domingo, 4 de dezembro de 2011

Raul Pompéia (Os Gatos e Os Câes)


Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bernardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimós, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.

Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efígie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unânime e universal.

Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.

Pobre gato!

Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrifício da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.

A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.

O gato nunca teve um dono.

Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.

Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.

Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.

E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.

Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato...

O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.

O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.

Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrível vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.

O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo...

Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.

A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.

Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega. A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.

Tudo diverso do cão.

A cadela é a charra odaliscazinha das sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.

Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noite, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.

Podem ter por confidentes a estrela d'alva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.

Os sete fôlegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.

A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rômulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.

Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas...

O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.

Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.

Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.

Adula sem fazer questão de lugar.

Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua...

Glória por tal preço... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.

Em última análise, o cão é um miserável.

Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina.

O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.

O gato é simplesmente, nobremente, - o gato.

Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.

Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.

Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.

Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.

- Cão!

Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.

Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.

Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:

- Cão!
.................................................................

Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.

Fonte:
Garganta da Serpente

Emílio Moura (Poemas Escolhidos)


INTERROGAÇÃO

Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.

LIBERTAÇÃO

Sou um poeta quase místico:
A vida é bela quando é um êxtase.

Ah! não ter um pensamento, um só pensamento no cérebro,
não vigiar a vida, a vida inquieta, a vida múltipla da sensibilidade,
mas vivê-la, de olhos cerrados, num silêncio cheio de ritmos;
não ouvir as palavras frias que mudam o destino,
ou que o fazem semelhante a um autômato;
e saber a toda hora,
saber sempre
que a vida é bela quando é um êxtase.

MISTICISMO

O céu lindo da vila pobre!
E a igreja pequenina, que se espicha toda na torre,
com vontade de ver o céu.

E o céu tão alto, e o céu tão alto!

TOADA DOS QUE NÃO PODEM AMAR

Os que não podem amar
estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando
e morrendo.

Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.

AQUI TERMINA O CAMINHO

Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.

Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram
e que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei para onde...

Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre te espera,
nenhum.

TRÊS CAMINHOS

Percorri tantos caminhos,
tantos caminhos andei.
O primeiro era de nácar,
de rosa pura o segundo.
O terceiro era de nuvem,
no terceiro te encontrei.
O primeiro já trazia
teu nome brilhando no ar.
Não era nome de terra:
cantava coisas do mar.
Logo senti que o segundo
já era estrada de encantar.
Mas o terceiro, o terceiro
quantas voltas não foi dar!
Deixou meu corpo na terra,
meu coração no alto-mar.
Virou vento, virou bruma,
perdeu-se, rápido, no ar.

COMO A NOITE DESCESSE...


Como a noite descesse e eu me sentisse só,
só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo
só as estrelas é que me entenderiam.

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...

se só as estrelas é que me entenderiam?

TOADA

Minha infância está presente.
É como se fora alguém.
Tudo o que dói nesta noite,
eu sei, é dela que vem.

CANÇÃO

Não quero ver esta rosa,
nem saber por que floriu.
A cor mais bela do Arco-Íris
foi a cor que ninguém viu.

Não quero ouvir este canto,
nem saber de seu sentido.
Quem é que me conta
o que foi perdido?

LAMENTO EM VOZ BAIXA


A vida que não tive
morre em mim até hoje.
Chega, límpida, pura,
sorri, pálida, foge.

A vida que não tive
salta, viva, de tudo.
Se me sorri nos olhos,
com que ilusão me iludo.

A vida que não tive
é o que há de mim em mim,
chama, orvalho, segredo
do nunca de onde vim.

CALMARIA

Água estagnada,
nuvem parada,
folha perdida,
pássaro de asa
partida.

- Ó vento que morreis,
de leve, de leve,
despertai!

Luz que se apaga,
sombra diluída,
névoa que vaga,
voz que se cala,
ferida.

- Ó vento que adormeceis,
de manso, de manso,
gritai, gritai!

Tímida esperança,
pálido desejo:
a tarde tão mansa,
tão lânguida a noite
que vem.

Ó alma náufraga,
como tudo o mais:
desesperai!

CANÇÃO


Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

POEMA

De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido.
Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas?
Alguém esquecido
no fundo dos tempos?
Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto?
Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?

Nem eu, nem ninguém.

CONDIÇÃO HUMANA

Como captar da vida
o que rápido, foge
entre dúvidas? Como
reter o que, mal surge,
já se desfaz: é sombra,
algo vago, já neutro,
réstia pálida, eco
de nada, de ninguém?
Um minuto se esboça,
rútilo se sonha,
ardente se anuncia.
Onde? Quando? Quem sabe?
Sempre se sabe tarde,
sem mais onde, nem quando.

À BOCA DA NOITE

Não olhes: é a noite
completa que tomba.

Não olhes: é a estrada
que, súbito, acaba.

Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.

Não olhes.

SONETO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A hora madura envolve-te e palpita
nela o que ora te oferta, ora recusa:
posse do que és, na solidão recôndita,
graça de amar, ressurreição dos mitos.

Claros enigmas riscam céus distantes.
Falam-te as coisas pela voz que é o próprio
sentimento do mundo e pela meiga
sombra gentil que ressuscita a infância.

Ouço-te andar nas lajes desta rua,
que nem sei se é de Minas ou de alguma
pátria remota que ao teu canto se abre.

E amo-te a voz multiplicada em ecos:
verbo dócil à força íntima e pura
que à máquina do mundo se incorpora.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/emilio_moura.html
http://emiliomoura.br.tripod.com/poemas.htm

Emílio Moura (1902 — 1971)


1902. Emílio Guimarães Moura nasce em Dores do Indaiá, Oeste de Minas, a 14 de agosto. Filho de Eloy de Moura Costa e de Cornélia Guimarães Moura. Faz os cursos primário e secundário nas cidades mineiras de Bom Despacho, Carmo da Mata, Cláudio e Dores do Indaiá.

1920. Transfere-se para Belo Horizonte, passando a integrar o brilhante grupo de jovens intelectuais que logo iriam participar do "movimento modernista". Desse grupo faziam parte, entre outros, Carlos Drummond de Andrade, Milton Campos, Aníbal M. Machado, Abgar Renault, Pedro Nava, Gustavo Capanema, Mário Casassanta, Martins de Almeida, João Alphonsus, Gabriel Passos, Euryalo Canabrava.

1925. Com Drummond e Martins de Almeida, funda "A Revista", primeiro órgão literário do movimento modernista em Minas Gerais.

1928. Conclui o curso de Direito na Faculdade de Direito da UFMG. É nomeado professor de História e de História da Civilização da Escola Normal Oficial de Dores do Indaiá, onde volta a residir.

1931. Casa-se com Guanayra Portugal Moura, transferindo-se, de novo, para Belo Horizonte. Reinicia sua atividade de jornalista, passando a colaborar em vários jornais e revistas de Belo Horizonte, Rio e São Paulo. Publica seu primeiro livro, Ingenuidade.

1936. Publica Canto da hora amarga.

1941. É nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado. Na burocracia, ocupa ainda os seguintes cargos: redator do "Minas Gerais", secretário do Tribunal de Contas e do Departamento Administrativo de Minas Gerais e superintendente do Departamento de Educação da Secretaria da Educação.

1942. Ingressa no magistério superior, ensinando primeiro História das Doutrinas Econômicas e, em seguida, Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da UFMG.

1945. Publica Cancioneiro. Juntamente com um grupo de professores, funda, em Belo Horizonte, a Faculdade de Ciências Econômicas de Minas Gerais da qual é catedrático e o primeiro diretor.

1949. Lança O espelho e a musa, com o qual obtém o prêmio de poesia do Governo do Estado.

1953. Publica O instante e o eterno, além da segunda edição de Canto da hora amarga, Cancioneiro e O espelho e a musa, reunidos com o título Poesia.

1961. Escreve o poema longo "A casa". Publica também a pequena antologia 50 poemas escolhidos pelo autor.

1970. Recebe o Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro com Itinerário Poético, coletânea de todos os seus livros, considerada por ele sua obra definitiva.

1971. Falece a 28 de setembro.

Bibliografia:
Ingenuidade, 1931;
Canto da hora amarga, 1936;
Cancioneiro, 1945;
O espelho e a musa, 1949;
O instante e o eterno, 1953;
Itinerário Poético, 1970, reeditado em 2002 pela editora da UFMG, considerada sua obra poética definitiva.

Fonte:
http://emiliomoura.br.tripod.com/dados.htm

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte VI


CURRÍCULO.

É um documento que reúne as informações profissionais para alguém que se candidata a um emprego. Contém objetivo, formação escolar, idiomas que domina, experiência profissional, pretensão salarial, etc.

DESCRIÇÃO.

Descrever é fazer um retrato com palavras, isto é, apresentar, detalhadamente, características de pessoas, animais, objetos, lugares, etc.

Quando quiser estabelecer uma ordem cronológica na sua descrição, mostrando as mudanças sucessivas da paisagem, use termos que indicam sucessão (sobretudo adjuntos adverbiais de tempo).

DESENVOLVIMENTO.

É a redação propriamente dita. No desenvolvimento, o aluno deverá discutir os argumentos apresentados na introdução. Em cada parágrafo, escreve-se sobre um argumento.

Tenha sempre em mente que o examinador de sua dissertação provavelmente seja uma pessoa culta, que lê bons jornais e revistas e tem bastante conhecimento geral, portanto não generalize.

