terça-feira, 21 de agosto de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 644)

Uma Trova de Ademar 

O pantanal se engalana,
mas eu mesmo desconfio;
que até a própria chalana
sente ciúmes do rio.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Vendo a descrença ao meu lado
e a esperança por um triz,
eu chego a achar que é pecado
crer na vida e ser feliz!
–Domitilla B. Beltrame/SP–

Uma Trova Potiguar 


A inspiração não me veio
trazer um verso feliz,
mas em teus olhos eu leio
a trova que não te fiz.
–José Lucas de Barros/RN–

Uma Trova Premiada 


1983  -  Maricá/RJ
Tema  -  FRIO  -  1º Lugar


Meu destino é uma contenda,
é um eterno desafio:
- vem o sonho, faz a renda...
- vem a vida, puxa o fio...
–Izo Goldman/SP–

...E Suas Trovas Ficaram 

De um sentimento profundo,
no silente ou no escarcéu,
prosa é linguagem do mundo,
o verso a prosa do céu.
–Fernando Vasconcelos/PR–

U m a P o e s i a 


Aqui por estas areias
Já correram muitos pés...
Estalaram muitos arcos,
Vibraram muitos borés...
Estes garbosos coqueiros
São fantasmas de guerreiros
Que o tempo não quis matar!
Estas palmeiras delgadas
São índias apaixonadas
Por homens brancos do mar!
–Rogaciano Leite/PE–

Soneto do Dia 

AMOR ADOLESCENTE.
–Hegel Pontes/MG–


Esta noite, meu bem, foi tão comprida
e tão sem graça foi a madrugada,
que eu senti que você é minha vida
e a vida sem você não vale nada.

Mas é tarde demais. A despedida
é como a pedra que já foi lançada:
mesmo partindo da pessoa amada,
nunca mais poderá ser recolhida.

Tudo acabado: os sonhos que sonhei,
seu amor, seu carinho e seu desvelo...
E esta noite, meu bem, foi tão comprida,

que dei graças a Deus quando acordei
e percebi, após o pesadelo,
que entre nós dois nunca houve despedida.

Fonte:
Ademar Macedo

Neida Rocha (Vem me Buscar)

Busco as estrelas.
Quero te encontrar.
Busco teu rosto
na multidão.
Não te encontro.
Sei que estás
em outro mundo
e clamas por mim,
como eu clamo por ti.
Sei que já fomos um só.
estamos separados
Por nossa própria culpa.
Quero te reencontrar.
Busco teu rosto,
mas sei que na multidão,
não estás.
Sei que vives sozinho
em teu mundo,
assim como eu,
vivo sozinha
na multidão.
Me espera.
Estou indo.
Mas se a saudade
for muita,
vem me buscar.

Fonte:
A autora

Lima Barreto (O Homem que Sabia Javanês)

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.

– Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!

– Só assim se pode viver, Castro... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!

– Cansa–se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.

– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!

– Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?

– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.

– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?

– Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

– Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte:

 

"Precisa–se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar–me. Insensivelmente dirigi–me à Biblioteca Nacional. Na escada, acudiu–me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que o javanês, língua aglutinante do grupo maleo–polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Encyclopédie dava–me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá–los bem na memória e habituar a mão a escrevê–los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a–b–c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci–me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

– Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi–lhe então eu, com a mais encantadora esperança:

– Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...

Por aí o homem interrompeu–me:

– Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:

– É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu–se da minha dívida e disse–me com aquele falar forte dos portugueses:

– Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?

Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor–me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" – e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil – podes ficar certo – aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta e maltratada.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram–me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz.

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir–me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

– Eu sou – avancei – o professor de javanês, que o senhor disse precisar.

– Sente–se, respondeu–me o velho. O senhor é daqui, do Rio?

– Não, sou de Canavieiras.

– Como? – fez ele. – Fale um pouco alto, que sou surdo.

– Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu.

– Onde fez os seus estudos?

– Em São Salvador.

– Em onde aprendeu o javanês? – indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei–lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera–se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.

– E ele acreditou? E o seu físico? – perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.

– Não sou – objetei – lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele podem dar–me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

– Bem, – fez o meu amigo – continua.

– O velho – emendei eu – ouviu–me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou–me com doçura:

– Então está disposto a ensinar–me javanês?

– A resposta saiu–me sem querer: – Pois não.

– O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

– Não tenho que admirar. Têm–se visto exemplos e exemplos muito fecundos...

– O que eu quero, meu caro senhor....

– Castelo – adiantei eu.

– O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Meu avô, o Conselheiro Albernaz, ao voltar de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse–me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz". Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse–me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. De uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê–lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.

Veio o tal livro. Era um velho calhamaço, um in–quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo–me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí–lo.

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!".

O barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira–me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê–lo, disse–me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi–as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!

Fez–me morar em sua casa, enchia–me de presentes, aumentava–me o ordenado. Eu passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê–lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz–lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. – "Qual!, retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou–me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de secção: "Vejam só, um homem que sabe javanês – que portento!".

Os chefes de secção levaram–me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!".

O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?". Disse–lhe que não, e fui à presença do ministro.

"Bem, disse–me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!".

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez–me uma deixa no testamento.

Pus–me com afã no estudo das línguas maleo–polinésicas; mas não havia meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English–Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam–me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês". A convite da redação escrevi no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

– Como, se tu nada sabias? – interrompeu–me o atento Castro.

