domingo, 25 de setembro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) II – A Minha Aurora; III – Capitão Nemo


CAPITULO II
A Minha Aurora

Pela primeira vez depois de recolhido àquela mansão punha eu o nariz fora do meu quarto de doente.

Senti-me surpreso. A casa do professor Benson não era ao tipo da casa vulgar. Dava antes ideia de uma espécie de castelo, não pelo estilo, que não lembrava nenhum dos castelos clássicos que eu vira reproduzidos em cartões postais, mas pela massa e o estranho da construção. Olhei para aquilo com marcado espanto. Além do corpo fronteiro, evidentemente moradia familiar, erguiam-se pavilhões, galerias envidraçadas e vários minaretes altíssimos, ou, melhor, torres de ferro enxadrezado, entretecidas de fios de arame.

— Que diabo de casa é esta? perguntei ao criado, voltando-me para ele.

O criado, um tipo de misterioso aspecto e mais com ar de autômato do que de gente, permaneceu imovel atrás de mim, sem mostras de ter ouvido.

Repeti-lhe a pergunta, e nada. Lembrei-me então da minha conversa com o corretor, quando me deu informes sobre o sábio Benson e contou que vivia misteriosamente, servido por criados mudos. Sem duvida era aquele um dos tais. Isto me fez estremecer. O pouco que eu vira já me provara não ser o morador do castelo um homem comum — e o viver servido por mudos ainda mais me aguçava a ponta do enigma.

Prossegui, entretanto, no meu passeio, conformado em fazê-lo cm silencio, uma vez que o mutismo era a senha da casa. Em redor do castelo estendiam-se campos e florestas. Região montanhosa mas de relevo suave, cochilas mansas que ao longe ganhavam corpo até se erguerem na morraria de um dos contrafortes da serra do Mar. Nos vales, belos capões de mata virgem; e nas lombas, um tapete de gramíneas crioulas, naquela época revestidas de florzinhas róseas.

Notei logo que a natureza não era ali trabalhada. Tudo vivia em estado selvagem, sem sombra de intervenção humana além da impressa nos caminhos. Nem gado nas pastagens, nem sombras de cultura — porteiras ou cercas. Um pedaço de natureza virgem onde o homem só abriria passagens que lhe dessem o gozo das perspectivas naturais.

Compreendi que não estava numa fazenda. Homem de posses, o professor Benson teria aquilo apenas para recreio dos sentidos, sem o menor recurso ás possibilidades do solo. Unicamente em redor da casa havia algo beneficiado: belo jardim todo garrido de rosas; aos
fundos, o pomar.

Caminhei por espaço de meia hora e, no alto de uma colina, sentei-me no topo de um cupim para admirar a vista soberba dali descortinada. Impressionava estranhamente aquele castelo de inexplicável arquitetura, em meio duma natureza rude e calma, onde só uma ou outra ave silvestre rompia o silencio com o seu piar.

Afeito ao meu viver de cidade, no tumulto das ruas, aquele silencio e aquela solidão punham-me novidades n'alma. Senti no cérebro um referver de ideias novas, a saírem da casca que nem pintos.

A impressão geral que tive diante da natureza liberta da presença e ação do homem, coisa que via pela primeira vez, foi da minha absoluta nihilidade — da nihilidade absoluta dos meus patrões, naquele momento a se esbofarem no escritório e a maldizerem do empregado desaparecido sem licença. — Para eles era eu o empregado — e tambem vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde peça da maquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia. houveram por bem montar dentro de uma certa aglomeração humana. Mas ali não me via empregado de ninguém; era um ser igual ás ervas que esverdeciam as colinas, ás árvores que frondejavam nas grotas e ás aves que piavam nas moitas. Sentia-me deliciosamente integrado na natureza.

Minha loquela desaparecera. A necessidade de falar a todo o transe, tamanha que me fazia ás vezes falar sozinho, se substituira pela necessidade do silencio. Cheguei a agradecer a finura do velho sábio em dar-me um companheiro mudo, compreendendo que, se em vez dele ali estivesse o meu barbeiro, terrível alto falante de futebol e jogo de bicho, bem certo que eu chegaria ao extremo de amordaça-lo.

Talvez até nem fosse mudo de nascença o criado, mas apenas emudecido por influição local. Comigo vi que tambem emudeceria, se permanecesse algum tempo naquele deserto. O ar livre abriu-me o apetite e o apetite aberto fez-me lembrar do almoço e da ordem de aparecer antes dele no gabinete do professor Benson. Tratei de voltar — e ao pôr pé no castelo já me sentia bem outro homem, varrido das preocupações de outrora e absolutamente exonerado, por incompatibilidade psicológica, das funções de factotum crônico dos senhores Sá, Pato & Cia.

CAPITULO III
O Capitão Nemo

Quando o criado me fez entrar no gabinete do doutor Benson o velho não se achava ali. Aproveitei o ensejo para correr os olhos pelas paredes e admirar, ou antes, embasbacar-me com as estranhas coisas que via. Devo dizer que não compreendi nada de nada.

Conhecia o gabinete de trabalho dos meus patrões e o de muitos outros negociantes. Tambem conhecia consultórios médicos, salas de advogado, salões de hotel, e facilmente tomava pé num deles. Os moveis, os quadros das paredes, os objetos de cima de mesa, os bibelôs, as estatuetas, essas coisas todas me valiam por marcas digitais das que revelam a profissão do dono. No gabinete do professor Benson, porém, tudo me era desnorteante e, fora as poltronas, nas quais o corpo afundava, como nas do Derby Club, onde estive uma vez á procura dum figurão, tudo mais me valia por citações em caracteres chineses numa página em lingua materna. Pelas paredes, quadros — não quadros comuns com pinturas ou retratos, mas quadros de mármore, como os das usinas elétricas, inçados de botõezinhos de ebonite. E reentrâncias, afunilamentos que se metiam pelos muros como cornetas de gramofone, lâmpadas elétricas dos mais estranhos aspectos, grupos de fios que vinham aos quatro, aos cinco, aos vinte e de repente se sumiam pelo muro a dentro.

