domingo, 18 de abril de 2010

Guido Bilharinho (O Universo Fechado de Cornélio Pena)



introdução

A obra ficcional de Cornélio Pena (Petrópolis/RJ, 1896 - Rio de Janeiro/RJ, 1958), é singular dentro da literatura brasileira. Com apenas quatro romances e fragmentos de outro, constitui fato isolado e inédito até, pelo menos, seu aparecimento, em conseqüência de características e peculiaridades que a compõem e distinguem. Essas particularidades, por sua própria natureza, isolando-a de qualquer conotação, aproximação ou similitude com a ficção brasileira anterior, simultaneamente a tornam fechado microcosmo. Mundo que exige, para completo desvendamento e total revelação, atenta leitura. Enorme soma de significações subjaz irrevelada, refratária a qualquer abordagem ligeira, demandando estreita identificação do leitor com a obra.

O quadro significante subjacente, no entanto, não deriva de relacionamentos ou alusões culturais nem implica em qualquer simbolismo. Dentro dos próprios limites do levantamento temático reside sua significação.

É obra inteiriça, compacta, densa, superior a quase tudo feito antes e depois dela no Brasil. É a marca de um artista que não se julga escritor, mas que, assoberbado por fantasmas interiores e oprimido pelo drama de seus antepassados, escreve romances ímpares e, em muitos sentidos, pioneiros na literatura brasileira, como foi notado desde o aparecimento de Fronteira (1936).

Figura humana singular, carregada de dignidade, Cornélio Pena vive, em muitos pontos, algumas das comoções íntimas que povoam densamente as mil e tantas páginas de seus romances. As confissões que faz indicam que muitas dessas perturbações pessoais refletem - em quem as consegue, de um modo ou de outro, superar - as mesmas causas traumatizadoras de suas personagens, algumas das quais encarnam antepassados do próprio Autor. Daí a atormentada autenticidade de sua ficção.

universo fechado

Estruturada a partir de decadência da classe a que pertencem as personagens, a obra de Cornélio Pena retrata universo fechado, isolado da dinâmica da sociedade em desenvolvimento. A ascensão de novas forças sociais, implicando em automático declínio daquelas que estão na direção do processo econômico e social, produz a lenta e dolorosa agonia destas até seu completo aniquilamento. A substituição de umas pelas outras faz-se normalmente de maneira vagarosa e de certo modo é imperceptível, porém, inexorável. Esse procedimento penoso, principalmente para a classe em descenso, sendo lento e despercebidas e incompreendidas suas causas, efeitos e implicações, gera, no grupo que decai do governo do processo histórico, marginalização total (econômica, social, psicológica) do indivíduo que o compõe, que se encerra e se isola na atmosfera social e mental de cosmo outrora em atividade, agora, porém, morto, inexistente, petrificado em restos ainda palpáveis, física e memorialmente, mas carentes de vida, autonomia e sentido.

Assim, ainda em contato com as sobras materiais de status econômico e social anteriormente dinâmico e prevalecente, esse indivíduo, vivendo num presente superador daquela situação pretérita, ou seja, já vivendo num e de um mundo materialmente apartado, move-se e agita-se em esfera particular, eis que da categoria social declinante em que se insere, separada e à parte do normal desenvolvimento da sociedade. Vive num meio social e psicologicamente fechado, refratário a contatar com o ambiente externo, em movimento e em processo, justamente características que, por impulsionadoras, suplantam e, em conseqüência, segregam o universo das personagens.

a incompreensão do mundo

Insuladas, marginalizadas por incapacidade individual de superação da queda de seu grupo social e inadaptação aos tempos ocorrentes, tão diversos dos “tempos” passados, as personagens de Cornélio Pena não compreendem e não entendem o mundo presente, que não é mais o seu.

a incomunicabilidade

Enclausuradas em ambiente limitado, desentendendo a realidade, essas personagens perdem-se na impossibilidade de comunicação, não só com a época atual, como, mais grave, entre si mesmas. Carecendo de sentido seu próprio mundo morto, sem ter qualquer perspectiva social ou individual, nada há que as una entre si, seja na realização de projeto existencial, seja mesmo na preservação do próprio status. Não há futuro possível e nem meios e modos de impedir seu ocaso.

solidão e Angústia

Pouco ou nada resta. A conseqüência é a solidão completa, uma “vida interior sombria” (Repouso, 1948, cap. XIII). O ser humano perdido e só em sua condição particular, repleta de fantasmas e obsessões múltiplas, sobrevindo, como corolário, angústia e sofrimento.

paroxismos do sofrimento

Há personagens, no entanto, que ultrapassam, em seu isolamento, incomunicabilidade, solidão e angústia, os limites condicionadores de sua mutilação existencial. Excedem de muito a causalidade de seu sofrimento, principalmente nos três primeiros romances. O efeito é superior à causa. Não reagem mais dentro da “normalidade” da circunstância de marginalização e isolamento social e individual em que se encontram. Suas reações paroxísticas já informam e constituem quadro também patológico, explícito e patente, por exemplo, em Dois Romances de Nico Horta (1939).

a técnica do autor

A obra de Cornélio Pena reflete estados de espírito, reações mentais e comportamentais. Não há implicação fática, que se evidencia do quadro geral dos romances, composto paulatinamente de mosaicos da realidade circundante por meio das reações individuais. Sua ficção está ao nível das conseqüências das transmutações sociais, refletidas, porém, no e pelo indivíduo, sem referências expressas ao contexto social. Única exceção se abre em A Menina Morta (1954), onde o Autor mostra, concomitantemente, seu debilitamento material e moral.

Assim, é a obra de Cornélio Pena excepcional e talvez a única no Brasil a traçar o quadro terrível da ruína das famílias patriarcais em seus reflexos e implicações mais profundos, manifestados nas reações psicológicas e mentais, extraídas do âmago mais recôndito do ser humano.
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Guido Bilharinho é da cidade de Conquista na Região do Triângulo. É poeta, ensaísta, advogado e editor. Foi editor da revista internacional de poesia Dimensão e da revista Convergência da Academia de Letras do Triângulo Mineiro. É membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, da qual foi presidente.

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/

Cornélio Pena (1896 – 1958)


Escritor fluminense (20/2/1896-12/2/1958). Autor inserido na corrente do realismo psicológico, sua obra é marcada pela introspecção e pelo espírito atormentado dos personagens. Cornélio de Oliveira Pena nasce em Petrópolis e, em 1919, forma-se em direito em São Paulo.

No ano seguinte fixa residência na cidade do Rio de Janeiro, iniciando carreira de pintor, gravador e desenhista. Nessa mesma época realiza sua primeira exposição individual. Trabalha também como redator e ilustrador de vários jornais. Em meados da década de 30 abandona as artes plásticas e passa a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Suas histórias são caracterizadas pelos capítulos curtos e pela criação de uma atmosfera de estranheza. Em Fronteira, um de seus livros mais importantes, publicado em 1935, escreve: A confusão e o mal estão em mim, mas possuem vida independente e voluntária, longe de meu raciocínio e de minha vontade, e é preciso que estranhos me auxiliem e libertem.

Mas quem me libertará? Entre seus principais livros estão Dois Romances de Nico Horta (1939), Repouso (1948) e A Menina Morta (1954). Morre no Rio de Janeiro, deixando inacabado o romance Alma Branca.

Fonte:
http://www.algosobre.com.br/

A Cultura Guarani e Nós


Jornal do Brasil - RJ, em 3/02/2010

Mais de 800 lideranças indígenas guarani de quatro países - Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai - se reuniram no Encontro dos Povos Guarani da América do Sul, organizado pelo Ministério da Cultura (MinC), na aldeia indígena Tekoha Añetete, município de Diamante D’Oeste, no Paraná. O evento é inédito e tem como principal objetivo criar uma nova perspectiva de intercâmbio cultural que reconheça e fortaleça a cultura guarani como contribuição fundamental da formação brasileira.

A cultura guarani tem uma participação decisiva na formação do Brasil. São contribuições na culinária, na língua, na topografia e compreensão do território, e uma série imensa de costumes dos brasileiros de modo geral. Eles são parte do Brasil mesmo que a maior parte de nossa sociedade ainda não tenha consciência disso. Atualmente, existem cerca de 65 mil guaranis no Brasil, em diversos estados (RS, SC, PR, SP, RJ, ES e MS).

Presentes também na Argentina, na Bolívia e no Paraguai, onde a língua guarani é majoritária e oficial. Os guaranis estão espalhados pela América do Sul, mas com valores e construções cosmológicas muito similares, o que aponta para uma reflexão conjunta com os países do Mercosul.

Até 2003, o MinC sequer se relacionava com os povos indígenas brasileiros. Hoje, o ministério reconhece as culturas indígenas como tecnologias altamente desenvolvidas, cuja preservação e reprodução é do interesse estratégico do país. Seja pelos legados gerais à cultura brasileira, seja pela articulação com o meio ambiente e com a tecnologia contemporânea, os conhecimentos dos povos da floresta são decisivos para o futuro da humanidade. O pressuposto de atuação é que a diversidade cultural constitui grande riqueza para os indivíduos e a sociedade, um ativo que nos enriquece a todos. Evidentemente, uma concepção positiva de diversidade qualifica nosso modelo desenvolvimento, pois deixa para trás uma visão anacrônica e autoritária de civilização, e inclui as visões econômica, social, cultural, política e ambiental. Nesse contexto, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, criada em 2003, desenvolve uma política específica para a cultura dos povos indígenas, com programas de capacitação, editais de premiação, fóruns de discussões e outros.

A ONU publicou, recentemente, relatório sobre a situação dos povos indígenas no mundo.

O estudo revela que, apesar de representarem apenas 5% da população mundial, os povos indígenas são 15% dos mais pobres do mundo. A discriminação étnica e cultural é percebida como uma das causas de todos esses problemas. O relatório também alerta sobre a ameaça de extinção das culturas indígenas, afirmando que 90% de todos os idiomas indígenas vão desaparecer até o final deste século.

A exclusão cultural se dá de duas formas: por meio da rejeição do modo de vida de determinados grupos (resultado do pensamento de que todos devem viver conforme o estilo da maioria); e por meio da discriminação ou das desvantagens impostas às minorias nas disputas por oportunidades sociais, políticas e econômicas.