É a parte mais importante em qualquer texto. É quando podemos nos aprofundar nas idéias que, por enquanto, foram apenas mencionadas na introdução. Os argumentos devem ser apresentados em função da idéia e organizados com clareza para não confundir o leitor.

Devemos ser cuidadosos para que o texto não se torne inconsistente e imaturo por falta de informação de nossa parte. Para isso, é preciso que nos ilustremos, lendo revistas, jornais e livros; assistindo a noticiários na televisão; freqüentando o maior número possível de produções culturais a que tivermos acesso - teatro, “shows”, exposições, etc. Em qualquer uma dessas atividades, assuma uma posição crítica questionadora que resultará em análises objetivas e, conseqüentemente, em julgamentos coerentes. Evite radicalismos, ofensas pessoais, nacionalismos piegas e “achismos” (eu acho, eu penso)

DIÁLOGO.

É a conversa entre duas ou mais pessoas. A fala de cada personagem é indicada, na escrita, por um travessão.

Ao apresentar um diálogo, ou a personagem pensando, use o presente do indicativo para sugerir a proximidade do fato futuro.

DIÁRIO.

É uma das formas do registro do mundo interior, ou seja, das confissões, dos segredos, etc, de uma pessoa.

DICAS.

Ao escrever uma redação, faça, primeiramente, uma lista de tudo o que lhe vier à memória.

Quanto mais idéias, melhor.

Não se preocupe em saber se as idéias são boas ou más. Escreva-as, simplesmente.

Anote tudo, sem ordem, sem critério, sem censura.

Use palavras simples e frases curtas.

Selecione as idéias e estruture o seu texto.

DICIONÁRIO.

Em vez de sair por aí “chutando” palavras cujos significados você não conhece bem, utilize-se de um bom dicionário, em livro ou software, para aumentar o vocabulário.

DIMINUTIVO.

Use o diminutivo com muito cuidado, e sempre quando for importante marcar a dimensão dos seres, ou a afetividade (carinho, desprezo) da personagem com relação a esses seres.

Pegou o banquinho para apoiar o pé enquanto tocaria violão.

Disse para a avozinha que lhe traria o doce de goiaba de que tanto gostava.

DISCUSSÃO.

Falar e ouvir são meios de desenvolvimento do espírito humano. O debate de idéias pode levar a um resultado enriquecedor.

DISSERTAÇÃO.

Nunca se inclua em sua dissertação, principalmente para contar fatos de sua vida particular.

É uma redação que, através do raciocínio, expõe idéias, doutrinas, impressões, pontos de vista.

Utilize sempre, em suas dissertações, a terceira pessoa do singular.

A dissertação é a forma mais comum de redação. É a mais solicitada nos exames vestibulares e provas de colégio.

Dissertar é defender uma opinião a respeito de determinada questão. Para isto, precisamos conhecer o assunto e refletir sobre ele.

É analisar um assunto proposto, emitindo opiniões gerais. Deve ser feito de modo impessoal e com total objetividade. Essa visão imparcial perde-se quando o autor confunde a problemática que está analisando com os problemas particulares que possa ter.

DIVAGAR.

Estou sem inspiração para fazer uma redação. Escrever sobre a situação dos sem-terra? Bem que o professor poderia propor outro tema.

Não fale de sua redação dentro do próprio texto, porque isso demonstra insegurança e vazio de idéias. Ademais, sua nota ficará seriamente comprometida quando da avaliação do conteúdo.

DOIS PONTOS.

As citações vêm sempre após dois pontos.

Lá, fiz diversas coisas: tomei banho de piscina, na sauna, montei cavalo e charrete, comi cacau, etc.

Use dois pontos, antes de uma enumeração, se quiser valorizar os termos que a constituem.

Descobri a grande razão da minha vida: você.

Já dizia o poeta: Deus dá o frio conforme o cobertor.

ECO OU ASSONÂNCIA.

É a repetição desnecessária de palavras terminadas pelo mesmo som, provocando rimas desagradáveis, com um ritmo batido e monótono.

FRASES COM ECO
Neste momento eu tive um aumento de vencimento.
ESCREVA-AS ASSIM
Tive aumento de salário.

FRASES COM ECO
Clemente, certamente, está descontente com o parente.
ESCREVA-AS ASSIM
Clemente, com certeza, está aborrecido com o primo dele (como poderia ser irmão, etc).

EDITORIAL.

É um artigo que exprime a opinião do órgão jornalístico. É o jornalismo opinativo.

ELEGÂNCIA.

A leitura de um texto elegante, que deve ser criativo e original, torna-se agradável ao leitor.

Fuja de gírias e palavrões. Mantenha uma certa elegância no seu texto, sem cair em pedantismos exagerados.

A elegância começa pela própria apresentação do texto, ou seja, limpo, sem borrões ou rasuras, e com letra bem legível. Importantíssimo atentar, também, para a correção gramatical, a clareza, a concisão e para o conteúdo da redação, que deve ser original e criativo.

ELIPSE.

É a omissão de um termo previsível, subentendido, que deixa de ser expresso por ser óbvio, mas também confere elegância à frase.

Vida interessante, a dele...

Na rua, um malvado; em casa, um santo.

A casa era pobre. Os moradores, humildes.

EM, NO, AO, NA, À.

ERRADO…………………..........………………..CERTO
Fui em Jequié, na fazenda, no jogo…….Fui a Jequié, à fazenda, ao jogo.

A regência do verbo ir exige preposição “a” e não “em”. (Quem vai, vai a algum lugar, e não em algum lugar).

EMBROMAÇÃO.

É o famoso enche linguiça. Fica-se dando voltas no mesmo lugar, usando-se palavras vazias e embromatórias.

A vida, única e exclusivamente, é tão complexa que, apesar de tudo, não obstante o que possam dizer, torna-se altamente problemática.

EMOÇÃO OU LINGUAGEM EMOCIONAL.

Não analise os temas propostos movido por emoções exageradas. Mantenha-se imparcial em quaisquer circunstâncias.

Não transforme seu texto em desabafo nem em panfleto, com linguagem apaixonada. A emoção deve ficar no rascunho, enquanto que no texto definitivo você deve chamar a razão para auxiliá-lo.

Quando nos exaltamos a respeito de determinado assunto ou sobre a pessoa de quem estamos falando, infringimos a boa norma da escrita padrão, por fazermos uso de juízos de valor sobre os fatos. A objetividade é imprescindível, a fim de que o texto se mantenha imparcial e claro.

Existem alguns temas dissertativos que envolvem a análise de assuntos dramáticos, que causam revolta e indignação pela própria gravidade de sua natureza. Porém, por mais revoltante que se mostre o assunto tratado, ele deve ser abordado de modo comedido e, se possível, imparcial. Não devemos deixar nossas emoções interferirem demasiadamente na análise equilibrada e objetiva que precisa transparecer em nossas redações, porque elas impedem que ponderemos outros ângulos da questão. Só assim, com a predominância da argumentação lógica, ela se mostrará convincente.

Os noticiários apresentam-nos todos os dias crimes bárbaros cometidos por verdadeiros animais, que deveriam ser exterminados, um a um, pela sua perversidade sem fim.

Muitos menores que perambulam pelas ruas e se tornam delinqüentes são vítimas indefesas de um governo ineficiente, que não se preocupa e não respeita o direito que eles têm à educação.

ENCHE LINGUIÇA.

Não espiche o assunto, isto é, não diga com 8 (oito) palavras o que pode dizer com 5 (cinco). Seja objetivo e direto.

Encher linguiça é, também, repetir idéias, a saber, tornar a abordar um assunto com palavras diferentes sobre o qual já tinha escrito anteriormente.

Exemplos de expressões muito usadas por quem gosta de encher linguiça: Antes de mais nada, muito pelo contrário, por outro lado, por sua vez, etc.

ERRADO
Em um dos domingos que passaram, eu tinha ido a Itabuna…
CERTO
Num domingo, fui a Itabuna…

ERRADO
Durante esses dias de minhas férias, brinquei de diversas brincadeiras…
CERTO
Em minhas férias, brinquei muito…

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

Contos de Sempre: Charles Perrault (O Barba Azul)


Era uma vez um homem que tinha bonitas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis em talha e carruagens douradas; mas, infelizmente, esse homem tinha a barba azul: isso tornava-o tão feio e terrível que não havia mulher ou menina que não fugisse dele.

Uma das vizinhas, senhora de categoria, tinha duas filhas de grande beleza. Ele pediu-lhe uma das filhas em casamento e deixou a dama escolher a que lhe iria dar. Nenhuma delas o queria e empurravam-no de uma para a outra, sem se resolverem a aceitar um homem de barba azul. O que mais as aborrecia era ele ter já casado com várias mulheres e não se saber o que era feito delas.

O Barba Azul, para travar relações, levou-as com a mãe e três ou quatro das melhores amigas e alguns rapazes da vizinhança para uma das suas casas de campo, onde ficaram oito dias. Eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e repastos: não dormiam e passavam a noite toda a gracejar uns com os outros. Enfim, tudo correu tão bem que a mais nova começou a achar que o dono da casa já não tinha a barba tão azul e que era um cavalheiro. Logo que regressaram à cidade, o casamento realizou-se.