Todavia, o que mais me prendeu a atenção foi, ao lado da secretária do professor, um enorme globo de cristal, e sobre ela, apontado para o globo, um curioso instrumento de olhar, ou que me pareceu tal por uma vaga semelhança com o microscópio.

Eu lera em criança um romance de Julio Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas, e aquele gabinete misterioso logo me evocou varias gravuras representando os aposentos reservados do capitão Nemo. Lembrei-me tambem do professor Aronnax e senti-me na sua posição ao ver-se prisioneiro no "Nautilus".

Nesse momento uma porta se abriu e o professor Benson entrou.

— Bom dia, meu caro senhor... Seu nome? Ainda não sei o seu nome.

— Ayrton Lobo, ex-empregado da firma Sá, Pato & Cia., respondi, fazendo uma reverencia de cabeça e carregando no ex com infinito prazer.

— Muito bem, disse o professor. Queira sentar-se e ouvir-me.

O hábito de sempre falar de pé aos ex-patrões impediu-me de cumprir a primeira ordem dada pelo meu novo chefe, e vacilei uns instantes, permanecendo perfilado. O professor Benson compreendeu a minha atitude; pos-me a mão no ombro e, paternalmente, murmurou na sua voz cansada:

— Sente-se. Não creia que o vou reter aqui como a um subalterno. Disse que iria ser o meu confidente e os confidentes não se equiparam aos homens de serviço. Sente-se e conversemos.

Sentei-me sem mais embaraço, porque o tom do misterioso velho era na realidade cordial.

— O senhor Ayrton, pelo que vejo e adivinho, é um inocente, começou ele. Chamo inocente ao homem comum, de educação mediana e pouco penetrado nos segredos da natureza. Empregado no comercio: quer dizer que não teve estudos.

— Estudos ligeiros, ginasiais apenas, expliquei com modéstia.

— Isso e nada é o mesmo. Eu preferia ter para confidente um sábio ou, melhor, uma organização de sábio, inteligência de escol, das que compreendem. Em regra, o homem é um bipede incompreensivo. Alimenta-se de ideias feitas e desnorteia diante do novo. Mas costumo
respeitar as injunções do Acaso. Ele o trouxe ao meu encontro, seja pois o meu confidente. E saiba, senhor Ayrton, que é a primeira criatura humana aqui entrada desde que conclui a construção deste laboratório.

—O castelo, quer dizer?

—Sim, o castelo, como romanticamente lhe apraz chamar esta oficina de estudos onde realizei a mais extraordinária descoberta de todos os tempos.

Sem querer dei um recuo na poltrona, pensando logo na pedra filosofal e no elixir da longa vida.

— Não se assuste, nem arregale, dessa maneira, os olhos. Nem tente adivinhar o que é. Saiba apenas que se acha diante de um homem condenado a levar consigo ao túmulo o seu invento, porque esse invento excede á capacidade humana de adaptação ás descobertas. Se eu o divulgasse, pobre humanidade! Seria impossível prever a soma de consequências que isso determinaria. Se houvesse, ou antes, se predominasse no homem o bom senso, a inteligência superior, as qualidades nobres em suma, sem medo eu atiraria á divulgação a minha maravilhosa descoberta. Mas sendo o homem como é, vicioso e mau, com um pendor irredutível para o despotismo, não posso deixar entre eles tão perigosa arma.

— Quer dizer, atrevi-me a murmurar, que se o doutor quisesse...

— Se eu quisesse, interrompeu-me o velho sábio, tornar-me-ia o senhor do mundo, pois me vejo armado de uma potência que até hoje os místicos julgaram atributo exclusivo da divindade.

Dei novo recuo na cadeira, desta vez meio na duvida se falava com um somem sadio dos miolos ou com um maluco. O ar sempre sereno do professor Benson acomodou-me, porém.

— Mas não quero. A dominação sobre o mundo não me daria prazeres maiores que os que gozo. Não me faria ver mais azul e límpida aquela serra, nem respirar com mais prazer este ar puro, nem ouvir melhor música que a do sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar. Além disso, estou velho, tenho os dias contados e nada do que é do mundo consegue interessar-me. Vivi demais, satisfiz demais a minha outrora insaciável, mas hoje saciada, curiosidade de sábio. Só aspiro a morrer sem dor e desfazer-me na vida do universo transfeito em átomos. Quem sabe se cada um desses átomos não levará consigo a capacidade de gozo que há em mim, e se com esse desdobramento não elevo ao extremo as minhas possibilidades?...

Não compreendi muito bem, lento que sou de espirito, a alta filosofia do professor; mas calei-me, cheio de admiração pelo homem que podendo ser imperador, presidente de republica, rei do aço, sultão ou o que lhe desse na telha, visto que podia tudo, contentava-se com ser um misterioso velhinho ignorado do mundo e á espera da morte naquele sereno recanto da natureza.

Nisto um criado surgiu á porta e fez sinal.

— Vamos ao almoço, senhor, Ayrton. Depois continuarei nas minhas confidências, disse-me o professor erguendo-se com dificuldade da poltrona.
––––––––
continua… IV – Miss Jane; V – Tudo Eter que Vibra

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 345)

Uma Trova Nacional

Uma Trova Potiguar

Nas flores de meu terraço,
cultivo o amor à beleza,
e assim preservo um pedaço
do primor da natureza.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Amparo/SP
Tema: NATUREZA - Venc.