O futuro das tradicionais culturas indígenas diz respeito aos indígenas e a todos nós, brasileiros.
Acreditamos que ao valorizar, promover e fomentar as expressões culturais, os valores e os conhecimentos tradicionais indígenas, estamos ajudando a moldar o futuro do Brasil. Nesse contexto, ocorre o Encontro Guarani. Uma democracia vibrante deve prever e garantir a liberdade dos grupos que formam a nossa sociedade, liberdade de viver plenamente suas culturas e tradições, escolhendo as formas e ritmos de interação e integração. Desejamos diminuir o preconceito da sociedade, colocando no lugar admiração, conhecimento, interesse, e contribuindo para fortalecer a autoestima e as relações sociais desses povos, de modo que se sintam mais bem equipados para fortalecer suas práticas. São temas que este primeiro encontro poderá debater e fortalecer na agenda cultural e política do Brasil.

Alfredo Manevy - Secretário Executivo do Ministério da Cultura
Américo Córdula - Secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura

Fonte:
Ministério da Cultura – MinC
Jornal do Brasil - RJ, em 3/02/2010

Guarani, os Filhos do Vento



"Singular e assombroso o destino de um povo como os Guarani!
Marginalizados e periféricos, nos obrigam a pensar sem fronteiras
Tidos como parcialidades, desafiam a totalidade do sistema.
Reduzidos, reclamam cada dia espaços de liberdade sem limites
Pequenos, exigem ser pensados com grandeza.
São aqueles primitivos cujo centro de gravitação já está no futuro.
Minorias, que estão presentes na maior parte do mundo."
(Bartomeu Meliá)

"Respeito às pessoas e à natureza", esse é o lema dos índios guaranis.
Eles, desde cedo, recebem os ensinamentos de sua cultura pelos pais e depois pelo cacique, que lhes explica que os guaranis foram eleitos pelo Deus Nhanderú para serem os guardiães das almas dos seres humanos.

Guarani quer dizer: guerreiro indomável, filho de "Curupi" com Céa-Yari, povo livre com tempestade, que se espalha irregularmente pela vasta planície das várzeas lamacentas dos três grandes rios do Prata (o Paraná, o Paraguai e o Uruguai), atingindo quase toda a Bolívia e grande parte da Argentina até as mesetas da Patagônia.

Com o objetivo de reivindicar o que se supõe deveria ser na história o verdadeiro sentido da civilização guarani, surgiu, entre alguns escritores, uma corrente que inaugurou uma série de discussões polêmicas.

Uma destas correntes, entende que pertence ao patrimônio histórico da raça guarani a invejável civilização dos astecas do México e dos Incas do Peru e que todo esse monumento de glórias, criminosa e miseravelmente destruído pelos espanhóis, foi roubado a essa família indígena.

Obedecendo esta ordem de idéias, concebe ela que os guaranis chegaram a fundar, nos demais recantos da América do Sul, uma considerável civilização pré-colombiana e que os europeus a destruíram com tal habilidade que até os vestígios desapareceram.

A Grande Confederação Guaranítica, compreendeu inúmeras nações esparramadas pelo Continente Sul Americano, sendo a capital dessa civilização uma grande cidade denominada "Mbaeveraguasú". Imaginam os defensores dessa corrente, que os guaranis eram comunistas puros, organizados em Estado, com feição altamente civilizada. Para eles a palavra "guarani", tinha um sentido amplo e compreendia todos os indígenas de mais da metade do continente americano, excluindo-se, algumas raças que reputavam inferiores, sem as qualidades que ornam o caráter e a inteligência das múltiplas nações guaranis.

Há entretanto, algumas tribos, que não sendo guaranis, acomodaram-se aos costumes destes, em uma fusão regular, sendo por isso mesmo seus parentes, ou vassalos, como aconteceu com os "Aruacás", que acompanharam os "Caraivés", desde as Antilhas, como seus escravos.

Percebe-se portanto, que os guaranis correspondem ao homem sul-americano por excelência.

COMO TUDO COMEÇOU...

Para nos assenhorarmos dos verdadeiros pendores que dominam a alma coletiva de tão curiosa civilização, teremos que buscar recursos na história.

A nação guarani à luz do "descobrimento" conglomerava diversos povos. Com a chegada dos espanhóis (1537 em Assunción), foram diferentes as formas de contato e distintas as adaptações históricas-culturais da nação guarani. Podemos dividi-los a partir deste momento, em três grupos, ou três trajetórias.

1. O indígena que sofreu o impacto imediato do colonialismo. Encontramos aqui o índio "civilizado" e o escravo encomendado. Os índios civilizados, foram aqueles que lhes foi roubada a felicidade e convencidos à força de que os donos da civilização era os europeus. Estes foram os que mais sofreram adaptações. Já o índio encomendado, era aquele entregue ao espanhol para a catequese e conversão. Doutrinavam os índios em troca da utilização de seu trabalho. Na verdade, tal troca, acobertava uma disfarçada escravidão. Desse grupo, sobraram muito poucos, pois conduzidos a um cativeiro deshumano, acabaram dizimados, pela intensidade do trabalho forçado ou pelas inúmeras doenças trazidas pelos conquistadores.

2. Os guaranis reduzidos ou missioneiros, que buscavam refúgio da sanha colonial nas reduções jesuíticas. As reduções se constituíam em um Estado dentro do Estado. Neste aldeamentos fechados, os índios aprenderam ofícios tornando-se artesãos, marceneiros, carpinteiros e músicos, o que lhes permitiu dirigirem-se para os centros urbanos, como Montevidéu, Buenos Aires e Santa Fé, após a expulsão dos jesuítas das colônias ibéricas.

No inicio da civilização, os colonos sentiram a necessidade imprescindível do auxílio do missionário para a pacificação indígena. Mas, aos poucos o homem branco, emancipou-se daquela dependência e aliando-se com o mameluco, organizaram-se em bandeiras e, armados em verdadeiros exércitos, passaram a caçar o índio, para explorar e corromper. Eram invencíveis, sobretudo em uma luta com missionários e índios inermes. Ao desejo de enriquecer aliava-se a sede de glória, iniciando-se deste modo, um genocídio. Poucos foram os que conseguiram bater em retirada, único meio de fugir aquela ameaça de destruição. Mas, mesmo experimentando grande regozijo de escapar à sanha de seus agressores, tiveram os heróicos retirantes de enfrentar muitos perigos e sofrimentos durante a sua longa cruzada de fuga.

Alguns dirigiram-se para o Paraguai, onde o Guarani Paraguaio é hoje falado por cerca de 3 milhões de pessoas; para a Bolívia, onde o Guarani Boliviano (ou Chiriguano) é falado por cerca de 50 mil pessoas e para o norte da Argentina. Dos índios capturados, alguns tornaram-se escravos dos bandeirandes (séc. XVIII) e outros tornaram-se empregados de fazendeiros brasileiros e paraguaios, que iniciaram a ocupação destas terras com a extração da erva-mate.

3. O terceiro grupo a salientar, é o guarani que permaneceu fora do alcance da fome colonial, mantendo-se escondido nas densas florestas paraguaias. Os Caaguá foi um grupo que logrou manter sua cultura quase que intacta. Dele descendem os Guarani Mbya, Chiripá ou Ñandeva e os Paitvyterã ou Kaiowá. Eles foram raramente visitados por algum viajante no século XIX e conseguiram passar para o século XX, sem interferências exteriores.

OS MESTRES DAS MISSÕES

Nas reduções, o índio guarani aprendeu a ser pintor, escultor, marceneiro, serralheiro e fundidor. Um padre suíço, Charles Franck, ensinou-lhes até mesmo a fabricar relógios primitivos, mas que funcionavam perfeitamente. E a primeira oficina de impressão que se tem notícia em toda a América Latina foi instalada na República Guarani: ali eram impressos catecismos, dicionários, livros de canto e até mesmo alguns trabalhos sobre os dialetos dos índios. Quase tudo isso foi queimado pelos "civilizadores", os mesmos que hoje puxam o revólver (ou o talão de cheques) quando ouvem falar na palavra cultura.

Os índios seguiam essa ou aquela profissão, de acordo com suas inclinações e tendências. A maioria dedicou-se à agricultura ou ao pastoreio, porém os que tinham a chamada veia artística podiam cultivar a música, através da harpa, instrumento ainda hoje em moda no Paraguai, ou de violões, violinos, guitarras, tambores, pandeiros espanhóis e até castanholas.

De certa forma, cada missão especializou-se num determinado ramo de produção artística. Em Loreto fizeram-se as melhores esculturas, mas foi em San Francisco Javier que se elaboraram os mais finos tapetes e as mais graciosas rendas. De San Juan vinham os mais perfeitos instrumentos musicais, mas foi em Apósteles que se fundiram os melhores sinos.

As primeiras reduções propriamente ditas são fundadas pelos padres Simón Maceta e José Cataldino. Um velho missionário, de nome Lorenzama, fundou a redução do Paraná.

Mas o grande idealizador do Estado Jesuíta, aquele que era conhecido como o "caminhoneiro de Chaco" e que no futuro seria nomeado o Superior Geral da República Guarani, foi Antonio Ruiz de Montóya.

Nos primeiros anos as coisas foram muito difíceis, pois a vida das reduções jesuítas não ataraia os índios Guarani. Muitas divergências surgiram e até mesmo alguns missioneiros, como o padre Rodriguez, foram executados. Este, depois de discutir com o cacique Niazú, teve sua cabeça espatifada com um golpe de manacá. Na verdade o que levou os índios a se dirigirem para o interior das missões, foi o fato de terem percebido que só elas constituíam um refúgio, um abrigo, uma defesa, uma segurança contra os ataques brutais e escravagistas dos espanhóis e portugueses.

E as reduções cresceram e se multiplicaram: Arcángel, San Tomé, Los Reyes, Tpaes, Yapeyú. Logo se tornou imprescindível que todas elas tivessem governos, tribunais de justiça e até mesmo sistemas rudimentares de contabilidade.

O SOCIALISMO MISSIONEIRO

Em uma espécie de congregação superior eram selecionados os futuros magistrados, sacerdotes e executivos. Existiam arquivos, atas e contabilidade, embora um dia tudo viesse a ser reduzido a cinzas pelos "civilizados".

Apesar das diferenças culturais que sempre existiram, e sempre existirão, em todas as sociedades, a igualdade material era quase completa. Todos se vestiam da mesma maneira.

O trabalho tinha uma jornada de seis a oito horas, com um período de descanso após ao almoço. Quase todos os índios eram lavradores e durante a época de colheita todas as demais atividades eram suspensas. Iniciava-se um "mutirão", mutirim, ou pichirum, tradição do trabalho coletivo, ou seja, um ajudando o outro numa alegre animação.

