionado pela coragem etílica, Melquisedeque, que se sentia desencorajado pela incompatibilidade física que havia entre ele e Nora, disse ao contorcionista que não obstante as dificuldades pretendia declarar todo amor que sentia por ela.

Ébrio, Ananias contorcia o corpo esquálido das formas mais aberrantes possíveis, enquanto desdenhava da possibilidade do pequenino amigo realizar seus desejos amorosos:

– Heh! Você e Nora? Não sei não... Ela pesa quase duzentos quilos! È muita carne pra tu. Não dá! Não dá! Não dá!

Uma canção sertaneja embalava a dor-de-cotovelo que invadiu o coração desesperançado de Melquisedeque que esperava uma palavra de encorajamento por parte de seu melhor amigo. Tentando talvez uma posição diferente de Ananias em relação a suas pretensões amorosas, o anão conjeturou:

– Mas será que não tem alguma forma de...

Ainda mais contundente, Ananias interrompeu as considerações do amigo antes que ele pudesse concluí-las:

– Vocês são fisicamente incompatíveis! Não dá! Não dá!

Desiludido, Melquisedeque deixou Ananias bebendo sozinho e foi dormir mais cedo. Estacas de desapontamento varavam seu coração sofrido em todas as direções possíveis. A intraduzível dor do amor impossível tomava-o por completo. Com a esperança fraquejada, banhado em lágrimas, atirou-se em seu catre e mesmo morto de cansaço não conseguiu dormir. Nora não lhe saía dos pensamentos atormentados, roubando-lhe a paz.

Dada suas condições físicas grotescas, Nora não era uma mulher feliz. Trabalhava em um daqueles dispositivos sádicos onde o cliente, conseguindo acertar o alvo com a força e precisão necessárias, mergulhava seu corpanzil no aquário de águas geladas num “chuá redundante”. Frequentemente alguns abusados lhe dirigiam palavras e gestos ofensivos, em meio a gargalhadas estridentes, enquanto tentavam mandá-la para a água.

Cada palavra menos digna dirigida a Nora, penetrava o coração apaixonado de Melquisedeque feito setas envenenadas. Algumas vezes, esquecendo-se de sua estatura acanhada, ele desejou socar até a morte um e outro mais abusado que pegava pesado demais com sua amada. Mas isso significaria tirar seu amor do anonimato, algo que estava fora de cogitação, pelo menos naquele momento, para o inseguro anão.

Pensando em tais infortúnios, Melquisedeque conseguiu pegar no sono apenas quando o sol causticante do verão já se encontrava no final da tarde. Não muito tardou e logo ele acordou com o barulho das primeiras atividades do Danúbio Azul que já estava aberto ao público para mais uma noite de diversões. Sonolento, com uma expressão fisionômica carregada, arrastando-se com seu andar peculiar, caminhou até o local onde Nora divertia um grupo de homens rudes e sádicos.

Raimundo Silva, um operário da construção civil, recém-chegado do norte, exagerava no consumo de álcool e nas ofensas. Com gestos e palavreados chulos que não cabem aqui descrever, ofendia a pobre mulher que estava apenas exercendo sua profissão. Quando conseguia acertar o alvo, mandando-a para o aquário, dizia que ali era seu lugar e tantas coisas mais.

Ao observar a cena, Melquisedeque transfigurou em ódio sua face caricata e desejou atracar-se ali mesmo com Raimundo e fazê-lo retirar, a socos e pontapés, uma a uma de suas ofensas. Ananias, que também observava tudo de perto, ao perceber que o amigo preparava-se para ir às vias de fato, o segurou, desencorajando-o.

– Deixa esse idiota pra lá! Você não pode com ele.

Tomado pelo ódio, o anão vociferou com uma voz desproporcional a seu tamanho:

– Canalha! Quem ele pensa que é para tratar Nora assim?

Tentando apaziguar os ânimos, Ananias retrucou:

– Ele é um idiota! Esquece o cara.

Indignado, Melquisedeque retirou-se do local e foi preparar-se para mais uma de suas apresentações. Mesmo com a algazarra pertinente aos espetáculos dos quais fazia parte, não conseguia tirar da cabeça toda ignomínia da cena de outrora.

Finda as atividades, o Danúbio azul cerrou seus portões e funcionários e artistas, exaustos, retiraram-se para seus precários aposentos coletivos a fim de se recuperar da fadiga de mais uma movimentada noite de diversões.

Logo ao amanhecer, a polícia foi procurar Carlos Mariano em busca de pistas. Um cadáver, que posteriormente foi identificado como sendo Raimundo Silva, foi encontrado em uma rua próxima do local onde o Danúbio Azul encontrava-se instalado. O corpo, empalado por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, apresentava as mesmas características dos crimes que vinham ocorrendo, já há algum tempo, nas adjacências de onde o circo de Carlos costumava se instalar. Mais uma vez, com seu jeito bronco de ser, enquanto fumava seu cachimbo, Carlos disse que não tinha nenhuma pista, que era trabalho da polícia investigar e prender o criminoso.

Alheios ao que se passou na noite passada, além das cercas que os continham em seu sombrio local de trabalho, os funcionários do Danúbio Azul, após o descanso diurno, se preparavam para mais uma rotineira noite de entretenimentos. Porém, dessa vez, pelos para Nora, um fato inusitado estava prestes a acontecer. Melquisedeque tomara uma crucial decisão: no calor de sua paixão, resolveu deixar as inseguranças de lado e finalmente declarar todo seu amor ao objeto de sua especial predileção. Tímido, resolveu dirigir-se aos aposentos de Nora enquanto ela ainda estivesse dormindo. Aproveitaria-se do torpor de sua sonolência para pegá-la de surpresa e, enfim, lhe dizer tudo o que havia guardado por quase três anos de anonimato.

Os quartos onde descansavam os funcionários do Danúbio eram precários e mal iluminados. Sem bater na porta que não tinha trancas nem fechadura, Melquisedeque adentrou o recinto onde Nora dormia ruidosamente e lhe sacudiu o corpanzil que se esparramava sobre a cama reforçada. Pega de surpresa, tonta de sono, Nora reconheceu Melquisedeque, apesar da escuridão, por sua pequena estatura e por sua voz peculiar:

– Ah! È você? O que foi? Estou atrasada?

– Nora... Tem uma coisa que há muito tempo preciso lhe dizer...

Melquisedeque, tomado por uma inusitada coragem, confessou a obesa mulher todo amor que sentia por ela, o quanto ela era especial para ele, o quanto a desejava. Nora, espantada com aquela confissão repentina, puxou-o a si, esmagando-o contra a consistência gelatinosa de seu corpanzil, e disse:

– Oh, meu lindinho! Vem para os braços da mamãe!

Assim, ambos permaneceram abraçados e calados por alguns minutos até que Nora soltou uma gargalhada de sarcasmo, desmoronando o paraíso onírico em que, por alguns breves instantes, viveu Melquisedeque.

– Ah, ah, ah! Você é louco? Ah, ah, ah! Você e eu? Amantes? Que ridículo! Olhe para você. Não acredito nisso... Ah, ah, ah...

Ainda gargalhando, ignorando Melquisedeque e todo seu amor, Nora levantou-se e, atrasada que estava, foi preparar-se para mais uma noite de trabalho e humilhações.

Arrasado por ter seu amor sincero e ardente, assim desprezado, Melquisedeque não compareceu a suas obrigações da noite e ninguém o achou em lugar nenhum.

No dia seguinte, os funcionários encarregados da limpeza depararam-se com uma cena macabra: chorando copiosamente, Melquisedeque encontrava-se abraçado ao corpanzil ensanguentado e inerte de Nora. Empalado no abdômen, no sentido de baixo para cima, a obesa vítima apresentava as mesmas características dos crimes que ocorriam além das fronteiras de madeira compensada que separavam o Danúbio do mundo lá fora.

Ananias que já sabia do amor do anão por Nora, chamou a polícia que não tardou em chegar. Banhado em lágrimas, o anão se entregou sem oferecer resistência e sem nada dizer em sua defesa. Uma expressão de revolta estampava-se nos rostos dos funcionários e amigos de Nora que, com olhos odientos, acompanharam a viatura que levava Melquisedeque até ela sumir de vista.

Diz um ditado popular que “a voz do povo é a voz de deus”. Sentença que é profundamente questionável. Nunca gostei muito de ditados populares, embora alguns deles sejam, de fato, eficientes no sentido de enunciarem verdades simples. “Quem ama o feio, bonito lhe parece” é um deles.