Ao fim de um mês, o Barba Azul disse à mulher que precisava de fazer uma viagem à província de, pelo menos, seis semanas, para um negócio importante. Desejava que ela se divertisse muito durante a sua ausência, que convidasse as amigas, que as levasse para o campo, se quisesse, que gastasse à larga.

- Aqui estão - disse ele - as chaves das duas grandes arrecadações, aqui estão as da baixela de ouro e prata que não anda a uso, aqui estão as dos cofres onde está o meu ouro e a minha prata, as das caixas de pedrarias e a chave mestra de todos os quartos. Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete no fundo do corredor do andar de baixo. Abri tudo, ide aonde quiserdes, mas, quanto a esse gabinete, estais proibida de lá entrar e proíbo-o de tal forma que, se o abrirdes, podeis esperar tudo da minha ira.

Ela prometeu cumprir exactamente tudo o que lhe fora ordenado e ele, depois de a beijar, subiu para a carruagem e partiu. 20

As vizinhas e as amigas não esperaram que as fossem procurar para irem a casa da recém-casada, de tal forma estavam impacientes para ver as riquezas da casa, não ousando ir enquanto o marido lá estava, por causa da sua barba azul que lhes metia medo. Começaram logo a percorrer os quartos, os gabinetes, os guarda-roupas, todos mais bonitos e mais ricos uns do que os outros.

Subiram depois às arrecadações onde não se cansavam de admirar a quantidade e a beleza das tapeçarias, das camas, dos sofás, das mesinhas de pé-de-galo, das mesas e dos espelhos onde se viam da cabeça aos pés e cujas molduras, umas de vidro e outras de prata e de prata dourada, eram as mais belas e as mais magníficas que jamais se viram.

Não paravam de exagerar e de invejar a felicidade da amiga que, no entanto, não se divertia nada a ver todas essas riquezas, por causa da impaciência em que estava de ir abrir o gabinete do andar de baixo. Estava tão atormentada pela curiosidade que, sem pensar que parecia mal deixar as visitas, desceu a escadinha com tanta precipitação que esteve prestes a partir a cabeça por duas ou três vezes. Ao chegar à porta do gabinete, parou algum tempo, pensando na proibição que o marido lhe tinha imposto e considerando que lhe podia acontecer um desastre por ter sido desobediente; mas a tentação era tão forte que não conseguiu vencê-la. Pegou, pois, na chavinha e abriu, tremendo, a porta do gabinete.

Primeiro não viu nada, porque as janelas estavam fechadas. Alguns momentos depois, começou a ver que o chão estava coberto de sangue coalhado e que nesse sangue se reflectiam os corpos de várias mulheres mortas e amarradas ao longo das paredes (eram mulheres que o Barba Azul tinha desposado e degolado uma após a outra).

Pensou morrer de medo e a chave do gabinete, que tinha acabado de tirar da fechadura, caiu-lhe da mão.

Depois de voltar a si do susto, apanhou a chave, tornou a fechar a porta e subiu ao quarto para se refazer um pouco; mas não podia acalmar-se de tão impressionada que estava.

Ao reparar que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não saía; bem a lavou e a esfregou com areia e com grés. O sangue continuou lá, porque a chave era enfeitiçada e era impossível limpá-la completamente. Quando se limpava o sangue de um lado, ele aparecia do outro. O Barba Azul voltou da viagem nessa mesma noite. Disse que tinha recebido umas cartas no caminho informando-o de que o negócio que o levara a partir tinha sido concluído em seu proveito.

A mulher tudo fez para demonstrar que estava encantada com o seu rápido regresso.

No dia seguinte, ele pediu-lhe as chaves e ela deu-lhas, com as mãos a tremer tanto que ele adivinhou logo tudo o que se tinha passado.

- Porque é que a chave do gabinete não está com as outras?

- Devo tê-la deixado lá em cima, na mesa.

- Não demoreis a devolver-ma - disse o Barba Azul.

Depois de várias delongas, foi preciso devolver a chave.

O Barba Azul, depois de a examinar, disse à mulher:

- Porque é que há sangue nesta chave?

- Não sei de nada - disse a pobre mulher mais pálida do que a morte.

- Não sabeis de nada - tornou o Barba Azul - mas eu sei muito bem. Quisestes entrar no gabinete. Pois bem, senhora, ides entrar no gabinete e tomar o vosso lugar ao pé das damas que lá vistes!

Ela lançou-se aos pés do marido, chorando e pedindo perdão, com todos os sinais de um verdadeiro arrependimento por não ter sido obediente.

Teria enternecido um rochedo tão bela e aflita estava, mas o Barba Azul tinha o coração mais duro que um rochedo.

- É preciso morrer, senhora - disse ele - e depressa.

- Já que é preciso morrer - respondeu ela, olhando-o com os olhos banhados em lágrimas - dai-me algum tempo para rezar.

- Dou-vos um quarto de hora - tornou o Barba Azul - mas nem mais um momento.

Quando ficou só, ela chamou a irmã e disse-lhe:

- Minha irmã Ana (porque elas tratavam-se assim), sobe, peço-te, ao alto da torre para ver se os meus irmãos não vêm; eles prometeram que viriam ver-me hoje e, se os vires, faz-lhes sinal para se apressarem.

Ana subiu ao alto da torre e a pobre, atormentada, gritava-lhe de vez em quando:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém? E a irmã Ana respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

Entretanto, o Barba Azul, segurando um grande facalhão, gritava com todas as forças à mulher:

- Descei depressa ou vou aí acima.

- Um pouco mais, por favor - respondia a mulher, e logo gritava baixinho:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

E a irmã respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

– Descei depressa - gritava o Barba Azul ou vou aí acima.

– Já vou - respondia a mulher e, depois, gritava:

- Ana, minha irmã Ana, não vês vir ninguém?

- Vejo - respondeu a irmã Ana - uma poeirada grande que vem deste lado.

- São os meus irmãos?

– Infelizmente não, minha irmã, é um rebanho de carneiros.

– Não ides descer? - gritava o Barba Azul.

– Mais um momento - respondia a mulher e, depois, gritava:

– Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

– Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão longe.

E um momento depois exclamou:

- Deus seja louvado! São os meus irmãos, fiz-lhes sinal, o mais que pude, para se apressarem.

O Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que toda a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se a seus pés, lavada em lágrimas e desgrenhada.

– Não vale de nada - disse o Barba Azul - é preciso morrer.

Depois, segurando-a com uma mão pelos cabelos e levantando com a outra o facalhão, ia decapitá-la.

A pobre mulher, virando para ele um olhar moribundo, pediu-lhe apenas um momento para se recolher.

- Não, não - disse ele - recomendai-vos bem a Deus! - e levantando o braço...

Nesse momento bateram à porta com tanta força que o Barba Azul parou de repente. Abriram e logo entraram dois cavaleiros que, com a espada na mão, correram para o Barba Azul. Ele reconheceu os irmãos da mulher, um deles Dragão e outro Mosqueteiro, de forma que fugiu para se salvar. Porém os dois irmãos seguiram-no tão de perto que o apanharam antes de ele chegar ao patamar da escada. Espetaram-lhe a espada no corpo e deixaram-no morto. A pobre mulher estava quase tão morta como o marido e nem forças tinha para se levantar e beijar os irmãos.

Acontece que o Barba Azul não tinha herdeiros e, assim, a mulher ficou senhora de todos os bens. Empregou uma grande parte para casar a sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que há muito tempo a amava. Depois, outra parte, para comprar os cargos de capitão aos irmãos. E o resto para casar ela própria com um homem honesto, que a fez esquecer o tempo infeliz que
passara com o Barba Azul.

MORAL DA HISTÓRIA
A curiosidade, embora atraente,
Custa muito caro, frequentemente.
Todos os dias os exemplos são tantos!
É um prazer fácil de alcançar.
Quando se tem perde os encantos
E muito caro acaba por ficar.

OUTRA MORAL DA HISTÓRIA
Por pouco sensato que se possa ser
E de feitiçaria se possa saber
Através do conto é fácil de ver
Que esta história se passou noutros tempos.
Já não há maridos tão terríveis,
Nem que peçam às mulheres coisas impossíveis;
Por mais que sejam descontentes e ciumentos
Ao pé da mulher só mostram amor
E, seja a sua barba duma ou outra cor,
É difícil julgar quem é o senhor.

Fontes:
- José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.
- Imagem = http://comentariosdemulher.blogspot.com

Paraná em Trovas Collection - 20 - Nei Garcez (Curitiba/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 19


TRISTEZA

Ao Alves de Farias

Era de tarde. Estava aqui sozinho,
A mão por sob a face, a mão assim,
Quando, me vendo do alto, um passarinho
Pensou que eu era um ramo, e veio a mim.

Veio. Desceu. Porém tão de repente,
Tão sutilmente, tão suave – que eu,
Se já não fora um coração descrente,
Pensava que do céu é que desceu...

Veio. Pousou aqui, trêmulo e brando,
Aqui por sobre mim, neste lugar,
Neste meu coração quase chorando,
E logo que pousou, pôs-se a cantar...

Findou-se a tarde. Anoiteceu. A Lua,
Toda lavada em rosas de prazer,
Vinha como de um banho, vinha nua,
Vinha prateada e límpida a escorrer...

Eu nunca ouvi cantiga mais amena,
De uma melancolia mais ideal;
Era de tal brandura, de tal pena,
De tal doçura que fazia mal!