Grassa o inverno... E a natureza
se agasalha, enquanto espera
para eclodir, em beleza,
nas flores da primavera!
–ALMIRA GUARACY REBELO/MG–

Uma Trova de Ademar

Minha mente é qual jazida
onde o verso prolifera...
De poesia eu pinto a vida
com cores da primavera!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

A primavera opulenta,
rica de cantos e cores,
palpita, anseia, rebenta,
em cataclismo de flores.
–GUERRA JUNQUEIRO/PT–

Simplesmente Poesia

Acróstico
–SERGIO SEVERO/RN–

P assa o Inverno e éis chegada,
R adiante, a Primavera,
I ndicada pelas Flores,
M uitos Tons e mil Olores,
A pós um ano de espera.
V enha, Linda Primavera,
E colora minha Vida,
R epondo a Graça perdida,
A nda! Que o Verão não espera.

Estrofe do Dia

A primavera, é portanto,
diva e berçário das cores,
quando a natureza viva
eclode em seus esplendores,
mostrando a crentes e incréus
todas as cores dos céus
no colorido das flores!
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Reciclagem
–DARLY O. BARROS/SP–

O outono chega e o seu poder externa,
provando ser do clima o novo dono
mas, prevenida, a natureza hiberna
– colo de mãe e só o quer, no outono...

E como é próprio da missão materna,
zelosa, a terra vela por seu sono:
entre deveres e atenções se alterna
sonhando-a, gloriosa, no seu trono...

Com esse fito, age – o tempo é breve –,
se a brisa sopra, ainda só de leve,
há que pensar no inverno e em seus rigores!

Meses mais tarde, coroando a espera,
a terra-mãe exibe a primavera,
engalanada de verdor e flores...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Ialmar Pio Schneider (Participação e Poesia)

aquarela de Angela Ponsi
Vivemos numa época conturbada, mas nem por isto é necessário mergulharmos na solidão e ignorar o que existe ao nosso redor. Sempre encontraremos alguém que possa nos compreender, com nossos defeitos e virtudes e nos aceitar. Segundo meu entender, não fomos criados para o ostracismo, nem jamais seremos auto-suficientes, pois “uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto”. Assim aprendi desde cedo.

Em certa fase da vida, quem sabe atravessando momentos existenciais difíceis, compus o seguinte soneto, que consta na pág. 133 do meu livro Poesias Esparsas Reunidas, abaixo referido, como segue:

SONETO DA LIBERTAÇÃO –

Quero o caminho da libertação
para seguir na vida mais confiante,
se alimentava mórbida ilusão
procurarei bani-la, doravante.

Preciso estar alerta a todo instante
e suportar a humana condição,
minha vigília deve ser constante
neste universo envolto em turbilhão…

Levo comigo a chama da esperança
e apesar dos percalços da existência
tenho fé, tenho amor, tenho confiança…

Não mais serei o náufrago perdido
pelos mares da angústia e da impaciência,
porque vencendo-me, terei vencido !

- Canoas - 29.01.85.

Lá se vão mais de quinze anos e quando o leio, ainda me parece tão atual, pois muito me ajudou a transpor certa fase que me deprimia, sensivelmente. Não posso ignorar que todos tenhamos a cruz para carregar e o calvário de cada um é a passagem terrena. Por isso que procuro dentro da filosofia, motivos que me levem à participação por intermédio da própria poesia, utilizando meu gênero preferido que é o soneto. Muitos deles (foram tantos), estão impregnados até de pessimismo, mas a mensagem que pretendi imprimir-lhes é de aceitação, sem o que não vejo paz de espírito. Também é certo que existam para todos nós, bons e maus momentos. A vida não passa de uma tragicomédia, plena de altos e baixos, que nos fazem rir e chorar, às vezes até conjuntamente.

Ao finalizar estas poucas e singelas linhas, quero agradecer do fundo do coração aos amigos e colegas que compareceram em minhas sessões de autógrafos na banca da Fundação Cultural de Canoas, na 16ª Feira do Livro de Canoas, nos dias 29 de junho (apesar da chuva ininterrupta) e 7 de julho, quando lancei meu livro de poemas Poesias Esparsas Reunidas, que abrange minha produção poética publicada na imprensa, bem como aos que adquiriram a obra ou me honrem com a leitura dos meus versos. Sem medo de cair em lugar-comum, não tenho palavras que demonstrem cabalmente minha gratidão. Devo dizer simplesmente: Muito obrigado, amigos ! Sejam todos felizes... É o desejo ardente do poeta que existe dentro de mim desde sempre.

Fonte:
http://ialmarpioschneider.blogspot.com/2009_12_01_archive.html

sábado, 24 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 22

Antonio Brás Constante (Assalto (In) Cômodo)


É um assalto!

Como?

Eu disse que é um assalto!

Mas, nem revolver você tem...

É que sou contra a violência. O desemprego me obrigou a partir para o mundo do crime, mas procuro fazer isso de forma pacífica.

Olha. Não me leva a mal, mas o que faz você pensar que eu vou aceitar ser assaltado por alguém que não usa armas e não gosta de violência?

Justamente para evitar mais violência desnecessária. Se você não colaborar comigo e chamar a polícia, vou acabar preso. A prisão vai servir de escola para me transformar em uma pessoa pior. Quando sair de lá provavelmente vou passar a ser violento e agressivo em meus assaltos. Você não quer isso quer?

Sei...

Sem falar que se eu fosse praticante da violência, ao invés de estarmos dialogando calmamente como agora, você estaria com uma arma apontada para sua cabeça, sendo agredido, humilhado, quem sabe até mesmo morto. Se tivesse problemas cardíacos poderia ter um ataque ou algo parecido...