Quem quer que observasse Nora e suas formas grotescamente deformadas pela obesidade mórbida, jamais imaginaria que ela fosse capaz de despertar paixões tão intensas. Ananias mantinha, já há alguns anos, uma caso secreto com ela. O contorcionista, sem coragem de assumi-la perante todos, mantinha o relacionamento no anonimato, embora isso não fosse do agrado dela.

Na noite em que Melquisedeque resolveu declarar seu amor, poucos minutos depois, Ananias resolveu ir visitá-la em seus aposentos. Ao adentrar seu quarto no momento em que ela abraçava o anão, o contorcionista, na obscuridade proporcionada pela escuridão do recinto, imaginou ter visto o que não aconteceu. Tomado pelo fel do ciúme, retirou-se antes de ouvir as gargalhadas de desprezo de Nora e planejou a forma mais cruel de se vingar de ambos.

De há muito tempo, Ananias já vinha eliminando, de forma contumaz, aqueles que escarneciam Nora de uma maneira mais contundente. Conhecedor que era do amor de Melquisedeque por sua obesa namorada, cometia os assassinatos de forma a incriminar o anão e assim se livrar de um provável rival na disputa pelas carícias de Nora. Dessa vez, ensandecido pela dor de uma traição que só aconteceu em sua cabeça, decidiu acabar com os dois, aniquilando a vida de Nora, produzindo uma espécie de morte em vida em Melquisedeque que seria culpado pela morte de sua amada.

Enquanto isso, na cadeia, inocente, jogado em um canto sujo e úmido de sua cela, Melquisedeque permanecia calado – para ele a vida havia perdido a razão de ser.

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/

Luiz Antonio de Assis Brasil (1945)


Nascido em Porto Alegre, em 1945, Luiz Antonio de Assis Brasil passa parte da infância em Estrela, com a família, que de lá retorna à capital em 1957. Cinco anos mais tarde começa a estudar violoncelo.

Em 1963 termina o Curso Clássico no colégio Anchieta, em Porto Alegre, dos padres jesuítas. Em 1964, ano do golpe militar, ocorre sua entrada no exército, para o serviço militar obrigatório. Um ano mais tarde Luiz Antonio ingressa no curso de Direito da PUCRS e também passa a fazer parte da OSPA - Orquestra Sinfônica de Porto Alegre – como violoncelista, lá permanecendo por 15 anos. Forma-se em Direito em 1970. Advoga por dois anos. Em 1975 ingressa como Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, função na qual atua até hoje; no mesmo ano inicia a colaborar na imprensa com artigos históricos e literários.

Estréia em 1976 com o romance Um quarto de légua em quadro, lançando-o na 32ª Feira do Livro de Porto Alegre, e que lhe dá o Prêmio Ilha de Laytano. Em 1976 inicia sua trajetória de administrador cultural, primeiramente na Prefeitura de Porto Alegre [Chefe da Secção de Atividades Artísticas] e depois no Estado do Rio Grande do Sul [Diretor do Instituto Estadual do Livro - 1983]; 1978 é também o ano de lançamento de A prole do corvo. Em 1981 publica Bacia das almas. No ano seguinte, Manhã transfigurada. Em 1981 Luiz Antonio de Assis Brasil assume a direção do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre

No inverno 1984/1985 vai à Alemanha, como bolsista do Goethe-Institut [Rothenburg-ob-der-Tauber, na Francônia]. Em 1985 lança aquele que, segundo o autor, é seu livro com maior carga emocional, As virtudes da casa. Começa a coordenar a Oficina de Criação Literária do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, em atividade até hoje, e que recebeu o Prêmio Fato Literário, da RBS/Banrisul ao completar 20 anos de atividades ininterruptas. Em 1986 sai mais uma obra, O homem amoroso, uma novela com forte acento autobiográfico. Cães da província, em 1987, retoma o ciclo histórico, adotando Assis Brasil o dramaturgo José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-Santo, como personagem e evocando os tenebrosos crimes da Rua do Arvoredo. O romance dá o título de Doutor em Letras ao autor e faz jus ao Prêmio Literário Nacional, do Instituto Nacional do Livro.

Em 1988 Assis Brasil recebe da Câmara Municipal de Porto Alegre o Prêmio Érico Veríssimo pelo conjunto de sua obra. Videiras de cristal, que recria a saga dos Muckers, é lançado em 1990. Nova experiência é o romance em três volumes Um castelo no pampa, que se divide em Perversas famílias [1992 - ganhador do Prêmio Pégaso de Literatura, da Colômbia], Pedra da memória [1993] e Os senhores do século [1994]. Concerto campestre, Breviário das terras do Brasil e Anais da Província-boi saem em 1997, ano em que o romancista é eleito Patrono da 43a Feira do Livro de Porto Alegre.

Em 1998 é palestrante convidado na Brown University, em Providence, USA e em 2000 participa do programa Distinguished Brazilian Writer in Residence, na Berkeley University, Califórnia.

Em 2001 publica O pintor de retratos, que recebe o Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Em 2003 lança o livro A margem imóvel do rio, o qual é contemplado com três prêmios: Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira [o único romance dentre os três primeiros classificados], Prêmio Jabuti [finalista menção honrosa] e Prêmio Açorianos de Literatura.

Ainda em 2003 acontecem três publicações no Exterior: O pintor de retratos sai em Portugal pela Editora Ambar, do Porto; O homem amoroso é publicado pela Editora l´Harmattan, de Paris [l´Homme Amoureux], e na Espanha, pela Editora Akal, de Madrid, lança a tradução de Concerto campestre [Concierto Campestre]. Também em 2003 publica um livro de ensaios literários pela Editora Salamandra, de Lisboa: Escritos açorianos: tópicos acerca da narrativa açoriana pós-25 de abril. Em 2005 sai na França, pela editora Les temps des Cérises, o Breviário das terras do Brasil [Bréviaire des Terres du Brésil.]

Em 2006, Assis Brasil participa, com conferências na Alemanha [Tübingen, Leipzig, Berlim] de programa oficial do Ministério da Cultura do Brasil.

Música perdida é lançado em 2006, o qual vence, em 2007, a Copa de Literatura Brasileira e recebe indicação ao Jabuti. Em 2008 segue com sua coluna quinzenal no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e publica Ensaios íntimos e imperfeitos, uma coleção de pequenos textos de caráter poético e ensaístico.

Obras
1976 - Um quarto de légua em quadro
1978 - A prole do corvo
1981 - Bacia das almas
1982 - Manhã transfigurada
1985 - As virtudes da casa
1986 - O homem amoroso
1987 - Cães da província
1990 - Videiras de cristal
1992 - Perversas famílias
1993 - Pedra da memória
1994 - Os senhores do século
1997 - Concerto campestre
1997 - Anais da Província-Boi
1997 - Breviário das terras do Brasil
2001 - O pintor de retratos
2003 - A margem imóvel do rio
2006 - Música perdida

Premiações

Entre outros, recebeu os seguintes prêmios:
Prêmio Ilha de Laytano
1977, por Um quarto de légua em quadro

Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro
1988, por Cães da Província

Prêmio Literário Erico Verissimo
1988, pelo conjunto de sua obra, concedido por unanimidade da Câmara de Vereadores de Porto Alegre

Prêmios Açorianos de Literatura
1994/1995, o melhor romance e melhor obra do ano, com Pedra da Memória e Senhores do século

Prêmio Pégaso de Literatura Latino-americana
1994, Bogotá, Colômbia: Menção especial do júri, por Pedra da memória

Prêmio Machado de Assis
2001, Biblioteca Nacional, por O pintor de retratos

Livro do ano,
pela Associação Gaúcha de Escritores, 2004 (romance) para A margem imóvel do rio

Prêmio Jabuti 2004
2° classificado com A margem imóvel do rio

Prêmio Portugal Telecom 2004
Único romance classificado entre os três vencedores: A margem imóvel do rio

Fato Literário 2005,
Rede Brasil Sul de Comunicações/BANRISUL, pelos 20 anos da Oficina de Criação Literária

Prêmio Jabuti, 2007
Finalista, com Música perdida

Prêmio Copa de Literatura Brasileira 2007
Vencedor, com Música perdida

Adaptações para o cinema
Vários de seus livros foram levados ao cinema:
– Concerto campestre, com o mesmo título;
– Videiras de cristal, com o título de A paixão de Jacobina
– Um quarto de légua em quadro, com o título de Diário de um novo mundo.
– Manhã Transfigurada, com o mesmo título.