– Muito simples: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.

– E nunca duvidaram? – perguntou–me ainda o meu amigo.

– Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês – uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram–me na secção do tupi–guarani e eu abalei para Paris.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou–me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

– É fantástico – observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

– Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?

– Que?

– Bacteriologista eminente. Vamos?

– Vamos.

Fonte:
Lima Barreto. O Homem que Sabia Javan~es, e outros contos.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Projeto Quatro em Um) n.9

Suas Mãos
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

São Fidélis "Cidade Poema"


Suas mãos em minhas mãos
São prenúncio de um amor...
Carícia gera paixão

E tudo esquenta, então,
Pois faísca traz calor!

É o início do aconchego,
Do desejo tão gostoso
Que vai em busca do beijo,
Fonte de intenso desejo
Terno, moleque e meloso.

Em nossas mãos o começo
De toda preliminar,
O bê-á-bá do querer,
O princípio do gostar,
A gota d’ água do copo
Que faz tudo transbordar...

Em nossas mãos o jeitinho,
O toque, o tato e o tino,
O caminho e o destino,
A malícia sem juízo...
Nossas mãos abrem a porta
E depois mais nada importa:
Entramos no paraíso!

Nossas mãos são o começo
E também o meio e o fim
Quando eu toco em você,
Quando você toca em mim!

Uma alma que tem vida
ADEMAR MACEDO/RN

( Poema dedicado ao Site Alma de Poeta www.sardenbergpoesias.com.br, por ocasião do seu 8º aniversário)

São oito anos de vida
de sucesso e muita glória,
de versos e de Poesia
que entram aqui para História.
Uma equipe competente
que põe poesia da gente
aqui...E ela se projeta,
e é pra vocês neste dia,
meus parabéns em Poesia
ao site: “ALMA DE POETA”

Eu encontrei neste Site
a poesia mais completa,
que é centrada na beleza
e de inspiração repleta;
de um modo puro e gentil,
este é o Site do Brasil
que tem “Alma de Poeta!...”

P a r a b é n s !!!

Desencontros
SILVA RAMOS

1853/1930

Quantas vezes me viste sem te eu ver,
E quantas eu te vi que me não viste...
E só agora, ao ver que me fugiste,
Eu vejo o que perdi, em te perder.

Estranha condição do estranho ser
Que alegre vive nesta vida triste:
Que só saibamos em que o bem consiste,
Quando o bem só consiste no morrer.

Quão feliz eu seria, se, na hora
Em que te vi, te visse como agora,
Ideal, nos meus sonhos ideais!...

Se o que eu sinto por ti sentir pudera,
Então, sorrindo, eu te diria: Espera,
E hoje, chorando, não te espero mais.

TROVAS DE DOROTHY JANSSON MORETTI

Tecendo trovas ao vento
nascidas do coração,
num pouco de luz e alento,
Eu disfarço a solidão.
––––––
Que bela seria a vida
se, acima de ódios mortais,
uma ponte fosse erguida
unindo margens rivais!

––––––––––––-

Ora eloqüente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de tudo,
no fútil revés de um Nada.

Fonte:
Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Celito Medeiros (Seguindo o Intruso)

Caminho vagarosamente sem fazer barulho, para não ser visto pelo intruso que se distancia à minha frente. Passo por entre uns galhos espinhosos, já pisando em plena lama.

É um pequeno alagadiço que tenho que transpor e seguro em um cipó, para não cair ao escorregar naquelas bordas lisas do solo molhado. Mas tem uma coisa que já está me intrigando... por que sigo em frente tão curioso e para ver o quê?

Esquisito, mas parece que algo novamente me convida a seguir em frente, transpor obstáculos e não desistir. Talvez seja um apelo à minha simples curiosidade, uma vez que é atrativo sempre sair e desvendar o que possa parecer difícil e misterioso. Não posso dizer que não tenho meus medos, pois afinal, de medo todos possuem um pouco. Mas isso é coisa que eu não sinto no momento e sim, uma vontade danada de descobrir o que está se passando.

Já começo a suar um pouco, pois temos coberto mais de um quilômetro de caminhada tensa, e continuo sempre com aquela sensação de estar  sendo convidado a seguir em frente. Desço mais uma ribanceira, começando a alcançar um patamar de topografia plana com muitas árvores de cerejeira e peroba, intercaladas por muita taboca.

Quem eu sigo, parece caminhar com muita destreza e nunca se distanciar. Sim, claro, ele deve estar sabendo que eu o estou seguindo. Ele deve estar realmente querendo que eu o siga! Tal pensamento me deixa confuso.

Que droga, estarei sendo levado para alguma armadilha? Por quem? E para quê?

Não pude responder a essas perguntas, nem ficar por muito tempo me questionando, pois começo a ver uma espécie de clarão à minha frente e, minha pulsação aumenta terrivelmente ao tentar imaginar do que se trata.

Naquele mesmo instante sinto que alguém procura me comunicar que não devo ter preocupações e que me aproxime!

Ora, isso já parece estar extrapolando os limites!

Quem estaria querendo que eu me aproximasse e por quê? - Não me dou tempo a respostas e sigo em frente confiante, é isso - confiante - é como estou me sentindo. Já sei, este cara seja quem for, está utilizando de telepatia!...

