domingo, 20 de novembro de 2011

Guido Wilmar Sassi (Geração do Deserto)


O compromisso com a memória histórica é exemplarmente defendida por Guido Wilmar Sassi, especialmente nos livros Geração do deserto e São Miguel.

Aliás, este autor tem sido, por excelência, o escritor que retém, ficcionalmente, o espaço e a história catarinense, construindo uma espécie de regionalismo que consegue superar os limites espaciais traçados e oferecer uma concepção universal do homem que atua nesses espaços típicos.

Neste sentido conquista especificidade em relação aos outros autores já tratados, muito embora reconheça-se em Lausimar Laus e em Almiro Caldeia autores que, ao abordarem o homem típico, não o dotam apenas dos valores que o restrinjam ao espaço em que transita.

Na literatura de Guido Wilmar Sassi tem-se o confronto entre o homem e o homem.

Isto é: não mais o homem e a natureza somente, mas o homem e as estruturas sociais que manipulam a natureza em favor dos detentores de um poder econômico, revertendo-a em prejuízo e sofrimento para o mais fraco. Parece ser esta a mola propulsora de suas narrativas, tanto nos contos quanto nos romances. É deste modo que assegura o teor de universalidade para a sua ficção.

Simultaneamente à reconstrução de um espaço físico e de um homem que se incorpora a este espaço, conscientemente estrutura os elementos que anulam os limites geográficos e determinam a aproximação entre todas as criaturas de qualquer lugar, destituídas de poder econômico e vítimas da exploração.

É em Guido Wilmar Sassi que se observa também à identificação entre o autor e personagem tanto no aspecto de denúncia que seus textos assumem quanto na escolha dos focos narrativos. Isto já é dado definitivo em seus primeiros livros de contos, como é o caso de Amigo velho e Piá, Por exemplo.

Em Geração do deserto consolida-se a investida da literatura na pesquisa da história do estado, funcionando como recuperação consciente de uma memória cultural onde se constata, mais uma vez, a exploração das classes populares pelos grupos sociais detentores do poder, bem como o envolvimento com o problema da extração da madeira, aí configurado como elemento que proporciona os principais conflitos abordados no romance.

Montando o painel narrativo a partir de pequenos blocos, a elaboração ficcional da Guerra do Contestado ocorrida no oeste catarinense dá-se, em Geração do deserto, conforme o traçado registrado pela historiografia, permitindo que o livro se torne, ao lado do anterior, uma espécie de documento historiográfico.

As multinacionais têm sido responsáveis por grandes crises econômicas e sociais ocorridas em território nacional. Destruindo a estabilidade do ritmo natural da evolução social, alteram o sistema de vida das comunidades e, no caso do Contestado, geram a revolta dos caboclos, uma vez que passam a competir com eles na exploração da madeira, explorando-os e os destruindo.

Daí o conflito social de caráter messiânico, liderado por José Maria, e daí Geração do deserto, romance que impõe como a memória dos fatos que são desagradáveis à história política do estado e do país.

As personagens do romance conservam seus nomes históricos, mas o tratamento ficcional que recebem denuncia sua individualidade e revela os interesses pessoais que as fazem agir em função do grupo.

Isto é, sob a ação do grupo, sob os interesses coletivos de preservação do grupo e de luta contra inimigos comuns, a ficção de Guido desvela os interesses particulares de cada personagem, revelando os abusos do autoritarismo, as torturas e as violências praticadas em benefício próprio, mas sob o manto da religião e da causa.

Igualmente relevante é a importância que o espaço geográfico assume a narrativa, não apenas como o habitat ao qual se ajustam os personagens mas também como pólo de convergência destas personagens.

Entretanto, apesar de ter sido o foco gerador da crise, a natureza é espectadora de tais conflitos humanos. Guido Wilmar Sassi recria a mentalidade dos caboclos, seus hábitos, crenças e atividades.

Recupera um homem típico do oeste catarinense, porém num momento crítico, o que amplia sua complexidade devido às dimensões sociais e econômicas dos problemas que vive.

A pesquisa e a fidelidade da história comandam o percurso do episódio bélico narrado, mas acima disto está a elaboração estética que, numa linguagem objetiva, obediente a uma cronologia linear - a despeito de alguns flash-backs - e à fragmentação operada pela montagem de cenas curtas em que se alternam pontos de vista diferentes, determina efeitos ficcionais indiscutíveis.

Fonte:
http://www.livrosgratis.net/categoria-resumos/43/Resumos/

Guido Wilmar Sassi (1922 – 2003)


Guido Wilmar Sassi nasceu em Lages, SC, em 1922.

Passou sua infância e juventude em Campos Novos. Em sua convivência com o povo dessas duas cidades, colheu parte do material das histórias que iria escrever mais tarde.

Aos doze anos de idade, já costumava ler tudo quanto lhe caía às mãos: a Bíblia, Cervantes no original espanhol, histórias de fadas, ficção científica (Júlio Verne), romances policiais (Edgar Wallace e Conan Doyle), peças de teatro e dicionários.

Colaborou na imprensa de sua cidade natal. Um conto, que tem como personagem central um pinheiro, marcou sua estréia literária na Revista Globo, de Porto Alegre, em 49. Na década de 50, participou do grupo Sul (editora e grupo de escritores novos), de Florianópolis.

Morou na capital paulista em duas ocasiões. Lá, publicou “São Miguel”, romance vencedor de importante concurso literário. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1963, onde viveu até sua morte e lá publicou outros livros, como “Geração do Deserto”, 1964 e “Os Sete Mistérios da Casa Queimada”, 1989.

Ao lado de Enéas Athanázio (Campos Novos), Tito Carvalho (Orleans) e Edson Ubaldo (Lages), participa de uma geração que representam a região dos campos de Lages e do oeste catarinense, o regionalismo Serrano-Gauchesco. Grupo “Sul” – Revista “Sul” – Círculo de Arte Moderna - Salim Miguel, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Ody Fraga, Antonio Paladino - Intenções modernistas.

Sassi iniciou nas letras brasileiras o “ciclo do pinheiro”. Seu linguajar, embora explorando nuances locais, não é fundamental de sua obra e não é sobre ele que incide sua preocupação primeira. O pinheiro derrubado de maneira implacável e indiscriminada, e as conseqüências daí decorrentes, constituem-se em temas que se envolvem constantemente nas suas narrativas. A devastação das matas, a extinção da fauna, o desfigurar da paisagem, as serrarias devoradoras de homens e fabricantes de aleijões, tudo se reflete na sua obra de ficção. Nesse contexto, a obra é amarga, refletindo o inconformismo de um escritor sensível aos maléficos passos do homem na trilha da destruição da natureza e dos seres que dela dependem. (Enéas Athanázio).

Em “Amigo Velho”, que lhe proporcionou o Prêmio Arthur Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, o tema central é o pinheiro, com todas as implicações sociais e humanas que advêm da presença das grandes serrarias destruidoras de selvas e de criaturas humanas.

O livro “Geração do Deserto” virou filme em 1971, com o título de “A Guerra dos Pelados”. Neste romance, Guido Wilmar Sassi conseguiu fixar com agudeza admirável o que foi a Guerra do Contestado, havida há mais de meio século entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. Lá estão os coronéis da pecuária, donos da vida dos homens e da honra das mulheres; a luta dos camponeses, pequenos industriais, peões e trabalhadores, na tentativa de reconquistar seus direitos; as explosivas e violentas revoltas dos fanáticos e jagunços, conduzidos por guias “iluminados”, por heróis místicos e messiânicos, que fizeram da Guerra do Contestado uma réplica sulina de Canudos. Um romance epopéico que retrata corajosamente uma realidade brasileira só então transposta para a ficção com tanto vigor e verdade. E não pense, quem não leu, que se trata de narrativa apenas, um livro de história, simplesmente. O autor conseguiu fazer de um fato histórico, a Guerra do Contestado, um romance dinâmico, cheio de ação, prendendo o leitor do princípio ao fim.

Fontes:
http://www.terceirao2005.kit.net/site/htm/arquivos/acafe.doc
http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br/guidoautores.htm
Imagem =http://www1.an.com.br/

Guido Wilmar Sassi (O Escritor em Xeque)


entrevista publicada no jornal da Fundação Catarinense de Cultura de setembro de 2002

Como apresentaria sociológica e culturalmente seu núcleo familiar de origem e seu meio ambiente? (Onde e quando nasceu, a família, os pais, a infância, as primeiras experiências, os brinquedos, etc.)

- Guido Wilmar Sassi - Nasci em 1922, em Lages, interior de Santa Catarina. Família pobre. Lages era, então, uma cidadezinha. Quando eu tinha sete anos, a família mudou-se para Campos Novos, muito mais cidadezinha do que Lages. Dos sete aos dezoito anos, morei em Campos Novos - lá passei a época mais feliz da minha vida.

O mar sempre foi uma das minhas maiores paixões. Então, como as cidades da minha infância e juventude situavam-se a uns novecentos e tantos metros de altitude, e muito longe do litoral, eu inventava setenta e sete vezes sete mares para meu uso próprio e prazer particular. Isso graças aos filmes e livros de aventuras marítimas e principalmente a minha imaginação e fantasia, que nunca respeitaram limites, fronteiras ou acidentes geográficos. As árvores eram os meus navios. Eu era tudo: grumete, marinheiro, pirata, imediato, capitão e armador - enfim, o criador, o dono absoluto, pois, não raro, em batalhas memoráveis, eu costumava pôr todos os meus navios a pique. Desses meus barcos, um eucalipto enorme eu transformei em pinheiro (araucária) e contei sua história (mais ou menos real) no conto "O naufrágio do Black Ship", publicado em "Este Mar Catarina", antologia de autores catarinenses.

Hoje eu moro literalmente a dois passos do mar, meus filhos são mergulhadores profissionais, escrevei contos e romances marinhistas, mas ainda sinto uma baita saudade do meu mar de outrora, o oceano de mentirinha da minha infância.

Meus avós paternos, os Sassi, eram italianos, agricultores e analfabetos. Foi pequena minha convivência com eles. Lembro que Nonno Velho fumava cachimbo enorme e fedorento, cujo sarro ele costumava receitar para dores de dente e de ouvido!!! Clemente Sassi ignorava o dia, o mês e até mesmo o ano do seu nascimento; sabia apenas que nascera na época do plantio de milho... na Itália. Ah! Ele também não sabia dizer o nome da aldeia onde se dera o nascimento.

Apesar da paralisia infantil (poliomielite) que me atacou aos dois anos de idade, e da pobreza relativa, minha infância foi muito feliz. Superei as restrições impostas pela doença e consegui dançar (danço até o rock e a lambada - é só haver ocasião, inspiração e provocação), praticar esportes e espantar os fantasmas do complexo de inferioridade.

Hoje, vistos à distância, e analisados friamente, chego à conclusão de que meu pai e minha mãe foram as pessoas mais maravilhosas do mundo. Minha mãe, principalmente, devia ter algum parentesco com as fadas: ela transformava tecidos feios e sem graça em roupas lindas; em suas mãos e com o seu tempero o alimento mais trivial logo virava comida saborosa ou delicioso doce.