Não havia dinheiro, nem comércio e a profissão de mercador ou traficante era punida com uma surra de vara de marmelo. Praticavam a troca, mas não havia moeda nem usura. O ouro e a prata serviam apenas para enfeitar os altares sagrados.

O principal produto era a erva-mate, que servia de referência para trocas e bargalhas. Eram exportadores e muitos produtos demandavam o exterior, principalmente o Prata. Fumo, algodão, açúcar, rendas, artesanatos, esculturas, arreios, rosários, cruzes, vasilhames, ponchos, peles, chapéus, barbicachos, cerâmicas, tijolos, gamelas, tudo isso era conduzido em lombo de burro ou em canoas para as colônias dos europeus onde seria trocado pelos produtos importados de que mais necessitavam.

Mas tudo pertencia à comunidade. Os bens eram indivisíveis. Chamavam-se "tupam-baé (campo de Tupã): eram propriedade do Deus . Não existia o direito de herança e por isso a terra era indivisível. E os padres jesuítas eram os primeiros a dar o exemplo: a eles nada pertencia, tudo era dos índios (Abámba-é).

É claro que os invasores ibéricos, que haviam construído a riqueza de suas nações sobre montanhas de cadáveres indígenas, não poderiam aceitar, em suas "fronteiras ideológicas", a existência da república utópica dos índios Guarani e dos padres jesuítas.

De tanto lidarem com aquelas crianças índias, demasiada e ingenuamente acabou por povoar os sonhos dos filhos de Santo Ignácio de Loyola. Fizeram com que os índios Guarani ficassem brincando de "Cavalhada" entre mouros e cristãos, enquanto o inimigo afiava suas adagas em forma de meia lua levantina e encilhava seus cavalos árabes.

Ensinaram os pequenos selvagens a representar em palcos improvisados os dramas que o santo padre José de Anchieta desenhava à beira-mar, enquanto os propostos coloniais do Marquês de Pombal carregavam seus mosquetes nas barrancas do lado direito do Uruguai.

Trabalhavam, brincavam, amavam, jogavam bola, faziam acrobacias, cantavam e compunham guarânias, enquanto os descendentes de Borba Gato preparavam as longas cordas com as quais iriam manoteá-los.

Tudo desapareceu, até mesmo as igrejas monumentais de pedra talhada e madeira ricamente esculpida foram incendiadas, tendo seus ornamentos de ouro e pratarias roubados por bandidos que se diziam "soldados cristãos".

Porém, a memória dos homens, que sempre sobrevive à noite dos tempos e às madrugadas do demônio, pode dar fé. Mas, o veredicto foi implacável e o povo Guarani se tornou o mais miserável de toda a América do Sul. Mas, apesar de tudo, foi o único povo americano que conseguiu escapar à sanha do colonizador durante longo tempo.

Eles deixaram gravada, nas ruínas de suas Reduções, a maior ata de condenação que se possa fazer aos que enlouqueceram na miragem de riquezas alucinantes. Sua sociedade foi e será estudada por muitos séculos. É uma história dolorosa, que foi assinada com sangue antes que eles submergissem de novo, e para sempre, na floresta virgem das várzeas lamacentas dos rios que formam o Prata.

A ALMA GUARANI

O guarani é um indivíduo profundamente espiritual. Embora haja muitos sub-grupos, todos compartilham de uma religião que enfatiza a terra. O conceito de terra para eles está relacionada a idéia de Terra-Sem-Males, na concepção de "bem viver", um lugar onde se vive o "ñanderekó" (jeito de ser). Ou seja, não concebem a terra em sua materialidade, mas a consideram como necessária para ser construída e arada culturalmente.

Seguindo mensagens de Nhanderú, eles buscam o que acreditam ser a "Terra Sem Males", um lugar onde não falta caça, pesca e muita paz. A sua procura, localizada no imaginário dos Guarani, para além do Atlântico, por si só, não minimiza as responsabilidades dos brancos sobre os poucos espaços territoriais que sobraram para esses índios. A sua perambulação, organizados em pequenos grupos familiais, por estradas e rodovias do Sul e Sudeste do país, é uma face trágica dessa diáspora.

TRAJETÓRIA E OBJETIVO

DA MIGRAÇÃO

A causa do êxodo Guarani sempre foi a imperativa necessidade de encontrarem um lugar onde possam viver em segurança, segundo seu antigo modo de ser, ou seja, a busca da "Terra-Sem-Males".

"Os primeiros que abandonaram a sua pátria, migrando para o leste foram os vizinhos meridionais dos Apapocuva: a horda dos Tañyguá, sob a liderança do pajé chefe Ñanderyquyní, que era temido feiticeiro. Subiram lentamente pela margem direita do Paraná, atravessando a região dos Apapocúva, até chegar à dos Oguauíva, onde seu guia morreu. Seu sucessor, Ñanderuí, atravessou com a horda do Paraná - sem canoas, como conta a lenda - , pouco abaixo da foz do Ivahy, subindo então pela margem esquerda deste rio até a região de Villa Rica, onde cruzando o Ivahy, passou-se para o Tibagy, que atravessou na região de Morro Agudos.

Rumando sempre em direção ao leste, atravessou com seu grupo o rio das Cinzas e o Itararé até se deparar,finalmente com os povoados de Paranapitinga e Pescaria na cidade de Itapetinga, cujos primeiros colonos nada melhor souberam fazer que arrastar os recém-chegados a escravidão. Eles porém, conseguiram fugir, perseverando tenazmente em seu projeto original, não de volta para o oeste, mas para o sul, em direção ao mar. Escondidos nos ermos das montanhas da Serra dos Itatins fixaram-se então, a fim de se prepararem para a viagem milagrosa através do mar à terra onde não mais se morre." Os Guarani Mbya, começaram a chegar, ao que se sabe, a partir do início do século XX. Em 1921, Nimuendaju, na época funcionário da antigo SPI, teve a ventura de acompanhar de perto a migração de um pequeno grupo Mbya rumo ao mar.

Esta fantástica experiência não modificou apenas o modo desse antropólogo alemão encarar a sociedade Guarani, como a partir de então, iria influenciar de maneira decisiva, o modo como a maioria dos antropólogos passaria a ver os Guarani.

Dizimados por doenças e obcecados com a fuga da destruição do mundo, Nimuendaju alcançou-os perto de Itanhaém/SP. Quando chegaram ao litoral, termina sua viagem horizontal e histórica. Inicia-se então a caminhada que deveria, através da dança, tomar um rumo vertical. Dançaram três dias até a exaustão e então veio a terrível decepção: o fracasso. "Havia ocorrido algum erro, que anulara toda a magia e que, fechara para sempre o caminho para o Além aos peregrinos". A maioria dos Guarani convenceu-se que já não poderiam alcançar a "Terra-Sem-Mal", pela falta de um instrumento e pela interpretação incorreta do mito.

Depois partiram "na direção do noroeste, convencidos de que a Terra-Sem-Mal se localizava, não além do oceano e sim no centro da Terra". Segundo Egon Scahden, somente poderiam ir em sua busca, aqueles que guardavam intactas suas crenças originais.

Hoje existem "aqueles que acreditam que só sua alma retornará a Nhanderú retã." Mas há ainda aqueles, que acreditam conseguir atravessar o oceano com corpo e alma e superando a prova da morte, serem testemunho da tradição.

Uma alucinada tentativa de alcançar a qualquer custo a Terra-Sem-Mal, pode ser observada entre os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Nos anos entre 1986 a 2000, 337 índios das áreas de Dourados, Amambaí, Caarapó, Porto Lindo e Takuapery, cometeram suicídio. A ampla espoliação de seu território físico e espiritual e a falta de perspectiva de encontrarem a sua prometida Terra-Sem-Mal, os levaram a depressão profunda, o que concorreu para a concretização de tão trágico fim.

Na utopia da Terra-Sem-Mal, o imediatismo histórico ficou frustrado. Em busca da "Terra-Sem-Mal", vivem hoje os Guarani, ameaçados do Mal sem Terra, em conseqüência do avanço das fazendas sobre os habitantes indígenas originários.

A religião é ensinada, pelo karaí, que é o líder espiritual. Ele cuida dos doentes, recomendando os remédios e curando através da fé, pois, para eles, a doença nada mais é do que uma conseqüência da falta desta.

O artesanato é o maior sustento dessa aldeia. A cestaria e as esculturas de animais são perfeitas e vendidos pelos indígenas no litoral, na temporada de verão. Os índios, além disso, plantam milho, feijão e ervas medicinais.

As crianças guaranis que fazem parte do coral "Nhanderú Jepoverá" (Raio Sagrado de Deus), gravaram um CD em 2005 , que reúne 15 cantos sagrados.

Os guaranis cantam quando rezam, quando brincam, quando acalentam os filhos, quando plantam, quando colhem, quando curam, quando falam com seus deuses. Ninguém canta como eles, e ninguém ouve como eles, porque certamente seus cânticos fazem muito mais sentido em sua cultura.

CONCLUSÕES FINAIS

A batalha dos Guarani pela sobrevivência física e cultural continua nos dias atuais, no Paraguai, Argentina e Brasil (Maranhão, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A luta pela demarcação ou reconquista de suas terras confundem-se com a recuperação de sua identidade étnica.

A história indígena não é de vencidos, mas uma história viva e presente de avanços e resistência, de fazer renascer um mundo mais humano para todos, irmanados com a nossa Mãe Terra.

Os Guarani somam hoje, aproximadamente, cem mil pessoas em todo o território brasileiro.

"America Ameríndia,
aínda na Paixão:
um dia tua Morte
terá Ressurreição!"

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Poesia no Ônibus, em Ponta Grossa (Cultura prorroga prazo para inscrições)


A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo prorrogou a data de inscrições do Programa Poesia no Ônibus “Poetas da indústria” para 24 de maio. As inscrições devem ser enviadas exclusivamente via Correios para: Programa Poesia no Ônibus, Edital 2010/11, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo endereço: Rua Julia Wanderley, 936 – CEP 84010-170, Ponta Grossa- PR.

Podem participar trabalhadores da indústria de todas as categorias, desde que as empresas estejam localizadas no município de Ponta Grossa. O tema será livre e deve ser produzido em língua portuguesa. Cada interessado poderá inscrever até três poemas inéditos.

Uma comissão julgadora vai selecionar 24 poemas que circularão pelos veículos do Sistema Integrado de Transporte Urbano entre julho de 2010 e junho de 2011, sendo dois poemas diferentes por mês.

Os vencedores serão conhecidos e certificados no dia 5 de junho e participarão de duas Oficinas de Criação e Fomento Literário orientadas por oficineiros especializados, no decurso do mês de junho de 2010. Os vencedores terão ainda seus poemas publicados na Antologia de Poesias editada pela Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.