Seria extraordinário, em plena selva amazônica, alguém usando de comunicação telepática!

Seria a mesma pessoa a qual eu seguia? Então, por isso toda minha coragem e o fato de tê-lo seguido sem muito questionar? - Hei! Realmente eu já devia ter percebido que não se tratava de um indígena, afinal eu só estava pensando tratar-se  de um indígena e isto fez com que não imaginasse  tratar-se de alguém mais.

As luzes em frente estão mais nítidas, mas estranhamente não parecem ser de uma fogueira. Começo a  perceber que é de mais de um ponto que parte tal claridade.  Não! Não pode ser!... Aquilo é um foguete!?

Pelas barbas de mil profetas, aquilo é uma nave!!?

É claro, estou sonhando. Aperto os dentes na mão esquerda e sinto uma dorzinha, opa!, não estou sonhando, é pura realidade.

Estou ainda molhado, me aproximo mais e mais... quando avisto pessoas! Seriam alienígenas? A clareira na mata não é grande - como essa coisa pousou?

Não, felizmente não, apenas orientais. Vestem uma espécie de quimono. Mas o que estes orientais estariam fazendo aqui? Ou não seriam orientais?!...

Bem, já se podem perceber os olhinhos puxados, pelo menos me parece que sim. O que parece claro é que de fato são orientais de olhos puxados! Estatura mediana. Magros. Irradiando simpatia. Nada leva a crer tratar-se de  inimigos. Ou seriam inimigos disfarçados em docilidades e revestidos com peles de cordeiro? Nem mesmo havia obtido respostas, contemplo aquele objeto estranho, mas que com certeza tem características de uma nave. Mais ou menos uns seis metros de altura por uns vinte e cinco de comprimento. A envergadura das asas cobre além do corpo de uns oito metros, mais uns três de cada lado. Escura, ou será por causa da noite que chega à madrugada?

Não, realmente é escura, talvez um grafite ou sei lá o quê! Bico bem afinado, asas curtas para tal tamanho, bem pontiagudas, espere... parece ter um par de asas ainda menores no dorso que se alongam afinando até a cauda, terminando por elevar-se um pouco. É isso, as asas começam no bico e terminam na cauda, sendo que o centro da nave é o ponto mais alongado, formando uma espécie de estrela esmagada. Debaixo da interseção das asas está descida uma escada com corrimão.

Não percebo de imediato janela alguma além da que se situa na parte frontal. E é muito bonito o acabamento delas. Estranho eu não estar observando luzes coloridas piscarem, pois isto é o que eu imaginaria ver numa nave extraterrestre. Possui apenas algumas inscrições, mas parecem até familiares, pelo menos num escudo ou coisa assim, logo atrás do que seria provavelmente a cabine de comando. Em alto relevo, não distingo bem o desenho, mas vejo claramente a letra e o número: S 12.

Não tenho mais tempo para observações minuciosas, pois estão à minha frente quatro seres de aparência oriental, sendo  um deles uma mulher, pelos cabelos bem longos e pretos.       

Fico muito confuso, pois parecem bem humanos como se fossem nativos deste planeta, e a princípio nada percebo de diferente nestes seres, parecendo familiares.

Estariam estes Japas ou Chinas fazendo alguma experiência em nossas florestas? Mas, e este tipo de nave desconhecida, no meio da mata sem campo de pouso?

Sou tirado desses pensamentos com um deles que se adianta e me telecomunica dizendo:

- Tudo será devidamente esclarecido se você me der a honra de poder ser feito, ao devido tempo!

Reparo então, que o sujeito da esquerda está com seu quimono ou túnica um pouco suja e molhada, do que rapidamente posso concluir ser o furtivo visitante da noite que eu havia seguido até aqui.                    

Então procuro simplesmente... dar a entender a eles em pensamento, que estou um pouco desorientado com tudo isto. No entanto permanecerei na retaguarda, para não ser iludido ou ludibriado por quem quer que seja.

- Hei, funcionou!!!

Ele responde telecomunicando que está certo, e que compreendem como eu possa estar me sentindo. Diz também, que somente o que eu queira comunicar é que será compreendido por eles, que fui muito esperto em perceber logo que havia telecomunicação, bem antes de vê-los quando eu estava seguindo o furtivo da noite.

Da mesma maneira ele só comunicará o que for necessário ou perguntado.

Pergunto que garantias eu tenho de não ser apenas “usado” por eles, e imediatamente recebo como resposta:

- Apenas a sua intuição e capacidade de perceber.

Neste momento, a acompanhante feminina faz um gesto que entendo como sendo para eu entrar na nave. Estremeço..., engulo em seco e logo comunico que não estou com tanta pressa e prefiro trocar algumas idéias primeiro.

Vou logo perguntando o que fazem aqui e o que querem de mim. Novamente é meu primeiro interlocutor que comunica:

- Estamos em missão nesta área do planeta, estando perfeitamente “autorizados” a seguir com um projeto predeterminado e aprovado pela Patrulha Galáctica.

Diz também que seguiram a mim e meus companheiros nos últimos dias pela tela do radar de sua espaçonave. Não sei se estão respondendo de maneira a esclarecer ou a confundir ainda mais.

O que estou presenciando é real, preciso logo ter uma boa compreensão e tomada de decisão, para não complicar o encontro ou fazer algo de que me arrependa mais tarde.  Continuo suando e já estou com a boca seca. Pudera!