Quase todas as consoantes da língua alemã foram usadas no sobrenome do meu avô materno: Clemente Hamitzsch. Náo o conheci. Ele sempre me pareceu uma pessoa misteriosa, figura de ficção de romance. Pelo que me contaram, dele herdei o gënio violento e o gosto de admirar as artes plásticas. Meu avô alemão era escultor, mais propriamente um imaginário. Tempos atrás, andei procurando em Lages as suas esculturas. Encontrei um São José feito por encomenda e alguns trabalhos de cantaria no cemitério da cidade. Clemente Hamitzsch morreu no início do século - dizem que se matou. Faço dele a imagem de um aventureiro, uma espécie de cavaleiro andante beberrão e fora do seu ambiente e do seu tempo.

-Lembra de algum episódio gostoso ou dramático do primeiro período de sua vida?

Guido Wilmar Sassi - Aconteceu na minha infância um fato muito importante que iria decidir minhas leituras futuras e influenciar minha vocação literária. Encontrei o objeto dessa influência na mesa de leitura de minha avó: um velho dicionário. O livro, de tão velho, já estava sem capas e sem as páginas iniciais e finais. Fui buscá-lo agora mesmo na minha estante para confirmar. Meu Deus, como ele é velho! - somente comigo já está há mais de setenta anos. Meu dicionário começa na página 17 e não tem as letras "w", "x", "y" e "z", cabendo registrar, ainda, que a letra "v" está incompleta. Creio que esse dicionário foi minha primeira leitura. Nunca soube quem foi o seu autor, e agora não quero mais ficar sabendo: é um mistério gostoso ignorar quem elaborou um livro que me ensinou tanto.

Existem várias histórias envolvendo o meu velho dicionário. Vou contar uma. No curso primário, quando minhas aulas eram a tarde, emprestei o dicionário a um amigo que freqüentava o mesmo curso, porém na parte da manhã. Passaram-se alguns meses e eu cheguei a esquecer o amigo, o empréstimo e também o dicionário. Certa vez, quando coloquei meus pertences escolares na carteira, lá encontrei o meu querido livro - o amigo descuidado ali o esquecera. Não pensei duas vezes: levei o dicionário para casa e solicitei ao amigo a sua devolução. Que drama! Até Santo Antonio foi convocado para reencontrar o livro. A mãe do rapaz levou o caso ao conhecimento de uma velha que deitava as cartas, via a sorte das pessoas e descobria o paradeiro das coisas. Tudo inútil. Então, para saldar a dívida, meu amigo pagou-me o preço de um livro novo: cinco mil réis. Uma boa quantia, na moeda da época. Foi a primeira vez que ganhei alguma coisa com os livros. Se eu me envergonho da safadeza? Não, absolutamente não.

- Qual o tipo de educação recebida?

- Guido Wilmar Sassi - Cursei o primário e parte do ginásio, enquanto meu pai era vivo. Deixei os estudos, sem concluir a quarta série ginasial. Tornei-me autodidata.

-Qual a "biblioteca", as leituras de seus verdes anos?

- Guido Wilmar Sassi - Minha primeira leitura foi, sem dúvida, o velho dicionário de minha avó. Ele despertou meu gosto pela literatura e mito contribuiu para o nascimento de minha vocação de escritor. Somente depois de muitas viagens através do maravilhoso léxico foid que descobri os livros infantis, os policiais, os romances de aventuras e de ficção científica.
Quando recordo minhas primeiras leituras, não posso deixar de mencionar a grande biblioteca oral que se chamava

Gertrudes Hamitzsch, minha avó. Eu era ainda bem criança quando ela me apresentou a um certo Shakespeare - isso muitos anos antes que eu aprendesse a ler. Naquele tempo havia umas litogravuras que reproduziam cenas das peças mais famosas do célebre dramaturgo inglês. Vó jamais entendeu direito o que o amalucado Hamlet fazia com uma caveira nas mãos. E, como nas litogravuras não havia nenhum texto, nunca nos importamos com o tão conhecido dilema "to be or not to be". D. Gertrudes se emocionava sempre que se referia aos trágicos amores de Romeu e Julieta, mas eram as estampas de Otelo que a apaixonavam mais. No conceito de vovó o Doge de Veneza era apenas o "coitado do pai"; Desdêmona se transformava em "a pobre da moça"; e ao mouro Otelo minha avó reservava uma apreciação nada elogiosa: "não passa de um caco sujo". Vovó er ameio racista. Com o tempo, descobri que o velho William Shakespeare dera apenas o chute inicial; a mais das histórias, na maioria das vezes, era tudo invenção de minha avó.

Quando eu tinha mais ou menos doze anos, mudamo-nos para uma casa na qual havia um sótão enorme. Ah, o sótão da minha infância! Era o país dos mistérios, dos milagres, das coisas fabulosas, dos segredos apaixonantes, da fantasia e do encantamento. No sótão o antigo dono da casa deixara um caixoto cheio de livros. Pirata algum jamais se apossara de butim maior - nem tão precioso. Um dos livros, sem as capas e sem as primeiras e derradeiras páginas, tratava das andanças de um povo errante e brigalhão, que morria e matava por causa de um Deus Único, e cujos herós estraçalhavam leões, dizimavam exércitos, decapitavam gigantes, faziam parar o sol, abriam caminho nas águas dos mares e atormentavam e venciam o poderoso Pharaó, rei de um país de nome Egypto. Esse livro fazia menção a um verbo de poderes mágicos: homens lutavam por causa desse verbo, crianças nasciam pelos seus efeitos. Na época eu descobri o significado do termo conhecer, mas somente alguns anos mais tarde fiquei sabendo que estivera lendo a Bíblia.

Mais tesouros havia no caixote: gramáticas de línguas estrangeiras (alemão, inglês e francês), compêndios de Física e Química, de História Natural e História Universal, manuais de Medicina. Tudo isso eu li, ao mesmo tempo em que fazia outras descobertas: Monteiro Lobato, nosso grande autor de livros para crianças, Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro, A Ilha do Tesouro. Ah, maravilha! Eu fui Jim Hawkins uma centena de vezes), Sherlock Homes, Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, Cervantes, Emílio Salgari, Tarzan, Júlio Verne e o universo encantando da ficção científica.

Daí, quando o conteúdo do caixote acabou, eu passei a vender garrafas e vidros para comprar livros. Os vidros tinham que ser lavados primeiro; era ssim: a gente pegava os vidros, enchia-os com água, sabão e grãos de milho ou bolinhas de chumbo, e chacoalhava até cansar o braço. Então a farmácia de Campos Novos comprava os vidros para enchê-los com remédios.
Eu levava uma eternidade inteira lavando os vidros e farrafas para juntar o necessário a compra de dois ou três livros; de depois, eu tinha que esperar mais toda uma eternidade até que os volumes chegassem a cidadezinha. Mas era compensador - eu conquistava séculos, milênios de entretenimento e cultura.

- Repassando na memória esse período de formação, encontra a figura de um "mestre" de vida que o marcou?

- Guido Wilmar Sassi - Mamãe e vovó foram as minhas verdadeiras mestras, na vida e na literatura. Meu pai, o velho Chico, ensinou-me a ser homem, a ser gente.
Houve também um irmão franciscano, Frei Sebastião da Silva Neiva, cujas lições foram de grande proveito para a minha formação literária. O querido e saudoso Teacher (ele era professor de português e de inglês) dirigia em Lages um pequeno semanário; foi ele quem publicou meus primeiros escritos.

- Como, quando e por que começou a escrever? Como nasceu a vocação de escritor?

- Guido Wilmar Sassi - Minha vocação de escritor deve ter sido herança de minhas duas mestras: Mamãe e vovó. O ambiente em que passei a minha infância e a juventude, apesar de todos os percalços e limitações, era notadamente literário. Depois de algumas gerações de escritores frustrados, sem livros, a minha geração teria que, forçosamente, dar um escritor.
Não sei exatamente quando comecei a escrever. Deve ter sido quando comecei a ler pelo prazer da leitura e, assim, creio que as minhas primeiras experiências literárias se iniciaram aos doze anos de idade.

Eu sempre quis ser ficcionista: contos, novelas e romances. Outros gêneros não me tentaram. Queira ou não queira, tenho que voltar o meu velho dicionário, tenho que responsabilizá-lo, em grande parte, pelo nascimento da minha vocação. Toda a vida eu considerei o dicionário um livro de viagens, de aventuras, e o meu primeiro dicionário, sem capas, sem título e sem autor, foi o meu primeiro barco no mar das palavras. Hoje, quando sou verbete de dicionários e trechos dos meus livros são citados para abonar vocábulos (Aurélio - Novo Dicionário da Língua Portuguesa), ainda consulto o meu amado léxico. Abro suas páginas (são as velas de um navio amigo, seu porão está repleto de lembranças, de saudades) e viajo nele... e com ele.
É antiqüíssima a ortografia do meu dicionário. Não sei mais quantas reformas ortográficas o português do Brasil sofreu depois que me tornei seu dono. Farmácia, fósforo e tísica estão grafadas assim: pharmamcia, phosphoro e phtisica. Uma delícia.

Volto sempre ao dicionário e também volto à Bíblia despedaçada que encontrei no sótão, a velha Bíblia cuja ortografia é a mesma do dicionário; foi nela que pela primeira vez deparei com os vocábulos "amphora" e "drachma". Ânfora e dracma, conforme se escreve atualmente, não possuem o mesmo encanto, a mesma dose de mistério.

Ah, o mistério e a beleza das palavras na sua forma física, visual. Sempre fui apaixonado pelos vocábulos em si, no seu aspecto gráfico. E depois, mais apaixonado e fascinado ainda, gosto de sair, feito um detetive, à cata de seu significado. Com o auxílio de um dicionário, é claro.
A matéria prima de qualquer gênero literário é a palavra. Grande descoberta! Dicionários são depósitos de palavras. E assim, apaixonado pelos dicionários como sempre fui, e amando tanto os dicionários, eu teria que - por bem e por mal - tornar-me um escritor, mais especialmene um ficcionista.

- Considera seu primeiro livro publicado um sucesso, um insucesso, um marco determinante em sua vida?

- Guido Wilmar Sassi - Estreei em 1953, com um livro intitulado PIÁ, coletânea de contos que têm a criança (em todas as camadas sociais) como figura principal.

Foi um grande sucesso, consideradas as circunstâncias. O livro, escrito nas então pacatas cidades de Lages e Rio do Sul, interior de Santa Catarina, foi publicado em Florianópolis, capital do Estado. Edição de quinhentos exemplares. Isso mesmo: quinhentos exemplares! Distribição não houve. Eu e alguns familiares nos encarregamos de vender ou dar alguns volumes. Regular número de exemplares foi vendido em Florianópolis na Livraria Anita Garibaldi, então de propriedade do meu amigo e editor Salim Miguel, que mais tarde, em 1964, foi criminosamente incendiada. A vendagem foi suficiente para custear as despesas da edição. Um verdadeiro sucesso.

Com a publicação do meu primeiro livro quase ganhei um prêmio, o Fábio Prado, naquele tempo um dos mais importantes certames literários do país.

Graças ao volumezinho fio, de capa modesta e folhas grampeadas, consegui intercâmbio cultural com muitos escritores e publicações nacionais e estrangeiros, e tornei-me conhecido em todo o Brasil e no exterior. A estréia me proporcionou uma visão nova das coisas editoriais, da literatura e da vida.

A estréia foi um marco determinante em minha vida, pois veio confirmar minha vocação de escritor.

Um detalhe: PIÁ jamais foi reeditado, e lá se vão quase quarenta anos. Meu livro de estréia continua desconhecido até mesmo (e principalmente!) em minha cidade natal.