Fontes:
– wikipedia
http://www.laab.com.br/bio.html

Luiz Antonio de Assis Brasil em Xeque


O terceiro encontro do projeto Paiol Literário - realizado em parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba - trouxe a Curitiba o escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil.

O prazer da leitura

Eu não sou uma pessoa brilhante. Vocês vão sair muito decepcionados. Estou antecipando isso. Minha vida não tem muita importância. Sou um pouco assim como a República de Andorra. Não tenho história. Mas vou procurar, com a minha ficção, ajudar um pouco isso aí. Essa pergunta, sempre fazem. Principalmente meus alunos, e quando não fazem, eu provoco. E eu penso um pouco sobre aquilo do [Wolfgang] Iser, o teórico. Ele fala das três funções da literatura, que eu acho que, no final, são funções reais.

Que são o prazer da leitura, o prazer que dá ler um romance, um poema, um conto; o conhecimento que a literatura dá, ela aumenta o nosso universo de conhecimento do mundo; e a catarse, a transformação que pode realizar em nós. Então, parece que essas três funções explicam bastante o que é a literatura dentro de uma perspectiva que eu sei que é teórica, mas que também pode ser vista no plano prático. A gente insiste muito na questão do prazer da leitura, e eu vejo muitos professores amargurados porque me dizem:
"Eu não consigo fazer meus alunos terem prazer na leitura".
Eu digo:
"Bom, o que tu dá para eles?"
"Bom, eu estou estudando A pata da gazela."
E eu digo:
"Bom, eu acho que o caminho aí não é tanto do prazer da leitura, mas pode se pensar assim: Vocês lendo esse livro vão conhecer o Rio de Janeiro do Segundo Império".

E quando eu penso no lado transformação, penso em duas obras. Uma do século 18, que é do Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, e penso numa obra atual, que é O código Da Vinci. Até estou estudando com meus alunos essas duas obras sob o aspecto da recepção. Porque o Werther foi o primeiro best-seller da história. Foram vendidos milhares de exemplares quando foi lançado, no século 18, e eles transformaram pessoas.

Agora, eu me tornei numa espécie de especialista n'O código Da Vinci. Isso me lembra um pouco a história do homem que sabia javanês, o conto clássico do Lima Barreto. Os meus superiores na minha universidade me pediram para fazer uma conferência sobre o Código. Numa das palestras, eu terminei de falar - e falei sobre isso da transformação que a literatura opera - e um jovem me pediu a palavra e disse:
"Olha eu terminei o Código e fui internado num hospício".
Como assim?, eu perguntei.
"É, eu fiquei louco e meus pais me internaram."

E disse o nome da instituição, tradicional em Porto Alegre. Eu disse:
"Como foi isso?"
Ele respondeu:
"Sim, porque me disseram que tudo o que eu pensava sobre a vida, sobre a minha religião, tudo veio por água abaixo, não senti mais apoio em nada e enlouqueci".

Então penso isso: a função catártica da literatura, de transformação, e o prazer da leitura, que vocês conhecem. É aquela coisa de querer voltar para casa, porque aquele livro está lá, nos esperando e estamos loucos de vontade de saber como ele continua, ou nos deliciarmos com um poema.

A descoberta do prazer da leitura

As coisas no meu tempo de infância e adolescência eram um pouco diferentes. Naturalmente. Como só poderiam ser. Os veraneios eram intermináveis. Começavam em dezembro e iam até março. Hoje são 20 dias. Íamos para uma praia, meu pai optou por uma praia onde não havia água, luz, nada. Fora da civilização. Bom, o que eu fazia? Ia à biblioteca do meu colégio, dos jesuítas, no Colégio Anchieta. Naquela época, o Eça de Queirós ainda estava no índice dos livros proibidos pela igreja católica. Mas havia um jesuíta lá, meu professor, que tinha o Eça. E fui pegar uns livros e ele disse:
"Vou te dar o Eça".
E eu, bobo, bom aluno de religião, disse:
"Não é proibido?"
E ele:
"Mas ninguém fica sabendo, põe dentro da tua pasta".

E aí me deu A relíquia, do Eça. Eu tinha 14 anos. Foi realmente espantoso. O prazer da leitura eu nunca vou esquecer. Então, armei uma tenda no meu quarto e ali passei lendo A relíquia. Depois fui ampliando. A literatura realista. Logo pulei para o Machado, e por aí foi. Fundamentalmente romance. Meu pai lia muito conto. Mas tinha uma visão de conto daqueles finais surpreendentes, que viravam tudo e tal. E achava graça naquilo e lia e curtia muito. Mas eu não achava muita graça, não. Aqueles finais eram um pouco, enfim, despropositados e tudo o mais. E vieram os russos. Realmente começou pelo prazer. Depois, a leitura me ampliou o conhecimento do mundo.

Livros marcantes

Acho que foi o Madame Bovary. De uma outra realidade, completamente diferente. E Os irmãos Karamázov. Esses dois livros, como conhecimento, foram espantosos. Depois serviram como conhecimento para escrever romances. Quando comecei a escrever, não existiam oficinas literárias. Por outro lado, os escritores estabelecidos da geração anterior à minha - o Erico Verissimo, o Dyonélio Machado, esse pessoal - tinham muita dificuldade de entender essas coisas. Eu disse:
"Eu tenho de aprender".

Lia muito o Autran Dourado, um belo escritor. E telefonei para o Autran, consegui o telefone dele, miraculosamente, e disse:
"Olha, eu gostaria de fazer uma visita".
E ele:
"Por quê, meu filho?"
"Para discutir alguns romances seus."
"Que curioso", ele disse. "Pode vir hoje de tarde."
"Não, estou em Porto Alegre."

Marcou para uma semana depois. Eu fui de ônibus até o Rio, era um jovem estudante. E o Autran me recebeu muito bem. E fui com os livros dele todos, todos anotados. Muitas coisas ali que eu queria esclarecer com ele. Por que ele usava só o verbo dizer? Perguntei para ele. Fulano disse, disse Fulano, disse a personagem.
"Por que é que o senhor usa só o verbo dizer?"
E ele:
"Ah, você se deu conta disso? Até agora ninguém se deu conta. O que é muito bom. Só uso o verbo dizer porque ninguém o lê. Se eu escrever ‘respondeu, resmungou, exclamou', aparece o meu truque".

O início como leitor

Aos 17 anos, estava fazendo o curso clássico. E no terceiro clássico, nós líamos Lamartine, Victor Hugo, tudo no original. Não se estudava mais a língua portuguesa porque já sabíamos a língua portuguesa. Estudávamos literatura francesa, literatura inglesa. Lemos todo o Paradise lost, do Milton. Foram sete anos de latim, quatro anos do ginásio e três do clássico, com três horas semanais. Então, isso foi realmente decisivo para mim. Minha mãe era musicista; meu pai, veterinário.

O livro não era uma presença muito forte na minha casa, mas na escola sim. Foi lá que tudo começou. Aí comecei a fazer redações e todo mundo gostava. E também, mesmo no curso mais elementar, no curso primário, também eu fazia umas redações boas e havia muito incentivo. Interessante é que em 1956, quando se comemorou o cinqüentenário da aviação, em todas as escolas da rede pública do Rio Grande do Sul, houve um concurso de redação. Todos os estudantes da rede deveriam fazer uma redação no mesmo dia. Ganhei o primeiro lugar. Eu tinha 11 anos. E foi realmente a escola que me levou a isso. Aí veio esse concurso e abandonei a literatura aos 11 anos. Porque eu não tinha mais nada para dizer.

A carreira de músico

Eu era músico da Sinfônica e era músico de estante. Quer dizer, de estante. Então eu tocava ali, na segunda estante, não estava tão longe, mas nem tão perto do maestro. Sinfônicas têm hierarquias muito fortes, os músicos que tocam mais próximos do maestro são teoricamente os que tocam melhor e, portanto, ganham mais. E aí a coisa vai se tornando mais rarefeita. Eu estava ali na segunda estante dos violoncelos. Mas aquilo me incomodava muito. Claro, eu estudava muito, procurava desempenhar bem, mas tinha consciência de que nunca seria um solista, não tinha talento para isso. Os verdadeiros artistas são o compositor e o maestro. O músico é o executante. Aquilo me deixava insatisfeito, porque eu ficava ali entre a criação do compositor e a interpretação do maestro. Onde é que eu fico?, eu perguntava. Aí a literatura voltou. E assumiu uma proporção maior. De modo que eu posso dizer mais com a literatura do que com os meus modestos recursos de músico.