 Fonte:
Celito Medeiros. De Olho na Terra. Ed. All Print, 2005.

Ademar Lopes Pessoa / PB (Caderno de Sonetos)

A MEUS AMIGOS, OS LIVROS

A Deus aradeço a amizade de vocês,
Com que tão cedo na vida fui agraciado,
Pois sem ela, hoje eu seria um pobre coitado,
Sem compreender o bem ou o mal que a mim se fez.

Quantas vezes vocês receberam o meu pranto,
Enquanto eu lia o que vocês muito me diziam,
Que até suas páginas tanto se umedeciam
Me acalentando, se em mim desgosto era tanto !

Assim, a vocês serei sempre muito grato,
Pelos conselhos que vocês me cumularam
Que hoje, mais experiente e mais confortado,

Sigo minha vida sem me sentir um ingrato,
Sem ter ofensas para os que me maltrataram,
E continuar amando e me sentindo amado !

SAUDADES ETERNAS

Tua imagem querida dentro em mim é tão forte,
Pois sempre foste bom, amigo e inteligente,
Que a saudade será eterna daqui para a frente,
E a levarei comigo até a minha morte.

Se te faltei o amparo, perdão eu peço a ti,
Como peço a Deus tua eterna proteção;
E que me dê forças para os dias que virão,
Tão diferentes dos dias que contigo vivi.

Vai ser muito difícil suportar tua saudade,
Tão intensa porque eras bom e partiste cedo,
Quantas alegrias tu me destes desde criança,

Que hoje tanta tristeza meu coração invade,
E não creio que vou suportá-la, e tenho medo,
Pois não sei se com ela meu peito descansa.

DE REPENTE

De repente senti que o tempo passou.
- O tempo da felicidade e do amor.
E a vida, se não era, hoje é tão sem graça ...
Pois sem eles nada fica, tudo passa.

Assim, quando já não há esperança,
Quando a vida se vai e sem tardança,
Tento rever o passado, dia a dia,
Para sentir como ele se exauria.

Enquanto eu esperava ser amado,
O tempo passava sem eu perceber,
Mas havia esperança nos atos meus,

De um dia viver feliz ao seu lado,
Mas hoje, já não há um alvorecer
Que me anime, nem mesmo Deus.

O ENTARDECER

Sinto no entardecer um certo encanto,
Uma promessa de encontros me ofusca,
No vôo suave dos pássaros em busca
De uma árvore onde repousem num canto.

No sol que no horizonte desaparece,
A mostrar que o Rei da Luz vai dormir,
No deslocar das pessoas por aí;
No lar, se a família reza uma prece.

Assim, há no entardecer um sinal
De que devemos viver em união,
Sempre em procura da paz e do amor,

Evitando assim a vida infernal,
Àqueles que sentem que não foi em vão
O entardecer do dia que passou.

LINDA MULHER

Linda mulher. Em meiguice, a primeira.
Sua imagem, que guardarei a vida inteira,
Deixou minha a alma por demais confusa,
E do meu estro se tornou eterna musa.

A alma é sofrida por sentir sua falta,
Enquanto o estro tanta beleza exalta.
Sentem os dois só por esta princesa
Tão puro amor e tamanha tristeza.

Pois sabem que ela é uma bela criatura,
Não só pelo que seu corpo irradia,
Seu caráter, sua bela formação

Levam minha alma e meu estro à sua procura,
Por toda a vida, na busca, dia a dia,
Pois sua imagem vive em meu coração.

O HOSPITAL

São gritos, correrias, tristezas e esperança,
As cenas de cada hospital no seu dia-a-dia,
Corações a esperar trazerem alegrias,
Médicos e enfermeiras - Luta que não cansa !

Se deles a dedicação e a competência
Confortam cada paciente e seus parentes,
O hospital se torna um templo. Não sentes,
Quando é salva uma vida que era só carência ?

O hospital se torna um lugar tão sagrado,
Que cada profissional seu, se refletir
Que suas ações, que já salvaram tantas vidas,

São um atributo que lhe foi por Deus legado,
Que nas suas ações Ele está dentro de si,
E lhe agradece com suas bénçãos repetidas.

VOCÊ

Você vive sempre nos sonhos meus,
E, no entanto, mal sabe quem eu sou.
Por você nutro o mais profundo amor,
E, comovido, sou tão grato a Deus.

Quero expressar a você meu sentimento,
Mas eu tenho receio da sua recusa,
E, minha alma, já por demais confusa,
Ainda me pergunta até quando aguento

Guardar só comigo este amor platônico,
Já que necessito do seu carinho,
Neste momento de tanto sofrer.

Mas perto de você fico afônico,
E até me afasto e penso no caminho :
- Que em novo sonho venha aparecer !

A PROFESSORA

Das primeiras letras, a professora
É para nós imagem tão querida,
Como da santa que por toda a vida
Foi sempre amiga, terna e acolhedora.

Na verdade, milagres operou,
Apesar de viver de um vil salário,
E desconhecida do noticiário,
Até quando um presidente falou

Que, aquele que nada sabe fazer
Termina por ser professor.
Ele é que não sabe a nobre missão

De quem, com amor, nos ensina a ler,
A dar passos em busca do valor,
Do conhecimento e da profissão !

NUM GRANDE AMOR ...