O Programa é desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo em parceria com o SESI CULTURAL e o SESI Ponta Grossa, com a finalidade de estimular a produção poética local.

Fonte:
Colaboração da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.

Lançamento do V Concurso Literário Cidade de Maringá

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sábado, 17 de abril de 2010

Trova Triste - Fernando Vasconcelos (2/9/1937 - 17/04/2010)

Fernando Vasconcelos (1937 – 2010)


Homenagem a Fernando Vasconcelos
Extinguiu-se a flor do lume
Do poeta expira o canto.
Qual menino vagalume,
chega ao céu e vira encanto!
Dinair Leite [Paranavaí]
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2 de setembro de 1937 (Diamantina/MG) - 17 de abril de 2010 (Ponta Grossa/PR)

Fernando Vasconcelos (Fernando Silvio Roque de Vasconcelos), jornalista e publicitário,é mineiro de Diamantina e paranaense de Ponta Grossa.

Filho de Sandoval Roque dos Santos e Maria de Lurdes de Vasconcelos Roque (poética Tia Velha), casado com Jelena Ruta e sete filhos e três netos.

Recebeu várias honrarias do poder público e da iniciativa privada, entre os quais
Título Cultural
Placa do Mérito Regional
Prêmio Rotary 98/área de Artes
Placa Homenagem por Incansável Jornada Literária (Sesc)

Título de Cidadão Ponta-Grossense (Lei 3.207 de 11/12/1979),
Mérito Leonístico Putanqui - Cultural,
Honra ao Mérito do Rotary Club 2009.

Pertence a dezenas de entidades culturais, inclusive em Portugal, sendo o vice-presidente da Academia de Letras dos Campos Gerais.
Conta com 170 premiações literárias nacionais e internacionais.

São seus livros publicados:
– Pequena Consciência (1974)
- As Narrativas de Nhô Fela (1983)
- Nos Espaços D'Alma (1985)
- Êta Vida Besta, Sô! - (1990)
- Estou Nascendo Para a Trova (1994)
- Pô, Meu! (1995)
- A Danadinha da Crase ( 1997)
- Da Cacimba do Coração (1998)
- Fiapico (1998)
– Abaretama - a sedução do guerreiro (1999)
- Os Pombinhos do Deus Tupã (2003)
- Eu Conto (2004)
- Gotinhas de Orvalho (2005)
- Branduras (2007).

Fernando Vasconcelos (Paraná em Trovas)


Registrando alguma ausência,
contabilidade ingrata,
nosso amor pediu falência,
desistiu da concordata;

É cada estrela cadente,
tendo o seu curto escarcéu,
um traço fosforescente
com que Deus rabisca o céu!

De um sentimento profundo,
no silente ou no escarcéu,
prosa é linguagem do mundo,
o verso a prosa do céu.

Nosso grande encantamento,
quando a julgar eu me ponho,
é o encanto do momento
do nosso primeiro sonho.

Na roça não se complica
a higiene rotineira:
começa na velha bica
e um gamelão é banheira!

De minha alma, nas dobrinhas,
a sua alma se aninhou...
As duas parecem minhas,
no ambíguo que eu hoje sou!

Passadas pinga e arruaça,
disse ao ser interrogado:
foi depressão, não cachaça,
que me deixou transtornado!

Tua ausência faz aflita,
triste e desesperançada,
a caminhada infinita,
em teus lábios começada.

Se na aflição se padece,
busque em Deus a solução...
A calma do céu nos desce,
no intercâmbio da oração

Não há quem se esforce à toa,
é rotina o desafio,
sendo a vida uma canoa
que atravessa o grande rio.

Lindas estrelas acesas,
quadro que prende e seduz...
É Deus dizendo belezas
num alfabeto de luz!

Inocência é pranto e riso,
Que puro nossa alma alcança,
Vindo lindo e sem aviso
Do sentir de uma criança.

Vamos, sonhar e sorrir"
esse é o remédio ideal,
não nos preocupe o porvir,
pois só o presente é real.

Cada vez que tenho um sonho,
formas, luzes, cores, som,
é você que lá eu ponho,
para o sonho ficar bom!

Casa do Poeta de Canoas/ES (Inauguração da Biblioteca)

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Rita Elisa Seda (A Menina dos Fósforos)


A menina caminha pela calçada com uma caixa de fósforos nas mãos. Ninguém olha para ela, ninguém compra fósforos hoje em dia. Mas, ela insiste na triste função de vendedora de fósforos, afinal foi esse o encargo que sua mãe lhe destinou... há anos. Ela agarra aquela caixa como se fosse seu tesouro, era a única que havia sobrado, as outras foram molhadas pela chuva fria de dezembro, dizem que é por causa do aquecimento global, mas a menina sabe... faz muitos e muitos anos que em dezembro, principalmente perto do Natal: chove muito.

A menina quer atravessar a rua, precisa ir para o outro lado e os carros buzinam insistentes. Um motorista até lhe aponta o dedo xingando “não vê que o sinal está fechado para você?!” A menina não se importa, só quer ir para a outra calçada. Atravessa entre os carros e perde um de seus chinelos; nem liga... pois são tão grandes mesmo, deixa o outro na esquina, melhor ficar descalça.

No outro lado as vitrines são mais festivas, tem uma loja de chocolate onde o Papai Noel é enorme, sentado numa cadeira dourada, distribui gotas de chocolate. Ela quer uma, entra na fila, todos a olham, ela sorri, todos viram os rostos, seguram a carteira com força e algumas mulheres agarram suas bolsas. O vendedor atento, convida a menina a se retirar. Ela sai cabisbaixa, olhando o espírito natalino, caído na sarjeta.

Continua pela calçada e sente um cheiro forte de carne assada que vem do restaurante. Espia pela porta de vidro e se delicia com as carnes, saladas e manjares à mesa central. Todos rindo e servindo-se, a menina olha e engole a saliva quente produzida por causa do aroma das especiarias. Alguém a vê, um menino, ele sorri para ela, ela se assusta, abaixa a cabeça e depois a levanta devagar, o menino continua a sorrir. Ela faz um aceno, o menino retribui. Nisso uma mão enérgica puxa o queixo do menino em direção ao rosto do pai e o impede de olhar para a rua. A menina se olha, seu vestido não é assim tão feio, é o melhor que ela tem, o colocou porque é Natal. Está sem sapatos, mas isso não é motivo para tantos olhares furtivos, tantas caras feias e o pior... tanta desconfiança.

A chuva recomeçou. A menina anda pela avenida sem se importar com o vento frio que veio com o efeito El Niño dos corações das pessoas. Olha para suas mãozinhas tão geladas... duras de frio. Lembra-se dos fósforos, sim... eles são mágicos. Ela pode aquecer-se nas chamas, ou então pegar um sapato novo no clarão do fósforo. Mas não, não se importava com isso - há tantos anos fez isso.

Agora só havia uma caixa e precisa vendê-la, precisa aquecer e aquecer-se. Sabe como usar os fósforos... são mágicos! E, mesmo que mágicos, isso não importa para ela, não queria e não quer a mágica dos fósforos, quer a mágica do coração, quer o calor humano e isso o fósforo não poderá lhe dar. A mão dela continua gelada, o vestido ensopado grudado ao corpo, descalça chapisca nas poças d´água. O povo natalino, engavetado nas vitrines, dentro das lojas e restaurantes olha a menina que tremendo passeia debaixo da chuva. E, ela, a menina dos fósforos, que há anos vagueia pelas avenidas movimentadas de espíritos natalinos, nem olha mais para as pessoas, tem a mira certa, vai até a lata de lixo e ali joga sua caixa de fósforos.

Fonte:
Colaboração da Revista Digital Entrementes. http://www.entrementes.com.br/

Carlos Guimarães (Trovas: Cantigas para Pensar)


Da vida, o prazer, o encanto,
mistérios, dores, pesar,
ponho em trovas, quando canto
CANTIGAS PARA PENSAR ...

As vezes, a gente canta
para a si mesmo enganar,
sentindo um nó na garganta,
com vontade de chorar.

A minha mão, estendida
ao teu aperto de mão,
revela a mágoa esquecida,
mostra a paz no coração.

A poça d'água da rua
- igual a certas pessoas -
pensa ao refletir a lua,
ser a maior das lagoas.

A vida é um jogo, mais nada,
e qualquer que seja a sorte,
cada qual, finda a jogada,
recebe o prêmio da morte

A felicidade é mito,
que a gente procura em vão,
como quem busca o infinito
tendo os pés presos ao chão.

Amor ou ódio não dosas,
se os dois ao teu peito vêm:
- roseira não conta as rosas,
nem os espinhos que tem.

Abandona esse teu manto
feito de tola vaidade:
- nas crianças, todo o encanto
provêm da simplicidade

A mãe, com sua clemência,
não vê, não ouve a razão
e põe, sempre, a consciência,
no lugar do coração.

A Humanidade, estonteada,
caminha entre o Mal e o Bem:
o progresso, que abre a estrada,
fabrica a bomba, também.

Ao mais ferrenho inimigo,
de alma limpa, estende a mão:
renuncia ao ódio antigo,
dando mérito ao perdão.

A Vida, velha fiandeira,
meu destino, com certeza,
teceu de estranha maneira,
com fios só de tristeza...

Atalho, estrada ou vereda,
o teu caminho, criatura,
quer vistas farrapo ou seda,
é o que leva à sepultura.

Busquei o amor tantos anos
e encontrei saudade, dor,
desilusões, desenganos,
no rastro de cada amor.

Chego, sem lamento algum,
ao fim da estrada, sozinho:
- Meus ideais, um a um,
fui deixando no caminho

Cai a chuva escassa e mansa,
no sertão de sol ardente:
- reticências de esperança,
que Deus manda àquela gente.

Cansado, desiludido,
chego ao fim da minha estrada,
sem horizonte, perdido,
entre as brumas da jornada

Contra ingênuos preconceitos,
prevalece esta razão:
- pretos e brancos são feitos
do mesmo barro do chão!

Contra a torpeza e a mentira,
vou vivendo a vida e, assim,
as pedras que a inveja atira,
nem chegam perto de mim.

Desde o alvorecer dos mundos,
desde a mais longínqua Idade,
reticências de segundos
vão formando a Eternidade.

Da Terra, o clamor escuto
contra o Homem, seu Senhor,
que, ao colher, ávido, o fruto,
não tem olhos para a flor.