Espaço na literatura

Eu parto do princípio de que na literatura há espaço para todos. Quem gosta de conto, romance, crônica, poesia terá o seu autor preferido. E mais: esse autor preferido é sempre rotativo. Por exemplo, o meu preferido agora é o Pascal Quignard. E chegará um momento em que direi que ele não me diz mais nada.

Na literatura, há mais espaço para todos. E eu noto, ultimamente, especialmente entre jovens escritores, um pouco dessa competição que, às vezes, é até um pouco desleal, mas sinto neles uma determinação que a minha geração não tinha. Eles querem ser escritores. E entram para a oficina e dizem:
"Assis, estou aqui porque quero ser escritor, vou abrir mão de tudo para ser escritor".

Isso não havia. Não. Era: O que vou fazer? Primeiro, achar um emprego para mim. Foi um pouco do que eu fiz. Fiz um curso de Direito. Depois, dar aulas na universidade. Foi uma coisa certa. Mas o fato é que era assim. O Moacyr Scliar é médico. Então todos têm uma profissão decente, têm que ter. De modo que os jovens escritores não pensam assim. Não vou ter um emprego que vai me tirar cinco ou seis horas de prática da minha escrita. Acho interessante, mas é uma opção arriscada.

O ritmo da escrita

Tem uma passagem do Confissões em que Santo Agostinho diz assim:
"Eu estranhava muito porque, quando chegava para ter aulas com Mestre Ambrósio, ele estava olhando para um texto, mas lia com seu coração, porque sua boca não se movimentava".

Então, muitos atribuem a Santo Ambrósio esse aperfeiçoamento que a gente adquiriu, essa conquista da leitura silenciosa. Aliás, isso no desenvolvimento da própria existência humana também é assim. A criança, quando começa a ler, lê sempre em voz alta. Depois lentamente adquire a leitura silenciosa. Então, nós lemos, guardamos dentro de nós resquícios dessa leitura em voz alta. Eu estou por vezes acompanhando com a respiração, e pensando em finais de livro, quando penso: o compositor Rachmaninov assinava seus finais de música sempre com pan-pan-pan-ran-ran.

Eu também tenho procurado isso, especialmente nas últimas frases dos meus livros, gosto de dar uma cadência. Pena que eu não tenha de cor os meus livros, mas, me lembro de O pintor de retratos, por exemplo, em que eu mais trabalhei. Fiquei uma semana com aquela frase final no computador, sozinha, e eu ia e voltava, e mexia, colocava uma palavra, tirava outra e cheguei numa coisa assim:
"E com olhos que tanto viram e tanto amaram, percebeu a solidez terrestre dos campos e a placidez eterna das luzes".

Aí, achei. E tem aquela passagem, tem uma passagem clássica que é uma carta que o Flaubert escreveu para aquela sua apaixonada eterna. Ele estava publicando em folhetim Madame Bovary, antes de publicá-lo em livro, e na carta ele diz assim:
"Imagine que recebi aqui aquele diretor de jornal que veio me pedir humildemente que eu tirasse o nome do seu jornal do meu livro, quando fosse publicá-lo. Eu fiquei indignado com aquele homem. Isso é coisa que se faça?"

Bom, tudo bem. Flaubert está se queixando do cara interferir na criação dele, a gente pensa. Mas aí ele termina assim:
"E as minhas frases, como é que vão ficar?"

Ele estava pensando no ritmo daquelas palavras! Ele construiu frases a que esse ritmo pertencia. Há gente que pensa que o ritmo é só da poesia. Não é. Isso eu vejo com meus alunos.

O escritor e o teórico

Eu vivo literatura 24 horas por dia. Ou dando aula de literatura ou escrevendo. É uma coisa boa. Mas na hora de escrever, procuro fazer com que isso [a teoria literária] não atrapalhe. Mas às vezes, se eu me descuido, realmente me atrapalha. E vou me dando conta. De onde é que surgiu aquilo? Aí vêm aquelas categorias teóricas e tal. Mas tem um dado aí que eu acho muito importante.

Hoje, os escritores estão saindo das universidades. Saem, não se retiram das universidades. Pertencem à universidade, são oriundos da universidade, são acadêmicos. É uma tendência mundial. Veja os escritores americanos, pode pegar qualquer um desses aí, são professores da universidade não sei o quê. Mesmo que seja professor de escrita criativa. Então, os escritores hoje são pessoas ligadas à universidade, que podem refletir sobre o seu próprio trabalho. Há uma maior sofisticação, no mau sentido, do texto, e talvez uma diminuição no número de leitores. Quando a gente vê a chamada literatura pós-moderna, que é sem personagem, sem intriga, sem conflito, sem nada... E depois se queixam de que não têm leitores. É quase sem literatura também! Então não dizem nada, mas nada, rigorosamente nada. Então, normalmente vamos encontrar o acadêmico. Tem essa dupla face da coisa. Ela é boa por um lado, mas é má por outro. Porque esses escritores muitas vezes perdem a vitalidade literária. Aquele componente de certa perversidade, que o escritor tem de ter. Desaparece um pouco. Vira uma coisa meio anódina. E a gente não sabe bem o que está acontecendo, qual é o ponto, o problema, o que está sendo discutido. E muitas vezes não está sendo discutido nada. E eu não penso como Benjamin, quando ele dizia que mesmo a literatura intimista é social na medida em que revela um desconforto do criador. Não acredito nisso.

A morte

A morte é um dos pratos preferidos da literatura. O que aconteceu comigo foi isto: fiquei muito doente. E isso foi há muitos anos. Há mais de três décadas. E eu estava muito mal, precisei ir para o hospital, e estava com um diagnóstico errado, foi uma coisa horrorosa. Um amigo meu, médico, fez umas radiografias, e disse:
"Olha vou ter de fazer uma cirurgia agora".
Eu disse:
"Bom, mas o que tu pensas sobre isso?"
Ele disse:
"Não sei. Estou confuso. Vou ter que intervir".

É duro ouvir isso. Foi uma coisa terrível. Quando acordei, tive aquela sensação: morri, estou no céu, tudo branco em cima, luzes diretamente nos olhos, uma coisa horrorosa. Aí me dei conta de que havia sobrevivido. Naquele tempo, a recuperação cirúrgica era uma coisa lenta. A gente ia para casa e ficava três meses ali, era um horror. E eu estava na orquestra. Via minha mulher sair para trabalhar, minha filha sair para a escola e eu sozinho em casa. Bom, pensei, vou enlouquecer. Tem aquela coisa: depressão pós-cirúrgica. Eu tinha algumas idéias e resolvi pô-las no papel. E aquilo me reacendeu o gosto pela vida. E terminei aquilo e pronto. Nem sabia o que era. E achava uma coisa ruim. Possivelmente era. Até que minha mulher disse:
"E aí, terminaste o livro, e o que tu vai fazer?"
E eu disse:
"Nada, é muito ruim".

Aí ela leu. Ela é uma mulher muito veraz, uma pessoa rara, cruelmente veraz, e ao mesmo tempo é uma leitora excelente. Leu e disse:

"É, realmente não é uma obra-prima. Mas pode ser publicada. É um primeiro livro".
"É, mas mesmo assim, não vou publicar", respondi.

E deixei numa gaveta. E aconteceu. Passados uns três ou quatro meses, recebi uma carta do Instituto Estadual do Livro. Abri e estava escrito assim:
"Caro escritor. Viemos comunicar que seu livro foi aprovado para publicação".

Foi uma traição da minha mulher. Ela tirou uma fotocópia do livro, escondida, e o mandou. Então não é o que eu vejo nos meus jovens alunos. Eu quero ser escritor. Quando penso nos escritores da minha geração, o Sérgio Faraco, o Luis Fernando Verissimo, o João Gilberto Noll, nenhum de nós teve a intenção de ser escritor.