E você acha que alguém em juízo perfeito vai dar dinheiro para um ladrão somente baseado nesses argumentos?

Claro. Pense bem. Se todos os assaltantes agissem assim, não haveria tantas mortes, violência, famílias que perdem seus maridos, filhos, irmãos entre outros em assaltos. As verbas contra a violência poderiam ser destinadas para outros fins como a geração de empregos, diminuindo assim o índice de assaltos até finalmente acabar com eles de vez.

Ok. Toma este dinheiro aqui...

Uau! Tudo isto? Como você é generoso...

Generoso nada. Pega este dinheiro e vai comprar uma arma. Sou um homem da lei. Se essa moda que você está pregando der certo vou acabar sem emprego. Por isso escuta bem, se eu te pegar tentando dar uma de assaltante bonzinho novamente, te prendo e cubro de porrada. Agora some daqui.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Spaceblog

Florbela Espanca (A Mensageira das Violetas) I


CRISÂNTEMOS

Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.
Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d´amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!
Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...
Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!

NO HOSPITAL

À Théa

Na vasta enfermaria ela repousa
Tão branca como a orla do lençol
Gorjeia a sua voz ternos perfumes
Como no bosque à noite o rouxinol.
É delicada e triste. O seu corpito
Tem o perfume casto da verbena.
Não são mais brancas as magnólias brancas
Que a sua boca tão branca e pequena.
Ouço dizer: - Seu rosto faz sonhar!
Serão pétalas de rosa ou de luar?
Talvez a neve que chorou o inverno...
Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:
É um astro cansado, que do céu
Veio repousar nas trevas dum inferno!

VULCÕES

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro...e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...
Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

O MEU ALENTEJO

Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Dourando tudo...ondeiam nos trigais
D´ouro fulvo, de leve...docemente...
As papoulas sangrentas, sensuais...
Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram por entre o ouro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros...
Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador...
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: onde há pintor,
Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?!

PAISAGEM

Uns bezerritos bebem lentamente
Na tranqüila levada do moinho.
Perpassa nos seus olhos, vagamente,
A sombra duma alma cor do linho!
Junto deles um par. Naturalmente
Namorados ou noivos. De mansinho
Soltam frases d´amor...e docemente
Uma criança canta no caminho!
Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d´amor e de ventura,
Ó meu amado e lindo Portugal!

VOZES DO MAR

Quando o sol vai caindo sob as águas
Num nervoso delíquio d´ouro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d´epopéias? Tens anseios
D´amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
...Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

CRAVOS VERMELHOS

Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d´esculturais sorrisos?!
...Bem sei vosso segredo...Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,
O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga..."

ANSEIOS

À minha Júlia

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não ´stendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

A ANTO!

Poeta da saudade, ó meu poeta qu´rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,
Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração...
Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!

NOITE TRÁGICA

O pavor e a angústia andam dançando...
Um sino grita endechas de poentes...
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!...
Tenho medo da noite!... Padre nosso
Que estais no céu... O que minh´alma teme!
Tenho medo da noite!... Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece...
Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ´squece!

ERRANTE

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

CEGUEIRA BENDITA

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho...
Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

Fonte:
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket).

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) I – O Desastre


(ROMANCE AMERICANO DO ANO 2228) (1)
1) Na 1.ª edição o titulo era o seguinte: "O CHOQUE DAS RAÇAS ou O PRESIDENTE NEGRO."

Nota dos Editores

Este romance de Monteiro Lobato, escrito em três semanas para o rodapé d'A MANHÃ, de Mario Rodrigues, no ano de 1926, antes da partida do autor para os Estados Unidos, constitui uma verdadeira curiosidade literária. Embora aparentemente uma "brincadeira de talento", encerra um quadro do que realmente seria o mundo de amanhã, se fosse Lobato o reformador — e em muitos pontos havemos de concordar que sob aparências brincalhonas brilha um pensamento de grande penetração psicológica e social. O conserto do mundo pela eugenia, o ajuste do casamento por meio das "férias conjugais", a criação da cidade de Eropolis, o teatro onírico... Como H. G. Wells, Monteiro Lobato talvez não tenha imaginado coisas, e sim apenas antecipado coisas. (1)

(1) A 1 ª edição de O PRESIDENTE NEGRO trazia a seguinte dedicatória: "A Arthur Neiva e Coelho Netto, dois grandes mestres no trabalho, na ciência e nas letras."

CAPITULO I

O Desastre

Achava-me um dia diante dos guichês do London Bank á espera de que o pagador gritasse a minha chapa, quando vi a cochilar num banco ao fundo certo corretor de negócios meu conhecido. Fui-me a ele, alegre da oportunidade de iludir o fastio da espera com uns dedos de prosa amiga.

— Esperando sua horinha, hein? disse-lhe com um tapa amigável no ombro, enquanto me sentava ao seu lado.

— É verdade. Espero pacientemente que me cantem o numero, e enquanto espero filosofo sobre os males que traz á vida a desonestidade dos homens.

— ?

— Sim, porque se não fosse a desonestidade dos homens tudo se simplificaria grandemente. Esta demora no pagamento do mais simples cheque, donde provém? Da necessidade de controle em vista dos artifícios da desonestidade. Fossem todos os homens sérios, não houvesse hipótese de falsificações ou abusos, e o recebimento de um dinheiro far-se-ia instantâneo. Ponho-me ás vezes a imaginar como seriam as coisas cá na terra se um sábio eugenismo desse combate á desonestidade por meio da completa eliminação dos desonestos.
Que paraíso!

— Tem razão, concordei eu, com os olhos parados de quem pela primeira vez reflete uma ideia. A vida é complicada, existem leis, polícia, embaraços de toda espécie, burocracia e mil peia?, tudo porque a desonestidade nas relações humanas constitui, como dizes, um elemento constante. Mas é mal sem remédio...