Não ... Num grande amor não há adeus,
Num grande amor não há despedida,
Pois ele transcende além da nossa vida,
E só é um grande amor graças a Deus.

Num grande amor há renúncia e há perdão,
Num grande amor há pura sinceridade,
Num grande amor há até a ingenuidade
Da pureza manifesta de cada coração.

Num grande amor não há vencido,
Num grande amor só há vencedor,
Se há lágrima, se há até gemido,

São manifestações que, com fervor,
Duas almas se entrelaçam no sentido
Da vida, da felicidade e do amor !

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=96&x=18&y=5

Camilo Castelo Branco (Sete Mulheres)

O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram.

A primeira era uma órfã, que vivia da caridade de um ourives, amigo do seu defunto pai. Chamava-se Leontina. Fiz versos a Leontina, sonetos em rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando os quis dedicar a outra, dois anos depois.

Leontina não tinha caligrafia nem idéias; mas os olhos eram bonitos e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.

Era minha vizinha. Por desgraça também, era meu vizinho um algibebe que morria de amores por ela e, à conta deste amor, se ia arruinando, por descuidar-se em chamar freguesia, como os seus rivais, que saíam à rua a puxar pelos indivíduos suspeitos de quererem comprar. Aristocratizara-o o amor: envergonhava-se ele de tais alicantinas, debaixo do olhar distraído da mulher amada.

Odiava-me o algibebe. Recebi uma carta anônima, que devia ser sua. Era lacônica e sumária: “Se não muda de casa, qualquer noite é assassinado”.

Pouco mais dizia.

Contei a Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em que estava minha vida, por amor dela. Indiquei o algibebe como autor da carta. A menina, que tivera o desfastio de lhe receber noutro tempo algumas, conheceu a letra mal disfarçada. Tomou-lhe raiva, fez-lhe arremessos e induziu a criada a atirar-lhe com uma casca de melão. Que lhe sujou um colete de veludinho amarelo e verde com listas encarnadas e pintas roxas. Que colete!

Passados tempos, Leontina desapareceu com a família; e, ao outro dia, recebi dela um bilhete, escrito em Almada. Dizia-me que o algibebe escrevera ao seu padrinho uma carta anônima, denunciando o namoro comigo. O padrinho ordenou logo a saída para a quinta de Almada.

O padrinho era o ourives, sujeito de cinqüenta anos, viúvo, com duas filhas mulheres, das quais amargamente Leontina se queixava. As filhas do ourives, receando que o pai se casasse com a órfã, queriam-lhe mal, e folgavam de a ver nas presas de alguma paixão, que a arrastasse ao crime, para assim se livrarem da temerosa perspectiva de tal madrasta.

E o certo é que o ourives pensava em casar com Leontina, logo que as filhas se arrumassem. Estas, porém, sobre serem feias, tinham contra si a repugnância do pai no dotá-las em vida. Ninguém as queria para passatempo e menos ainda para esposas.

Picado pelo ciúme, abriu o ourives seu peito à órfã, ofereceu-lhe a mão, e uma pulseira de brilhantes nela, com a condição de me esquecer.

Leontina disse que sim, cuidando que mentia; mas passados oito dias admirou-se de ter dito a verdade. Nunca mais soube de mim, nem eu dela; até que, um ano depois, a criada que a servia me contou que a menina casara com o padrinho e que as enteadas, coagidas pelo pai, se tinham ido para o recolhimento do Grilo com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres. Não sei mais nada a respeito da primeira das sete mulheres que amei, em Lisboa.

 Nota:

Eu sei mais alguma coisa que merece crônica. Leontina subjugou o ânimo do marido; descobriu que ele era rico e gozou quanto podia das regalias do mundo, às quais vivera estranha até aos vinte e quatro anos. O ourives tomou gosto aos prazeres e esqueceu o valor do dinheiro, exceto o que dava às filhas, que lhe saía da secretária com pedaços de vida. Começaram pelos arlequins e pelos touros e acabaram no Teatro de S. Carlos o refinamento do gosto.

Leontina andou falada na sua roda, como esposa fiel e admirável vencedora de tentações. Quase todos os amigos particulares do marido a cortejaram, sem resultado. Deu bailes em sua casa, donde era freqüente saírem os convidados penhorados, às quatro horas da manhã; mas, duma vez, não saíram todos; ficou um escondido no quarto da criada, e lá passou o dia seguinte.

O ourives ignorou muito tempo que a sua lealdade não era dignamente correspondida: porém, suspeitando um dia que a criada o roubava, fez-lhe uma visita domiciliária ao quarto, sem prevenir a esposa, e achou lá o filho do seu primo Anselmo, dormindo sobre a cama da moça, com a segurança de quem dorme em sua casa. Estava de moiras amarelas e vestia um chambre de lã do dono da casa! É o escândalo e mangação!

Foi chamada Leontina a altos gritos. Acordou o filho de Anselmo e foi procurar na algibeira do paletó um revólver. O qüinquagenário viu cinco bocas de ferro, mais persuasivas que a boca de ouro de Crisóstomo, o santo.

Passou ao andar de baixo e gritou pelo código criminal. Leontina tinha fugido para casa da sua amiga e vizinha D. Carlota, pessoa de hipotética probidade.