- Acontecimentos que o marcaram determinantemente, a nível literário:

- Guido Wilmar Sassi - 1949 - Publico um conto na Revista do Globo, uma das mais importantes do país. Contato com o Grupo Sul, de Florianópolis - é o início de minha carreira literária.
1953 - Sucesso: publico meu primeiro livro, uma coletânea de contos - PIÁ.
1957 - Grande sucesso: publico meu segundo livro de contos, AMIGO VELHO, coletânea que tem como personagem principal o pinheiro (araucária). O livro é comentado, louvado, elogiado, criticado, atacado e ripado. Ganho um prêmio instituído pelo Instituto Nacional do Livro. A edição, porém, não se paga.
1960 - Termino de escrever meu primeiro romance, SÃO MIGUEL, destinado a concorrer a um concurso literário em São Paulo. Minha filhla de doze anos morre afogada no rio Uruguai - cenário do romance. Morre o amiguinho que tentou salvá-la. Quase morro também, na tentativa de socorrer as duas crianças. Um dos seus irmãos consegue salvar-me, praticamente por acaso. Tenho a impressão de que o mundo vai acabar de vez. Suicida-se o meu melhor amigo. É o fim: o mundo vai acabar mesmo.
1962 - Transfiro-me para São Paulo. SÃO MIGUEL é publicado, após vencer o concurso. Vida literária intensa. Mudamos para o Rio.
1964 - Publico novo romance - GERAÇÃO DO DESERTO e uma coletânea de contos de ficção científica: TESTEMUNHA DO TEMPO. Golpe militar: a ditadura está de volta. Muitos amigos meus, escsritores ou não, foram presos. Abandono a literatura. Não quero mais saber de livros nem de escritores. A crise iria durar dezesseis anos.
1979 - Proposta para a reedição de São Miguel. Recuso. Editores, autores e leitores que se pitem! Dois escritores amigos meus, Salim Miguel e Hélio Pólvora, deram-me dois homéricos porres para que eu concordasse na reedição. Assinei o contrato ainda meio bêbado.
1980 - Reconciliação com as letras. Escrevo um romance cuja ação de passa nas plataformas petrolíferas; os heróis são os mergulhadores profissionais. Fico entre os dez finalistas do Prêmio Cruz e Sousa, certame realizado em Florianópolis. Publico o romance O CALENDÁRIO DA ETERNIDADE.
1989 - Escrevo um romance em três meses e o publico: OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA. Vencido o problema de ter perdido um olho - em desastre de automóvel, em 84 - tenho um namoro muito sério com a informática, com os microcomputadores.
2004 - Alguns dos acontecimentos marcantes da minha vida, pelo menos os ligados à literatura, são os que acabei de citar. Espero que nenhum evento de importância ocorra até o ano de 2004. O motivo? É o ano que escolhi para morrer. Vai ser de morte natural e na cama, durante o sono, depois que eu completar oitenta e dois anos de idade; será na segunda metade de setembro, em plena primavera.

Nota: Guido faleceu em 05 de maio de 2002.

- Hoje é um escritor. Pode viver só do trabalho da escrita? Precisa de outra profissão? Qual é? Como vive as duas carreiras?

- Guido Wilmar Sassi - São raros no Brasil os escritores que vivem exclusivamente da escrita. Na atualidade está surgindo uma categoria que vem conseguindo esse milagre: os autores de telenovelas. Ainda não tive nenhuma tentação de experimentar o gênero. Dizem que é um trabalho pesado, de estivador, de galé, de escravo.

Quando eu comecei a dedicar-me às letras, eu era funcionário do público e conseguia conciliar as duas carreiras. No Banco do Brasil tornou-se difícil a conciliação. Minha preocupação maior foi sempre evitar que o banco me chamasse para exercer cargos de grande responsabilidade, que me nomeasse gerente ou coisa parecida. Se isso acontecesse, adeus literatura. Hoje, aposentado, eu poderia dedicar-me inteiramente à literatura, pois disponho de todo o tempo do mundo, de todo o tempo da vida: faltam-me, porém, disposição e saúde.

- O processo criativo de seus livros passa por muitas fases de elaboração? Pode dizer como escreveu um de seus livros ou um de seus contos? Como surge, como se origina um livro ou um texto?

-Guido Wilmar Sassi - Não creio muito em inspiração. O processo criativo é uma tarefa árdua, penosa. E solitária, angustiosamente solitária. A inspiração vem num instante muito fugaz, feito um relâmpago, e imediatamente vai-se embora, some, porém mais rápida do que o próprio relâmpago. E em cima do pouco-nada que fica o escritor põe-se a escrever seu texto, a reescrever, a elaborar, elaborar e elaborar, a fazer cortes e acréscimos, emendas e podas, até que os personagens ganhem vida, até que o texto fique limpo, até que se ultime o trabalho de recriação.

Muitas vezes tenho tentado surpreender a criação em seu nascimento, em sua própria fecundação. É difícil, muito difícil. No meu caso, as idéias ou embriões chegam das maneiras mais inesperadas e das mais diversas formas. Por exemplo:

a) - um gesto, uma frase, uma observação dos amigos ou parentes, o jeito de alguém rir, os cacoetes, as manias, o modo de falar - a gente pega tudo isso e aproveita para compor os personagens;
b) - uma conversa entre desconhecidos, ouvida quase sem querer;
c) - um sonho;
d) - um desafio;
e) - uma preocupação, um trauma;
f) - a tentativa de exorcizar nossos fantasmas - obrigado, mestre Dostoievski;
g) - a visão fugidia de um seio (dois é melhor); nádegas, pernas coxas: os acessórios todos do sexo feminino;
h) - um trecho de filme, uma peça de teatro;
i) - um conto, um romance ou novela; (o escritor pensa: a idéia é boa, mas eu faria diferente e talvez melhor; e começa, pois, a inversão papéis - bandido vira herói, mocinho se torna bandido, criminoso e vítima permutam os lugares, mulher vira homem, etc, etc.);
j) - um quadro, um verso, uma flor, uma canção, um espetáculo de circo.

Reminiscências, lembranças, vultos que se foram, cenas de um passado próximo ou longínquo, arquivos da memória, poeira das alegrias e das dores... ah, tanta coisa! Sobras de sentimentos, de ações e reações; resquícios, lixo, sucata - tudo o ficcionista aproveita, fazendo misturas das mais heterogêneas com os cacos do cotidiano, as vivências atual e antiga, as antevisões nebulosas do futuro.

O escritor - eu acho - tem muito ou quase tudo em comum com Frankenstein. De pedaços, pedaços e pedaços construímos as nossas criaturas. Não é plágio, não. Também não é influência. É algo de muito mais sério. Costuramos retalhos, remendamos, reinventamos invenções. Mas ninguém cria nada, ninguém cria coisa alguma; recriamos, apenas.
Ás vezes a centelha da inspiração é uma paisagem, a saudade de um lugar onde eu nunca estive e que talvez nem sequer exista. Disseram-me que o espiritismo explica essa lembrança, esse tipo de saudade. Tudo bem, mas eu não acredito no espiritismo. Comentaram que a tal saudade vem de paisagens que eu criei no subconsciente, no inconsciente, sei lá onde. Produtos do id, essas coisas. E a gora... Freud! Freud talvez explique... ou complique. O fazer literário tem muito a ver com psicanálise, mas não vamos cair no exagero. A humanidade passou milênios e milênios sem Freud, e agora não pode ficar cinco minutos sem ele. Além do mais, o Professor Freud entrou no texto de gaiato e à minha revelia. Vamos expulsá-lo. Cai, fora! Xô, xô!

De posse dos elementos essenciais, chega a vez da imaginação e da fantasia, da linguagem e do estilo. E também a vez da estiva, do suor, do cansaço, do trabalho bruto, pois o amontoado de material amorfo de que disponho não cria vida assim de repente, graças ao efeito de uma fórmula cabalística ou de uma palavra magia. O maravilhoso e divino fiat!

Deu certo com o Criador, no Gênesis, mas somente Ele sabia a receita. Na literatura não tem abracadabra! que funcione.

Difícil dizer como escrevi um dos meus livros ou contos, difícil individualizar. Prefiro falar do método geral que uso, válido para os gêneros conto, novela e romance.

Uma vez surgida a idéia central e feitas as pesquisas indispensáveis, organizo um fichário, um arquivo o mais completo possível, para ser consultado a todo instante.

Os personagens são cadastrados como se fosse no Registro Civil (nome, prenome, sobrenome, filiação, idade, etc.), mas o meu cadastro é bem mais completo, pois inclui ainda: cor da pele, dos olhos e dos cabelos; peso e altura; profissão e alcunha; tiques e manias; doenças e defeitos físicos ou morais; virtudes e qualidades; vícios ou taras; modos de agir ou de pensar; preferências, ojerizas e idiossincrasias; gostos e desgostos; enfim, tudo quanto possa interessar à história que pretendo escrever.

Também constam do cadastro as mais variadas relações de dependência entre os personagens: pai, mãe, tio, avô, irmão, compadre, afilhada, marido ou amante, namorada ou noiva, amigo, patrão, assassino, etc, etc e etc.

Presentes essas anotações, evita-se que os personagens cometam incestos não programados e que, por uma simples troca de nomes, datas, hábitos ou aparência física, o amante seja passado para trás pelo próprio marido da heroína.

O fichário diminui muito o número de incoerências e improbidades. Devido a sua falta ou as suas falhas já me aconteceram alguns fatos desagradáveis na produção de um romance: havia três mulheres com nomes diferentes, quando se tratava de uma só; um maneta foi surpreendido batendo palmas; mudos se tornaram mais falantes do que oradores em comício.
Costumo organizar tábuas cronológicas, a fim de fiscalizar a idade dos personagens e a ordem de sua entrada em cena. Tal providência evita que um fulano qualquer, morto e sepultado logo nos primeiros capítulos, apareça vivinho da silva, forte e feliz na metade do livro; e também não permite que uma pessoa seja pai de alguém com o dobro da sua idade. A consulta ao fichário e à tabela do tempo torna mais fácil e seguro o uso da técnica do flashback.

Costumo, se necessário, elaborar mapas, quadros, croquis, tabelas, esquemas, resumos e plantas. Em meu romance mais recente, OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA, as edificações eram tantas e de tamanho tal que até eu mesmo, quando nelas entrava, me sentia desorientado. Não sei o que seria dos homens e mulheres que figuram no livro, se não dispusessem dos mapas e plantas que lhes arranjei! Um detalhe: a capa do livro teve por base a planta do Reduto, o conjunto das sete construções em que acontecem os mistérios.
A memória é um instrumento nobre que deve ocupar-se apenas de assuntos importantes e não sobrecarregar-se com questiúnculas de pequeno porte - esta a função do fichário.
Nem eu mesmo consigo entender a primeira versão dos meus contos ou romances. Vou escrevendo a torto e a direito (mais a torto do que a direito), sem a menor preocupação com a gramática e a estética, sem ligar a mínima para a ortografia e a coerência.

Do início de um capítulo salto para o final, escrevo pedaços no meio, retorno ao início. Se as dificuldades surgem em algum trecho, pulo para os seguintes, apronto diálogos, volto às pesquisas, tomo novas anotações ou desfaço-me de outras, aponto lápis, espano a mesa e a máquina, tomo um cafezinho, profiro uns palavrões, xingo o povo do livro, releio as páginas já escritas. No regresso aos pontos difíceis, descubro que eles são mais fáceis de solucionar do que eu imaginava.