Deixava-me no ouvido aquela trova
Não sei que sonho doido de embriaguez:
Era como se alguém me abrisse a cova,
E enterrasse-me vivo de uma vez...

Caía-me aqui dentro, aqui no seio,
Como uma grande luz crepuscular,
Sem que eu soubesse d’onde foi que veio,
De que sombria região polar.

Eu era como um monge, um pobre monge,
Dentro da minha desesperação,
Que caminhasse para muito longe,
Para o exílio, para a solidão...

E tão inquieto eu ia, tão enfermo,
Tão desolado, que fazia dó:
O caminho era fúnebre e era ermo,
E eu ia, eu ia horrivelmente só!

Era tamanha aquela doida mágoa,
Que eu não podia, não podia mais,
Os meus olhos se anuviavam d’água,
Vendo passar meus próprios funerais!

Sobre o meu coração, fria, gelada,
Descia a névoa de uma dor sem fim,
Como se fosse a mão que brande a espada,
Mão terrível e triste sobre mim...

Quanta desilusão que ela me trouxe!
Quanta amargura, quanto horror cruel!
Nesse gorjeio doce, muito doce,
Havia travos de veneno e fel.

Pungia tanto o meu pesar ardente,
Era tão mudo e despedaçador,
Que soluçando torrencialmente,
Não aliviaria a minha dor...

Eu sentia que havia no meu rosto
Essa esquisita cor feita de cal,
Esse mármore frio do desgosto,
Esse palor, esse palor mortal!

E a noite toda, o alegre passarinho
Cantou, cantou, falou com a sua voz,
Ora veludo e seda, ouro e arminho,
Ora nervos e dor, violenta e atroz.

Falou de tudo quanto sucedera,
Com acentos nervosos e febris;
Era macia a voz, era de cera,
Mas como me tornava um infeliz!

Como essa voz tinha ferocidades,
Como era esfomeada e era voraz;
Eu lhe rogava em meio de ansiedades,
Que me deixasse, me deixasse em paz.

E que caminhos tristes! Que avenidas
Longas! E que silêncio tumular!
É por aqui que passam os suicidas,
Quando vão para o ermo se enforcar.

E que sombrios álamos, que choro,
Que desespero, que aflições brutais!
Onde me levas tu, ó mau agouro,
A que trevas e antros infernais?

E que soluço que se não acalma,
Que mágoa intensa, que furor, enfim!
Quem teria morrido na minha alma
Para que o coração chorasse assim?

Debaixo dos estigmas da tristeza,
Eu me via mais triste do que Jó,
Esse que o mundo com pavor despreza,
Mais ulcerado, mais infame, e só.

Era como se eu fosse, em noite escura,
Rio das mortes a rolar em vão,
Aquelas minhas águas de amargura,
Tintas do sangue da inquietação.

E ele a cantar! E eu ansiado: quando
Há de esta ave partir, há de voar,
Há de deixar-me a paz, o sono brando,
O sono leve, que perfuma o ar?

Quando me hás de deixar, música langue,
Ó veneno sutil, ó embriaguez,
Tu que me estás bebendo todo o sangue,
Nervosissimamente, de uma vez?

Mas de repente, assim como de um ninho,
Ei-lo a fugir de mim! Mal eu dei fé,
Já me havia deixado aqui sozinho,
E triste, triste, inda mais triste até!

Raiara enfim o rosicler d’aurora,
Esse cândido albor: olhei p’ra lá,
Para as bandas, por onde fora embora,
E ó que saudade! Quando voltará?

DURANTE UMA ENFERMIDADE

Ao Rocha Pombo

Quem poderá saber? quem sabe lá
D’onde viria aquele sabiá?

Quem poderá saber o que ele tem,
E o que lhe dói, que o faz cantar tão bem?

Que penas serão essas dentro da alma,
Que por mais que ele as diga, não se acalma?

Seria um rei o pobre, ou uma rainha,
Que de uma vez perdeu tudo o que tinha,

E não sabendo mais onde o ganhar,
Pôs-se a chorar, quero dizer, cantar?

Quem poderá saber? Apenas sei,
Quer seja uma rainha, quer um rei,

Que ele é bem como alguém, coitado, quando
Sofre, não se contém, e vai falando...

Chegou a hora triste, a hora santa,
Aperta-lhe a saudade e ele canta...

Eu que conheço a hora do pesar:
Venho, sento-me aqui, fico a escutar...

E de tanto que já o tenho ouvido,
Entendo o que ele diz pelo sentido.

Ora, são esses bosques ideais,
Essa frescura e não acaba mais...

Ora, os campos em flor, e aquela mágoa,
E aquela fonte com soluço d’água...

Às vezes, a saudade e a embriaguez
Desses caminhos que ele um dia fez,

Dessas corridas, desses voos doidos,
Dessas loucuras que fazemos todos,

No meio dos silêncios mais sombrios,
Dos grandes ermos, dos profundos rios...

Ora, aquela dolência, penso eu,
Que só de imaginar que já morreu...

Que em sua terra, todo o mundo agora
Até seu próprio nome já ignora...

Já não se lembra dele mais ninguém,
Nem para o maldizer, nem dizer bem...

Durante o tempo em que eu estive doente,
Foi um amigo, verdadeiramente.

Tão bem me traduziu o coração,
Que foi mais que um amigo, foi irmão.

E ó que irmão que ele foi, como não há,
Eu a sofrer d’aqui, ele de lá!

Até me pareceu que adivinhava:
Quando eu estava triste é que cantava.

E eu por triste que fosse, quando o ouvia,
Era com arrepios de alegria.

É que ele, à semelhança d’um poeta,
Mesmo cantando a mágoa mais secreta,

Tinha sempre o seu modo de a dizer,
Que em vez de magoar, dava prazer...

Eu sei, porém, eu sei que o pensamento
Inda é mais leve do que o próprio vento,

Mais leve do que a luz e do que som;
Sei que me vendo inteiramente bom

Hei de esquecer-te, coração querido,
Como de resto tenho-me esquecido

De tanto sonho bom, por esse mundo,
De tanto sonho que dormiu no fundo,

Bem lá no fundo virgem do meu ser,
Sem que o pudesse mais tornar a ver:

Tal que se fosse a minha própria imagem,
Que eu, em caminho, um dia, de passagem,

Deixasse por aí a refletir
Nesses lagos de pérolas d’Ofir,

Nesses profundos lagos de cristal,
De uma cintilação quase ideal,

De uma cintilação maravilhosa,
Como se fossem lagos cor de rosa,

– Melancólica, assim, cheia de mágoa,
Longa e perdida lá no fundo d’água...

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 18, final)


SANGRIA DESATADA
Sangiua veio do espanhol sangría, sangramento. Desatada é o particípio do verbo desatar, livrar, que veio de des- + atar.
Uma sangria desatada é um sangramento descontrolado, que exige cuidados imediatos. Quando se diz que alguma coisa não é nenhuma sangria desatada, significa que ela não requer cuidados ou providências urgentes.
Sangria, a bebida com vinho, frutas, açúcar etc., também veio do espanhol sangría, mas não tem nada a ver com sangue, a não ser que você esteja pensando num coquetel para vampiros.
Sangría veio do inglês sangaree, uma mistura de vinho com limão, consumida nas Antilhas. Muitos dicionários da língua inglesa dizem o contrário, que sangaree teria vindo do espanhol sangría, o que parece pouco provável: sangaree aparece registrado pela primeira vez em 1736; o espanhol sangría, em 1803. Sanga ree teria se formado a partir do sânscrito sakr, açúcar. Atualmente sanga ree e sangría designam a mesmíssima bebida.

VÁ TOMAR BANHO!
A expressão não tem a intenção literal de mandar alguém submeter-se a água e sabão. Trata-se, na verdade, de um banho metafórico, purificador, um convite ao limpar-se de impurezas morais e comportamentais para voltar à normalidade, ao bom- senso e à decência.
Sujo e sujeira no sentido moral aparecem freqüentemente: ele ficou sujo com os amigos, um negócio sujo, está preso porque só faz sujeira.
Não faz muito tempo, quando alguém cometia uma perversidade ou uma deslealdade, era comum exclamar-se "Sujeira!". Modernamente foi substituído por "Sacanagem!".