O escandaloso possessor do chambre despiu-o, vestiu-se, sacudiu as moiras amarelas, sentou-se a calçar as botas, acendeu um charuto, desceu as escadas serenamente e encontrou-se no pátio com dois cabos de polícia e um municipal. Dali foi para o administrador, que o mandou reter até ulteriores explicações.

Leontina, dias depois, foi para o Convento da Encarnação, onde esteve dois anos e donde saiu a tomar caldas em Torres Vedras, por consenso do marido, que a foi lá visitar e de lá foi com ela à exposição a Londres. Da volta da viagem, o ourives morreu hidrópico, legando às filhas umas inscrições, que rendem para ambas um cruzado diário, e à esposa uma independência farta em títulos bancários e em gêneros de ourivesaria.

Consta-me que Leontina se lembrara então de Silvestre; mas ignorava que destino ele tivesse. Incumbiu um compadre de indagar se estava no Porto o homem; a resposta demorou-se alguns dias, sete, creio eu, e ao sexto já ela estava em indagações da vida e costumes dum sujeito de bigode e pêra, que à mesma hora de cada tarde lhe passava à porta num tílburi, tirado por uma orça. Fácil lhe foi saber que o sujeito fora, cinco anos antes, algibebe, tirara o prêmio da Loteria de Espanha e fechara a loja. Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a casca de melão.

Que mudança de cara e de maneiras ele fizera! O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. Eu tive ocasião de os ver ontem no seu palacete a Buenos Aires.

Estão gordos, ricos e muito considerados na rua.

Fonte:
Camilo Castelo Branco. Coração, Cabeça e Estômago.

Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela)

Escrita por Jorge Amado em 1958, a obra Gabriela Cravo e Canela, um romance regionalista, rendeu ao autor cinco importantes prêmios e uma excepcional aceitação pelo público, sendo também êxito no estrangeiro, tendo sido traduzida em quinze línguas. Este sucesso deve se principalmente a maneira do autor, com seu espírito jovial, de escrever e trabalhar tão bem suas personagens.

Ao lermos o livro percebemos duas principais vertentes que ocorrem paralelamente e que conduzem todo o romance:

a.. O amor entre a mulata Gabriela e o sírio Nacib. O campo amoroso da narrativa.

b.. A chegada do progresso em Ilhéus, local onde se passa a história. O campo social e político da narrativa.

Personagens

Iremos a seguir mostrar os personagens principais e secundários divididos de acordo com seus papéis.

a.. Personagens Protagonistas (no campo amoroso).

Consideramos Gabriela e o turco Nacib os protagonistas da história devido ao romance vivido entre eles e a importância deste no romance.

Gabriela- Moça de grande vitalidade que reúne grandes características do biótipo nortista do interior, sendo retirante fugida da seca. Animada, bem disposta, era bonita e por onde passava chamava atenção dos homens, provocando inveja nas mulheres. Não era mulher de relacionamentos mais sérios como o casamento nos quais se sentia "presa". A traição na sua relação com Nacib ocorreu devido a este fato. Importante: é Gabriela que dá ênfase à trama.

"Caído o braço roliço, o rosto moreno sorrindo no sono, ali, adormecida na cadeira, parecia um quadro. Quantos anos teria? Corpo de mulher jovem, feições de menina."

Este trecho exemplifica e exalta a beleza física de Gabriela.

Nacib- O personagem é fundamental não só pela sua relação com Gabriela mas também pelo fato de ser dono do mais importante ponto de encontro da região, o Bar Vesúvio. Era imigrante vindo da Síria e não gostava de fazer parte de nenhum laço político. Pensava ele que se fizesse parte da política poderia perder clientela em casos de desentendimento, já que todos da sociedade freqüentavam seu bar. É ele o primeiro homem, na narrativa, a se encantar com a beleza de Gabriela. Era, de acordo com o próprio livro, "um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido..." Possuía ainda frondosos bigodes, um rosto gordo e bonachão, além de uma boca grande de sorriso fácil.

"Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria e tanto se fizera brasileiro e ilhense."

Trecho da narrativa referente a Nacib e sua nacionalidade.
2.Personagens Antagonistas (no campo amoroso)

Para considerarmos uma personagem antagonista devemos analisá-la e assim ver o seu verdadeiro papel na narrativa. No caso deste romance consideramos a personagem Tonico Bastos como a antagonista. Pelo fato de ele ser o fator determinante na traição entre Gabriela e Nacib.

Tonico Bastos- Filho do coronel Ramiro Bastos, possuía a fama de conquistador. Sua razão de viver era esta, o de ser o irresistível. Andava sempre bem vestido, e com um andar despreocupado. Tinha muito sucesso com as mulheres e as opiniões sobre ele variavam em Ilhéus, uns o consideravam bom rapaz e inofensivo. Outros achavam ele burro, covarde e preguiçoso.

Foi este seu jeito que conquistou Gabriela, fazendo com que ela se esquecesse de Nacib por um momento.

"De nenhum outro temera tanto Nacib a concorrência, ao contratar Gabriela, quanto de Tonico. Não era ele o conquistador sem rival, o tombador de corações?"

Trecho que mostra a preocupação de Nacib em relação a seu amor Gabriela e o conquistador Tonico Bastos.

3. Personagens Secundários (no campo amoroso)

São personagens da conturbada vida amorosa e doméstica de Ilhéus ou ainda personagens relacionados ao cotidiano de Gabriela, Nacib ou de Tonico Bastos. A seguir citaremos algumas personagens neste campo.