Destino inglório o da gente:
- correr atrás da ventura,
para encontrar, finalmente,
uma cruz na sepultura.

De despedidas, apenas,
consiste, afinal, a vida:
mil despedidas pequenas
e uma Grande Despedida...

De que vale essa postura,
joelhos presos ao chão,
corpo em doce curvatura,
mas sem Deus no coração

Despreza, meu filho, o vício
e faze do coração,
terreno fértil, propício
às sementes do perdão.

Em cansativa jornada,
pés sangrando, suor na fronte,
quanto mais palmilho a estrada,
tanto mais longe o horizonte,.

Em busca de paz e calma,
pelos degraus da oração,
chega até Deus a minha alma,
nos momentos de aflição.

Enfrenta a luta! Sê forte!
Arrosta os perigos! Vai!
Mas qualquer que seja a sorte,
honra o nome de teu pai!

Entre misérias sem conta,
como a implorar proteção,
o cardo os dedos aponta
ao céu azul do sertão...

Felicidade, querida,
assim posso enunciar:
- moeda falsa que a vida
insiste em querer passar.

Em meio à luta renhida,
a Fraternidade, irmão,
é fazermos desta vida
um constante mutirão.

Felicidade... Quem sabe
dizer tudo o que ela seja?
É tão grande e, às vezes, cabe
num "sim" que a gente deseja...

Ideal que anseio em vão,
eu já nem sei, afinal,
se a busca da perfeição
chega a ser mesmo ideal.

Louvado sejas, Senhor,
pela crença que me dás,
pelo que eu logro em Amor,
pelo que recebo em Paz,

Mãe Preta, o teu acalanto,
sem preconceito de cor,
embalou teu filho tanto
quanto ao filho do Senhor,

Medrou feliz a semente...
Cresceu... Floriu... Depois disto,
impôs-lhe a sorte inclemente
servir de madeiro a Cristo...

Não te invejo, petulante,
que ostentas tua riqueza...
Os livros da minha estante
dão luxo à minha pobreza.

Mestra amiga, tu que dás
exemplos nobres, divinos,
planta a semente da Paz,
nos corações pequeninos!

Minha mãe que eu louvo tanto
e que tanto fez por mim,
não pôde fazer-me santo,
porque o barro era ruim.

No Mundo, em que o ódio é tanto,
e a maIdade tem mil cores,
tem mais graça, mais encanto,
a canção dos trovadores!

Nessa luta em que me empenho
- não me importa perca ou vença -
ponho, na crença que tenho,
tudo que tenho de crença.

Nesta minha pobre vida,
sem amor, sem pão, sem lar,
sou ave de asa partida,
que não mais pode voar!

Nessa estrada, vou sozinho...
Tudo em volta é indiferença:
- A vida é um triste caminho,
quando a gente perde a crença...

Nordeste... O gado, o arvoredo,
tudo morre ao Sol ardente
E a gente chega a ter medo
de que o medo mate a gente!

Não há mérito na cor
da pele de toda gente:
para medir-se o valor,
a escala é bem diferente...

Na vida, sem horizonte,
minha alma, de sonhos cheia,
gostaria de ser fonte
e mitigar sede alheia.

Nações Unidas... Enlaças,
entre alegrias e dores,
homens de todas as raças,
bandeiras de várias cores...

Não creio na paz imposta
por fuzil, bomba ou canhão:
- Paz é quando há mão exposta
ao aperto de outra mão.

Na minha prece, um favor
eu peço a Deus, um somente:
fazei renascer o Amor
no peito de toda gente.

No Mundo que a falsidade
moldou à sua feição,
ser honrado é qualidade
e não mais obrigação.

O Mundo é mal feito, pois,
faz, sem ter sentido algum,
felicidade de dois
depender, às vezes, de um.

Olhai a Lua... As estrelas...
As flores... A ave que passa...
Vede que as coisas mais belas
são dadas por Deus de graça...

O gemido tão dolente
de um carro-de-bois, à noite,
dói tanto dentro da gente
qual vergastada de açoite.

Os retirantes voltando
à terra, após ter chovido,
choram como que implorando
perdão por terem partido.

Olho meus dias futuros
com permanente ansiedade,
que a vida cobra altos juros
de um grão de felicidade.

Procure não dar ouvidos
às palavras dos ateus:
quase todos, escondidos
rezam contritos a Deus.

Procuro, sempre, na vida,
seguir a trilha do bem:
- alma limpa, fronte erguida -
sem querer mal a ninguém.

Proceda igual à roseira
que, cheia de encanto e graça,
estende rosas, faceira,
ao caminhante que passa.

Planta o bem, semeia a paz,
espalha o amor, dá ternura...
E benesses colherás,
em tua vida futura.

Pela vida, em longos anos,
se eu pudesse algo trocar,
venderia desenganos
para esperanças comprar,

Para quem busca um segredo
guardado num bem que alcança,
felicidade é brinquedo
deixado em mãos de criança...

Para ter felicidade,
talvez não fosse preciso
alcançar senão metade
daquilo que idealizo.

Pretos, brancos, amarelos...
Que importa a raça ou a cor,
se as mãos dadas formam elos
de uma cadeia de amor?

Preso ao abraço da terra,
sem lamentos e sem mágoas,
o lago, sereno, encerra
todo o céu nas suas águas

Pode ser árdua a peleja,
ser a vida um vendaval,
quem tem crença não fraqueja
e vence as forças do mal...

Pobre embora, guarde a mágoa,
que a vida pode mudar:
- uma simples gota d'água
quantas vezes vai ser mar,

Procura, sempre, meu filho
fazer o bem pela Terra
e, jamais, te cegue o brilho
que toda a verdade encerra.

Que importa o viver obscuro
se tens méritos, meu filho:
- nas noites de céu escuro,
as estrelas têm mais brilho,

Quanta vez, de alma iludida,
a gente se compromete
e atira culpas à vida,
pelos erros que comete.

Que a crença na paz redima
os fazedores de guerra
e que a "rosa" de Hiroshima
jamais floresça na Terra!

Quanta vez um criança
de andar trôpego, inseguro,
desperta, em nós, a esperança
e faz-nos crer no futuro!

Qual um rio que, nas águas,
leva o céu em seu caminho,
o poeta canta as mágoas
do mundo inteiro, sozinho.

Que importam cor, crença ou casta,
ingênua vaidade humana?
- Se a vida a tantos afaste,
a morte a todos irmana!

Quem perservera e se lança
do bem à luta, é fatal:
- em cada ideal que alcança,
vê surgir novo ideal.

Quanto mais, nos homens, vejo
ódio, maldade, ambição,
mais cresce, em mim, o desejo
de viver em solidão.

Quero, pai, seguir na vida,
sem tropeçar uma vez,
a trilha por ti seguida,
teu exemplo de honradez.

Quanta ingratidão guardada,
quanta dor na alma ferida!
- Sou qual a pedra rolada
pelas torrentes da vida.

Que importam, estrada imensa,
os perigos a enfrentar?
Quem traz, no peito, um a crença,
não teme a morte chegar.

Quem chegar ao canto amigo,
onde eu vive, em solidão,
vai achar, além do abrigo,
a metade do meu pão.

Quantos heróis de brinquedo
cantam feitos com alarde:
- muita vez, é o próprio medo
que dá bravura ao covarde.

Quanta vez, ante o embaraço
de uma decisão urgente,
o espaço de um curto passo
muda o destino da gente!

Que importa meu dia-a-dia
seja de mágoa e tristonho:
nas asas da fantasia,
vivo momentos de sonho.

Quem use como remédio
a soIidão, na verdade,
não cura os males do tédio
só aumenta a dor da saudade.

Sem ideaI, fé perdida,
vou vivendo de tal sorte,
que se reduz minha vida
à longa espera da morte,

Sonho ver o homem capaz
de banir do mundo a guerra
e estender a asa da paz,
em cada canto da Terra.

Ser feliz, freqüentemente,
consiste na habilidade
de esconder de toda a gente
a nossa felicidade.

Sinto o remorso crescer,
ao lembrar, hoje, infeliz,
o bem que pude fazer
e, consciente, não fiz.

Sol no sertão... Ressequida,
a própria paisagem cansa...
E é tão grande o medo à vida,
que a morte é quase esperança!

São, entre desejos falhos,
nossas vidas peregrinas,
uma colcha de retalhos
de renúncias pequeninas.

Sonho um dia ver barreiras,
entre as raças, feitas pó...
Nações livres, sem fronteiras...
Afinal, Um Mundo Só!

Se um pobre te estende a mão,
não dês, de tua fartura,
simples pedaço de pão:
- dâ-lhe um pouco de ternura...

Sigo, pela vida a fora,
esse destino que encanta:
- sou uma fonte que chora,
dando a impressão de que canta.

Servir ao teu filho ensina,
pois é servindo, afinal,
que a força do bem domina,
vencendo a força do mal.

Sem roteiro, sem paisagem,
eu sigo sozinho, assim,
na cansativa viagem,
que tem a morte por fim.

Tento, a lutar com afinco,
vitórias que não consigo:
- a sorte, com quem não brinco,
vive brincando comigo

Teu conselho, mãe divina
- poema de mansidão -
é livro aberto e me ensina
desde a ternura ao perdão.

Transforma-se a gota em fonte,
a fonte em rio a cantar,
e o rio, descendo o monte,
à distância, vai ser mar.

Talvez por temperamento
- ou quem sabe se atavismo?
No mais prosaico momento,
ponho um "quê" de romantismo.

Vão fugindo os retirantes
e os cardos, pelo sertão,
são candelabros gigantes
enfeitando a solidão.

Vai repetindo os fracassos
o pinheiro, na ilusão,
de alcançar, erguendo os braços,
as estrelas da amplidão.
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Fonte:
União Brasileira dos Trovadores de Juiz de Fora

Antonio Ozaí da Silva (A Força da Tradição no Mundo ao Avesso)


A modernidade anunciou o triunfo da Razão. Ela representou a possibilidade de construção de um mundo novo, contra os valores morais e teológicos predominantes na Idade Média. Impôs a racionalização do processo de produção, a impessoalidade nas relações, a dominação das elites que buscaram moldar o mundo ao seu pensamento, através da conquista de novos mercados, pela organização do comércio, a produção fabril e a colonização.

O triunfo da Razão, idéia essencial da modernidade, representou a substituição de Deus pela Ciência: as crenças religiosas foram relegadas à vida privada. A Razão fez tábula rasa da tradição secularmente fundada no predomínio das idéias e dos valores cristãos-medievais que submetiam o destino dos homens e, também, das formas de organizações sociais e políticas fundadas na crença e no domínio dos costumes.