Sou um cineasta que não se realizou, um cineasta sem filme e sem câmera. Quando escrevo (principalmente no caso do romance), parece-me que estou fazendo cinema. Como se estivesse usando a claquete, numero e classifico as tomadas: folhas esparsas, capítulos ou porções de capítulos, anotações, resumos, lembretes e observações. E depois, com o auxílio do cadastro, dos mapas e tabelas, ponho-me a editar o que chamo de copião. Nesse momento, começo a preocupar-me com a limpeza do texto, a escoimar os senões, a trabalhar a linguagem. É o preparo inicial para o trabalho datilográfico da segunda versão.
A segunda versão já é legível, tem alguma semelhança com os originais de um livro. Não cessam, porém, as reformas, as emendas, os cortes, os acréscimos, as constantes e cansativas consultas ao dicionário.

Gosto de datilografar meus livros. Sou um ótimo datilógrafo. Tenho muita paciência e sou difícil de satisfazer. Exijo de mim mesmo um trabalho ordenado, metódico, limpo e de boa apresentação estética.

E agora, aqui estou eu datilografando a terceira versão do romance, e uma vez mais efetuando podas, modificações e correções, e de novo consultando mapas, arquivos e dicionários.
Geralmente a quarta versão é a definitiva, a que se destina a agradar (ou não) o meu primeiro leitor, o mais exigente de todos os meus leitores: eu mesmo.

- Qual é a sua relação com a escrita, com a palavra, com o estilo?

- Guido Wilmar Sassi - Não sei se entendi direito a pergunta. Em todo o caso, vamos às respostas. No que se refere à palavra, penso já ter esgotado o assunto nas respostas anteriores. Eu amo a palavra, mais especialmente a palavra escrita. Minha relação com a palavra é uma relação de amor, de entrega e posse, de sedução, de fascínio, de adoração. Foi por muito amor às palavras - e pesquisá-las muito - que me tornei escritor.
Quanto ao estilo, já abordei o assunto anteriormente: Foi por intermédio de muita leitura, mediante muitas viagens realizadas pelos estilos alheios que conquistei o meu próprio estilo. Todo o mundo faz assim, não é mesmo?

Alguém já disse que o estilo é o homem. Foi Buffon, se não me engano. Também disseram que todo escritor deve ter estilo e nariz próprios, e salientaram a semelhança entre ambos. Fui buscar um espelho e comparar esta página com o meu apêndice nasal. Pois não é que é verdade mesmo? Meu estilo é de fato igual ao meu nariz - escritinho.

- Por que escreve?

- Guido Wilmar Sassi - Por que escrevo?Sei lá! Por burrice e teimosia, talvez. Afinal, existem muitas outras coisas melhores e gratificantes para se fazer neste mundo. Por que escrevo? Já me fiz essa pergunta vezes sem conta, e jamais encontrei respostas satisfatória. O principal motivo, eu acho, foi o desejo muito humano de sair do anonimato, de projetar-me acima da média, de "ser alguém na vida" . E daí, ao descobrir que não sabia jogar futebol, nem cantar ou representar, nem compor música ou pintar quadros; e que tampouco possuía vocação para a indústria ou o comércio, e nem para assaltar banco: e que também não tinha a safadeza dos políticos, nem talento de inventor; e nem mesmo a coragem de traficante, bicheiro ou ladrão - resolvi dedicar-me à literatura. Para poder sobressair, aparecer, escolhi as letras; para ganhar a vida, porém, tive que ser balconista, padeiro, comerciante, funcionário público e bancário.
Consegui meu lugar ao sol? É... consegui. Mas esse lugar tem sombra pra caramba! Apesr de tudo, apesar da penumbra, mesmo apesar das trevas... acendo a luz e continuo escrevendo.
Amigos falaram-me do prazer da escrita, do prazer de escrever. Será que esse prazer existe mesmo? Muitos escritores consideram a literatura uma arte, um esporte. Não posso fazer o mesmo, pois se não tomar cuidado, se não tomar as minhas precauções, meu esporte se tornará deficitário.

Há escritores que pretendem ganhar dinheiro com a profissão de escritor. Bem poucos o conseguem. Affonso Romano de Sant´Anna, poeta e cronista, acaba de confessar: "se dependesse da renda dos meus livros (e já publiquei várias dezenas), não poderia pagar nem a empregada e a faxineira." Romano transcreve um desalentador diálogo (- O que faz você na vida? / - Sou escritor. / - Ah, ótimo! Maravilha! Mas de que vive?) e, com uma pergunta melancólica, termina a crônica: "Afinal, de que vive e como vive o escritor brasileiro?"
Não fossem alguns prêmios em dinheiro, de concursos vencidos, eu poderia dizer que não ganhei praticamente nada com a literatura. O produto dos direitos autorais sai em conta-gotas do bolso do escritor. Quando sai. A culpa é do sistema, eu si. Mas os escritores, a maioria, são os maiores culpados, pois sentem-se pagos e satisfeitos apenas com a publicação do livro. Mas a publicação não é tudo. Há que se dignificar a profissão de escritor. Afinal de contas, a criação literária não cai do céu por descuido, o trabalho de escrever é tão digno quanto outro qualquer.

Por que escrevo? Não sei. Tempos atrás, em uma entrevista, um dos colegas escritores respondeu: Escrever é compulsão. Todos aplaudiram - resposta genial. Ao chegar a minha vez vaiaram-me, humilharam-me quando eu disse: Escrever é praga de mãe.

- Em seu específico trabalho criador prevalece a interrupção ou a continuidade? Há crises? Com que as identifica?

- Guido Wilmar Sassi - Em meu trabalho de escritor intercalam-se períodos de intensa continuidade e períodos de interrupção - também intensa. Em 1954 veio-me a idéia central de um romance. Um tema e tanto. Não o trabalhei, contudo. Doze anos depois, quando morava em São Paulo, iniciei a escrita, abandonada, porém, logo a seguir. Passaram-se o anos. Em 1988, retornei ao livro interrompido, disposto a terminá-lo. Mas adoeci de outro romance e de novo abandonei o projeto. Certamente irei retoma-lo algum dia, se outra crise não motivar nova interrupção.

Por sua vez, ocorrem períodos de vertiginosa continuidade. Escrevi o romance OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA em três meses e SÃO MIGUEL , também romance, em cinqüenta e um dias.

O romance, pelas suas dimensões e características, exige que sejamos escritor vinte e quatro horas diárias, não raro quarenta e oito ou mais. Exigência enorme, pois sentimos necessidade também de sermos apenas gente, meros homens (com todo o bem o todo o mal), simples seres humanos e nada mais.

Com os meus contos o mesmo acontece: uns são escritos a jato; outros se arrastam, se arrastam e se arrastam, quase eternamente.

Lutei contra muitas crises, da mais variada importância, duração e ordem. As crises afetivas, quando agente se julga só no mundo, são difíceis de vencer. As piores de todas são as crises político-financeiras, pois elas concorrem para o agravamento de todas as outras. Em 1964, data do último golpe militar no país, quando o trabalho e a liberdade passaram a ser considerados mais insignificantes do que as latas de lixo, eu resolvi deixar de escrever e de fumar. Foi a maior crise que enfrentei: durou quase dezesseis anos. Enquanto ela durou eu não quis saber de escritores ou leitores, nem de livros, idéias ou personagens, nem de nada que se ligasse à arte e à literatura. Essa crise teve seu lado bom: abandonei por completo o cigarro e o meu sono era fácil, profundo e gostoso.

Costumamos justificar as crises atribuindo-as à falta de condições, de tempo, de tranqüilidade, de saúde, etc. Geralmente é apenas falta de coragem.

- Há momentos felizes ou ideais para escrever?

- Guido Wilmar Sassi - Há, sim. É nos momentos em que se consegue uma espécie de estado de graça, uma beatitude ativa e produtiva. Sou capaz de escrever de qualquer jeito (sentado, deitado, caminhando, ou a bordo de toda sorte de veículos), com e em qualquer objeto ou instrumento (lápis, esferográfica, papel, cartolina, papelão, taquigrafia, máquina de escrever, gravador, microcomputador, etc.), e a qualquer hora e em qualquer lugar. Sinto, no entanto, a necessidade de uma certa paz, de um pouco de tranqüilidade e conforto para obter o estado de espírito ideal para a criação.

Não gosto da solidão. Temo e detesto a solidão. E o trabalho do escritor é solitário, horrorosamente solitário. Quando escrevo, quando encontro o momento ideal, preciso de uma presença humana, de alguém que veinha interromper-me de quando em quando, a fim de provar que eu não estou só. Se não há ninguém de carne e osso por perto (pode ser um animal: peixes ornamentais, por exemplo, constituem presença alegre e fazem barulho silencioso), costumo cantarolar e ligo todos os aparelhos de som existentes em casa. Tudo para afugentar a solidão. Não sei se consigo explicar direito: gosto de um silêncio meio barulhento, de paz e ordem um tanto bagunçadas. O Bolero de Ravel costuma proporcionar-me momentos muito felizes e produtivos. Mas também sou capaz de escrever ao som de uma batucada ou de um rock-pauleira.

- Quando escreve é a vontade que puxa a escrita ou é a neurose, o prazer da inteligência e da fantasia?

- Guido Wilmar Sassi - Escrever é um trabalho como qualquer outro. Penoso e solitário. Mesmo assim, e mesmo dizendo que não acredito na inspiração, procuro conseguir que o prazer da inteligência e da fantasia puxem a escrita. Do contrário, se deixo que a vontade se sobreponha, parece-me que estou enfrentando uma espécie de violentação. E essa violentação costuma impor-se cada vez que escrevo.

- Onde encontra estímulo e pretextos para escrever? Poderia exemplificar concretamente com os seus escritos?

- Guido Wilmar Sassi - Já esgotei praticamente o assunto. Estímulo valioso tem partido dos meus parentes mais chegados: esposa, filhos, mãe, vó Gertrudes. Minha mulher foi colaboradora importante quando da escrita dos meus primeiros contos e romances. Meus filhos também têm sido colaboradores ativos, e muito vêm estimulando minha carreira de escritor. O estímulo maior, porém, bem assim os pretextos, vieram da parte de Vovó e Mamãe, pelo muito que me ensinaram e pelos causos inesquecíveis que me contaram.

- Escreve regularmente ou é possuído por raptus improviso?

- Guido Wilmar Sassi - Só escrevi regularmente quando morava em Lages SC, e mantive uma crônica diária na rádio local. Ah, e pagavam-me relativamente bem. Mas o que é bom dura pouco: minha temporada radiofônica foi bem rápida, quase meteórica.
Sempre detestei horários: bastaram-me os que fui obrigado a cumprir nos empregos por mim exercidos.

- Qual é o papel que o "imprevisto" desempenha em seu trabalho criador?

- Guido Wilmar Sassi - Muitas vezes o imprevisto domina por completo o trabalho de criação. Algumas espécies de imprevistos: personagem feminino vira homem, herói se transforma em vilão, nascimentos ocorrem em vez das mortes, a inocente vítima em potencial acaba se tornando um assassino desalmado.
Há personagens que fogem totalmente ao controle do autor e adquirem gostos, hábitos e manias que nos obrigam a trabalheiras danadas. Uma vez, estava eu escrevendo um conto policial para uma revista especializada, quando o imprevisto entrou em ação e não deu outra: a pessoa que estava para ser assassinada transformou-se no mais frio dos criminosos.