XUMBREGA
De má qualidade, malfeito.
Um livro com o título "Figuraças da História do Brasil" teria a presença obrigatória do governador de Pernambuco Jerônimo de Mendonça Furtado, que em 1666, por sua notável impopularidade, foi detido pelos senhores de engenho em Olinda, deposto e remetido para Lisboa. O moço, que bebia sem moderação, era odiadíssimo por seus desmandos e tinha o apelido de Chumbergas (ou Xumbergas) por ostentar vastos bigodes à chomberga.
A palavra chomberga - homem elegante e afetado - entrou na língua portuguesa por obra e muita graça do general alemão Friedrich Hermann Schõnberg, um aventureiro que foi parar em Portugal para reorganizar e comandar as tropas portuguesas (de 1661 a 1668) na luta contra os espanhóis na Guerra da Restauração.
O alemão teve o nome aportuguesado para Frederico Armando Schomberg e se transformou em padrão de elegância para a moda masculina da época, destacando-se por roupa, chapéu e bigode.
O sobrenome Schomberg propiciou o aparecimento na língua portuguesa, além de chomberga, das seguintes expressões:
(a) chambergo: chapéu militar de feltro, com uma pluma (chiquérrimo);
(b) chumbergas: quem imitava o general na roupa ou no bigode; indivíduo extravagante;
(c) chamborgas: com o sentido pejorativo de fanfarrão (aqui o general começa a ser tratado com ironia);
(d) à chomberga, expressão usada para designar a moda, principalmente militar, introduzida pelo alemão (casaca à chomberga, bigodes à chomberga...).
Da mesma fonte e com a influência do detestável e beberrão governador de Pernambuco, o Chumbergas, apareceram no Brasil as palavras:
(a) xumberga: embriaguez;
(b) xumbrega (também grafado chumbrega): ordinário, reles; pessoa ou coisa de mau gosto.
Para alguns etimólogos, brega (cafona) seria a forma reduzida de xumbrega.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – III – Tia Nastácia e a Sardinha


Tia Nastácia também havia perdido o medo aos bichinhos depois que viu que não mordiam. Chegou até a ficar amiga íntima da senhorita Sardinha, ou Miss Sardine, como era chamada no reino, por ter nascido nos mares que rodeiam a Terra Nova, perto do Canadá. Como boa norte-americana, Miss Sardine mostrava-se muito segura de si. Não era acanhada como as outras. Fazia o que lhe dava na cabeça, tornando-se famosa no reino pelas suas excentricidades. Uma delas consistia em dormir dentro duma latinha, em vez de dormir na cama. “Estou praticando para a vida futura”, costumava dizer com um sorriso melancólico. A vida futura das sardinha, como todos sabem, não é no céu, mas dentro de latas... Miss Sardine fez grande camaradagem com tia Nastácia. Logo que chegou foi se metendo pela cozinha adentro, a examinar tudo com uma curiosidade de mulher velha. E não parava com as perguntas.

— Que monstro esquisito é este? — perguntou mostrando o fogão.

— Isso se chama fogão — respondeu a preta.

— E essa coisa vermelha que ele tem dentro?

— Isso se chama fogo.

— E para que serve?

— Serve para queimar o dedinho de quem bole com ele.

E tia Nastácia dava risadas gostosas, vendo a cara de admiração que Miss Sardine fazia.

Em certo momento trepou a uma prateleira. Pôs-se a remexer em tudo. Enfiou a cabecinha dentro do vidro de sal e provou.

— Hum! Estou conhecendo este gosto!...

— Isso é farinha lá da sua terra; vem do mar — explicou a preta.

Provou depois uma pitadinha de açúcar, achando tão bom que pediu para levar um pacote.

Quando destampou o vidro de pimenta-do-reino em pó, tia Nastácia a advertiu:

— Cuidado! Isso arde nos olhos.

Antes não avisasse! Miss Sardine assustou-se, escorregou e caiu de ponta-cabeça dentro do vidro de p menta. Aquilo foi um pererecar e berrar de meter dó

— Acuda! Estou cega...

A negra, muito aflita, tirou-a de dentro do vidro e lavou-a na bica d’água, dizendo:

— Bem feito! Quem manda ser tão reinadeira? Eu logo vi que ia acontecer alguma... Miss Sardine não a ouvia, continuando a gritar e espernear.

— Acuda! Está pegando fogo nos meus olhos! Estou cega, não enxergo nada!...

— Isso passa — consolou a preta. — Tenha um pouco de paciência, menina. Muito pior seria se tivesse caído dentro da frigideira de gordura quente.

Por uns instantes esteve ela assim, com os olhos a arder. Afinal foi sarando, e sarou, e abriu os olhos — primeiro um, depois o outro, depois os dois. Muito admirada de enxergar tão bem quanto antes, deu uma risadinha feliz.

— Sarei! — exclamou Miss Sardine, piscando muito e olhando para tudo a fim de ver se os olhos estavam bons mesmo ou só meio bons. Depois voltou às perguntas, indagando que coisa era uma frigideira.

Tia Nastácia ficou atrapalhada. Contar a um peixinho o que é frigideira até chega a ser judiação. De dó dela a negra deu uma resposta que a deixou na mesma.

— Frigideira — disse — é uma panela rasa onde se põe uma certa água grossa, chamada gordura, que chia e pula quando tem fogo embaixo.

— Que bonito! — exclamou Miss Sardine admirada. — Um dia hei de voltar aqui para passar uma hora inteira nadando nessa água que pula.

A negra tapou a boca com as mãos para esconder a risada que ia saindo. Nesse momento dona Benta gritou lá do fundo do quintal:

— Nastácia! Venha depressa...

— Que será, meu Deus do céu? — exclamou a preta, correndo a ver do que se tratava.

Encontrou dona Benta perto do galinheiro, em conferência com o doutor Caramujo a respeito da doença do pinto sura. Assim que chegou, dona Benta disse:

— Nastácia, veja se me pega o pinto sura.

— Para que, sinhá? — perguntou a preta estranhando a ordem.

— O doutor Caramujo quer dar-lhe uma das suas milagrosas pílulas. Diz que não há melhor remédio para estupor de pintos suras.

Tia Nastácia abriu a boca. Seria possível que aquele bichinho cascudo entendesse até de pílulas?

— Ele está mangando com mecê, sinhá! Onde já se viu caramujo entender de remédios? É impostoria dele, sinhá. Não acredite.

— Eu também estou duvidando e por isso quero tirar a prova. Pegue o pinto.

Resmungando que o mundo estava perdido, foi tia Nastácia em procura do pinto. Pegou-o e trouxe-o.

— Agora preciso dum canudinho — disse o doutor Caramujo.

— Só sei dar pílulas a pinto pelo sistema do canudo.

A negra foi resmungando procurar o canudinho. Trouxe-o. O doutor Caramujo explicou então como se fazia. Enfiava-se o canudinho na garganta do pinto; punha-se a pílula dentro do canudinho; depois era só assoprar.

— Ora veja! — exclamou tia Nastácia sacudindo a cabeça. – Uma coisa tão simples e eu nunca me lembrei! Estou vendo que esses bichinhos do mar são mais sabidos do que a gente, sinhá.

A pílula foi colocada dentro do canudinho e o canudinho foi enfiado dentro da garganta do pinto.

— Preciso agora duma pessoa que assopre. Se não houver pessoa assopradeira, um fole serve.

— Assopre, Nastácia! — mandou dona Benta. Tia Nastácia agachou-se, pôs a boca na ponta do canudinho e ia assoprar quando deu um berro, erguendo-se a tossir como uma desesperada.

— Que aconteceu, Nastácia?

A resposta foi uma careta de quem está engasgado com alguma coisa amarga. Depois falou.

— Aconteceu, sinhá, que o pinto assoprou primeiro e quem engoliu a pílula fui eu!...

Dona Benta não pôde deixar de rir-se; a negra, porém, não achou graça nenhuma, e até se mostrou apreensiva, com medo de que a pílula lhe fizesse mal.

— Não fará mal nenhum — asseverou o doutor Caramujo. – Até pode curar alguma moléstia que a senhora tenha, lá por dentro sem saber.

E assim foi. Tia Nastácia sarou duma célebre “tosse de cachorro” que a vinha perseguindo havia duas semanas, e tanta fé passou a ter nas pílulas do doutor Caramujo, que as receitava para todo mundo.

Até para o Chico Orelha, um pobre sem orelhas que por lá aparecia às vezes a pedir esmolas.

— Tome uma dúzia, seu Chico, que lhe nasce um par de orelhas novas ainda mais bonitas que as que lhe cortaram.
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – IV – Os Segredos da Aranha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sábado, 3 de dezembro de 2011

Trova Ecológica 57 - Wagner Marques Lopes (MG)

Trova e imagem enviadas pelo autor. Montagem por José Feldman.

Neoly de Oliveira Vargas (Caderno de Trovas)


Nasceu em Sapiranga, Rio Grande do Sul, em 26 de dezembro de 1926. Professora do Ensino Fundamental, especializada em alfabetização, aposentada. Delegada da UBT em Sapucaia do Sul, aonde reside há cerca de 60 anos. Membro da UBT Rio Grande do Sul deste 1986. Tem diversas trovas premiadas em concursos e Jogos Florais.

Ao marujo que anda absorto,
cuida que o dito malogra,
“um amor em cada porto”
e em cada porto uma sogra!

A verdadeira amizade,
não exige recompensas,
assim como nos aplaude,
nos corrige, sem ofensas.

Cansado, o velho marujo
tenta a manobra no cais,
o caso é que o dito cujo
nem consegue atracar mais.

Doces lembranças guardadas,
no peito, quem não as tem?
De caminhar de mãos dadas
por sobre os trilhos do trem.

Entrou no mar, o "pelado"...
saiu correndo do banho,
com um siri pendurado
num lugar, pra lá de estranho.

Herói dos inconfidentes,
não conheceste a vitória,
mas teu nome, Tiradentes
ficou gravado na História!

Lembra uma taça de vinho,
de inebriante sabor,
quando, com muito carinho,
tu me beijas, meu amor.

Numa ilusão, tal criança,
volto sempre ao mesmo cais,
naquela doce esperança
de te ver uma vez mais.

... O problema é que essa gente,
com tanta "oferta" hoje em dia,
vai logo pros "finalmente",
pois nada mais arrepia!

O Rosário de Maria,
a meditar nos conduz,
são as lágrimas que um dia,
Jesus derramou na cruz.

Pelo sol, pela beleza,
deste céu, do mar, da flor,
e por toda a natureza,
eu te agradeço, Senhor.