Método de criação

Meu terceiro livro, Bacia das almas, cheguei a escrever 22 páginas num dia. É uma estupidez, uma irresponsabilidade total. Hoje, escrevo cada vez mais lentamente. Cada palavra, eu penso muito antes de pôr no papel. É possível que com isso se perca muito da vitalidade da obra. Acho que ela ganha esteticamente. A partir dessa minha preocupação, que eu acho que começou com O pintor de retratos, é que passei a ter premiações que não tinha antes. O Portugal Telecom, o Jabuti... Ocorreram depois de uma alteração estética bastante forte que eu tive com O pintor de retratos.

Eu estava insatisfeito com o que escrevia. Eram períodos gramaticais muito longos. Muita utilização de ordem inversa. Um certo barroco de que muitos gostavam. Meus leitores antigos gostavam daquilo. Mas eu estava insatisfeito. Mas eu tinha de mudar. E por uma razão acadêmica, eu tive que reler um livro que eu havia lido no Colégio Anchieta, Cantares Del Mio Cid. Abri o livro e disse:
"Mas era isso que eu procurava".

É uma linguagem medieval, um dos romances mais importantes desse período medieval. Então El Cid andou durante toda a tarde. Ponto. Trouxeram-lhe dois cavalos. Ponto. Eles escreviam pouco porque o material de escrita era muito caro, então tinham de comprimir muito. O pergaminho era muito caro. Não só as palavras eram abreviadas. O próprio texto ficava enxuto. Os capítulos são pequenos. Vinte linhas. Eu disse:
"Claro, ele já descobriu isso há 800 anos".

Aí é que está. E me lembrei das histórias da Bíblia. São modelos de contenção, de encarceramento da palavra, de essencialidade, fundamentalmente. Se tirar uma palavra da frase, ela não existe mais. Então, eu disse:
"É isso. Eu preciso recuperar essa essencialidade original da literatura".

Não minha, mas da literatura. Porque a Bíblia consegue transformar o mundo dessa forma. Os Cantares se tornam uma obra de referência do cânone do ocidente. Conseguem emocionar. É muito simples. Eu estava escrevendo demais. Então passei a escrever menos. Meus romances se tornaram menores. Meus períodos gramaticais se tornaram menores. Não há excessos. Exceto excessos deliberados. Posso fazer um capítulo inteiro sobre um movimento de uma pluma, sobre a cabeça de um cavalo. Excessos deliberados. Porque um livro pode ter 80 páginas e ser excessivo. Pode ter 600 e ser essencial. Então, a coisa passa pela linguagem. E depois eu assumi essa alteração, digamos, lingüística, frasal, que também é uma alteração de conteúdo. Mas isso me leva a escrever muito mais lentamente, pensar muito, cada palavra é muito importante, então eu penso nos sinônimos... Aí não são só sinônimos, como a gente sabe. Achar a palavra que diz exatamente a coisa que se quer dizer.

Procuro trabalhar com substantivos concretos, adjetivos concretos. Se for tratar com abstrato, coloco um adjetivo abstrato junto com um substantivo concreto. Cria-se uma realidade nova. Pronto. Transforma-se uma coisa banal em algo original. Eu proponho muito isso aos meus alunos. [...] Vejo colegas meus que pegam os livros e retocam, em edições. O Josué Montello retocou e retocou e retocou seus livros. Se desfiguraram. Eu nunca poderia fazer isso. Não consigo. E quando abro um livro há sempre uma barbaridade. Coisas que me incomodam e tal. Então, até nem os tenho na minha estante. Estão num armário. Claro que isso deve ter uma explicação mais profunda. Onde eu não quero chegar. Mas, na verdade, o livro que estou escrevendo sempre é o melhor. Aliás, vou dar um conselho: quando forem elogiar um livro de um escritor, nunca digam que o primeiro livro dele é o melhor, nunca. Nem que o do meio é o melhor. Vocês têm de mentir. Têm que dizer:
"O último livro é o melhor de todos, é o seu melhor livro".
Mas se quiserem aperfeiçoar isso, digam:
"O melhor é o que você está escrevendo agora, esse será melhor ainda".

Adaptação para o cinema

Nos três casos quiseram que eu lesse o roteiro. Não li. Em primeiro lugar, porque não vão me pagar por isso. Já começa por aí. Segundo, que eu não entendo. E em terceiro, eu tenho preguiça e quero ter a surpresa de assistir e ver como é. E também me convidaram para assistir a um dia de filmagem.

O Luiz Carlos Barreto tanto insistiu que eu assisti a um dia de gravações. E não deveria ter feito isso. Até porque o que eu assisti não foi posto no filme [A paixão de Jacobina]. O diretor tem todo o direito de fazer o que bem entender. Ele tem de ter uma fidelidade só, que é a fidelidade a si mesmo. Realizar um bom filme. Antes de mais nada, o filme tem de ser bom. Se é fiel ou não ao livro, é uma questão secundária. Eu não me considero o proprietário. O título do filme mudou de Videiras de cristal para A paixão de Jacobina. Eu achei interessante, até melhor que o meu título. Aí o meu editor me telefonou. Me disse:
"Assis, é o seguinte..."
E estava cheio de onda para falar.
"O que é? Não tem dinheiro para me pagar?"
"Não, a gente está pensando sobre Videiras de cristal, em função do filme..."
"Qual é o problema?"
"Não é que a gente... Não te importarias se a gente pusesse assim A paixão de Jacobina e, embaixo, Videiras de cristal?"

Aí eu estava assim, no telefone, e minha mulher, no computador. Eu relatei isso, isso e isso a ela, o que tu acha? Ela ergueu os ombros e continuou escrevendo.
"Vai ser bom para a editora?", perguntei.
"Sim! Vai vender mais", disse o editor. E o editor se animou. "E, aí, vai ter mais direitos autorais para você ganhar."
E eu:
"Mas não vai ficar chato depois?"

E me lembrei de uma coisa ridícula: a ficha catalográfica nas bibliotecas. E ele:
"Isso não é problema. Não é mesmo".
Mas daí, um pouco de pudor da minha parte... Disse:
"Então fica uma edição assim. Depois a gente volta para o título antigo".

A crítica

Na maioria das vezes, o leitor tem razão. Tem razão mesmo. Crítica desfavorável faz parte da trajetória de todo escritor. Alguns ex-alunos meus começam a publicar, sai um negócio, querem morrer. Eu vou lá, meio paternal. Cito exemplos históricos. Claro, não ajuda nada. Aí eu digo:
"Crítica não se responde. Não se responde. A gente se manifesta, diz que agradece a atenção, ótimo".

A melhor resposta, a meu ver, foi dada pelo Eça ao Machado quando este escreveu uma crítica pavorosa numa revista literária, O Cruzeiro, do século 19. Machado fez uma crítica pavorosa ao Primo Basílio. Não sobrou nada do livro. Machado começa dizendo que ele é o maior estilista da língua, tudo o mais... E depois vem um pau que não sobra nada. O Eça escreveu uma carta para ele, e disse que agradecia muito o interesse que ele teve em ler a obra, e enfim considerava interessante, tinha muitos pontos de vista interessantes. Porque a meu ver foi algo saudável. E não se conhece a resposta do Machado, se é que ele respondeu. Me parece muito saudável. Temos que ver isso com muita naturalidade. E não pensar assim: Não, escreveu mal e agora? Está sem razão. Não é isso. Eu já tive críticas desfavoráveis, como todo escritor. Com algumas delas, eu aprendi.

Incentivo à leitura

Eu acho que há um elemento absolutamente fundamental: o nível de vida das pessoas. No momento em que houver uma distribuição maior de renda vai se ler mais. Isso é natural. Todo país rico lê muito. A leitura ensina. Então isso tudo é um processo que deriva da condição de vida das pessoas.

Claro, aqui no Paraná, no Rio Grande, em Santa Catarina, temos uma distribuição razoável de renda, temos a maior classe média do país, a que lê. Então me parece que esse dado é muito relevante. Mas há os atalhos. Eu acho que o caso do Rascunho é um exemplo típico do que forma o leitor. Isso claramente. Suplementos literários em jornais, tudo isso é muito importante. E nesse sentido as oficinas literárias constituem um dos mecanismos a mais na formação do leitor. Em 21 anos, passaram pela minha oficina 680 alunos.

Eu fiz uma pesquisa, mas uma pesquisa realmente científica, tinha dois auxiliares de pesquisa. Dos alunos, 17% continuam escrevendo depois da oficina. Mesmo que não publiquem. E se a gente pensar que eu tenho, digamos, um número em torno de 60, 70, de ex-alunos que já publicaram livros, então são 10% que publicaram livros. Então a gente pensa assim: Bom, eu acho que é razoável. Acho bom, um nível muito bom. E os outros 90% se tornaram muito bons leitores. Então me parece que essas experiências de oficina de criação literária têm essa dupla face. Por um lado, podem formar escritores, mas sem dúvida, todos eles saem melhores leitores.