Em outra circunstância, eu estava trabalhando em um romance que se passava no rio Uruguai e que se intitularia Balsa ou talvez A Grande Viagem, pois descreveria uma jornada rio abaixo. O cenário de um dos capítulos era o cemitério do vilarejo de nome São Miguel, onde jaziam sepultados muitos personagens de Balsa. Foi daí, no dia 29 de setembro de 58, dia de São Miguel, padroeiro do vilarejo, minha esposa fez uma observação relativa à data. O estímulo para a criação literária funcionou e o imprevisto surgiu. Então, resolvi fazer um romance passado antes, no tempo em que o pessoal do cemitério ainda vivia. Eu já dispunha inclusive do título: SÃO MIGUEL. Escrevi o livro a jato e ganhei um prêmio com ele. Ignoro se Balsa virá a ser escrito algum dia.

Já me aconteceu de ter tudo planejado para um determinado livro: fichário, pesquisas, resumos, relação de personagens, etc. E daí, por causa de um imprevisto, eu deixo tudo de lado e escrevo outro livro.

- Existe, analogamente ao ' prazer do texto ' um prazer de escrever?

- Guido Wilmar Sassi - Existe, realmente, um certo prazer no exercício da literatura. Não sei descrevê-lo, não sei classificá-lo. Parece-me que o gozo do fazer literário tem muito de masoquismo, ou melhor, de sado-masoquismo. Um ato sexual em que a posse e a entrega se completassem intimamente, em que o criador se tornasse uma espécie de andrógino. No sentido figurado, é claro. Ora, ora..

No princípio, quando estamos em lua-de-mel com a literatura, escrever é simplesmente maravilhoso. Com o passar do tempo, o ato que deveria ser de amor se torna obrigação, e as coisas mudam muito e muito se transformam. E daí, a criação literária passa a exigir muito vigor físico e mental; passa-se a requisitar uma ereção enorme, e por vezes difícil, para um orgasmo fugaz e quase insignificante.

Costumo comparar o trabalho de escrever com trabalho da gestação, mormente quando se trata do romance. É que, tendo-se em vista as dimensões deste gênero (maior número de páginas, de personagens, de cenários, de ações, etc), os nove meses de escrita e criação se prolongam muito mais. Publicação e parto se assemelham - ambos possuem o seu lado feliz e gratificante, mas ambos também são dolorosos e trabalhosos.

Em suma, o prazer de fato existe, não importa a sua qualidade e intensidade. Se não me engano, já contei que, a medida em que um trabalho de criação progride, vou destruindo e jogando fora os papéis com a s anotações, os planos, projetos e rascunhos Atualmente, minha satisfação maior tem sido encher cestas e cestas de papéis rasgados ou amassados.

- Qual o livro de outro escritor que gostaria de ter escrito?

- Guido Wilmar Sassi - Eu gostaria de ter escrito O TEMPO E O VENTO. São perto de 2.250 páginas distribuídas entre as três partes do romance, e que se constituem, elas próprias, três romances praticamente estanques: O CONTINENTE, O RETRATO e O ARQUIPÉLAGO.
Romanção de fôlego, obra de mestre, lições da arte e da técnica de escreve ficção, de romancear. Reli O TEMPO E O VENTO algumas vezes, cinco ou seis, e todas com renovado prazer, fazendo novas descobertas e aprendendo coisas novas. Poucos repararam que o livro começa e termina pelo mesmo grupo de frases: " Era uma noite fria de lua nova. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta parecia um cemitério abandonado."

- Como se sente dentro da literatura brasileira hoje?

- Guido Wilmar Sassi - Sinto-me um tanto marginalizado dentro da atual literatura brasileira. Desde minha estréia em 53, passei a ocupar posição de relativo destaque nas letras nacionais. O termo relativo tem aí o sentido de médio, sem falsa modéstia e conforme os meus padrões de julgamento honesto. É preciso respeitar o julgamento do público e da crítica.

- O que pensa da literatura brasileira?

- Guido Wilmar Sassi - Nossa literatura é, sem favor algum, uma grande literatura. Sem xenofobia e mesmo considerando minha preferência pelo romance, gosto mais de reler um mau conto de Machado de Assis (e ele fazia maus contos, por acaso?), ou comprar a coletânea de estréia de um novato qualquer, do que aventurar-me pelos sedutores, primorosos e recentes best-sellers estrangeiros.

Conheço em primeira mão apenas a literatura brasileira; as demais, somente através de traduções. Claro que entre nós existem autores geniais, ótimos, bons, regulares, maus e péssimos.

É chegado o momento de falar um pouco das mulheres que fazem parte da nossa literatura.
Em outros tempos eu dizia: lugar de mulher é na cozinha. Pois elas provaram que sabiam também escrever. E muito bem, por sinal. Por causa das mulheres escritoras, vejo-me obrigado a mencionar a Academia Brasileira de Letras, antigamente limitada a quarenta ilustres desconhecidos do sexo macho. A Academia, um autêntico reduto do machismo, não permitia a entrada de mulheres. Isso mudou. Ainda existem desconhecidos (nem tão ilustres) na Academia, mas o seu número diminuiu sensivelmente. Na atualidade, entre os quarenta varões imortais figuram mulheres como Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon.
Ao falar em autores, quase sempre me refiro aos ficcionistas, mas é claro que uma literatura compreende todos os gêneros.

A literatura dever ser compreendida uma vez que se complete o ciclo autor-editor-leitor. Inadmissível que o mundo das letras se componha apenas de autores, uns escrevendo para o exclusivo gáudio dos outros. Inadmissível a arte pela arte. Sem a parte comercial, tudo o mais não existiria. Igual a outros bens de consumo, o livro precisa de quem o consuma e de quem o venda. Por isso, o ciclo somente se completa com a presença do livreiro; assim: autor-editor-livreiro-leitor. Seria o ideal. E ideal seria se as próprias editoras se encarregassem da distribuição dos seus livros, o que, bem ou mal, era feito em outros tempos. Surgiu, porém, tal e qual um quisto, um câncer do ciclo, um novo personagem: o distribuidor. Inteiramente alheio às letras, encravado entre o editor e o livreiro, é o distribuidor quem leva a parte do leão.

Por sua vez, o editor quase nunca é santinho de auréola e camisolão. Alguns deles, em vez de vender os encalhes a preços baixos, ou distribuí-los entre escolas e bibliotecas, costumam transforma-los em material de embalagem ou papel higiênico.

E o leitor? Pobre leitor brasileiro. Ele se esforça e luta para não submergir no mar de analfabetismo que inunda o país.

Paralelamente a este ciclo havia, nos tempos de outrora, outro elemento ligado ao livro: o crítico literário. Ele desapareceu. Ainda não descobri se faz falta ou não.

- Qual o futuro dessa literatura?

- Guido Wilmar Sassi - O futuro da nossa literatura infelizmente não dos mais promissores. Falta-nos divulgação maior. Quem não anuncia se esconde, afirma com toda a competência o pessoal da mídia. A literatura brasileira vive escondida, desconhecida. Motivo? Falta de distribuição e divulgação maiores, falta de mais propaganda, falta de intercâmbio de mais eficiente circulação no estrangeiro. Provas? Eis uma: nenhum escritor brasileiro foi, até hoje, agraciado com o Prêmio Nobel. E países de literatura menor, no entanto...

Não sei o que ocorre nas outras partes do mundo com referência à ajuda oficial às letras. No Brasil esse auxílio sempre foi mesquinho. Além de ser um país de muitos escritores e poucos leitores, tem sido fraca, muito fraca, a contribuição governamental. E quando falo contribuição, quero dizer dinheiro, mesmo. Sempre tivemos presidentes-poetas ou poetas-presidentes, os quais se esmeram em perpetrar maus versos e realizar péssimos governos. Ah, sim - no governo passado surgiu a Lei Sarney, com o propósito de incentivar letras e artes. Era um quase nada, mas até esse pequeno estímulo foi cortado pelo atual governante, que, diga-se de passagem, parece odiar teatro e cinema, artistas, escritores, livros e povo.

Não sei, não. Do jeito que vamos, corremos o risco de voltar muito logo às cavernas.

- Entre as palavras seguintes, escolha três e diga alguma coisa sobre elas: amor, cidade, poder, povo, solidão, solidariedade, prazer, violência, amizade, noite e silêncio.

- Guido Wilmar Sassi - Solidão é uma das palavras mais horríveis do mundo. Detesto-ª Aliás, no decorrer deste questionário, deixei bem clara minha aversão por esse vocábulo e suas acepções - qualquer delas.

Em pequeno eu sentia muito medo da noite. Durante a noite as coisas ruins acontecem: assassinatos, desastres, incêndios, agravamento de doenças, velórios e mortes. Eu temia que o mundo se acabasse durante a noite.

Ah, os segredos, os mistérios, os temores e horrores da noite! É marcante a presença e a importância da noite em minha literatura. Em um dos meus contos, um casal de miseráveis aguarda que a noite venha. Os dois estão em um local deserto e sem recursos, um verdadeiro fim de mundo. A mulher, já no final da gravidez, teme dar à luz a qualquer momento. O homem, doente, aflito, meio enlouquecido, é prisioneiro de uma árvore na qual subiu e não pôde mais descer. Ambos estão em desespero. E cheios de frio, de fome, de sede e de medo. A palavra noite é citada apenas duas vezes em todo conto, que termina justamente quando ela chega. O título da história não poderia ser outro: Noite.

Com o tempo, eu deixei de temer a noite. Descobri os seus encantos. Hoje eu adoro a noite; ela é ideal para se fazer literatura e se fazer amor. A propósito da palavra amor, acho que nada se pode escrever a seu respeito... apesar de tudo quanto já foi escrito. Amor é para ser vivido e sentido. Em todos os seus aspectos e em todas as suas formas.

- Como conseguiu publicar seu primeiro livro?

- Guido Wilmar Sassi - Enviar originais às editoras e aguardar aprovação pode funcionar muito bem na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil não dá certo. O que pode acontecer (e aconteceu com um dos meus romances, SÃO MIGUEL) é uma editora promover concurso e publicar o livro vencedor. Isso quando publica... e quando paga o valor do prêmio.

No caso do meu primeiro livro, PIÁ, coletânea de contos tendo por figura central a criança ou o adolescente, eu era e ainda sou amigo do editor. Foi assim: no final dos anos 40, em Florianópolis, uma turma de jovem fundou o Grupo Sul, o qual teve, durante alguns anos, grande importância no panorama artístico e literário do país. Os mais diversos aspectos e ramos da arte e da cultura foram objetivo do grupo: ente eles, publicação de revistas, cinema, clube de cinema, encenação de peças teatrais, intercâmbio cultural com outros grupos e edição de livros. Passei a participar ativamente do grupo Sul e tornei-me amigo de Salim Miguel, um dos fundadores. Ele interessou-se pelos meus contos e foi pelas Edições Sul que saíram meus dois primeiros livros.

- Algum editor propôs-lhe alguma vez escrever exclusivamente e com salário fixo?

- Guido Wilmar Sassi - Uma editora propor a um escritor que escreva com exclusividade e com salário fixo - aqui no Brasil? Difícil, muito difícil, quase impossível. No meu caso, jamais me fizeram tal proposta. Não sei seu aceitaria.

- Quando escreve, pensa nos críticos, nos leitores, no editor?

- Guido Wilmar Sassi - Quando escrevo não penso em ninguém, seja editor, crítico ou leitor. Meu objetivo é transformar uma idéia em conto, crônica, novela ou romance. No entanto, costumo pensar em um determinado leitor: o primeiro leitor: eu mesmo. Também sou o primeiro crítico. Se eu ficar satisfeito é porque o livro é bom; se o contrário acontece é porque o livro não presta mesmo.