As irmãs dos Reis- Duas grandes cozinheiras de Ilhéus, Quinquina e Florzinha eram também muito conhecidas por terem construído um enorme presépio. Neste encontravam-se além de imagens santas, imagens de personalidades que foram importantes na história do Brasil.

Malvina- Por ser jovem e mulher era muito controlada pelo pai, o que era muito comum na época. Por outro lado era a única que possuía coragem para requerir seus direitos. Acabou fugindo de Ilhéus para não ter que casar com quem não queria.

Filomena- Empregada de Nacib desde que ele comprara o bar, acaba indo embora para morar com o filho Vicente. Abrindo então uma vaga que posteriormente será ocupada por Gabriela.

No campo político os personagens estão divididos em duas principais alas: a ala dos que querem e estimulam o tão falado progresso e aqueles que são contra os desejos desta ala progressista. Através da leitura podemos perceber que os progressistas são (no campo político) os protagonistas. O antagonismo está na maneira conservadora de pensar da outra ala, anti-progressista. Os membros desta ala são os antagonistas neste campo.

Alguns protagonistas (campo social e político).

Mundinho Falcão- Raimundo Falcão, exportador de cacau. O seu principal objetivo era aumentar a produção de cacau, e possibilitar que o cacau fosse exportado sem ter que antes passar pelo porto da Bahia. Era o símbolo do progresso.

"Mundinho Falcão chegou aqui outro dia, como diz Amâncio. E veja quanta coisa já realizou: abriu a avenida ...Trouxe os primeiros caminhões, sem ele não saía o Diário de Ilhéus nem o clube Progresso."

Este trecho define bem o espírito progressista de Mundinho Falcão.

Capitão- Miguel Batista de Oliveira, o Capitão, era aliado a Mundinho Falcão nas disputas políticas. Possuía um nariz grande e curvo, era moreno e estava sempre vestido de impecável roupa branca. Era uma das grandes personalidades da cidade.

O russo Jacob e seu sócio Moacir Estrela- Foram eles que organizaram uma empresa de transportes para explorar a ligação rodoviária entre as duas principais cidades de produção de cacau. Isto foi um progresso já que a viagem rodoviária através das marinetes era muito mais rápida e barata que através da ferrovia, a mais comum na época.

"Que coisa! Quem diria! Trinta e cinco quilômetros em hora e meia...Antigamente a gente levava dois dias, a cavalo..."

Percebe-se por este trecho da narrativa a vantagem da viagem por rodovias através das marinetes.

Alguns membros da Igreja podem aqui ser incluídos (Padre Basílio), já que muitos deles possuíam terras sendo interessante a chegada do progresso.

Antagonistas (campo social e político)

Coronel Ramiro Bastos
- Considerado um verdadeiro cacique local, por ser um dos mais antigos moradores de Ilhéus. Era contra a política progressista de Mundinho Falcão, com o qual disputava o poder político da região.

Coronel Amâncio Leal- Era um homem calmo, porém que já havia lutado muito por terras da região, era um célebre chefe de jagunços. A ele pouco interessava todas aquelas inovações do progresso.

Na verdade podemos dizer que praticamente todos os coronéis, os homens com origem naquela terra e que lutaram por ela, não queriam o progresso, não queriam que seu tipo de vida mudasse.

Principais Momentos

Por ser um romance percebemos dentro do enredo várias "sub-histórias" podendo então se localizar pequenos conflitos e até pequenos desfechos caracterizando um pequeno universo. Mas de qualquer forma podemos dividir a obra de acordo com seus principais acontecimentos.

1.Apresentação

A apresentação ocorre na parte inicial do livro (todo o primeiro capítulo), quando o autor descreve o local que onde se passa a trama. Ele apresenta e cita algumas personagens que serão importantes no desenrolar da história. Além disso deixa bem claro os hábitos e costumes das pessoas da época, apresentando personagens bem estereotipadas.

"Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado..."

"O Doutor não era doutor, o Capitão não era capitão. Como a maior parte dos coronéis não era coronéis. Poucos, em realidade, os fazendeiros que nos começos da República e da lavoura haviam adquirido patentes de coronel da Guarda Nacional."

"A cultura do cacau dominava todo o sul do Estado da Bahia, não havia lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus, a capital do cacau."


Trechos retirados da apresentação do romance.

2.Complicação

Nesta parte da trama, posterior a apresentação, temos novamente que dividi-la em dois campos: o social e político, e o amoroso. Neste momento da história é que surgem os conflitos das personagens. Conflitos entre as personagens e entre elas e o meio em que vivem..

No campo amoroso a complicação tem início a partir do momento em que Gabriela é admitida por Nacib como sua nova empregada. Quando depois eles acabam estabelecendo uma relação amorosa. Tem seu fim quando Nacib flagra Gabriela o traindo em sua cama na companhia de Tonico Bastos (é o Clímax).

"Voltou a examiná-la, era forte, por que não experimentá-la?

-- Sabe mesmo cozinhar?

-- O moço me leva e vai ver..."


Trecho em que Nacib analisa Gabriela para depois admiti-la como empregada.

"Gabriela não enxergava mais nada além do terno de reis, das pastoras com suas lanternas, Nilo com seu apito, Miquelina com o estandarte. Não via Nacib, não via Tonico, não via ninguém..."