Literatura de entretenimento

O que eu penso sobre literatura de massa? Quem primeiro levantou essa questão no Brasil, a meu ver, salvo erro, foi José Paulo Paes. Um artigo que deve ter uns 30 anos, mais ou menos. E o centro da coisa era o seguinte, ele dizia:
"Nos faltam no Brasil escritores de entretenimento. Nós não temos. E por que não temos? Por que não tê-los?"

Dizia ele que os escritores brasileiros queriam ser muito artistas. E acabavam não tendo leitores. Então, nesse artigo ele dizia:
"Por que não o escritor brasileiro fazer um livro que a pessoa leve para ler na praia e depois jogue fora?"

Na época, eu ainda não tinha visto alguém falar isso, alguém daquela representatividade. Aquilo me impressionou. Tenho amigos que pensam de maneira diferente. Meu argumento, entre outros, é: normalmente essa literatura de massa vai dar origem a leitores mais exigentes. Eu penso isso. Eu tenho exemplos muito próximos a mim em que isso aconteceu. Essa literatura de massa acaba dando reforço de caixa para editoras poderem publicar outros autores, não tão vendidos. Isso é relevante. Acho muito relevante. Para a indústria cultural é importante. Então é assim: é preferível que a gente veja um livro desses na mão de um leitor, do que livro nenhum. Não sou contra. Não é o que me satisfaz realmente. Já sei o que vai acontecer dali a 20 páginas. Depois já sei. Pronto. Tudo construído em cima de clichês narrativos, não é? Mas são eficientes. Os americanos já descobriram isso. Eles usam muito esse conhecimento que a literatura produz. Eu vejo isso com muita naturalidade. Não sou contra. Não leio, ou leio quando sou obrigado.

Agente literário

No sistema literário brasileiro, só agora estão começando a trabalhar os agentes literários. É algo extremamente novo e necessário. É o agente literário que vai procurar o editor. O agente vai mandar fazer uma tradução para o inglês de um capítulo do livro, mandar para as editoras, que não lêem em língua portuguesa. Lêem em espanhol ou em inglês.

O agente literário é muito importante. Nós vivemos numa situação, no nosso país, que foi bastante prejudicada pela Semana de Arte Moderna. O escritor brasileiro, se a gente pensar aí no Machado, mesmo no José de Alencar, se pensar no Monteiro Lobato, se pensar numa geração um pouco posterior, vamos ver que eles já estavam desenvolvendo uma relação profissional com suas editoras. Na Semana de Arte Moderna, como aqueles meninos eram todos milionários, eles acabaram criando uma coisa promíscua em relação ao escritor, não estavam interessados em profissionalismo. Isso contaminou a vida literária brasileira. Agora é que estamos saindo disso. Com agentes literários. Por acaso, no Brasil, são mulheres. São todas mulheres. Aliás, uma das maiores agências literárias do mundo é de uma mulher, da Carmen Balcells. Mas enfim, eu acho que a entrada do agente literário no sistema literário brasileiro está sendo muito benéfica. Agora mesmo vim lá da Flip, de Paraty, e pude perceber o trabalho dos agentes literários. Vão atrás do editor, oferecem um jantar, oferecem, negociam, discutem contratos. Coisa que o escritor sempre teve pudor de fazer.

Fonte:
Jornal Rascunho. http://rascunho.rpc.com.br/

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VI



Henrique Heine é considerado o segundo maior poeta alemão do século passado e o maior poeta judeu de língua alemã, em qualquer tempo. O primeiro, naturalmente, é Goethe, que, de resto, velho e consagrado, não deu a mínima atenção ao seu conterrâneo.

Sua origem criou alguns problemas para Hitler, mas não para Ezra Pound, que o admirava e traduziu, neste século finalizante. Foi contemporâneo de Byron 1 e, pode-se dizer, byroniano, pelo cinismo anti-romântico e pelas posições políticas rebeldes e revolucionárias, mas superou-o pela finura e precisão de sua arte poética. Converteu-se ao catolicismo e ao protestantismo, seguindo conveniências; foi amigo de Karl Marx, criou o famoso slogan “A religião é o ópio do povo “, encontrou abrigo na Paris das lutas republicanas, expulso da Alemanha pela política prussiana.

Sua prosa narrativa de viagens e suas canções tornaram-no famoso antes dos trinta anos, bastando dizer que o seu livro de canções teve treze edições enquanto ainda era vivo, canções essas que foram musicadas por Schubert e Schumann, entre outros.

Em 1848, data de publicação do Manifesto Comunista , em visita ao Museu Louvre, em Paris, sofreu um desmaio diante da Vênus de Milo: era a sífilis medular que o mandou para a cama durante oito anos, enquanto duas mulheres se picavam ao seu redor, pela grande fama e pequena fortuna, por conta de seus poemas românticos, como a jóia que coletamos de sua obra :

Violeta - brilho dos olhos
Lírio - brilho das mãos
Rosa - brilho das faces
Violeta, rosa, lírio :
Flores do coração secas.

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é o demoníaco anjo loiro da poesia ocidental moderna e um dos maiores mestres da poesia de todos os tempos (Décio Pignatari, p.130). Amigo de Baudelaire, foi um nômade que rompeu as convenções poéticas, estéticas e sexuais de sua época.

Nascido em Charleville, pequena cidade do interior da França, nas Ardenas, fugiu de casa pela primeira vez, aos dezessete anos; nessa e em muitas outras ocasiões, nos rolos que apresentava em suas andanças, resgatado pela mãe (por quem, de resto, não nutria estima qualquer). Em 1862 ingressou no Collège Charleville e em 1870 fez amizade com seu professor de retórica George Izambard. Em 1871 escreveu ao amigo Paul Demeny a “ Carta do Vidente “, seu manifesto poético e existencial. Rebelde, ateu, antimonarquista, não tardou a mandar-se para Paris, novamente, a Paris da Comuna, à qual aderiu, embora estivesse em Charleville, quando os communards foram esmagados.

Como que entediado, escreveu suas primeiras obras-primas com dezessete anos, tais como Ma bohème e Cabaret vert. Como se isso fosse pouco, pouco antes de completar dezoito anos compôs Le bateau ivre (O Barco Bêbado), um de seus poemas mais surpreendentes e famosos, ao lado do poema em prosa, Une saison en enfer (Uma Temporada no Inferno), que compôs e publicou às suas custas.

Em 1872 fugiu para a Bélgica com seu amigo poeta Verlaine, dez anos mais velho e que abandonou a mulher grávida e saiu pelo mundo, seduzido pelo anjo loiro. Em seguida partem para a Inglaterra onde, juntos, levaram uma vida miserável, entre disputas, discussões, tiros e cacetadas. Em Paris, dois tiros, um fere-lhe a mão : dois anos de cadeia mais multa. Em 1875, viveu em Stuttgart, na Alemanha, onde escreveu seus manuscritos famosos de Illuminations. Depois de viajar pela Áustria e Holanda, retornou, retornou à Alemanha e trabalhou como intérprete do Circo Loisset, excursionando pela Suécia e Dinamarca.

Rimbaud é um grande entre grandes, os grandes eram todos simbolistas e levavam o nome de Baudelaire, Mallarmè, Corbière, Verlaine. Em sua vida nômade, conheceu Alexandria, trabalhou no Chipre e visitou o Oriente Médio. Realizou expedições, comercializou peles, marfim e chegou a traficar armas e escravos na África. Segundo Rodrigo Garcia Lopes (1996 : 164), a poesia do trajeto de Rimbaud reflete a velocidade e pressa de ver e viver tudo ao mesmo tempo :

“ ... suas idas e vindas a Londres, suas vadiagens por Paris, Bruxelas, Stuttgart, no período de redação de suas famosas Iluminuras, acabaram fazendo com que o dinamismo também se revelasse a nível textual. O poeta insistia na Ação; ler, escrever e pensar caminhando, incorporando ou coletando os dados tal como acontecem durante o trajeto embriagado pelas ruas em que se “caça crônicas” como se fosse um “cavaleiro selvagem ”.