E por aí fomos, no filosofar vadio de quem não possui coisa melhor a fazer e apenas procura matar o tempo. Passamos depois a analisar vários tipos ali presentes, ou que entravam e saíam, na azafama peculiar aos negócios bancários. O meu amigo, frequentador que era dos bancos, conhecia muitos deles e foi-me enumerando particularidades curiosas relativas a cada qual. Nisto entrou um velho de aparencia distinta, já um tanto dobrado pelos anos.

— E aquele velho que ali vem? perguntei.

— Oh! Aquele é um caso sério. O professor Benson, nunca ouviu falar?

— Benson... Esse nome me é desconhecido.

— Pois o professor Benson é um homem misterioso que passa a vida no fundo dos laboratórios, talvez á procura da pedra filosofal. Sábio em ciências naturais e sábio ainda em finanças, coisa ao meu ver muito mais importante. E tão sábio que jamais perde. Dou-me com esses rapazes todos que trabalham nas seções de cambio e por eles sei deste homem coisas impressionantes. Benson joga no cambio, mas com tal segurança que não perde.

— Sorte!

— Não é bem sorte. A sorte caracteriza-se por um afluxo de paradas felizes, por uma media mais alta de lucro do que de perda. Mas Benson não perde nunca.

—Será possível?

— É mais que possível, é fato. Deve possuir hoje enorme fortuna. Mora em um complicado castelo lá dos lados de Friburgo, mas não cultiva relações sociais. Não tem amigos, ninguém ainda viu o interior do casarão onde vive em companhia de uma filha, servido por criados mudos, ao que dizem. Você sabe que depois da guerra o mundo inteiro jogou no marco alemão.

—Sei, sim, e fui uma das vitimas...

—Pois o mundo inteiro perdeu, menos ele.

—Absurdo! Só se fabricava marcos para vender.

—Ao contrario, comprava e revendia marcos já feitos. O marco, talvez você se lembre, teve em certo periodo uma oscilação de alta. Renasceram as esperanças dos jogadores e o movimento de compras foi enorme. Benson vendeu nessa ocasião. Logo em seguida começou o marco desandar até zero e para nunca mais se erguer.

—Vendeu no momento exato, como quem sabe qual o momento exato de vender...

—Isso mesmo. Com o franco fez coisa idêntica. Comprou exatamente nos dias de maior baixa e vendeu exatamente nos dias de maior alta. Tem ganho o que quer ganhar, o raio do homenzinho...

—E para que necessita de tanto dinheiro?

—Ignoro. Não leva a vida comum dos nossos ricaços, não dá festas, não consta que seja explorado por mulheres. É positivamente misterioso o professor Benson — um verdadeiro magico que vê através do futuro.

Ri-me da expressão do meu amigo e qual filosofo barato murmurei com superioridade:

— Como pode ver através do que não existe? O futuro não existe...

O corretor respondeu-me com uma frase que naquele momento não compreendi:

— Não existe, sim, mas vai existir necessariamente.

— Dois mais dois — é o presente. A soma quatro é o futuro. Um futuro previsível...

— "Vinte e dois!" gritou uma voz da pagadoria.

Era o meu numero.

— Dois mais dois tambem podem ser vinte e dois, gracejei eu, despedindo-me do filosofo. Adeus, meu caro. Na próxima oportunidade você continuará com a demonstração.

Recebi o dinheiro e saí para o torvelinho das ruas, onde breve se me apagou do cerebro a impressão do professor Benson e das palavras do meu amigo. Mas dá a vida misteriosas voltas e um belo dia, ao despertar de um sono letárgico, quem vi eu diante dos meus olhos, qual um espectro?

O professor Benson!...

Não antecipemos, porém; e antes de mais nada permitam-me que fale um bocado da minha pessoa. Era eu um pobre diabo para toda gente, exceto para mim mesmo. Para mim tinha-me na conta de centro do universo. Penso e sou, dizia comigo, repetindo certo filosofo francês. Tudo gira em redor do meu ser. No dia em que eu deixar de pensar, o mundo acaba-se. Mas isto parece que não tinha grande originalidade, pois todos os meus conhecidos se julgavam da mesma forma.

Eu vivia do meu trabalho, recebendo dele, não o produto, mas uma pequena quota, o necessário para pagar o quarto onde morava, a pensão onde comia e a roupa que vestia. Quem propriamente se gozava do meu trabalho era a dupla Sá, Pato & Cia., gordos e sólidos negociantes que me enterneciam a alma nas épocas de balanço ao concederem-me a pequena gratificação constituidora do meu lucro. Com eles trabalhei vários anos, conseguindo reunir o modesto pecúlio que transformei em marcos e, com grande dor d'alma, vi se reduzirem a zero absoluto, apesar da teoria de que tudo é relativo.

Continuei no trabalho por mais quatro anos, daí por diante já curado de jogatinas e megalomanias. Mas todos nós possuímos um ideal na vida. Meu amigo corretor sonha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquele pobre que ali passa, tocando o realejo que herdou do pai e ao qual faltam três notas, sonha com um realejo novo em que não falte nota nenhuma.

Eu sonhava... com um automóvel. Meu Deus! As noites que passei pensando nisso, vendo-me no volante, de olhar firme para a frente, fazendo, a berros de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e assustadiços pedestres! Como tal sonho me enchia a imaginação!

Meu serviço na casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, comissões de toda espécie. De modo que posso dizer que morava na rua, e o mundo para mim não passava de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes, como os batizei aos homens comuns e aos que circulavam sobre quatro pneus. O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 anos, era um ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar prodígios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassível rodante, o homem superior que não anda, mas desliza veloz. Quantas vezes não parei nas calçadas para gozar o espetáculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante que por eles se metia, a reluzir esmaltes e metais! O ronco de porco do klaxon parecia-me dizer — "Arreda canalha!"