Trecho em que Gabriela abandona sua vida "presa", e vai a festa de Reis.

No campo social e político a complicação tem seu início a partir do momento em que o progresso começa a modificar Ilhéus. Passam a existir certas discordâncias em relação a este progresso que chegava na cidade. O confronto de idéias dos progressistas e os conservadores. A construção de avenidas e o aprimoramento de rodovias caracterizam bem o progresso que chegava a Ilhéus. Buscava-se a exportação direta do cacau e o aumento da produção.

" Pois é: põem dificuldades a obras indispensáveis à cidade. Uma estupidez sem nome. Ramiro Bastos cruza os braços, não tem visão, os coronéis o acompanham"
Trecho da fala de Capitão (progressista) sobre a reprovação dos conservadores em relação a obras que seriam benéficas a cidade.

" Forasteiro !"

Maneira como o coronel Ramiro Bastos se referia a Mundinho Falcão, o símbolo do progresso.
a.. Um detalhe importante é que esses conflitos continuam até o fim do livro, não sendo interrompidos no clímax deste campo.

3.Clímax

O clímax é o momento marcante de qualquer livro, em "Gabriela Cravo e Canela" existem vários momentos marcantes, porém podemos estabelecer os dois principais em seus respectivos universos.

Clímax (amoroso)- O clímax deste campo ocorre, como dito anteriormente no momento em que Nacib flagra Gabriela o traindo em sua cama em companhia do sedutor Tonico Bastos.
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" Não me mate , Nacib! Só estava dando uns conselhos..."

Fala de Tonico Bastos ao ser descoberto por Nacib junto com Gabriela.

Clímax (social e político)- Neste campo o clímax ocorre quando Mundinho Falcão ganha a batalha política do coronel Ramiro Bastos, e acaba então se elegendo. Mostrando que a força do progresso só crescia.

4.Desfecho

A parte de conclusão dos acontecimentos da trama, que depende dos acontecimentos do clímax.

Desfecho (amoroso)- Apesar de ser traído, Nacib sente a falta de Gabriela, tanto no lado profissional (Gabriela enquanto cozinheira), quanto no lado sentimental, a falta de sua amada. Então Nacib acaba perdoando Gabriela, e eles passam a viver como antes do casamento.

"E aqui termina a história de Nacib e Gabriela quando renasce a chama do amor de uma brasa dormida nas cinzas do peito."

Esse trecho é retirado no final do livro, no seu desfecho.

Desfecho (social e político) - Com a vitória de Mundinho Falcão nas eleições o progresso chegou de vez à Ilhéus, sendo quebrado os tabus dos coronéis e iniciando-se novas obras em prol da cidade.

"Pela primeira vez , na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante."

Trecho extraído do final do romance mostrando a perda de poderes dos coronéis.

O Narrador, como ele vê e apresenta a cultura baiana Embora seja um romance regionalista da Segunda Fase Modernista (1930-45), "Gabriela Cravo e Canela" ainda conserva elementos da narrativa do séc. XIX. No livro podemos observar a grande ênfase que o autor dá ao local onde se passa a trama, podemos dizer que como no séc. XIX ocorre o realce da cor local. As personagens são nesta trama extremamente relacionados ao meio, ou seja, a influência do meio social, que é outra característica do Romantismo.

"... saiu de casa ainda quase noite, às quatro da manhã, e viu o céu despejado num azul fantasmagórico de aurora desabrochando, o sol a anunciar-se num clarão alegre sobre o mar..."

Trecho exaltando a beleza de um nascer do Sol em Ilhéus.

Comentários sobre o Narrador

A narração é feita de um ponto de vista externo. O narrador é onisciente ou seja tem conhecimento de tudo que se passa na trama e se encontra terceira pessoa, ele também não participa da história.

O fato da narração ser feita de um ponto de vista externo prejudica a riqueza das personagens já que elas se tornam mais estereotipadas não havendo aprofundamento psicológico da identidade destas.

Problemas sociais e psicológicos presentes na Narrativa

1. Os Coronéis X as Forças Progressistas


Este conflito ocorre em plano político. Os coronéis extremamente conservadores são contra o progresso que chegava em Ilhéus, pois temiam perder seus poderes locais.

Com o progresso aumentaria o comércio diminuindo assim a importância dos grandes latifundiários da região.

2. Exploração dos lavradores

O meio que os coronéis encontravam para manter suas riquezas era a super-exploração dos lavradores. Devido as terras se concentrarem nas mãos de poucos latifundiários ficando uma grande massa de trabalhadores passando fome e por não terem escolha aceitam as miseráveis condições impostas por estes.

3. As relações sociais

A mulher não possuía direitos como os do homem, suas opiniões não eram consideradas pela sociedade, possuía apenas o papel de cuidar dos afazeres domésticos e terem filhos. As vezes eram tratadas como objetos assim como a alguns trabalhadores braçais, verdadeiras mercadorias. Isso denomina-se reificação.

4. O adultério

O livro divulga bem esta questão. Nesta época o adultério era extremamente comum porém punido com severidade, era normal o homem traído matar a mulher e o amante para manter sua imagem limpa perante a sociedade, isto era chamado de defesa da honra. No caso da traição de Gabriela, ela acabou perdoada por Nacib destoando dos demais casos da época e acabando com este "tabu".

Fonte:
SOS Estudante