Rimbaud morreu em dezembro de 1891, vítima de um tumor cancerígeno no joelho direito agravado por uma antiga sífilis e depois de ter uma das pernas amputada. Há um século o poeta vêm apaixonando e alimentando diversas gerações de leitores sendo capaz de influenciar escritores tão diferentes com Proust, Ezra Pound, Samuel Beckett e Jim Morrison. Um pouco de sua obra, hoje parte integrante e fundamental na poesia universal :

MARINHA

As carroças de cobre e prata -
as proas de prata e aço -
Espalmas espumas, -
esgarçam macos de sarças.
As correntezas da roça,
E os sulcos imensos do refluxo,
fluem em círculos rumo a leste,
rumo às hastes da floresta, -
rumo aos fustes do quebramar,
cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz .

Aos 33 anos estava de cabelos brancos. Aos vinte, não era mais poeta. Nesta década corrente, no centenário de sua morte, foi lembrado e muito comemorado, onde quer e por quem que tivesse interesse real pela poesia do planeta Terra. Rimbaud foi um dos seus melhores representantes.

Ralph Waldo Emerson, ensaísta, professor e poeta, foi um dos grandes expoentes da literatura norte-americana do século XIX. Depois de abandonar o trabalho como prelado da igreja unitarista, passou a residir em Concord, Massachussetts, onde se tornou figura central entre os transcendentalistas.

O verdadeiro evangelho do grupo, apresentado em seu ensaio Nature (1836), mereceu pouca atenção, mas com os discursos O Erudito Americano (1837) e O Endereço da Escola Divin (1838), despertou muita polêmica. A publicação dos primeiros volumes de Ensaios (1841) e Poemas (1847), e de Homens Representativos (1850), resultou em grande prestígio dentro e fora dos Estados Unidos. Emerson foi o maior pensador do chamado “renascentismo americano” de meados do século XIX.

Em seus Ensaios sobre Auconfiança, História, Leis Espirituais e Amizade entre outros, Emerson despeja toda sabedoria de um homem consciente dos valores da vida e maturidade suficiente para orientar uma multidão de pessoas. Todos eles são iniciados por um poema de maior profundidade que o outro e em simples há muito mais verdades que nas centenas de páginas restantes, tal como o abertura do ensaio Prudência, que transcrevemos a seguir:

“ Nenhum poeta cantou de bom grado um tema
caro aos velhos e infame aos jovens,
nas desdenhes o amor pelas vozes na melodia
nem os objetos das artes.
A grandeza da perfeita esfera celeste
deve-se aos átomos que juntos se mantêm”.

O sensível polonês Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire–Kostrowitzky é o maior poeta francês do Século XX, ao lado de Paulo Valéry, que representa a sensibilidade antiga, simbolista e pós-simbolista. Imerso nas vanguardas artísticas do início do século, tais como cubismo, futurismo e orfismo, é um poeta confluente e defluente. Confluem Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Oswald de Andrade.

Segundo Décio Pignatari (1996 : 132), talvez o projeto mais revolucionário de Apollinaire esteja menos nos seus caligramas, mesmo ambiciosos, como o de Lettre Océan, do que na paratatização sistemática, que ele chamava de simplificação sintática, cujo melhor exemplo é o de As Janelas, inspirado num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, da autoria de Robert Delaunay.

Filho de uma aventureira e de um padre, viveu na França estranhas e tumultuadas peripécias, que incluem involuntária receptação de estatuetas roubadas do Louvre, composição de anônimas obras pornográficas e reiterados casos de amor conflituosos, o mais célebre dos quais com uma aristocrática quarentona hunguenote, Louise de Coligny-Châtillon, a Lou (loup = lobo) de seus poemas ( repelido, engaja-se no exército francês, como artilheiro, e vai para a guerra; a moça, patrioticamente tocada pelo seu gesto, vai ao seu encontro, mas o namoro dura poucas semanas: apavorada com a truculência erótico - amorosa do poeta, rompe e foge). Naturalizou-se francês, foi ferido na cabeça, condecorado, passou por uma trepanação, apanhou uma pneumonia e deu-se bem, mas não escapou da gripe espanhola, que o matou a poucos dias do armistício. Foi dos primeiros poetas a registrar poemas em disco. Retratado por Picasso, o Douanier Rousseau, Marie Laurencin (também sua namorada) e Vlaminck.

Seus poemas, escritos sem pontuação, revelam uma clara tentativa de vanguardismo, tanto na forma quanto no conteúdo, a exemplo do que transcrevemos a seguir , em seus Versos a Lou :
[ . . . ]
Os ramos que se agitam são seus olhos que tremem
Vejo você em toda parte você tão bela tão terna
Os pregos dos meus sapatos brilham como os seus olhos
A vulva das jumentas é rosada como a sua
E nossas armas engraxadas são como quando você me quer
A doçura da minha vida é como quando você me ama . . .

Outro poeta de maior importância no desenvolvimento da poesia foi o norte-americano Thomas Stearns Eliot , nascido em 1888, naturalizado cidadão britânico e morto em 1965 e, seguramente, a mais potente influência moderna dos domínios da crítica da poesia e talvez o mais discutido e comentado poeta da modernidade.

T. S. Eliot trouxe ao espírito a idéia de Henry James, procurando na Inglaterra uma tradição que não encontrou na América, a preferência pela ilha. Tal tradição, que ele iria investigar nos clássicos greco-latinos e nos pilares da literatura inglesa; desde Chaucer e Milton, Dryden e Coleridge, ele trouxe para a sua própria poesia, toda ela eminentemente alusiva. Por outro lado, criou a idéia da “poesia dos poetas” chegando a certas obscuridades - como as que se encontram em The Waste Land (A Terra abandonada), o poema mais influente do século.

A elite cultural freqüentemente considera a possibilidade de que seus versos resistirão mais ao tempo que os de Ezra Pound, também criptógrafo de sua poesia. É que perpassa pela poesia de Eliot um sopro às vezes mais liberto e espontâneo que a atmosfera freqüentemente irrespirável do Pound dos Cantos.

Os ensaios de Eliot são verdadeiros clássicos da modernidade, deles derivando inúmeras expressões e conceitos que balizaram grande parte da crítica e da teoria literárias desde então. Eliot também tentou também um revival do drama em verso.

O pequeno trecho do poema A Canção de Amor de J. L. Prufrock que aqui transcrevemos foi aquele com que se lançou na poesia - já estribado em uma epígrafe de um poeta que marcaria muito os seus passos - Dante (Referimo-nos aqui ao poeta italiano Dante Alighieri, pelo qual Eliot tinha grande admiração e que terminou por influenciar todo seu pensamento poético) - o que desde já reflete um recurso freqüente na técnica eliotiana, ou seja, a mesclagem do coloquial e do elevado, que tanto o caracterizou :

Vamos, pois, você e eu,
quando o entardecer se expande contra o céu
como um paciente anestesiado na mesa;
vamos por certas ruas quase sem passantes,
os refúgios murmurantes
de inquietas noites nos hotéis baratos de uma só dormida
E restaurantes cheios de serragem
que as conchas de ostra vai unida :
ruas que seguem como debates tediosos
com objetivos insidiosos
de levá-lo a uma pergunta esmagadora . . .
Oh, não diga “qual, essa questão esquisita ?”
Continuemos, façamos nossa visita.

Seu poema A Terra Devastada, enigmático e dividido em cinco partes, reflete a experiência fragmentada do homem urbano do século XX . A obra tornou-se um marco do modernismo e fez de Eliot um porta-voz de uma geração secularizada e desiludida. A partir de 1925, reuniu um grupo de poetas, inclusive Auden, Spencer e Pound, que representou a principal corrente do moderno movimento poético.

Eliot exerceu grande influência como crítico e poeta. Entre seus vários livros de crítica está O Bosque Sagrado: Ensaios sobre Poesia e Crítica (1920). Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948. Entre os grandes mestres da literatura universal e mais influentes na língua portuguesa destacamos Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Filho de família burguesa, foi criado na África do Sul, fazendo do inglês sua segunda língua. De volta a Lisboa, abandonou os estudos universitários para tornar-se autodidata. Ganhava a vida como correspondente de casas comerciais, até que em 1912 publicou os primeiros ensaios de crítica da moderna poesia portuguesa, na revista A Águia.