Sonhei, portanto, mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena de esmagamento. E o novo pecúlio, com tanto esforço acumulado depois do desastre germânico, não visava outra coisa. Foi, pois, com o maior enlevo d'alma que entrei certa manhã numa agência e comprei a maquina que me mudaria a situação social. Um Ford.

Os efeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao verem-me chegar ao escritório fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda lhes vi e vacilaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem--me o ordenado. Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes aumentaria o renome da firma o terem um auxiliar possuidor de automóvel próprio. E tudo correria pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis, se eu me não excedesse na fúria de fordizar a todo o transe com o fito de embasbacar pedestres. A paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mês, já não contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro, pus-me a sonhar a aquisição de outro, que chispasse cem quilometros por hora. O aumento de ordenado permitiu-me varias excursões de maluco, nas quais me embriagava aos domingos da delicia de devorar quilometros.

Paguei diversas multas, matei meia dúzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não atendera ao meu insolente "Arreda!" Tornou-se-me o pedestre uma criatura odiosa, embaraçadora do meu direito á rapidez e á linha reta. Pensei até em representar ao governo, sugerindo uma lei que proibisse a semelhantes trambolhos semoventes o transito pelas vias asfaltadas. Adquiri, em suma, a mentalidade dos rodantes, passando a desprezar o pedestre como coisa vil e de somenos importancia na vida.

Por essa época um dos meus patrões encarregou-me de liquidar pessoalmente certo negocio com um freguês morador perto de Friburgo. Muito fácil me seria lá ir de trem, mas um rodante da minha marca sorria dos trens. Fui no meu auto, apesar das ruins informações que me deram do caminho. Meti boa reserva de gasolina e atirei-me qual um doido por estradas de tropa em que, suponho, nenhum automóvel ainda se arriscara a passar. Numerosos contratempos sofri nessa minha "viagem a Damasco", mas mesmo assim tudo acabaria sem novidade se a estrada infame não desembocasse de improviso numa ótima, recém-feita e tão bem conservada como a melhor das pistas de corrida. Mal me vi naquele sétimo céu de macadame, dei toda a força á maquina e desforrei-me da lentidão de até ali com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordinho permitia.

A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azuis ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um céu de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desafeito aos formosos quadros da natureza, distrai-me com a novidade do espetáculo e... cataprus!
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Dormi um longo sono. Quando acordei achava-me num quarto desconhecido, tendo na minha frente... o velho jogador de cambio que eu vira no banco — o professor Benson! Grande foi a minha surpresa, e ainda maior seria se uma forte dor no meu braço direito me permitisse pensar em alguma coisa além da lesão sofrida nesse apêndice do eixo central do universo.

— Onde estou? murmurei, olhando muito espantado para o professor Benson.

— Em minha casa, respondeu ele. Um dos meus homens o encontrou sem sentidos no fundo de um despenhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos.

— O meu Ford em pandarecos! Desgraçado que sou... gemi.

A dor do braço ofendido era grande, mas a minha dor moral muito maior. Creio até que entre perder o carro e perder um braço eu não vacilaria na escolha. Custara-me tanto consegui-lo... E, além do mais, dada a psicologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o ordenado, já que eu voltaria a servi-los a pé como outrora...

Tão negra noticia me sombreou de crepes a alma. Não podia conformar-me com o desastre. Delirei. Soube mais tarde, pelo professor, que nesse delírio uma obsessão única transparecia: o desespero ante o meu retorno á miserável casta dos pedestres...

Mas tudo passa. A dor do braço foi atenuando e a dor moral acompanhou-a nesse amortecimento, de modo que pude erguer-me da cama ao cabo de quinze ou vinte dias.

Vi então desenhar-se na minha frente um problema terrível. Davam-me alta em breve e, não havendo mais razão para permanecer naquela casa estranha, forçoso me seria regressar á cidade. E teria de me apresentar diante dos senhores Sá, Pato & Cia. a pé, murcho, resignado ás suas pilhérias e á lógica redução de salário. Revoltado, deliberei mudar de vida. Quando na manhã seguinte o professor Benson me apareceu no quarto, abri-me com ele.

— Professor, não sei como agradecer o bem que me fez!...

— Fiz o meu dever apenas, declarou com simplicidade o velho.

— Salvou-me a vida, professor. Não fosse a sua preciosa assistencia e o provável era estar eu agora esvoaçando pelo outro mundo, como floco de plaina psíquica. Minha gratidão é imensa. Mas seria infinita se o professor me ajudasse a resolver o problema muito sério que vejo armar-se diante de mim.

— Diga qual é. Já resolvi diversos, tidos como insolúveis, e ser-me-ia grato resolver mais um...

Animado pela bonomia do velho, abri meu coração. Contei-lhe a mediocridade da minha vida, os meus esforços para juntar o pecúlio empatado no automóvel, a transformação que as quatro rodas me operaram na mentalidade e o horror com que via agora o forçado regresso ao pedestrianismo.

— O professor é opulento e pelo que vejo possui uma grande e linda propriedade. Precisará, portanto, de homens que trabalhem nela. Eu não queria sair daqui. Arranje-me uma ocupação qualquer, seja lá qual for. Tenho algumas aptidões e, como a boa vontade é grande, para isto ou aquilo sempre hei de servir. O que não desejo é voltar á cidade e ter de apresentar-me, assim decaído, ante os meus truculentos patrões...