Pra que teu lar seja um templo,
pleno de amor e de paz,
mostra o caminho do exemplo,
que é sempre o mais eficaz.

Quando a saudade me abraça,
num devaneio febril,
até na nuvem que passa
eu diviso o teu perfil.

Quando a Olívia reclamou
dos “deveres” do marido,
o marujo retrucou:
- o espinafre tá vencido!

Surpresa a noiva ficou,
numa ansiedade maluca,
quando o noivinho tirou
a dentadura, a peruca...

Tanto ódio!...Tanta guerra!...
Mandai “bons ventos”, senhor,
aos quatro cantos da terra,
somente espalhando amor!

Tristeza, estresse, por que?
Tenha uma vida sadia!
- Participe da UBT,
faça uma trova por dia.

Um amigo verdadeiro,
é jóia que não tem preço,
na vitória, é companheiro,
nos ampara no tropeço.

Viver é recomeçar,
olhar em frente, sorrir,
é ter coragem, lutar
acreditar no porvir.

José Paulo Paes (Poemas para Brincar)


CONVITE

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

CEMITÉRIO

1
Aqui jaz um leão
chamado Augusto.
Deu um urro tão forte,
mas um urro tão forte,
que morreu de susto.

2
Aqui jaz uma pulga
chamada Cida.
Desgostosa da vida,
tomou inseticida:
era uma pulga suicida.

3
Aqui jaz um morcego
que morreu de amor
por outro morcego.
Desse amor arrenego:
amor cego, o de morcego!

4
Neste túmulo vazio
jaz um bicho sem nome.
Bicho mais impróprio!
Tinha tanta fome
que comeu-se a si próprio.

ATENÇÃO, DETETIVE


Se você for detetive,
descubra por mim
que ladrão roubou o cofre
do banco do jardim
e que padre disse amém
para o amendoim,

Se você for detetive,
faça um bom trabalho:
me encontre o dentista
que arrancou o dente do alho
e a vassoura sabida
que deixou a louca varrida.

Se você for detetive,
um último lembrete:
onde foi que esconderam
as mangas do colete
e quem matou os piolhos
da cabeça do alfinete?

PATACOADA

A pata empata a pata
porque cada pata
tem um par de patas
e um par de patas
um par de pares de patas.
Agora, se se engata
pata a pata
cada pata
de um par de pares de patas,
a coisa nunca mais desata
e fica mais chata
do que pata de pata.

PESCARIA

Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a idéia
de usar as minhocas
numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
Onde será que foi parar?
Não sei
nem quero me preocupar com isso.
Vou mais é pescar.

LETRA MÁGICA

Que pode fazer você
pra o elefante
tão deselegante
ficar elegante?
Ora troque o f por g!

Mas se trocar, no rato,
o r por g,
transforma-o você
(veja que perigo!)
no seu pior inimigo:
o gato.

PARAÍSO

Se esta rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
não para automóvel matar gente,
mas para criança brincar.

Se esta mata fosse minha,
eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
onde é que os pássaros vão morar?

Se este rio fosse meu,
eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte,
que os peixes moram aqui.

Se este mundo fosse meu,
eu fazia tantas mudanças
que ele seria um paraíso
de bichos, plantas e crianças.

GATO DA CHINA

Era uma vez
um gato chinês

que morava em Xangai
sem mãe e sem pai,

que sorria amarelo
para o Rio Amarelo,

com seus olhos puxados,
um pra cada lado.

Era um gato mais preto
que tinta nanquim,

de bigodes compridos
feito mandarim,

que quando espirrava
só fazia "chin!"

Era um gato esquisito:
comia com palitos

e quando tinha fome
miava "ming-au!"

mas lambia o mingau
com sua língua de pau.

Não era um bicho mau
esse gato chinês,

era até legal.
Quer que eu conte outra vez?

RESPOSTAS


- Vá plantar batata.
- Depois você descasca?

- Vá lamber sabão.
- Pois não. Mas me empresta a sua língua
que a minha já está limpa.

- Vá ver se eu estou na esquina.
- Fui e nada vi: o bobo estava aqui.

- Vá caçar sapo.
- Cacei, aqui está: mande logo pro papo.

PROFISSÕES

O MARUJO

Marinheiro pequenino
bebeu água ao se deitar.
Acordou de madrugada:
a sua cama era um mar.

O CARPINTEIRO

Bate bate martelinho
mas não bata feito cego.
Cuidado com o meu dedo
que o meu dedo não é prego.

O BOMBEIRO

Blen blen blen blen
Quem vem? Quem vem?
É o bom bombeiro
e vem ligeiro.
Alguém o chama.
Ele vem que vem
blen blen blen blen.


ANA E O PERNILONGO

para Aninha Vogt

1
Toda semana
eu me lembro da Ana,
Para mim não há semana
sem Ana.

2
Havia um pernilongo
chamado Lino
que tocava violino.
Mas era tão pequenino
o Lino
e tocava tão fino
o seu violino,
que nunca ouvi o Lino
nem vi o Lino.

DICIONÁRIO


A
Aulas: período de interrupção das férias.

B
Berro: o som produzido pelo martelo quando bate no dedo da gente.

C
Caveira: a cara da gente quando a gente não for mais gente.

D
Dedo: parte do corpo que não deve ter muita intimidade com o nariz.

E
Excelente: lente muito boa.

F
Forro: o lado de fora do lado de dentro.

G
Girafa: bicho que, quando tem dor de garganta, é um deus-nos-acuda.

H
Hoje: o ontem de amanhã ou o amanhã de ontem.

I
Isca: cavalo de Tróia para peixe.

J
Janela: porta de ladrão.

L
Luz: coisa que se apaga, mas não com borracha.

M
Minhoca: cobra no jardim-de-infância.

N
Nuvem: algodão que chove.

O
Ovo: filho da galinha que foi mãe dela.

P
Pulo: esporte inventado pelos buracos.

Q
Queixo: parte do corpo que depois de um soco vira queixa.

R
Rei: cara que ganhou coroa.

S
Sopapo: o que acontece quando só papo não adianta.

T
Tombo: o que acontece entre o escorregão e o palavrão.

U
Urgente: gente com pressa.

V
Vagalume: besouro guarda-noturno.

X
Xará: um outro que sou eu.

Z
Zebra: bicho que tomou sol atrás das grades.

Fonte:
José Paulo Paes. Poemas para brincar. SP: Editora Ática, 1996. Texto-base digitalizado por Sueli Ducat

Aluísio de Almeida (O lendário Peabiru)


Ernani Donato estreou na literatura de ficção com Os contos muito humanos, da editora A Gazeta de Limeira, curiosa e rara editora, já vitoriosa no interior do planalto milagroso, e conhecida além das fronteiras. Não podemos fazer a crítica desse livro, porque não nos sentimos autorizados a esses altos vôos, mas tão somente louvar, ao jovem autor, uma esplêndida força de vontade que vence os obstáculos de toda sorte, inclusive os encargos penosos da profissão e a limpeza de suas histórias, muito humanas e, entretanto, sem os realismos muito tristemente humanos que se vêem por aí, e, por isso, não é dos tais livros que os educadores, pais e mestres, têm de desaconselhar à juventude.

Em 1946, já havia o autor publicado O livro das tradições que é um pouco de ficção e muito de imaginação e estilo, associados a fatos históricos e lendários do povoamento do sertão paulista; de Botucatu para a frente. Aparecerá, enfim, alguém para seguir na esteira de Paulo Setúbal? Há quanto tempo não se tenta o romance histórico, o verdadeiro romance histórico, em que os fatos principais, os lugares e os personagens são descritos segundo os documentos, e a ficção se reduz aos diálogos, aos monólogos e psicologia dos comparsas, interpretada de acordo com os dados históricos, por sua voz. Resta ainda muito assunto, à procura de um estilo e de um escritor de pulso. Sem vocação nem autoridade de profeta, todavia, ficamos pensando que este moço está procurando o seu caminho entre a história e ficção, e merece o apoio dos que lhe podem dar.

Ernani Donato é tão entusiasta das nossas antigüidades, que chegou a organizar explorações de velhos caminhos a serra de Botucatu, por onde lhe parecia terem os bandeirantes viajado em suas passadas de sete léguas.

Sem inventar nada, mas copiando autores de boa nota, já escrevemos e publicamos que existiu um caminho, antes de 1500, ligando o Atlântico ao atual Paraguai, os tupis de São Vicente aos guaranis do Paraguai, estrada batida de nove palmos de largura... E com ramificações! Eis aqui o feixe de comunicações aludido: São Vicente, Piratininga, Cananéia-Itapetininga, Paranaguá-Curitiba, Santa Catarina-Tibagi, eram as descidas do planalto para o mar. Tronco: São Paulo-Tibagi. Ligando-se a este, dois novos ramais, um começando nos Campos Gerais (Paraná), outro em Itapetininga, para alcançarem o Guaíra e o Paraguai pelas Sete Quedas. E conhecendo um velho caminho fundo entre Itapetininga e a serra de Botucatu, chegamos a pensar que podia ter sido, ao menos, calcado sobre o antigo peabiru! Hoje, estamos convencidos de que toda essa argumentação só tem valor, expressa dessa forma: os bandeirantes e, depois os tropeiros, quando caminhavam por terra no centro e sul do Brasil, não iam às cegas, mas de um modo geral seguiam aqueles rumos e direções acima delineados. No mais, mito, puro mito!