“Tudo que é sólido desmancha no ar”: eis a síntese da modernidade. No lugar da segurança, da coesão social fundada na moral cristã-medieval, dos espaços territoriais bem definidos, de uma compreensão estática e perene do tempo, a força dos sentimentos e dos vínculos pessoais etc., a modernidade impõe a insegurança das incertezas, a crise dos parâmetros, a desarmonia. Como escreveu Berman (1986:15), o homem moderno vive sob o “redemoinho de permanente mudança e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”.

Contudo, a modernidade apresentou-se como uma utopia positiva que parecia dar novo alento à humanidade. Acoplada à idéia de ordem e progresso, infundiu a ilusão de que os homens finalmente caminhavam em direção à felicidade e à liberdade. Não por acaso, cunhou-se o termo iluminismo. Os filósofos das luzes iluminam as trevas da medievalidade e confiam exclusivamente na Razão.

Esta percepção positiva da modernidade não está isenta da crítica. Rousseau apontou os limites do progresso e da ciência e observou o quanto vivemos sob as aparências, numa sociedade essencialmente hipócrita e corrompida.

Nós, homens e mulheres frutos desta modernidade, vivemos sob o signo de uma era onde, como na transição do homem cristão-medieval ao homem econômico racionalista, permeia a transitoriedade, o incerto, o fugidio, ou seja, a angústia da falta de perspectivas; da insegurança com o amanhã; o medo diante da ciência, da sua capacidade de criar novos Frankensteins e sua teimosia em substituir o criador; o ceticismo diante do progresso; a sensação de que perdemos os valores fundamentais que dão coesão à vida em sociedade; a impotência diante do Estado e dos processos políticos, etc.

A realidade social parece confirmar os piores prognósticos: o“admirável mundo novo” de Aldous Huxley parece se impor; ou, talvez o pior, confirma-se o imaginado por George Orwell em sua obra 1984. Não necessariamente através da imposição do Estado Totalitário, mas pelo absolutismo de mercado que controla todas as esferas da sociedade, impondo o pensamento único e desenvolvendo formas de controle da privacidade.

Vivemos num mundo De pernas pro ar. Neste mundo ao avesso, milhões são excluídos dos direitos e das condições básicas de sobrevivência. Esta realidade é petrificada no instantâneo virtual da mídia; o real é banalizado, transformado em números estatísticos, objeto de estudo e fonte para angariar recursos financeiros pelos que vivem dos intermináveis projetos sobre os miseráveis.

No mundo De pernas pro ar, a necessidade é irmã do medo e o próximo é o inimigo real ou virtual:

Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos” (Galeano, 1999:07-08)

No mundo novo fictício de Aldous Huxley, a estabilidade social é sustentada pela estratificação social, pelo condicionamento programado em laboratórios e o uso da substância denominada Soma, garantia da solidez emocional e antídoto à doença que acomete os críticos, aqueles que teimam em contestar o pensamento e a ordem absolutos. As drogas do mundo real não são apenas aquelas que tornam os narcotraficantes os poderosos de nossa época, senhores que controlam políticos, policiais, juízes e populações. Não! As drogas modernas assumem ares de inocência: apresentam-nas sob a embalagem religiosa; sob a ingênua programação televisiva; sob o rótulo propagandístico que estimula o consumismo, o ter e o individualismo; sob o refúgio da virtualidade, da overdose de informações e do lixo que transita on-line pela Web.

Os indivíduos buscam a felicidade sob o abrigo do pscicologismo da indústria de auto-ajuda, no consumismo, no misticismo e no intimismo. A realidade social não lhes diz respeito; treinam a insensibilidade e fogem, como o diabo foge da cruz, de qualquer compromisso coletivo com as transformações necessárias para humanizar o mundo real. Vivem nas nuvens!

Na idade média a ideologia dominante pregava o conformismo: as esperanças dos pobres se centravam no idílico paraíso pós-morte. Em nossa época, democratizou-se o conformismo e a busca da salvação individual: pobres, empresários, madames e senhores da classe média viram as costas ao mundo real – esta triste realidade! – e disputam em igualdade de condições um lugar no céu. Os que se enriquecem e vivem da fé alheia agradecem.

Uns e outros apaziguam as consciências através do assistencialismo, da esmola e do altruísmo religioso. Como o homem do século XIX, assustado diante da sociedade industrial, há o retorno e o apego desesperado às tradições. Os interesses e as contradições sociais e individuais dão lugar à conciliação, à harmonia, à irmandade. Há algo de positivo nisto: o resgate da humanidade, dos valores humanitários. Mas, seria demais rigoroso observar em tudo isto o reino da hipocrisia?

O refúgio nas tradições tem as suas vantagens. Em primeiro lugar, é o tipo de atitude social e individual que foge ao controle da Razão instrumental e do Estado. Malgrado todos os aspectos hipócritas, não há como não se emocionar com a pureza dos sentimentos resguardados nos melhores corações, em especial dentre as crianças. É lícito reconhecer que em meio à ideologia do mercado que transforma momentos de confraternização em mera troca de mercadorias, mercantilizando os próprios sentimentos e as relações afetivas, sobrevivem verdadeiras manifestações de solidariedade que fogem à lógica mercantil.

Por fim, também devemos reconhecer que a Razão triunfante da modernidade não conseguiu – felizmente! – por termo a todas as tradições, o que significa a possibilidade de mantermos um elo com o passado, aprender com este e resguardar aquilo que ainda nos dá o status de humanos e não de autômatos obedientes aos ditames da lógica do mercado. A sobrevivência da tradição nos ajuda a contrapor nossa subjetividade à racionalidade cega e objetiva, contribuindo para a crítica racional a um mundo desencantado com sua própria realidade.

Fonte:
Colaboração do autor

Marques Rebello (Caso de Mentira)


Morávamos nós em São Francisco Xavier, perto da estação, numa boa casa de dois pavimentos, jardinzinho com repuxo na frente e fresca varanda do lado onde nascia o sol, se bem que por essa época não andasse ainda meu pai muito certo da sua vida para arrastar, sem alguma dificuldade, o luxo de residência tão ampla e confortável, mas temos que perdoar a ele, entre outras fraquezas, esta da ostentação, já que a perfeição foi negada por Deus à alma das criaturas. Eis, senão quando, meu irmão Aluísio, o demônio em figura de gente, ao praticar certa travessura arriscada na sala de visitas, aliás sempre fechada a chave e que, a não ser aos sábados para a limpeza, raras vezes se abria para receber gente de fora, pois poucas eram as nossas amizades, caiu e deitou por terra a elegante peanha de canela, que ficava por trás do sofá de palhinha.

Isso, convenhamos, pouca importância teria se, sobre a peanha, não estivesse, como em precioso nicho, o rico vaso da China, um legítimo Sé-Tchun, que papai freqüentemente gabava - isto é que é a verdadeira arte, meninos! - e que mamãe admirava por seu outro valor: ser das únicas coisas que escaparam à voracidade de tio Alarico, um desmiolado, quando foi feita a partilha dos bens do seu avô, que era barão e morrera na Europa.

De tarde, papai chegando, ainda nem tinha tirado o chapéu de lebre, que usava desabado, e já mamãe o punha ao corrente, com meticulosa exposição, do desgraçado acidente.

- Aluísio!

A voz de meu pai foi tão estranha, diversa e violenta, que minha mãe, coitada, ficou branca, arrependida imediatamente de ter nomeado, precipitada, o santo do milagre.

Aluísio, que se eclipsara, mal praticado o ato, apareceu, lembro-me como se fosse hoje, sem fazer barulho, de pé no chão, cabeça baixa, com aquela cara que tia Alzira classificava de "cara de boi sonso"; chegando perto de papai, levantou o rosto de fuinha, encarou-o de revés, cravando nele os olhos pequenos e irrequietos, o instante suficiente para sondá-lo com profunda sagacidade; abaixou novamente a cabeça, o cabelo nunca penteado, que mamãe ameaçava mandar cortar à escovinha, a cair-lhe em farripas pela testa enrugada e suja.

Todos nós teríamos a bom tremer pela sua sorte, que papai, de ordinário calmo, sossegado, muito brincalhão, sabia ser violentíssimo quando para tal lhe davam fortes motivos, e na fúria de que se enchia era fugir-lhe da frente, pois até a pancada fazia parte da sua maneira de ser severo. A preta Paulina, que nós chamávamos de Lalá, e que trouxera o nosso herói ao colo desde o seu primeiro dia, chorava e rezava no corredor, espiando.

- Como foi isso? - meu pai o interpelou com o cenho carregado.

Aluísio era muito imaginativo e, sem titubear, inventou-lhe ali mesmo não sei que história fantástica em que entrava um bandido, verdadeiramente o autor do lamentável desastre, fugindo logo após praticá-lo, sem que ninguém visse, pois ele, Aluísio, tinha sido a única pessoa que presenciara tão misteriosos fatos, por acaso, acrescentava com razoável dose de modéstia, quando fora buscar na sala o álbum de retratos para folhear, o que, inexplicável dado o seu gênio incapaz de ficar parado um segundo, era inegavelmente uma das suas maiores distrações.

- Nada pude fazer - continuou num tom diferente, porque um medo, para que mentir?, um medo terrível tinha-o invadido, paralisando-lhe os movimentos, tirando-lhe a fala, tornando-o mudo, incapaz de gritar por socorro, como seria natural, não é mesmo?

Meu pai ouvia de boca aberta, numa admiração indisfarçável pela inteligência fantasiosa do pequeno. Eu e mamãe estávamos bestificados, Paulina, arregalando medonhamente os olhos, nem podia acreditar.

Aluísio descreveu ainda, com brilhante colorido e absoluta segurança de ânimo, o aspecto do sujeito: trazia compridas suíças, cor de fogo frisava, com aquele sutil amor pelo detalhe, um dos seus mais brilhantes característicos e uma meia máscara roxa nos olhos; as botas vinham até os joelhos, parece que estava armado, mas isso não garantia porque uma imensa capa preta envolvia-o todo.

Depois, quando percebeu que poderia, sem receio, terminar, fez um silêncio brusco deixando cair os braços, que agitara adequadamente no correr da sensacional narrativa.

Papai não se conteve - soltou uma tremenda gargalhada. Sentou-se na cadeira mais próxima a se estorcer, chamou-o para junto de si, passou-lhe a mão pela cabeça: Você ainda há de dar coisa na vida! - sentenciou com legítimo orgulho paternal. Em frases truncadas, sem continuidade, para o restrito e ainda boquiaberto auditório, traçou-lhe um esplendoroso porvir, e mandou-o passear.