O professor Benson pareceu meditar. Tirou do nariz os óculos de ouro, limpou-lhes os vidros num lenço de linho e depois disse:

—Não necessito aqui de ninguém. Possuo o numero de criados estritamente precisos para conservação desta propriedade e nela não vejo função que o amigo possa desempenhar. E não o admitiria em hipótese alguma, se de dias a esta parte não sentisse cá no coração prenúncios de que minha vida está no fim. Isto me faz sair da política que tenho levado até hoje e aceita-lo em minha companhia como... confidente.

—Confidente?... repeti, sem compreender o alcance da expressão.

—Sim, confidente. Aproveito-me do acaso te-lo trazido ao meu encontro para confiar-lhe a história da minha vida. Mas desde já dou um conselho: guarde segredo de tudo, depois que eu morrer. Não que seja caso de segredo, mas vai o amigo ouvir e ver coisas tão extraordinárias que, se o for contar lá fora, o agarram e o metem no hospício como doido varrido. Digo que guarde segredo para seu bem apenas. Agora saia. Dê pelos campos o seu primeiro passeio de convalescente e antes do almoço procure-me no gabinete.

Findo o discurso o professor premiu o botão duma campainha. Sem demora vi surgir um criado.

— Acompanhe este moço num passeio pelos arredores e Se volta conduza-mo ao gabinete.
––––––-
continua… Capitulo II – À minha Aurora

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Consiglieri Pedroso (A Menina e o Bicho)


Era uma vez um homem que tinha três filhas.

Eram todas muito amigas dele, mas havia uma que ele estimava mais.

Foi um dia à feira e perguntou às filhas o que é que elas queriam de lá. Uma delas disse:

– Um chapéu e umas botas!

A outra disse também:

– Um vestido e um xaile!

Mas a que ele estimava mais não lhe disse nada.

O homem, muito admirado, perguntou:

– Ó minha filha, tu não queres nada?

– Não quero nada, disse ela. Quero que meu pai tenha saúde!

– Tu hás-de também pedir uma coisa, seja o que for, que eu trago-ta! respondeu o pai.

Ela, para que o pai a deixasse, disse então:

– Quero que meu pai me traga um corte de goraz em campo verde.

O homem foi para a feira, comprou todas as coisas que as filhas lhe tinham pedido, e não fazia senão procurar o corte de goraz em campo verde. Mas não o encontrou. Era coisa que não havia. Por isso vinha muito triste para casa, porque era a filha que ele mais estimava.

Quando vinha andando, aconteceu-lhe ver luzir uma luz no caminho, porque já era noite.

Foi andando, andando, até chegar àquela luz.

Era um pastor, que estava ali numa cabana. O homem chegou-se a ele e perguntou:

– Sabe-me dizer que palácio é aquele, e se me podiam dar agasalho!

O pastor respondeu muito admirado:

– Oh!, senhor, mas... naquele palácio não habita ninguém; aparece lá uma coisa, e todos têm medo de lá estar!

– Deixá-lo, disse o homem, não me hão-de comer, e como não tem ninguém, vou lá dormir esta noite!

Foi. Encontrou tudo iluminado e muito rico e, entrando mais para dentro, viu uma mesa posta. Quando se ia a chegar à mesa, ouviu uma voz dizer:

– Come e vai-te deitar naquela cama que ali está, e pela manhã levanta-te e leva o que está em cima daquela mesa, que é o que a tua filha te pediu, mas, ao fim de três dias, hás-de ma trazer aqui.

O homem ficou muito contente por levar à filha o que ela tinha pedido, mas ao mesmo tempo ficou triste pelo que a voz lhe tinha dito.

Deitou-se e ao outro dia levantou-se, foi direito à mesa e viu o corte de goraz em campo verde; agarrou nele e foi para casa.

Apenas chegou, começaram as filhas de roda dele:

– Meu pai, que é que nos trouxe? Deixe ver.

O pai deu-lhes tudo quanto trazia.

A outra filha, a que ele estimava mais, perguntou-lhe só se ele tinha saúde. O pai respondeu-lhe:

– Minha filha, venho contente e ao mesmo tempo triste! Aqui tens o teu pedido.

A filha respondeu-lhe:

– Oh! meu pai, eu tinha-lhe pedido isto, porque era coisa que não havia; mas porque é que vem tão triste?

– Porque tenho de levar-te ao fim de três dias aonde me deram isto!

E contou tudo o que lhe tinha acontecido no palácio e o que a voz lhe tinha dito. A filha, quando ouviu tudo, respondeu:

– Não esteja triste, meu pai, que eu vou, e há-de ser o que Deus quiser!

Assim foi. Ao fim de três dias o pai levou-a ao palácio encantado.

Estava tudo iluminado, a mesa posta e duas camas feitas.

Quando entraram, ouviram uma voz dizer:

– Come e deixa-te estar três dias com a tua filha, para ela não ter medo.

O homem esteve os três dias no palácio. No fim, foi-se embora, ficando a filha só.

A voz falava com ela todos os dias, mas não se via ninguém.
Ao fim de uns poucos dias, a menina ouviu cantar um passarinho no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Oiço, sim, disse a menina; é alguma novidade?

– É tua irmã mais velha que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim; e tu deixas-me Ir?

– Eu deixo, tornou a voz, mas tu não voltas!

– Volto, sim! – disse a menina.

A voz deu-lhe então um anel, para ela se não esquecer, e disse-lhe:

– Olha que ao fim de três dias vai um cavalo branco buscar-te; há-de bater três pancadas: a primeira é para te vestires, a segunda é para te despedires e a terceira é para te montares. Se às três não estiveres em cima do cavalo, ele vem-se embora e deixa-te lá!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias, foi o cavalo branco bater três pancadas. À primeira a menina começou a vestir-se, à segunda despediu-se e à terceira montou a cavalo.