Somente depois de terminado o livro é que me lembro da existência do editor, e que esse editor precisa ser abordado, conquistado, convencido e, quem sabe, vencido.

- Discute com o editor, aceita conselho, cortes, etc?

- Guido Wilmar Sassi - O editor no Brasil, salvo as ditas raras exceções, parece odiar o escritor nacional. Claro, o escritor brasileiro não dá lucro. Não dá lucro porque não é editado e não é editado porque não dá lucro. Entenda! Em regra, o nosso editor costuma reservar ao autor patrício alguns epítetos nada elogiosos: chato de galochas, peso morto, edição de obrigação, etc. Às vezes, por julgar a atividade meio amadorística, o editor não conhece o métier, e às vezes, por falta de assessoria ou má assessoria, ele não conhece sequer o próprio livro, objeto do seu mercado.

Já aceitei conselhos e sugestões de cortes, assim como deixei de aceitá-los.

- Acredita que a publicidade seja importante para o lançamento e o sucesso de um livro ou pensa que um bom livro não precise?

- Guido Wilmar Sassi - Um bom livro nem sempre tem o lançamento e o sucesso comercial que merece. A publicidade é, indiscutivelmente, essencial. O diabo é que existem vários tipos de publicidade, sendo a escandalosa e/ou compulsória a mais comum.

Vendem bem os títulos chamativos: "Minha prima foi amante de Ramsés II" e " Eu testemunhei meu avô estrangular o tataravô de Hitler".

Os políticos (presidentes ou não, imortais ou mesmo sem participação em qualquer academia) e seus assemelhados e congêneres, quase sempre por conta do erário público, acham-se na obrigação de enriquecer a literatura com as suas esplêndidas obras em prosa e verso: "Lagartixas Ígneas", "Banquetes e sonetos palustres", "Por que fui eleito ditador vitalício da Pornolândia".

Gente ligada ao governo, economistas, estrategistas, porta-vozes, líderes na Câmara, etc. também fazem suas incursões pelo País das Belas Letras. Assim, o datilógrafo do auxiliar do ajudante do subsecretário do terceiro assessor de um ministro qualquer também comparece com o seu best-seller: "Como acabar com a inflação em 10 lições - método seguro, eficaz e eficiente".

- Participa do lançamento de seus livros?

- Guido Wilmar Sassi - Já participei do lançamento de alguns dos meus livros. Acho muito importante para o escritor autopromover-se, visando à divulgação de sua obra e ao sucesso de público e de crítica. Noite de autógrafos é uma boa pedida, mas eu jamais consigo atrair leitores badaladores ou compradores, pois ainda não assassinei ninguém, nem celebridade alguma, não tenho planos miraculosos para salvar a economia do país, não descobri a pólvora, etc.

- Quando escreve, percebe autocensuras, temores em se revelar, laços, impedimentos?

- Guido Wilmar Sassi - Quando escrevo, percebo autocensuras, laços, temores e impedimentos de toda ordem e tamanho. Não sei explicá-los.

Minha luta principal é contra a preguiça, e esta acaba vencendo a maioria das vezes. Sou muito preguiçoso, graças a Deus. Suspeito de que isso se deve a um esforço do subonsciente no sentido de preservar minha saúde.

Começo o dia com o firme propósito de escrever. E saio à cata de mil pretextos para não fazê-lo. Caminho para cá e para lá. Evito sentar-me à máquina. Não me aproximo do gravador nem do micro. Faço a ponta de todos os lápis que encontro, sabendo que jamais precisarei deles. Largo tudo de mão e leio um trecho de poema de poetas meus de cabeceira: Pablo Neruda, Fernando Pessoa, García Lorca, Vinícius, Drummond. Geralmente consigo dominar a imperativa e incoercível vontade de escrever.

Tudo é pretexto para não começar a escrever, pois sei muito bem que, se começar mesmo, nada nem ninguém me fará parar.

- O sucesso de uma obra depende de que? De quem?

- Guido Wilmar Sassi - Vou dar a resposta mais curta de todo este questionário: Francamente, eu não sei.

- Faça de conta nada ter dito até agora. Poderia traçar o seu perfil humano e profissional (enquanto escritor) para os leitores?

- Guido Wilmar Sassi - É difícil esquecer tudo quanto já disse. Eu estou, de corpo e alma, nas respostas do questionário. O meu auto-retrato? No princípio, eu era um só, indivisível. Depois apareceu a dualidade, quando comecei a brincar com os espelhos. Daí, o UNO se bipartiu: o direito e o avesso. Dr. Jekil e Mr. Hyde surgiram de mãos dadas, xipófagos inseparáveis. Na tentativa de novamente fundir as duas imagens o espelho se quebrou: cacos e mais cacos. Os fragmentos se transformaram numa porção de espelhos. E eu, usando os versos de Cecília Meireles, fiz a pergunta crucial: - Em que espelho ficou perdida a minha face? Não encontrei resposta. Mas ainda resta uma esperança nos versos de outro poeta, Mário de Andrade: Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta. / Mas um dia afinal me encontrei comigo...

Fui lógico? Não, não fui! Nunca serei lógico. Não entendo coisa alguma de lucidez nem de lógica. Se entendesse, mesmo que fosse um pouquinho só, jamais me importaria com a literatura.

Fonte:
http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br/guidoautores.htm

Mark Twain (A Célebre Rã Saltadora)


De acordo com o pedido de um amigo meu, que me escrevera do Leste, fui visitar o bondoso palrador que é o velho Simon Wheeler, e, como me fora pedido, perguntei-lhe por Leonidas W. Smiley, amigo de um meu amigo; e aqui conto do resultado. Tenho uma secreta desconfiança de que Leonidas W. Smiley é um mito; que o meu amigo jamais conheceu tal personagem; e que apenas conjeturou que, se eu perguntasse ao velho Wheeler por ele, isso lhe lembraria o seu infame Jim Smiley e faria com que ele me ocupasse e me aborrecesse mortalmente com alguma diabólica recordação do outro, tão enfadonha como inútil para mim. Se era essa a sua intenção, o caso surdiu efeito.

Encontrei Simon Wheeler dormindo junto ao fogão da sala do bar da velha e arruinada taberna do antigo campo mineiro de Angel; reparei que era gordo e calvo e que havia uma expressão de cativante gentileza e simplicidade nas suas feições tranqüilas. Despertou e cumprimentou-me. Disse-lhe que um amigo meu me encarregara de fazer algumas investigações acerca de um companheiro querido de sua infância, chamado Leonidas W. Smiley – Rev. Leonidas W. Smiley, - um jovem sacerdote de quem ele ouvira dizer que em tempos residira em Angel Camp. Acrescentei que, se Mr. Wheeler me pudesse dar algumas informações acerca desse Rev., lhe ficaria muito grato.

Wheeler fez-me recuar para um canto bloqueou-me ai com a sua cadeira, depois fez-me sentar e desenrolou a monótona narrativa que se segue a este parágrafo. Nunca sorriu, nunca franziu as sobrancelhas, nunca a sua voz mudou do tom suave e cheio com que, de princípio, a afinara, nunca mostrou o mais ligeiro sinal de entusiasmo; mas, através da infindável narrativa, havia um impressivo ardo e uma sinceridade que claramente me mostravam nem pela imaginação lhe passar que houvesse qualquer coisa de ridículo ou cômico na sua história; considerava-a como um assunto importante e encarava seus dois heróis como talentos de especial fineses. Para mim o espetáculo de um homem desfiando serenamente uma história tão original, sem nunca sorrir, era estranhamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me contasse o que sabia do Rev. Leonidas Smiley e ele respondeu-me como se segue. Deixei-o prosseguir como bem quis, sem o interromper uma vez sequer.

Houve aqui um sujeito de nome Jim Smiley, no inverno de 49 – ou talvez na primavera de 50 – não me recordo bem, mas o que de qualquer forma me fez lembrar que foi ou em um ou em outra é porque me lembro que o grande canal ainda não estava terminado quando vim a primeira vez para aqui; mas, fosse como fosse, ele era o homem mais interessante que havia por essas bandas, sempre a apostar qualquer coisa que aparecesse, desde o momento que pudesse arranjar alguém que apostasse pela parte oposta; e, no caso de não poder, mudava ele de parte. O que conviesse ao adversário, convinha-lhe a ele – de qualquer forma ficava satisfeito, desde o momento que pudesse apostar. Apesar disso, tinha muita sorte, uma sorte invulgar – ganhava sempre. Estava sempre pronto a espera de uma oportunidade. Qualquer coisa a que nos referíssemos, esse homem oferecia-se logo para apostar nisso, dando-nos o partido que mais nos agradasse, como já tive ocasião de dizer. Se havia uma corrida de cavalos, no final ou o víamos cheio de dinheiro ou, então, arruinado; se havia um combate de cães, ele apostava; apostava se havia um combate de galinhas; até mesmo se dois pássaros estivessem pousados em uma cancela, apostava qual deles levantava vôo primeiro; ou, se havia uma reunião no campo de mineiros, lá estava para apostar no Padre Walker, que ele considerava a criatura com maior poder de persuasão dos arredores, o que ele era em verdade e, além disso, um bom homem. Se visse um percevejo partir para qualquer lugar, apostaria consigo próprio quanto tempo levaria ele para chegar ao seu destino e, se aceitasse a aposta, seguiria o bicho até o México, sem saber para onde se dirigia nem quanto tempo gastaria na viagem. Muitos dos rapazes aqui conheceram o Smiley e podem contar-lhes coisas acerca dele. Nada lhe importava – apostava em qualquer coisa, o raio do homem. A mulher do padre Walker esteve doente durante bastante tempo e parecia já não poder salvar-se; mas, uma manhã, Smiley encontrou-o e perguntou-lhe como ela estava. “Louvado seja o Senhor pela sua infinita misericórdia, melhorou tão rapidamente que se porá boa em um instante”; e Smiley, sem pensar, disse: “Pois bem, aposto dois dólares e meio como ela não melhorará”.

Ora, este Smiley tinha uma égua – os rapazes chamavam-lhe uma pileca, mas de brincadeira, porque ela na verdade, era melhor do que isso – e ganhava dinheiro com aquele animal, embora tivesse asma, tuberculose ou outra qualquer doença. Costumavam dar-lhe duzentas ou trezentas jardas de avanço e, depois, a ultrapassavam. Mas, quase no fim da corrida, a égua excitava-se e, desesperada, vinha por aí fora atabalhoadamente, levantando uma poeira tremenda e fazendo uma barulheira com a tosse e os espirros – e o caso é que ganhava sempre por uma cabeça.