Pegando na palavra paterna, durante umas tantas semanas, Aluísio pôs os livros de banda e não parou em casa, soltando papagaios no morro, jogando gude na rua, no meio de molecada. Chegou dia, porém, em que tanta liberdade precisava ter um freio; papai ralhou - vagabundo! - e mamãe passou o cadeado no portão de ferro. O acidente é que jamais foi esquecido, ficando conhecido na família, e contado às visitas entre gargalhadas, como o caso do bandido, ao invés do vaso da China, como seria mais justo, dada a sua origem.

Mas, origens e transformações, tudo são injustiças neste mundo, rótulos de ouro e mercadorias baratas, tanto assim que falhei, redondamente, na primeira ocasião que tentei empregar o mesmo método do mano Aluísio, hoje advogado, e se, incontestavelmente bem colocado, com uma bonita carreira na sua frente, nem por sombra tem aquele portentoso futuro que profetizara meu pai, posto para sempre distante do nosso afeto, bom pai, quando naquele ano, tão doloroso para a minha gente, chegavam os primeiros rigores do verão.

Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai lhe bebia a água. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa, à sombra plácida da mangueira, para a água ficar mais fresca e se impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em domingos de verão, se não era infalível, freqüentemente aparecia Seu Sousa para palestrar algumas horas; mamãe achava-o extremamente cacete, mas atendia-o com especiais finezas, porque o marido, que ela colocava pouco abaixo das coisas celestes, elogiava-o, com sincero ardor, como sendo um homem de peso e medida! Seu Sousa não escondia, como poderia fazer usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz no pescoço e era bastante enjoado, não variando nunca de conversas questões de terrenos para vender - e de graças: Você tem água gelada com gelo, compadre?

Papai respondia logo:

- Gelo é um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha fresquinha e gritava para dentro: - Onde está a moringa? Olhem que o Sousa também quer.

Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o único mortal com quem meu pai dividia o precioso conteúdo da sua moringa. Este célebre objeto, externamente, não correspondia em absoluto a tão súbitas distinções, comuníssima moringa, dessas que se encontram nas menos sortidas das quitandas. Talvez custasse poucos tostões mais, não duvido, por ser pintada, porque lá isso era ela, com casinhas e beija-flores, dentro de um oval que era uma espécie de grinalda de florezinhas róseas e azuis. - No mais uma banalíssima moringa, como já se disse.

Já que falamos de moringa, falemos também de peteca, o que à primeira vista parecendo extravagante, senão absurdo, tem memorável relação nos acontecimentos da minha existência.

Fora uma das minhas grandes ambições, ideal de criança, bem se nota, mas, pela vida adiante, não creio que, das muitíssimas que me vieram, todas tivessem sido maiores ou melhores que a da ingênua posse duma peteca.

Numa loja de brinquedos meus olhos ansiosos tudo punham de parte, trens e velocípedes, jogos e rema-remas, para buscá-la humilde e escondida. Como, quando ia à cidade, voltava sempre com as mãos abanando e sofria horrivelmente no bonde o fato de ter, mais uma vez, deixado na sua vitrine o objeto dos meus caros sonhos, o ir à cidade era motivo para mim de secretos padecimentos, e, infelizmente, isso acontecia com certa regularidade semanal, pois mamãe, não gostando de sair sozinha, e como eu era o filho mais velho, preferia-me para acompanhá-la. Tem mais juízo! - falava. Talvez por isso mesmo fizesse o Aluísio tanta diabrura - não gostava de ir à cidade. Preferia ficar em casa, longe dos ralhos da mãe, a fazer o que lhe desse na cabeça pedras nos quintais vizinhos, estripulias no alto do muro, maldades até, como no dia em que cortou, com o machado, o rabo da gata malhada que Lalá tinha criado com papinhas.

Uma tragédia os meus passeios, porque mamãe não chamava de outra maneira as minhas saídas. Voltava sucumbido. À noite sonhava com ela, a peteca querida, via-a minha, pular no ar, ao bater das palmadas estrepitosas, lept, lept, com as penas vermelhas, lindíssima peteca! Interessante é que não ousava pedi-la aos meus pais, sabendo perfeitamente que pouco seria o seu preço para que eles ma negassem. Idiota, poderão dizer, ilógico, poderão argumentar, levando em conta a facilidade de pedir que é própria das crianças. Nada me fará mudar: pura verdade é o que conto e a mim é quanto me basta.

Vivi assim, longo tempo, sonhando com petecas e ambicionando-as nas montras, quando um belo dia, um dos domingos do Seu Sousa - parece incrível - ele me presenteou com uma.

Nessa tarde excepcional eu compreendi o segredo difícil das simpatias. Olhei de frente o velho amigo de meu pai e, se continuei a achá-lo feio, é impossível esconder que achei-o infinitamente agradável. A grosseira cicatriz do pescoço, longe de qualquer piedade pela má aparência que causava, infundia-me, pelo seu dono, uma notável admiração, tentando ligá-la heroicamente a um episódio desconhecido da sua vida, um ataque inopinado que sofrera, de inimigos covardes, ficando aquele ferimento por lembrança, amarga e sempre viva, da sua coragem reagindo. Cheguei a rir das suas eternas piadas, corria a buscar a moringa quando era hora, ficava perto dele, ouvindo-o conversar (soube aí ser proprietário de não sei quantos terrenos em Botafogo), esperava por ele no portão, levava-o até o bonde quando se ia, largos passos, que eu mal acompanhava, o chapéu-chile de abas para cima.

Pois da moringa e da peteca nasceu uma desgraça: minha mão inexperiente impeliu a última contra a primeira e esta ficou em cacos. Ninguém se alarmou: "moringas há milhões por este mundo, iguais como as formigas" - serenou-me minha mãe, que fazia comparações engraçadas.

Tínhamos já acendido a luz quando papai chegou, atrasado, para jantar, e como fizera demasiado calor durante o dia, entrando suado, com sede, gritou logo:

- Vejam a minha moringa!

Contaram que se quebrara e eu fora o culpado por andar jogando peteca dentro de casa. Chamou-me. Dirigi-me a ele serenamente e tratei de inventar a aventura de um gato que perseguindo um rato...

Eu era, porém, pouco imaginativo e até a meio da minha história, trivialíssima, não conseguira encaixar nenhuma passagem de extraordinário realce. Verdade seja dita, não passei além do meio: papai deu-me um tabefe na boca:

- Mentiroso!

Puxou-me pelas orelhas, levou-me para o quarto, sem jantar, disse-me, com dureza, "que um homem que mentia não era um homem", pôs-me de castigo uma semana, preso em casa, sem pôr os pés fora, na varanda que fosse. Aluísio, insensível à minha prisão, folgava, não parecendo sentir a falta do companheiro. Era de vê-la a facilidade indiferente com que supria, nos seus brinquedos, a minha pessoa ausente. Da janela do meu quarto, enquanto descansava as mãos doloridas de copiar, com boa letra e sem nenhum erro, as trinta páginas da minha geografia, que papai, pela manhã, antes de sair, inflexivelmente, me marcava, ficava vendo-o correr, subir às árvores, com desembaraço e agilidade. E invejava-o surdamente. Tinha dez anos.

(Oscarina, 1931.)

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Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Marques Rebelo (A Estrela Sobe)


texto de Márcio Renato dos Santos, extrato de dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná

Publicado em 1939, A Estrela Sobe se passa em grande parte “no pequeno mundo das estações de rádio", contando as peripécias e sofrimentos de Leniza Maier, moça suburbana que, no Rio de Janeiro da década de 1930, sonha com o sucesso como cantora. Sua jornada rumo ao estrelato é marcada por percalços e dilemas morais: quer cortar os laços com todos os que possam atrapalhar sua ascensão, mas a nostalgia pela vida pregressa a domina. No fim, engravida e aborta, chegando à beira do delírio e da morte. Salva-se, mas sua crise está longe de terminar. Antes de dar um fecho convencional à história, porém, o autor prefere deixá-la em aberto. Diz o narrador: “... aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas, como romancista perdi-a".

Como já citado, a personagem central se chama Leniza. De origem humilde, fica órfã de pai ainda pequena. A mãe passa a trabalhar fora. Leniza trabalha para ajudar nas despesas. Moça atraente, namora muito, e variadamente, e é muito assediada pelas ruas do Rio de Janeiro. Muda de emprego. Trabalhava em um laboratório quando conheceu e se apaixonou por um médico, o Oliveira. Leniza fica ora com Oliveira, ora com Mário Alves — este, dono de um estabelecimento que comercializa aparelhos eletrônicos, entre os quais, rádios. Ela sonha se tornar uma cantora do rádio. Abandona o emprego no laboratório. O patrão adverte que vida de artista não é fácil. A mãe fica com medo. Mário Alves a leva para fazer o teste em uma emissora. Leniza não conta para Oliveira que está cantando no rádio: alega estar em férias. Ela passa a se chamar Leniza Máier. Suas fotos são publicadas em revistas. Oliveira reprova a opção de Leniza. Ela se relaciona com Mário Alves mas pensa em Oliveira.

O mês passa e ela não recebe nenhum centavo na emissora de rádio. Entra em pânico: está difícil sobreviver, mas crê estar em ascensão:

Sentia-se miserável, imunda, escória humana, campo de todos os pecados, lama, pura lama. Mas subira. Dois ou três degraus na escada do mundo. Via que já estava num plano bem acima, algumas figuras já ficavam menores, a miséria escondia-se já numa bruma longínqua. Mas precisava subir mais, sempre mais, custasse o que custasse.

Leniza consegue algum dinheiro. Muda-se da casa do subúrbio para um apartamento na zona sul carioca. A mãe vai junto. Leniza rompe com Mário Alves. Oliveira não a quer mais. Ela, então, passa a namorar Dulce, uma colega da rádio. Dulce ensina: as cantoras não ganham dinheiro na rádio, é preciso ter um amante. Leniza abandona Dulce e se oferece para ser amante de Porto, homem forte na rádio. A mãe de Leniza fica doente. Leniza dá um fora em Porto e passa a ser amante de Amaro, um homem rico. Ela vai cantar em outra emissora de rádio. Sente-se infeliz. E toda vez que encontra com Oliveira, casualmente, na rua, imagina que ele, e somente ele, poderia tirá-la do mundo infeliz em que ela se encontra.