O ano de 1914 foi decisivo para a evolução literária de Fernando Pessoa; nesta data nasceram os três principais heterônimos, personalidades distintas a quem o poeta atribuiu a autoria de suas poesias, em estilos bastante diferentes, mas que apresentam a unidade no que diz respeito à natureza psicológica enigmática de cada um. São eles : Alberto Caeiro , observador irônico, autor dos ciclos O Guardador de Rebanhos e Poemas Inconjuntos ;Álvaro de Campos, influenciado por Walt Whitman (Poeta norte-americano do século passado que exerceu grande influência na poesia de seu país liberando seus seguidores das convenções formais), canta a cidade moderna e a técnica em Tabacaria, Ode Triunfal e Ode Marítima ; Ricardo Reis compõe odes bucólicas e elegíacas. As poesias assinadas com o próprio nome são mais simples e cheias de emoção, como O Último Sortilégio e Autopsicografia. Seus poemas apareceram nas revistas Orfeu, Portugal Futurista e Presença, das quais participava com o círculo de amigos.

Apenas com a publicação das Obras Completas, em 1943, teve início a sua influência sobre as novas gerações de poetas, inclusive no Brasil. Fernando Pessoa é tido como o maior poeta português desde Camões. Duílio Colombini foi um dos maiores especialistas brasileiros em Fernando Pessoa e, durante vinte anos, lecionou em diversas faculdades e universidades, entre elas a USP, divulgando a obra e vida de poeta.

A seguir transcrevemos um pequeno poema minimalista de Pessoa, inserido na compilação de sua obra pelo estudioso e de grande profundidade :

Ah, tudo é símbolo e analogia !
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A realidade desta ilusão.


Outros poetas de nome internacional deveriam ser citados nesta monografia pela sua importância no mundo da poesia, mas não podemos encerrar este capítulo sem mencionar alguns poetas brasileiros que hoje gozam de todas as glórias do mundo da literatura, grandes pela coragem exercida no seu tempo, grande pelas mensagens perpetuadas nos poemas.

No Brasil, Gregório de Matos Guerra, O Boca do Inferno, é com certeza um dos autores mais controversos do período colonial e da literatura em seus primórdios. Nascido na Bahia a 20 de dezembro de 1623 (A data não é precisa, alguns historiadores datam o nascimento no ano de 1636), filho de família abastada, estudou no colégio dos Jesuítas de Salvador. Em 1650 viajou para Lisboa com o objetivo de dar continuidade à sua formação intelectual, onde se matriculou na Universidade de Coimbra, tornando-se Bacharel.

Seu prestígio literário sempre sofreu apreciáveis oscilações, e ainda hoje o consenso crítico sobre sua obra e importância no processo global da nossa formação literária não foi estabelecido. As reações em torno da sua produção variam, ao longo do tempo, e em função de vários fatores, da apologia e adesão gritante, à críticas insubstanciais, passando por avaliações insustentáveis. Gregório de Matos foi, sem dúvida, um dos maiores representantes da literatura barroca nacional. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, o que lhe valeu um sem-número de desafetos.

Hoje, porém, há quase um consenso de que foi ele o iniciador da literatura brasileira, apesar do caráter esparso de sua obra, escrita na Bahia, em Coimbra, em Angola e no Recife, lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque. Gregório de Matos se constitui num problema literário de amplas proporções, e as diversas formulações em torno de sua obra e de sua validade estética e cultural trazem embutidas matrizes e paradigmas de compreensão e avaliação da tradição e da cultura brasileira.

Para muitos é o nosso primeiro grande autor propriamente nacional, aquele que começou estabelecer o diálogo permanente - do qual se alimenta a cultura brasileira - entre o dado local e as matrizes externas; para outros não passa deu poeta de relevo e importância relativas. Independente dessas divergências conceituais e críticas é inegável que ele está incorporado de uma forma ou de outra à cultura letrada brasileira, e continua despertando interesse pelos mais variados motivos.

Como se sabe sua obra poética é basicamente dividida em dois eixos principais : a produção lírica e a satírica. A primeira foi nitidamente marcada pela temática amorosa, ou pela temática religiosa, em meio as quais repontam sempre temáticas seiscentistas por excelência.

Já a segunda oscila entre a sátira social e a sátira política, de maior ou menor abrangência, indo do geral ao particular, do dado individual às estruturas coletivas.

Seu conjunto de poemas dá bem a dimensão da produção poética e do comportamento intelectual, e mesmo pessoal, que lhe valeu o qualificativo de Boca do Inferno. Neles é possível apreciar diversas facetas do autor, e avaliar um conjunto de comportamentos e valores culturais particulares ao século XVII que gravitam em torno da questão da sexualidade, e que ainda têm razoável circulação no nosso imaginário.

Ao mesmo tempo documento histórico e obras literárias autônomas, independentemente da perspectiva pela qual forem avaliadas, os poemas têm um valor cultural e antropológico indiscutível 1, motivo pelo qual não deixamos de transcrever um trecho da sua preciosidade, enviado a umas freiras que mandaram perguntar por ociosidade, ao poeta, a definição de príapo, e ele mandou a definição em décimas :

Ei-lo, vai desenfreado,
que quebrou na briga o freio,
todo vai de sangue cheio,
todo vai ensangüentado.
Meteu-se na briga armado,
como quem nada receia
foi dar um golpe na veia,
deu outro também em si,
bem merece estar assi
quem se mete em casa alheia.

Em 1969, James Amado publicou todos os escritos que se atribuem ao poeta, em sete volumes e muito do que escreveu chegou fragmentado aos dias de hoje, mas, sem dúvida, Gregório de Matos não será ignorado jamais. Para não alongarmos demais a monografia, optamos pela inclusão da vida e obra de Gregório de Matos Guerra e, sem menosprezar os demais importantes poetas (principalmente os da fase romântica, como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu e Gonçalves de Magalhães entre outros).

Incluímos também aquele que, talvez pela maior proximidade com ele neste século, vêm provocando ao longo de cinqüenta anos um gosto maior pela poesia e literatura nacional, digno das mais tresloucadas críticas e também dos mais sinceros e honestos elogios : Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira. Drummond, como ficou conhecido no mundo todo, teve seus poemas traduzidos para mais de 25 países. Poeta e prosador, em 1930, junto com outros companheiros, fundou A Revista, que teve vida curta mas considerável influência no movimento modernista.

Seus primeiros livros, Alguma Poesia (1931), Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940) mostraram o impasse entre o artista e o mundo. Em A Rosa do Povo (1945) apresentou uma poesia de certa forma engajada. A partir de Claro Enigma (1951) registro o vazio da vida humana e o absurdo do mundo, e enriqueceu a pesquisa de novas formas da utilização das palavras. Em 1928, seu poema No Meio do Caminho, publicado em São Paulo na Revista Antropofagia, se transformou no maior escândalo literário da época :

No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.


Drummond foi um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e exerceu grande influência nas gerações que se seguiram. Tem sido traduzido para vários idiomas e consta de inúmeras antologias estrangeiras, principalmente o poema O Mundo é Grande :

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

Depois de estudar todos esses poetas, pergunto a mim mesmo : Quem foi o maior poeta dos últimos tempos ? Quem é o maior de todos ? Todos são maiores ?

Felizmente, pela mais simples e humilde interpretação, não posso julgar esse ou aquele como maior ou melhor de todos. Como já disse anteriormente, cada um teve sua importância em sua respectiva época e minha alegria maior foi saber que todos tiveram foram brilhantes à sua maneira.

A poesia universal não foi generosa com todos os poetas, mas, com toda deficiência, reconheceu tardiamente alguns e outros ainda penam no anonimato. Deixamos de citar vários nomes de grande influência no meio literário e que, certamente, poderíamos discorrer sobre eles com o amplo e farto material que tivemos ao nosso alcance.

Milton, Hartcrane, W.B. Yeats, D.H.Lawrence, Brodski, Pound, Michelangelo, Byron, Petrarca, Burns, Cecília Meireles, Fagundes Varella, Cecília Meireles, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, a lista parece interminável, mas, em verdade, é limitada, pois são mentes privilegiadas, amadas pelos seus povos e seguidores.

Os alemães continuam amando Heine e Goethe; os ingleses, Shakespeare e Auden; os franceses, Rimbaud e Baudelaire; os norteamericanos, Emerson e Eliot; os portugueses, Camões e Fernando Pessoa; os chilenos amando Neruda e nós, brasileiros, seguiremos amando Castro Alves, Augusto dos Anjos, Drummond, Thiago de Mello . . .

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001