O leitor curioso pode procurar, sobre esse tema, esta bibliografia: "A conquista espiritual", de padre Antônio Ruiz de Montoya, em Anais da Biblioteca Nacional, 1876. "História da República Jesuítica do Paraguai", pelo cônego João Pedro Gay, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 26. "O caminho do Paraguai a Santo André da Borda do Campo", por Gentil de Assis Moura, ma Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tomo 13. "Antônio Raposo", por W. Luís, na coleção precedente, tomo 9. "O apóstolo São Tomé na América", por monge Camilo Passalaqua, mesma coleção, tomo 8. "São Paulo de Piratininga no fim do século XVI", Teodoro Sampaio, mesma coleção, tomo 4. "Historia de la conquista del Paraguai, Rio de la Plata y Tucuman", pelo padre Pedro Lozano da Companhia de Jesus, com notas de André Lamas Buenos Aires, 1873-1875, primeira e única obra da "Biblioteca del Rio de la Plata". Crônica da Companhia de Jesus no estado do Brasil", Simão de Vasconcelos, 1864. História geral das bandeiras, de Afonso de Escragnole Taunay. História do Paraná, Romário Martins etc.

Vimos pessoalmente esses livros, exceto o de Lozano, que é básico, mas em João Pedro Gay está a citação essencial. Conseguimos ler rapidamente a história do Paraguai, do padre Guevara (em manuscrito) e a "Argentina", de Ruy Dias de Guzman, na Biblioteca Nacional. Especialmente para as viagens de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, cujo itinerário de Santa Catarina a Assunção seria na direção do peabiru, e guiado pelos índios. Isto, porém, já é interpretação.

É curioso lembrar que Jaime Cortesão, escrevendo uma valiosa coleção de artigos sobre o bandeirismo, crê na existência de um peabiru, sem entrar em pormenores E. Taunay não nos pareceu muito entusiasta, apenas analisando os autores que o precederam, sem emitir o juízo definitivo. de sua grande obra sobressai como um estribilho a referência aos caminhos andantes dos rios.

Para compreender o mito do peabiru, é preciso não o separar do outro, o do Pai Sumé. Era a estrada de São Tomé. E se Pai Sumé é um mito, o caminho tem que o ser.

Os primeiros povoadores e catequistas da América do Sul encontraram entre as tradições orais dos indígenas essa de que um homem extraordinário, de barba e branco, viera ensinar-lhes o cultivo da mandioca e outras coisas de sua pequena cultura ou civilização material e, perseguido, retirou-se na direção do mar, deixando as pegadas nas pedras. Este é o arcabouço da lenda. Há tantas versões! Montoya atribui a essa personagem uma cruz de madeira enterrada no Guaíra e até um cemitério, o cemitério de Pai Sumé. Não faltaram exagerados para dizer que os indígenas derramavam água em forma de cruz nos recém-nascidos.

Em diversos lugares se dizia que o Pai Sumé passou. Também nos grandes rios. Também nos grandes rios. Pareceria que fosse um mito da raça ou grupo guarani, se não o houvesse entre os caraíbas, nas Antilhas.

Releva notar que Pai e Sumé não são palavras portuguesas e que, se a primeira é tão conhecida e de grafia uniforme, a segunda admite outras interpretações ortográficas da fonética indígena.

Desejamos lembrar que os jesuítas não foram nem os únicos, nem os primeiros a usar a lenda do Pai Sumé interpretando-a como história de São Tomé, e aproveitando-a para a catequese. Por exemplo, dela falaram os primeiros franciscanos que vieram a Santa Catarina, o agostiniano frei Joaquim Bráulio a menciona em sua História do Peru etc.

Pondo os pingos nos is, a coisa não se passou assim: vendo os inteligentes jesuítas que os índios acreditavam na existência de um Sumé, imediatamente traduziram para São Tomé a palavra e da lenda fizeram um reforço para a sua apologética, com o bom desejo de convencerem os índios a se batizarem.

Não. Quando eles começaram a catequese, a história do Sumé ? São Tomé, já existia e, se eles acreditaram piamente nisto, não estavam usando de nenhum estratagema e hipocrisia.

Nunca se poderá saber quem e onde foi o primeiro europeu que no Brasil traduziu Sumé por Tomé. Foi o primeiro cristão medianamente instruído que sabia ter São Tomé evangelizado os índios, segundo a tradição milenar. É bom também não simplificar o problema com um atestado de atraso mental aos portugueses, que teriam feito somente a troca de duas letras, pois os espanhóis também se deixaram levar pela semelhança de sons, mais longínquos no caso deles. E os mais altos espíritos da época acreditavam nisso. Um deles é o famoso exegeta, cujos comentários à Escritura são um monumento, o padre Cornélio a Lapide, que nunca veio ao Brasil. De seu comentário ("Epístola aos romanos"), tiramos só o finalzinho: "Zomé que parece não ser outro que são Tomé". Ele era professor universitário e escreveu "parece". Atitude científica.

É preciso ainda lembrar que não se trata de dogma de fé, mas de uma opinião dos católicos do tempo das descobertas acerca da vinda de São Tomé às Américas, um fato histórico, que explicavam pelo milagre e também inutilmente pelas antigas e certas comunicações da Ásia com a América. Inutilmente, pois o milagre da volta pelo oceano a pé enxuto podia ser invocado para a vinda.

O padre Simão de Vasconcelos (Crônica da Companhia de Jesus no estado do Brasil, edição de 1864, Rio de Janeiro) se estende sobre o assunto e enumera uma porção de pegadas de São Tomé que ele viu pessoalmente ou pessoas fidedignas lhes referiram, por exemplo, em São Vicente, em Cabo Frio, na Bahia; Logo ressalta a conclusão: o Sumé saiu, sim, pelo oceano, mas em tantos lugares! Mas como é possível que não enxergassem a lenda?

Supomos que, apertados, teriam que dizer que só duas dessas pegadas foram as últimas, e que nos outros casos ele teria, o Sumé, voltado a outras partes do Brasul, como em São Tomé das Letras, ali no sul de Minas Gerais...

Como chegaram a atribuir a São Tomé os vestígios? Não inventavam, os índios vizinhos explicavam: Pai Sumé! Eles traduziam: São Tomé.

Eis o resumo dessas considerações: é certíssimo que existiu o mito do Pai Sumé entre os indígenas americanos. Apelando para o milagre, os crentes podem atribuir a São Tomé o que os índios pagãos atribuíam a Sumé. Trata-se de uma hipótese, de uma possibilidade e o milagre, para os que cremos, é possível.

Não é fato histórico, provado, porque as pegadas são o único documento e tão mal interpretado. É um fato lendário, cuja tradução em linguagem vulgar é pode ser que sim, pode ser que não.

Dizíamos que Montoya foi o pai do peabiru, do caminho de São Tomé, nesse sentido que foi o primeiro a descrevê-lo. Ele encontrou um trecho de caminho a cem léguas do mar, no atual estado do Paraná, com oito palmos de largo etc. e perguntou aos índios o que era aquilo. A chave para todas as respostas veio logo: o caminho do pai Sumé.

Montoya é um nome que não pode ser alistado entre os mentirosos vulgares, nem mesmo um alucinado pelos sacrifícios da catequese, a ponto de criar caraminholas ou macaquinhos no sótão. Ele viu, e ouviu e marcou o lugar. Não, porém, o viu e ouviu dizer cem léguas de caminho, como parece que o interpretam, mas viu um pedaço de caminho num lugar distante cem léguas da costa. Podia ser um quilômetro e até menos. Agora temos o direito de emitir muitas hipóteses para explicar o que ele viu, viu e interpretou pegadas e vestígios da passagem de São Tomé. E isso não tem valor algum. É o mesmo que dissesse vendo um sambaqui, que São Tomé passou por ali, salvo a rima...

O caminho de São Tomé não existiu, sobrevivendo 1500 anos ou mais ao seu milagroso aparecimento. E que viu o padre Montoya? Alguma coisa parecida com caminho, um caminho natural, feito acaso por ação física e química das águas, um trechinho. Ele acreditava que fosse o derradeiro vestígio e resto da grande trilha de que lhe falavam os guaranis.

Eis o texto completo:

"Os habitantes do Brasil todos dão como certo que São Tomé Apóstolo veio a pé para estar bandas, e o lugar primeiro aonde chegou foi a vila de Santos chamada (tradução literal) que está para as bandas do sul, no dia de hoje mesmo se vê a pegada do santo, onde ele tinha saído em terra. Eu, por mim, não vi aquelas pedras, porém, a cem léguas de distância, do mar vi um caminho de cerca de oito palmos que ele tinha trilhado. Por aquele caminho tinha crescido um capim tenro e fino, pela borda dele, porém, cresceu até a altura de meia vara. Aquele caminho vai bastante comprido, e caminho de São Tomé chamam-no as gentes por ali moradoras. Os nossos filhos também declaram que aquele caminho era assim chamado". O texto vem junto com o original impresso em guarani, e este, assim como o manuscrito, existe na Biblioteca Nacional.