E tinha um cachorro buldogue que, ao olharmos para ele, parecia não valer meio tostão e que dir-se-ia servir apenas para vaguear por aí, a espera de uma oportunidade para roubar qualquer coisa. Mas logo que se apostava nele, tornava-se um cão diferente; o maxilar inferior distendia-se como castelo de proa de um navio e os dentes brilhavam como navalhas. E um cão qualquer podia desafiá-lo, e persegui-lo, e mordê-lo, e virá-lo de costas duas ou três vezes que Andrew Jackson – assim se chamava o cachorro – não se enfurecia; mostrava, mesmo, satisfação, como se não esperasse outra coisa. Dobradas e quadruplicadas as apostas, logo que todo o dinheiro estivesse apostado, o cachorro, de repente, agarrava-se à perna traseira do outro cão e não a largava – não dava dentadas, compreende, apenas o filava, e ali ficaria um ano, se fosse preciso, se não atirassem a esponja ao sr. Smiley, que sempre ganhou com aquele cachorro, até que um dia apostou contra um cão ao qual faltavam as pernas traseiras, que haviam sido cortadas por uma serra circular. Depois dos habituais preparativos e do dinheiro estar todo apostado, o cachorro, como era costume, tentou filar o adversário; mas de repente, viu que tinha sido intrujado e que o outro cão estava, por assim dizer, rindo dele. Dando mostras de muito surpreendido e desencorajado, já não tentou sequer ganhar a luta, tendo ficado bastante miltrado. Olhou para Smiley, para lhe dizer que se lhe despedaçava o coração e que a culpa era dele por lhe ter apresentado um cão a que faltavam as pernas traseiras, seu principal trunfo em um combate e, depois, coxeando durante um bocado, deitou-se e morreu. Era um bom cachorro aquele, e havia de tornar-se famoso se tivesse vivido, porque tinha qualidades para isso; era um gênio, tenho a certeza, embora ele nunca tivesse a oportunidade para falar nisso; mas, se assim não fosse, era impossível que um cão pudesse lutar como ele lutava. Sinto-me sempre triste quando penso no seu último combate e na maneira como decorreu.

Ora bem, esse Smiley tinha cães rateiros, e galos, e gatos, uma grande quantidade de bichos, que não deixava ninguém descansar e era a maneira de ele sempre ter qualquer coisa em que apostar. Um dia apanhou uma rã, levou-a para casa e disse que ia educá-la; e durante três meses não fez outra coisa, no pátio de sua cada, que não fosse ensiná-la a saltar. E, na verdade, ensinou-a bem. Dava-lhe um pequeno piparote, e era vê-la girar no ar, dar um salto mortal, ou mesmo dois, se tivesse tomado balanço e cair de pé, como se fosse um gato. Ensinou-a a apanhar moscas e mantinha-a em prática constante, de maneira que, mal ela via uma mosca, a caçava logo. Smiley dizia que uma rã do que precisava era de educação para fazer tudo o que quisesse – e eu acredito. Pois se vi por Daniel Webster aqui no chão – Daniel Webster era o nome da rã – e gritar “moscas, Daniel, moscas” e, mais depressa do que você leva a pestanejar, ela saltava e apanhava uma mosca ali no balcão, e tornava a pular para o chão, tão segura como se fosse um pedaço de lama, coçando o lado da cabeça com a pata traseira, tão indiferente como se estivesse convencida de que o que fazia era o que todas as rãs faziam. Nunca se vira uma rã assim; tão modesta, tão obediente, embora tão habilidosa. E, então, quando se tratava de saltar uma superfície lisa, podia ir mais longe, em um simples salto, do que qualquer outro animal da sua espécie. Saltar em terreno liso era a sua especialidade, compreende? E, quando era esse o caso, Smiley apostava nela todo o dinheiro que tinha. Smiley tinha um orgulho enorme desta rã e, diga-se de passagem, com razão, pois que pessoas viajadas diziam que ela batia todas as rãs que tinham visto.

Ora, Smiley guardava o animal numa gaiola e costumava trazê-lo aqui, à espera de apostas. Um dia, um estranho foi ter com ele e disse-lhe: “Que tem você nesta caixa?”

E Smiley respondeu com indiferença: “Podia ser um papagaio, um canário, mas não é – é apenas uma rã.”

E o homem agarrou na gaiola e voltando-a de um e outro lado, observou o bicho cuidadosamente e disse: “Hum... pois é. Mas para que ela serve?”

– Ora, aí está – disse Smiley – para uma coisa serve ela, julgo eu, consegue saltar mais do que qualquer outra rã da cidade de Calaveras. O homem tornou a pegar a gaiola, pôs-se a olhar muito tempo e, com cuidado, devolveu-a e disse, intencional:

– Não vejo nada nesta rã que a torne melhor do que qualquer outra.

– Talvez – disse Smiley – você entenda e rãs, ou não; talvez tenha tido experiência, talvez não passe de um amador. Seja como for, fico na minha e aposto quarenta dólares em como ela pode saltar mais do que qualquer rã de Calaveras.

– Eu, aqui, sou apenas um estranho e não tenho rã, mas se tivesse uma, apostava – disse o homem depois de pensar um minuto.

Ao que Smiley respondeu:

– Não faz mal; se você me segurar a caixa, vou buscar-lhe uma rã. O homem segurou, então, na caixa, pôs quarenta dólares no lado dos de Smiley, sentou-se e esperou.

E ali esteve durante muito tempo a pensar e repensar; depois tirou a rã para fora, abriu-lhe a boca, agarrou uma colher de chá e encheu-a de grãos de chumbo – encheu-a quase até os queixos – e pô-la no chão. Smiley tinha ido ao pântano e por lá andou a mexer na lama um bom pedaço, até que, por fim, apanhou uma rã; trouxe-a, deu-a ao homem e disse:

– Agora, se você está de acordo, eu a coloco aqui ao lado de Daniel, com as patas dianteiras na mesma linha e dou o sinal de partida. Atenção: Um, dois, três, salta! E ele e o outro tocaram nas rãs, e a nova rã saltou, mas Daniel fez um esforço, contorceu-se toda, encolheu os ombros como um francês, mas nada, nada se podia mexer; estava ali pregada, como se fosse uma bigorna; era como se estivesse ancorada. Smiley ficou mui admirado e bastante desgostoso, mas, claro está, não fazia idéia alguma da razão daquilo.

O outro recebeu o dinheiro e afastou-se, ao chegar a porta, apontou o dedo para Daniel – assim – tornou a dizer:

– Não vejo nada nessa rã que a torne melhor do que qualquer outra.

Smiley ali ficou, coçando a cabeça e olhando para Daniel durante algum tempo, até que por fim, disse:

Mas que diabos é que teria acontecido à rã? Terá ela qualquer coisa? Parece estar muito inchada! Agarrou Daniel pelo pescoço, levantou-a e disse:

- Diabos me levem se ela não pesa, pelo menos, cinco libras!

E, voltando-a de cabeça para baixo, viu-a vomitar uma porção de escumilha. Quando viu o que aquilo era, ficou furioso, pousou a rã e foi atrás do outro, mas não chegou a apanhar. E...

Nesta altura, Simon Wheeler ouviu que o chamavam, e levantou-se para ver o que era. Voltando-se para mim, enquanto andava, disse:

– Deixe-se ficar onde está, descansando, que eu não me demoro um segundo.

Mas, com vossa licença, não achei que a continuação da história do empreendedor vagabundo Jim Smiley fosse de molde a fornecer-me grandes informações a respeito do Rev. Leonidas e, por isso, levantei-me para sair.

À porta encontrei o afável Wheeler, de volta; agarrou-me por um botão do casado e recomeçou:

– Ora, este Smiley tinha uma vaca amarela, só com um olho, sem cauda, ou, antes, só com um toco, como se fosse uma banana, e...

– Ora, diabos levem o Smiley mais as atribuições da sua candice eu, jovialmente, e, despedindo-me do velho, fui-me embora.

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 5)


ARRASTAR A ASA
Arrastar a asa para uma mulher é tentar conquistá-la com galanteios, fazendo charme. É o que o galo faz para conquistar uma galinha. Por isso, o galo capenga, de asa arriada, morre cedo: overdose de sexo.

BABAU!
Há três versões para a origem da interjeição indicativa de coisa perdida para sempre, o leitor escolhe:
(a) é uma onomatopéia (palavra imitativa de som, como tiquetaque, zunzum...);
(b) veio do quimbundo (língua africana) babau, que significa "foi-se";
(c) veio de baba, com o argumento de que a exclamação é freqüentemente acompanhada do gesto de passar as costas da mão do pescoço ao queixo e estendê-la aberta em frente ao rosto, indicando que a pessoa babou e não comeu.
O troféu criatividade vai para a última concorrente.

BAGULHO
O latim baga (baga) originou o português baga, fruto carnoso com sementes (como o tomate, a uva, o mamão) ou, por semelhança, gota. Baga é a origem de (a) bagaço, com a terminação aumentativa e pejorativa -aço e (b) bagulho, com a terminação diminutiva e depreciativa -ulho. Bagulho é o nome que se dá à semente (carocinho) da uva e de outros frutos. Por analogia e extensão ganhou o sentido de objeto usado ou de má qualidade, ampliado depois para coisa, troço.
Voltando ao latim baca, daí veio o italiano bagatelia (coisa sem valor), que deu o português bagatela, com o mesmo sentido. Depois, o uso popular, por ironia, deu-lhe o sentido oposto (quantia exagerada), com que aparece hoje mais freqüentemente - "o carro custou a bagatela de US$80 mil".
Baga foi para o masculino e ficou bago, com o significado inicial de cada fruto de um cacho de uvas; depois vieram outros sentidos, por analogia: qualquer fruto parecido com a uva, conta de rosário.

BAITOLA
A palavra teria surgido durante a construção da primeira estrada de ferro do Ceará. O chefe da obra, um engenheiro inglês, afetadíssimo para os padrões locais, vivia advertindo os trabalhadores para terem cuidado com a "baitola", que era como ele pronunciava a palavra bitola (a distância entre os trilhos). Então, alguns trabalhadores, convictos de que afetação não é coisa de macho, criaram baitola para designar o homossexual passivo.
E aí está o leitor a torcer o nariz. Tudo bem, tem cheiro de historinha, mas, até hoje, os etimólogos só encontraram essa explicação para a origem da palavra.

BANAL
Do francês banal. O sentido original da palavra banal, tanto em francês como em português, surgiu na época do Feudalismo: banal era tudo aquilo que pertencia ao suserano (o senhor) e era utilizado pelos vassalos (seus súditos). Assim, um moinho de um feudo, utilizado por todos os habitantes, era um moinho banal, sinônimo de comunitário. A partir daí, a palavra, nos dois idiomas, teve seu sentido ampliado para o de comum, vulgar.
O francês banal veio de ban, a proclamação do senhor feudal em seu território. Depois ban ganhou o sentido de comunidade formada pelos vassalos e seus semelhantes sob o comando do mesmo suserano. Como o espaço em que o suserano exercia esse comando era afastado e ficava fora das muralhas de seu feudo, recebeu em francês o nome de banlieue (ban + lieue, légua), palavra que hoje significa arredores, subúrbio.
O francês antigo ban também gerou a palavra bandon, autoridade, poder. Daí veio abandonner -a + bandon + (n)-er-, com o sentido literal de deixar alguém sob seu próprio e exclusivo arbítrio, origem do português abandonar.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Marquês de Rabicó II – O Pedido de Casamento


Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.

— Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar, se não acaba ficando tia. Amanhã vem cá um distinto cavalheiro pedir a mão de Vossa Excelência.

Emília andava bem de saúde, gorda e corada. Tia Nastácia havia enchido de macela nova a perninha que fora saqueada no passeio ao reino das Abelhas e Narizinho havia consertado uma das suas sobrancelhas de retrós, que estava desfiando. Além disso, pintara-lhe nas faces duas rodelas de carmim, bem redondinhas.

Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.

— Como não? — protestou a menina. E Rabicó? Não acha que é um bom partido?

A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão como aquele. O fiasco feito na viagem à terra das Abelhas não era coisa que merecesse perdão.