A voz tinha dado à menina um caixote de dinheiro para levar ao pai e às irmãs, e por isso elas não queriam que ela tornasse para o palácio encantado, porque já estava multo rica.

Mas a menina lembrou-se do que tinha prometido, e apenas se viu em cima do cavalo foi-se embora.

No fim de certo tempo tornou o passarinho a cantar muito contente no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Oiço, sim, disse a menina, é alguma novidade?

– É a outra tua irmã que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim; e tu deixas-me ir?

– Eu deixo, tornou a voz, mas tu não voltas!

– Volto, sim, disse a menina.

A voz disse, então:

– Olha que se ao fim de três dias não vieres, ficas lá, e serás a rapariga mais desgraçada que há no mundo!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias veio o cavalo branco. Deu a primeira pancada, e a menina vestiu-se; deu a segunda, e a menina despediu-se; deu a terceira, e montou a cavalo e foi para o palácio.

Passados tempos tornou o passarinho a cantar no jardim, mas muito triste, muito triste.

A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho?

– Oiço, sim, disse a menina, é alguma novidade? É, sim, é o teu pai que está para morrer, e não morre sem se despedir de ti!

– E tu deixa-me ir? perguntou a menina, muito triste.

– Deixo, sim, mas desta vez é que tu não voltas!

– Volto, sim, disse a menina.

A voz disse-lhe:

– Não voltas, não, que as tuas irmãs não te deixam vir! E tu e mais elas, serão as raparigas mais desgraçadas deste mundo, se não voltares ao fim de três dias!

A menina foi, o pai estava muito mal e não podia morrer, mas apenas se despediu dela, morreu.

As irmãs, como ela tinha perdido a noite, deram-lhe dormideiras e deixaram-na dormir.

A menina pediu muito que a acordassem antes de vir o cavalo branco.

As irmãs que fizeram? Não a acordaram e tiraram-lhe o anel do dedo.

Ao fim de três dias veio o cavalo. Bateu a primeira pancada, bateu a segunda, bateu a terceira e foi-se embora, e a menina ficou.

Ela andava muito satisfeita com as irmãs, porque não tinha o anel e já não se lembrava de coisa nenhuma.

Daí a uns poucos dias, começou a fortuna a andar para trás, a ela e às irmãs.

Até que uma vez as duas disseram-lhe:

– Mana, tu não te lembras do cavalo branco?

A menina lembrou-se, então, de tudo e disse a chorar:

– Ai. que desgraça a minha! Ai, que me desgraçaram! Que é do meu anel?

As irmãs deram-lhe o anel, e a menina, com muita pena, foi-se logo embora. Chegou ao palácio encantado, mas viu tudo muito triste, muito escuro e muito fechado.

Foi direita ao jardim e encontrou um bicho muito grande, estendido no chão. O bicho, apenas a viu, disse-lhe:

– Retira-te, tirana, que me dobraste o meu encanto! Agora serás a rapariga mais desgraçada do mundo, tu e as tuas irmãs!

O bicho estava a acabar e, assim que disse isto, morreu. A menina voltou para as irmãs, muito triste e a chorar multo, meteu-se em casa sem comer nem beber, e dali a dias morreu também.

As irmãs, essas ficaram cada vez mais pobres, por terem sido a causa disto tudo.

Fontes:
Projeto Vercial
Radar da Net

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 344)


Uma Trova Nacional

Fez a macumba... no entanto,
desesperou-se e sofreu...
- Em vez de “baixar” o santo,
a caxumba é que desceu...
–PEDRO MELLO/SP–

Uma Trova Potiguar

Desisti das minhas lutas,
nos sufrágios, com cautelas,
vou votar nas prostitutas,
me cansei dos filhos delas...
–FABIANO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

2008 - Bandeirantes/PR
Tema: TRABALHO - Venc.

Aos domingos nada faço:
falou de trabalho, eu xingo.
- E os outros dias eu passo
planejando o meu domingo!
–JOSÉ OUVERNEY/SP–

Uma Trova de Ademar

Dançando com Maristela
lá no forró do tampinha,
roçando nas “partes” dela
saiu faísca da “minha”...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Com aquele rebolado
que é tão fora do comum,
a mulher do delegado
também prende qualquer um...
–COLBERT RANGEL COELHO/MG–

Simplesmente Poesia

MOTE.
“Veado” talvez não seja,
mas trejeitos ele tem.

GLOSA:
Em qualquer canto que esteja
quer sentado, quer de pé,
parece mais que é mulher,
“veado”, talvez não seja.
Toda mão que aperta beija,
chama todos de meu bem,
casar, não quer com ninguém
e só fala afeminado;
pode até não ser veado,
mas trejeitos ele tem.
-LUIZ XAVIER/RN-

Estrofe do Dia

No shopping, as gatas passando,
boas, lindas, e ele espia,
“botava” os olhos e cuspia,
grande aversão demonstrando...
Eu perguntei, desde quando,
mudaste de lado assim?
Não mudei... E digo enfim:
Tô é pensando na “véia”,
Gordona e cheia de “péia”
que em casa está me esperando!...
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

À Minha Secretária
–PEDRO TORQUATO MACIEL/SP–

Eu sou um tabelião de vida austera
e gosto de ver sempre à minha frente
a linda secretária permanente
bem limpa, arrumadinha, à minha espera.

Minha mulher um dia me dissera,
lá dentro do cartório, intransigente:
"Eu desejo limpar esse ambiente
Onde o mau gosto estranhamente impera!"

Em seguida, faltando-me ao respeito,
pegou a secretária de mau jeito
e, nervosa, quebrou-lhe uma perna.

Então, ao ver-me um tanto contrariado,
risonha declarou já ter comprado
outra nova, bonita e mais moderna.

Fonte:
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