Fontes:
Almeida, Aluísio de. "O lendário peabiru". O Estado de São Paulo. São Paulo, 20 de junho de 1948. Disponível em http://www.jangadabrasil.com.br/revista/julho92/al92007a.asp
Imagem = http://www.gilsoncamargo.com.br

Contos de Sempre (Os Seis Companheiros Invencíveis)


Era uma vez um homem que tinha muita habilidade para tudo: sentou praça, serviu o rei e, quando a guerra acabou, o rei mandou-o embora e deu-lhe dois vinténs para as despesas da viagem. O homem não gostou do presente, e protestou, no caso de encontrar quem o ajudasse, vingar-se do rei, que fora tão ingrato para ele.

Quando ia andando, viu no meio de uma grande mata um homem que arrancava árvores, como quem arranca cebolas.

- Ó homem! Queres vir daí comigo? – perguntou-lhe o soldado.

- Com a melhor das vontades, mas primeiro deixa-me levar este feixezito de lenha a minha mãe.

E pegando em cinco árvores, atou-as, pô-las às costas e partiu.

- Olha, nós dois havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, e encontraram um caçador, de joelhos, com a espingarda apontada.

- O que estás a fazer aí, caçador?

- O que estou fazendo? Daqui a duas léguas está um mosquito numa folha de carvalho! Quero ver se lhe meto um grão de chumbo no olho esquerdo.

- Anda daí, caçador, nós três havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, e chegaram a uns moinhos que se moviam muito depressa. Mas o que era melhor é que não havia vento.

O soldado observou:

- Ora esta! Não faz vento, e os moinhos andam.

E nisto foram andando, até que encontraram um homem em cima de uma árvore. Tapava com uma das mãos uma venta e assoprava pela outra venta.

- Que diacho estás tu aí a fazer, não me dirás? - perguntou o soldado.

- A dez léguas daqui há sete moinhos: como vês, sou eu que os faço andar com o sopro da minha venta esquerda.

- Anda daí, meu rapaz, nós quatro havemos de conseguir tudo.

O homem desceu e foi ter com os três. Foram andando, andando, quando deram com um indivíduo que estava firmado numa perna só, tendo a outra no chão, ao seu lado.

- Aqui está um maganão que quer com certeza descansar - notou o soldado.

- Corro muito - respondeu o tal indivíduo -, e para não correr tanto, desatarraxei a outra perna. Quando tenho ambas as pernas, corro mais depressa do que as andorinhas voam.

- Que me dizes?

- Anda daí, nós cinco conseguiremos tudo.

Foram andando, andando, quando no meio do caminho encontraram um indivíduo que tinha o chapéu inclinado sobre uma orelha.

- Salvo o devido respeito, meu caro senhor, - disse o soldado - parece-me que podia pôr o chapéu de um outro modo.

- Nessa é que eu não caio, meu amigo; quando ponho o chapéu direito na cabeça, faz um frio tal que os pássaros caem mortos, gelados, no chão.

- Anda daí, homem, nós seis havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, até que chegaram a uma cidade, onde o rei anunciava que, se houvesse alguém que vencesse na carreira sua filha, receberia em prémio a mão da princesa, mas que se fosse vencido era degolado.

O soldado foi ter com o rei, e disse-lhe que tinha um criado que estava pronto para correr com a princesa.

O rei respondeu:

- Pois sim, mas olha que, se for vencido, as cabeças de vocês ambos são cortadas.

O soldado aceitou, e ordenou ao andarilho que atarraxasse a perna e que não se deixasse vencer.

A aposta era que seria vencedor o que trouxesse primeiro uma bilha de água de uma fonte que havia dali a uma légua.

A princesa e o andarilho receberam cada um a sua bilha, e partiram ao mesmo tempo. Ainda bem a princesa não tinha dado dois passos, e já o diacho do homem se perdia de vista. Chegou à fonte, encheu a bilha, e vinha já de volta, quando no meio do caminho lhe dá o sono; pôs a bilha no chão, e deitou-se. Pegou porém num crânio de cavalo e encostou nele a cabeça, julgando que a dureza do travesseiro o não deixaria dormir muito.

A princesa, que corria como outra qualquer pessoa, chegara à fonte, enchera a bilha e vinha já de volta, quando deu com o seu rival que estava ferrado num profundo sono.

- Bem, tenho o inimigo em minhas mãos!

E esvaziando a bilha do dorminhoco, pôs-se a caminho. Mas o caçador, que estava no alto de um castelo, vira tudo.

- Nada! A princesa não levará a melhor.

E apontando a espingarda, fez fogo e quebrou, sem fazer mal ao que dormia, o crânio do cavalo que lhe servia de travesseiro.

O homem acorda, dá com a bilha esvaziada, e vê que a princesa levava já uma grande distância.

Não perdeu o ânimo, voltou à fonte, encheu a bilha, e chegou a vencer a princesa.

- Até que enfim! - disse o andarilho. - Isto é que eu chamo andar e mexer as pernas.

O rei e a filha estavam furiosos. O vencedor não passava de um miserável soldado com baixa; resolveram dar cabo dele e dos cinco que o acompanhavam.

- Tenho um meio, um bom meio, verás. Não escaparão da que lhes vou preparar!

E com o pretexto de lhes querer dar um banquete, fê-los entrar num quarto cujo soalho, paredes e portas eram de ferro.

No meio do quarto estava uma mesa coberta de pastéis, doces e frutas.

- Entrem, entrem, e comam até fartar!

E assim que os viu dentro foi-se à chave e fechou-os por fora. Depois ordenou ao cozinheiro que acendesse um fogão debaixo daquela sala, até que o ferro ficasse vermelho.

Os seis companheiros, que estavam comendo e bebendo, começaram a sentir calor: ao princípio imaginaram que era do comer, mas o calor ia cada vez a mais, até que eles levantaram-se e foram até à porta para a abrirem. Estava a porta fechada por fora. Viram logo que o rei lhes queria fazer alguma das suas.

- Deixá-lo lá - observou o homem do chapéu. - Vou já fazer um frio tal, que não haverá calor que possa com ele.

E pôs o chapéu direito na cabeça. O calor desapareceu logo e os pratos gelaram na mesa.

Duas horas depois, o rei, imaginando que os homens estavam cozidos e recozidos, mandou abrir a porta, e veio ele mesmo em pessoa ver a sua obra. Achou os seis companheiros contentes e felizes, e dizendo que queriam sair dali para se aquecerem um pouco, tal era o frio que havia dentro daquela sala.

O rei, furioso, foi ter com o cozinheiro e perguntou-lhe porque não cumprira as suas ordens.

- Real senhor, saiba vossa majestade que cumpri. Aqueci o ferro até ele ficar vermelho.

O rei foi ver e reconheceu que o cozinheiro não mentia. Não sabendo porém como desfazer-se daqueles hóspedes tão incómodos, mandou chamar o soldado e falou assim:

- Se prescindires dos direitos que tens sobre minha filha, dar-te-ei tanto ouro quanto quiseres.

- Aceito, meu senhor, aceito, mas há-de dar-me tanto quanto puder levar um dos meus criados: nesse caso não exijo a mão da princesa.

O rei bateu as palmas de contente; o soldado disse que havia de vir buscar o dinheiro dentro de quinze dias. No entretanto reuniu os alfaiates que havia em todo o reino e encomendou-lhes um grande saco. Quando aquele saco, que levara quinze dias a coser por um exército de alfaiates, estava pronto, o valentão que arrancava árvores, como quem arranca cebolas, pegou nele às costas e apresentou-se no palácio.

O rei perguntou que espécie de homem era aquele valentão que trazia às costas um saco tão grande... Quando soube quem era, ficou desesperado por ver que dinheirão caberia ali dentro...

Mandou vir um tonel que fazia suar os dezasseis homens que o trouxeram: o valentão pegou no tonel com uma só mão e, metendo-o no saco, perguntou:

- Então é só isto?

O rei mandou buscar todos os seus tesouros, que foram direitinhos para o fundo do saco.

- Mais! Mais! Mais! - gritava o homem.

O rei mandou buscar setecentas carruagens carregadas de ouro e o valentão meteu-as, assim como os bois que as puxavam, dentro do enorme saco.

- Enfim, o melhor é ir metendo a esmo tudo o que eu apanhar ao alcance da mão!

E foi metendo, metendo tudo!

- O saco ainda não está cheio, mas afinal fechemo-lo assim mesmo.

E atando com uma grande corda a boca do saco, atirou-o para os ombros e partiu.

Assim que o rei viu que todas as suas riquezas iam às costas de um só homem, mandou reunir toda a sua cavalaria e deu ordem para que prendessem os seis companheiros, e que lhes tirassem o saco. Os regimentos abalaram atrás dos fugitivos.

- Alto aí! Alto aí! Senão, sereis esquartejados - gritaram os comandantes da tropa.

- O que é que vossemecês dizem? - tornou o homem que soprava pela venta -nós esquartejados! Esperem que eu vos ensino a todos!

E tirando a mão da venta, soprou, soprou, e não lhes digo nada!, soldados, cavalos, comandantes, tudo foi pelos ares.

Um velho general pediu misericórdia e o homem deixou de soprar, não sem lhe dizer:

- Vai dizer ao teu rei que não mande mais tropa contra a gente, que eu atiro-a toda por esses ares...

O rei, quando tal soube, redarguiu:
- Deixá-los lá, parece que aqueles homens são feiticeiros. Os seis companheiros dividiram todas aquelas riquezas, casaram-se, tiveram muitos filhos e foram muito felizes até à hora da morte.

Fonte:
José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.