A menina riu-se e explicou:

— Você está enganada, Emília. Ele é porco e poltrão só por enquanto. Estive sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em porco e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa minhoca. Por isso é que Rabicó vive fossando a terra atrás de minhocas.

Emília ficou pensativa. Ser princesa era o seu sonho dourado e se para ser princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ela o faria sem vacilar um momento.

— Mas você tem certeza, Narizinho?

— Tenho certeza absoluta! Quem me revelou toda essa historia foi justamente o pai de Rabicó, o senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo muito distinto que vem fazer o pedido de casamento.

— Visconde? — repetiu Emília, desconfiada. — Então o pai desse príncipe é Visconde só? Eu quero casar com príncipe filho de rei.

— Você é uma bobinha que não sabe nada. O Visconde finge de Visconde, mas na realidade é rei e muito bom rei de um reino lá atrás do morro. Quando ele vier, repare na cabeça dele e veja que tem um sinal de coroa em redor da testa. Para esconder esse sinal ele usa cartola, que não tira nunca, nem na igreja. Desse modo, como ninguém vê o sinal da coroa, ninguém desconfia.

Emília pensou, pensou, pensou e disse:

— Pois bem, aceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso-me, mas não vou morar com Rabicó enquanto ele não virar príncipe novamente.

— Muito bem! — concluiu Narizinho. — Nesse caso, vá preparar-se para receber o Visconde, que não deve tardar. Ele já está a caminho. Vista aquele vestido de pintas vermelhas e ponha mais ruge na cara, ouviu?

Enquanto a boneca se vestia, a menina correu ao pomar em procura de Pedrinho, que estava ocupado em chupar laranjas-lima.

— Depressa, Pedrinho! Arranje-me um bom Visconde de sabugo, bem respeitável, de cartola na cabeça e um sinal de coroa na testa, e venha com ele pedir Emília em casamento. Enganei-a que Rabicó é filho desse Visconde, o qual é um grande rei de um reino lá atrás do morro. Os dois, pai e filho, foram encantados por uma fada, só devendo se desencantarem no dia em que Rabicó descobrir uma certa minhoca com um certo anel mágico na barriga.

— E a boba acreditou?

— Acreditou piamente e declarou que nesse caso aceitará Rabicó como esposo, embora não vá morar com ele enquanto não virar príncipe novamente.

Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, fez cara com nariz, boca, olhos e tudo – e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um sinal de coroa de rei.

Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com ele à casa da boneca.

— Toc, toc, toc, bateu.

— Quem é? — indagou de dentro a voz da menina.

— É o ilustre senhor Visconde de Sabugosa que vem fazer uma visita à senhora condessa de Três Estrelinhas e pedi-la em casamento para o seu ilustre filho, o senhor marquês de Rabicó.

— Esperem um minutinho que já abro — respondeu a menina.

E voltando-se para a boneca:

— Vê, Emília? Além de príncipe ele ainda é marquês. De modo que se você casar-se com ele começa já a ser marquesa e um dia virará princesa. Não pode haver futuro mais bonito para uma coitadinha que nasceu na roça e nem em escola esteve. Você vai ser a Gata Borralheira das bonecas!...

Emília deu três pulinhos de alegria e foi correndo botar mais um pouco de pó de arroz. Enquanto isso o Visconde entrou.

Narizinho fez-lhe uma respeitosa reverência e respondeu, sem dar a entender que estava falando com um rei disfarçado:

— Muito prazer, senhor Visconde! Puxe uma cadeira e sente-se no chão. Creia que fico muito satisfeita de saber que seu filho é marquês. E como vai a senhora Viscondessa?

— Sou viúvo — respondeu o Visconde, suspirando profundamente.

— Meus pêsames! E a senhora sua mãe, dona Palha de Milho?

O Visconde suspirou de novo.

— Coitada! Faleceu num horrível desastre...

— Como? Conte-nos isso — exclamou Narizinho, fingindo grande aflição.

— Pois é. Foi comida pela vaca mocha — explicou o Visconde, enxugando nas palhinhas de milho do pescoço duas lágrimas, uma de cada olho.

— A pobre! — murmurou a menina muito triste. — Eu sinto bastante, Visconde, mas o mundo é isto mesmo. Um come o outro. A vaca mocha come as donas Palhas e a gente come as vacas. A vida é um come-come danado! Estou aqui apostando que também os seus filhos foram comidos pela senhoras galinhas...

O Visconde arregalou os olhos como se não soubesse que tinha mais filhos além do marquês.

— Sim — explicou Narizinho. — Os grãos de milho que Vossa Excelência já teve pregados pelo corpo, creio que podem ser chamados seus filhos.

— Ah, sim, é verdade! Foram comidos pelo galo índio há duas semanas.

Nisto Emília apareceu à porta, no seu vestidinho de chita com pintas vermelhas.

— Senhor Visconde — disse a menina — tenho o prazer de lhe apresentar a sua futura nora, a senhora condessa de Três Estrelinhas. Veja como é galante!...

O Visconde levantou-se para saudar a boneca e por “distração” tirou a cartola, deixando que Emília visse o sinal de coroa em sua testa.

— Tenho a mais subida honra de receber no seio de minha família esta nobre condessa — disse ele. — Pelo que vejo é a mais linda criatura destes arredores! Acho-a ainda mais bonita que a franguinha pedrês de tia Nastácia...

Emília fez uma cortesia para agradecer a amabilidade, embora torcesse o nariz àquela comparação com a franguinha pedrês.

— E não é só isso — interveio Narizinho. — Bonita e prestimosa como não há outra! Sabe fazer tudo. Cozinha na perfeição, lava roupa e lê nos livros que nem uma professora. Emília é o que se chama uma danada.

— Muito bem! Muito bem! — ia exclamando o Visconde.

— Também toca lindas músicas na vitrola, mia como gato, arrebenta pipocas e tem muito jeito para modista. Esse vestidinho de pintas, por exemplo, foi todo feito por ela.

Emília, que ainda não sabia mentir, interrompeu-a, dizendo:

— Não fui eu, foi tia Nastácia quem o fez. A menina deu-lhe um beliscão sem que o Visconde percebesse.

— Não repare, Visconde. Emília é muito modesta. Faz as coisas mas não quer que se diga. Esse vestido ela o fez sozinha, sozinha. Ela mesma escolheu a fazenda, ela mesma cortou e coseu. E olhe como ficou bem assentado nas costas. Levante-se, Emília, e vire-se de costas para o Visconde ver.

Emília levantou-se da cadeira e deu umas voltas pela sala.

— Não está dos mais elegantes mas serve – continuou Narizinho. — Emília nasceu aqui na roça e nunca foi à cidade, nem aprendeu costura. Para uma criatura nessas condições não acha que está bem feitinho?

O Visconde olhou, olhou e disse:

— Eu, a falar a verdade, não entendo de modas. Mas acho muito bom. Só que a saia me parece um tanto curta...

— Eu também acho e já o disse a ela; mas Emília como tem perna grossa, anda com mania de mostrá-la. Só usou saia comprida durante o tempo da perna seca — e contou ao Visconde o caso do ouro-macela. Depois, mudando de assunto, pediu informações a respeito do gênio de Rabicó.

— Ele tem muito bom gênio — disse o Visconde. — Não é briguento, nem provocador. Possui belas qualidades. Quanto ao mais, gosta muito de dormir ao sol e fossar a terra para descobrir minhocas.

Nesse ponto a menina piscou para a boneca, querendo referir-se à história de certo anel que ele andava procurando dentro de certa minhoca, e Emília convenceu-se de que Rabicó era mesmo um príncipe encantado.

— O único defeito que tem — continuou o Visconde — é comer tudo quanto encontra. Rabicó não respeita coisa nenhuma!

Emília fez carinha de nojo e foi cuspir à janela. Depois, metendo-se na conversa, disse:

— Pois se se casar comigo só há de comer coisas gostosas e cheirosas. Não consinto que meu marido ande comendo o que encontra.

— Apoiadíssimo, Emília! — exclamou a menina. — Também penso desse modo e acho que você faz muito bem de exigir isso dele. Mas agora só resta saber se você aceitou ou não aceita o senhor marquês de Rabicó como esposo. Vamos lá. Resolva...

Emília ficou meio aflitinha de ter de decidir por si mesma uma questão de tal gravidade como essa de escolher um esposo e olhou Narizinho interrogativamente, como quem pede auxílio. Mas a menina não quis intervir, porque não desejava ficar com a responsabilidade.

— Não devo dar opinião, Emília. Você tem que decidir por si mesma. Casamento não é brincadeira.

A boneca pensou, pensou, pensou e afinal, tentada pela idéia de começar marquesa e um dia virar princesa, resolveu-se.

— Pois quero!

Narizinho bateu palmas.

— Bravos! Está tudo resolvido. Senhor Visconde, abrace a sua nora, a futura marquesa de Rabicó...

O Visconde ergueu-se bastante comovido. Abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na face.

Emília, muito vermelhinha, foi correndo para o quarto.
––––––––
Continua... O Noivado de Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 400)

Selma Patti Spinelli (São Paulo), A. A. de Assis (Maringá) e Carolina Ramos (Santos)
Uma Trova Nacional

Felicidade é uma bola,
que a gente, em tola disputa,
corre atrás enquanto rola
quando para, a gente chuta!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova Potiguar

Velhas cortinas listradas
em veludo multicor,
inda mantêm bem guardadas
nossas lembranças de amor
–DJALMA MOTA/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Nova Friburgo/RJ
Tema: SAUDADE - 3º Lugar

Se o meu tempo está marcado
e da saudade eu disponho,
invento alguém ao meu lado,
cerro meus olhos e sonho...
–MÍLTON NUNES LOUREIRO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Descobri no envelhecer,
em meus momentos tristonhos,
que eu não tive, em meu viver,
nada mais além de sonhos!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Termina a noite estrelada...
E por estranha magia,
vejo as mãos da madrugada
abrindo as portas do dia...
–ABIGAIL RIZINNI/RJ–

Simplesmente Poesia

Instinto
CARLOS LÚCIO GONTIJO/MG

O cachorro late no quintal
Pode ser um ladrão maroto
Um gato vadio
Um rato de esgoto
Uma sombra evanescente
Ou um latido inocente do vira-lata
Que vendo a lua em esquecimento
Entoou instintiva serenata.

ESTROFE DO DIA

Eu te vi, tu me viste, nós nos vimos,
eu te amei, tu me amaste, nos amamos,
eu te olhei, tu me olhaste, nos olhamos,
eu sorri, tu sorriste, nós sorrimos;
eu senti, tu sentiste, nós sentimos
os encantos de um sonho promissor,
ter você ao meu lado aonde eu for
é da vida a ventura que mais quero,
eu te amo, te adoro e te venero,
só a morte separa o nosso amor.
–DIMAS BATISTA/PE–

Soneto do Dia

Não me Fales
–LUIZ ANTONIO CARDOSO/SP–

Não me fales mais nada sobre as dores
de minha amada, pois meu coração
tão triste, já cansado de ilusão,
não mais suporta tantos dissabores.

Não me fales sobre atos incolores
que inundam o universo da paixão!
A vida é muito mais: - é imensidão
de aromas, de beleza e de sabores!

Seu mundo poderia ser coberto
de abraços, de carinhos infinitos...
mas eis que segue pelo rumo incerto!

Por isso não me fales nunca mais,
do amor... nem dos tropeços inauditos,
daquela que não hei de ter jamais!

Fonte:
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