A personagem fica grávida. Amaro, o “pai da criança”, se afasta. Ela quer fazer aborto. Procura Oliveira. Ele se nega a participar da operação. Leniza aborta. Fica vários dias entre a vida e a morte, agonizando em seu quarto. A mãe, que recebeu cartas anônimas, se afasta da filha. A protagonista do romance A estrela sobe tem uma idéia: ela precisa ir até uma igreja, onde acredita que irá encontrar a solução para seus problemas. No desfecho da obra, uma sexta-feira 13, Leniza acorda decidida. E sai do apartamento:

Andava, andava, esbarrando nos homens, nas mulheres, como se estivesse embriagada. Andava, andava. Veio-lhe claro como um clarim o desejo de humilhação. Queria se arrastar, pedir perdão, implorar. Lembrou-se da mãe, que fora buscar no recolhimento o consolo para a sua miséria humana. Lembrou-se da igreja do Rosário onde fora batizada, tão redonda, tão pequena, tão linda e dourada. Tinha ido qual fumaça o delírio místico da primeira comunhão aos doze anos... Caiu na realidade — estava perto da igreja. Caminhou contente, depressa, ansiosa por chegar. Sentia já nas narinas o ar confinado da igreja, morno e azedo, nos ouvidos o eco côncavo das naves desertas, nos olhos a obscuridade em que as almas se ajoelham ansiosas de luz. Não, não saberia rezar! Um vento ímpio, que soprou por anos, levara-lhe da memória as confortadoras, mecânicas orações. Mas comporia, inventaria, deixaria sair sem freio do coração as palavras mais espontâneas e humildes, os cantos mais sinceros de fé e de contrição. Deixar-se-ia arrastar pelo... Ah!, e estacou — a igreja estava fechada. [...] O céu não me quer! — e novamente mergulhou na onda humana, caudal de sofrimentos, inquietudes, aflições, incertezas, pecados.

Ela pensou encontrar na igreja uma solução para seus problemas, mas a porta da igreja estava fechada. A simbologia é clara: a igreja não daria o que ela buscava.

Leniza Máier é uma jovem pobre em busca de sucesso na grande fábrica de sonhos da época: o rádio. E, como visto, para conseguir seus objetivos utiliza de todos os meios – a ponto de recusar o amor verdadeiro e aceitar outros, menos sinceros. A personagem é uma alegoria da cidade do Rio de Janeiro. Os conflitos, as perplexidades, as angústias, as alegrias da personagem, na verdade, são os conflitos, as perplexidades, as angústias e as alegrias da cidade. Sua voz se confunde com a voz do rádio; sua ascensão como cantora representa a modernização da sociedade. Embora protagonista da estória, Leniza não é a sua personagem principal. A fama, antiga deusa grega que significa voz pública, essa sim, é a voz principal do romance. Leniza, mais do que uma voz, é porta-voz, sua voz é uma metáfora da vox populi.

A prosa urbana moderna. Esse é o lugar literário da obra do escritor Marques Rebelo, que, deste modo, se insere na linha de Manuel Antônio de Almeida, de Machado de Assis e de Lima Barreto. Como seus predecessores, Rebelo aprendeu as armas do distanciamento e da ironia, que usa nos melhores momentos de sua ficção. O crítico Alfredo Bosi o classifica como um neo-realista que, contudo, não perde sua veia lírica, empregada comedidamente. Seu mundo é o de gente simples, mocinhas aventureiras, pequenos funcionários, caixeiros-viajantes, donas-de-casa, estudantes, malandros, marinheiros, boêmios, sambistas, cujos pequenos dramas são focados numa prosa “tensa e lírica", cuja naturalidade resulta de sutil estilização dos valores da linguagem coloquial, sobretudo nos diálogos.

Para o escritor Mário de Andrade, o final inacabado confirma a modernidade do romance, pois privilegia mais o fluir da vida do que a elaboração de um entrecho bem-acabado, atrevendo-se até a apor um final arbitrário. O fator decisivo para a vitalidade da obra é a capacidade de representar as tensões do quadro social, sem que o romancista ceda a dogmatismos ideológicos. Leniza não se arrepende ou se converte, salvando o romance de um possível esquematismo tardiamente romântico.

Fonte:

Marques Rebelo (1907 – 1973)


Segundo ocupante da Cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 10 de dezembro de 1964, na sucessão de Carlos Magalhães de Azeredo e recebido pelo Acadêmico Aurélio Buarque de Holanda em 28 de maio de 1965. Recebeu os Acadêmicos Francisco de Assis Barbosa e Herberto Sales.

Marques Rebelo (nome literário de Edi Dias da Cruz), jornalista, contista, cronista, novelista e romancista, nasceu no Rio de Janeiro, em 6 de janeiro de 1907, e faleceu também nessa cidade em 26 de agosto de 1973.

Era filho do químico Manuel Dias da Cruz Neto e de Rosa Reis Dias da Cruz. Sua infância dividiu-se entre Vila Isabel, onde nasceu, e a cidade mineira de Barbacena, para onde sua família se mudou quando ele tinha quatro anos. O que nunca lhe faltou, no Rio ou em Minas, foi um terreno baldio para jogar futebol e livros para ler. Além dos livros de ficção da biblioteca de seu pai, aos 11 anos já tinha lido autores que os outros só lêem quando adultos: Buffon, Flaubert, Balzac e os clássicos portugueses. Aos 15 anos o conhecimento de Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida iria despertar nele a “coceira de escrever” de que nunca mais se libertaria. Prosseguiu seus estudos e, no início dos anos 20, ingressou na Faculdade de Medicina, que logo abandonou para se dedicar ao comércio.

Dedicou-se ao jornalismo profissional no início dos anos 20. Publicou poemas nas revistas modernistas Verde, Antropofagia, Leite Crioulo e outras.

Escreveu seus primeiros contos por volta de 1927, quando fazia o Serviço Militar. Oscarina, publicado em 1931, é, em grande parte, fruto de sua vivência na caserna, que se transformou em literatura graças a uma queda sofrida numa competição esportiva que o reteve meses numa cama de hospital, e ele aproveitava o tempo para escrever.

Juntamente com a decisão de abandonar a poesia e se tornar ficcionista, o escritor tomou a de rebatizar-se.

Questionado porque adotou o pseudônimo de Marques Rebelo, Edi Dias da Cruz explicou: “Nome de família muitas vezes atrapalha. Devido à campanha que fizeram contra os modernistas na Semana de Arte Moderna, justamente na época e por influência da mesma senti que tinha vocação para a literatura e resolvi adotar esse pseudônimo, evitando assim sofrimentos para a família.”

Dois anos depois de Oscarina, veio a público Três caminhos, volume composto pelas novelas “Namorada”, “Vejo a lua no céu” e “Circo de cavalinhos”, e o romance Marafa, em 1935, laureado com o Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, da Cia. Editora Nacional.

O grande êxito viria em 1939 com A estrela sobre, romance de uma jovem suburbana que “vence” no rádio, a grande fábrica de ilusões dos anos 30.

Marques Rebelo integrou a geração que fez o Romance de 30, inserido na linha da literatura de acusação e de denúncia da miséria brasileira.

Foi o romancista do Rio de Janeiro, sobretudo de sua gente simples e humilde. Para ele, o Rio era a Zona Norte, de onde vinha o Carnaval e onde ia buscar a maioria dos seus personagens de classe média.

Escreveu sobre futebol, viagens e sobre Manuel Antônio de Almeida, o primeiro romancista brasileiro a retratar a vida urbana do Rio de Janeiro. Depois de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto, Marques Rebelo é o mais apaixonado pintor da vida carioca. Mas o Rio por ele descrito já desapareceu, pois ele retratou a cidade nos últimos anos pré-industriais, quando na Tijuca ainda se faziam serenatas, a Lapa estava no auge e casais de namorados passeavam de bonde.

Depois de anos de paciente trabalho, publicou em 1959 O Trapicheiro, seguido de mais dois volumes: A mudança (1962) e A guerra está entre nós (1968), que formam o grande e inconcluso romance cíclico O espelho partido, painel fragmentário da vida brasileira, especialmente carioca, na primeira metade do século.

Obras:
Oscarina, contos (1931);
Três caminhos, contos (1933);
Marafa, (1935);
A estrela sobe (1939);
Stela me abriu a porta, contos (1942):
Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida, biografia (1943);
Cenas da vida brasileira, crônica de viagem (1943);
Bibliografia de Manuel Antônio de Almeida (1951);
Cortina de ferro, crônica de viagem (1956);
Correio europeu, crônica de viagem (1959);
O trapicheiro (1959);
A mudança (1962);
O simples Coronel Madureira, novela (1967);
Antologia Escolar Brasileira (1967);
Brasil, Terra & Alma: Guanabara, antologia (1967);
A guerra está entre nós (1968);
Antologia Escolar Portuguesa (1970).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

terça-feira, 13 de abril de 2010

Pausa até Quinta-feira


Comunico que até a quinta feira, dia 15 de abril, não haverão postagens, em virtude de treinamento que estarei participando para a realização do Censo 2010.

Sexta-feira retorno às postagens normais.

Obrigado

José Feldman

Seletiva de Obras Poetas 2010 na Paco Editorial



A PACO EDITORIAL está abrindo a primeira seletiva de obras para o projeto 2010 poetas. Na primeira fase serão publicadas obras de 30 poetas nacionais, selecionados entre autores de todo o Brasil.

As obras serão publicadas durante o mês de junho de 2010 e farão parte da Coleção NOVAS LETRAS, cujo foco é dar a oportunidade de publicação a novos talentos nacionais. Não se trata de antologia poética, com vários poetas, mas de livros individuais de cada autor.

Os livros serão publicados com as seguintes características:

FORMATO 14X21CM, COM ORELHAS DE 6CM.
CAPA COLORIDA, EM PAPEL TRIPLEX 250gr/m²
MIOLO COM 80 PÁGINAS, DE 1X1 COR, EM PAPEL BRANCO 75gr/m². ACABAMENTO: COLADO COM HOTMELT.

Os poetas interessados deverão enviar seus originais para avaliação para o e-mail originais@pacoeditorial.com.br , entre os dias 09 a 19 de abril de 2010. As obras deverão estar em arquivo de Word, juntamente com os dados pessoais do autor (NOME, ENDEREÇO E TELEFONE).

Todos os originais recebidos serão avaliados pela equipe da PACO, dos quais apenas os 30 melhores serão publicados.

Veja mais informações em: www.pacoeditorial.com.br/2010poetas.html

RENATO BREDAS
COORDENAÇÃO EDITORIAL
http://www.pacoeditorial.com.br/
coordenacao@pacoeditorial.com.br
11 4521 6315

Fonte:
Colaboração de Renato Bredas