domingo, 14 de outubro de 2012

Antonio Carlos de Faria (Cardápio Existencial)


-E se a vida for como um cardápio?

A pergunta pegou Rosinha de surpresa. Ela levantou os olhos do menu e se deparou com o marido em estado reflexivo.

-Ora, Alfredo, deixe de filosofar e escolha logo o seu prato. 

Os dois haviam saído para jantar e estavam na varanda do Bar Lagoa, de onde se pode ver um cantinho de céu e o Redentor.

-Rosinha, pense nas conseqüências do que estou dizendo. Se a vida for como um cardápio, nós talvez estejamos escolhendo errado. No lugar da buchada de bode em que nossas vidas se transformaram, poderíamos nos deliciar com escargots. Experimentar sabores novos, mais sofisticados...

-Por que a vida seria como um cardápio, Alfredo? Tenha dó.

-E por que não seria? Ninguém sabe de fato o que é a vida, portanto qualquer acepção é válida, até prova em contrário.

-Benhê, acorda. Ninguém vai aparecer para servir o seu cardápio imaginário. Na vida, a gente tem que ir buscar. A vida é mais parecida com um restaurante a quilo, self-service, entende?

-Boa imagem. Concordo com o restaurante a quilo. É assim para quase todo mundo. Mas quando evoluímos um pouco, chega a hora em que podemos nos servir a la carte. Rosinha, nós estamos nesse nível. Podemos fazer opções mais ousadas. 

-Alfredo, se você está querendo aventuras, variar o arroz com feijão, seja claro. Não me venha com essa conversa de cardápio existencial. Além disso, se a nossa vida virou uma buchada de bode, com quem você pensa experimentar essa coisa gosmenta, o tal escargot? 

-Querida, não reduza minhas idéias a uma trivial variação gastronômica. Minha hipótese, caso correta, tem implicações metafísicas. Se a vida for como um cardápio, do outro lado teria que existir o Grand Chef, o criador do menu. 

-Alfredo, fofo, agora você viajou na maionese. É o cúmulo querer reconstruir o imaginário religioso baseado no funcionamento de um restaurante. Só falta você dizer que nesse seu céu, os anjos são os garçons! 

Nesse momento, dois chopes desceram sobre a mesa. Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa.

Alfredo e Rosinha trocaram olhares de espanto e antes que pudessem dizer que ainda não haviam pedido nada, o garçom falou com voz grave:

-Cortesia da casa. Já olharam o cardápio?

Fonte:

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 24 de setembro: O Jockey Clube e sua Primeira Corrida


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).
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Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os aristocráticos passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no luxo e na concorrência, na animação e até na poeira. O Jockey Club anunciara a sua primeira corrida; e, apesar dos bilhetes amarelos, dos erros tipográficos e do silêncio dos jornais, a sociedade elegante se esforçou em responder à amabilidade do convite.

Fazia uma bela manhã: - céu azul, sol brilhante, viração fresca, ar puro e sereno. O dia estava soberbo. Ao longe o campo corria entre a sombra das árvores e o verde dos montes; e as brisas da terra vinham impregnadas da deliciosa fragrância das relvas e das folhas, que predispõe o espírito para as emoções plácidas e serenas.

Desde sete horas da manhã começaram a passar as elegantes carruagens, e os grupos dos gentlemen riders, cavaleiros por gosto ou por economia. Após o cupê aristocrático tirado pela brilhante parelha de cavalos do Cabo, vinha a trote curto o cabriolé da praça puxado pelos dois burrinhos clássicos, os quais, apesar do nome, davam nesta ocasião a mais alta prova de sabedoria, mostrando que compreendiam toda a força daquele provérbio inventado por algum romano preguiçoso: Festina lente.

Tudo isso lutando de entusiasmo e ligeireza, turbilhonando entre nuvens de pó, animando-se com a excitação da carreira, formava uma confusão magnífica; e passava no meio dos estalos dos chicotes, dos gritos dos cocheiros, do rodar das carruagens, e do rir e vozear dos cavaleiros, como uma espécie de sabat de feiticeiras, a começar no campo de Sant’Anna e a perder-se por baixo da sombra de meia dúzia de árvores do Prado e das tábuas sujas e carcomidas de uma barraca que por capricho chamam pavilhão, e que de velha já se está rindo das misérias do mundo.

Às 10 horas abriu-se a raia (turf), e começou a corrida com a irregularidade do costume. Os parelheiros pouco adestrados, sem o ensino conveniente, não partiram ao sinal e ao mesmo tempo, e disto resultou que muitas vezes o prêmio da vitória não coube ao jóquei que montava o melhor corredor, e sim àquele que tinha a felicidade de ser o primeiro a lançar-se na raia. A última corrida, que durou um minuto e dezenove segundos, teria sido brilhante se dois dos cavalos não se tivessem lembrado de imitar as pombinhas de Vênus, que dizem, voavam presas por um laço de amor.

A diretoria, que envidou todos os seus esforços para tornar agradáveis as novas corridas, deve tomar as providências necessárias a fim de fazer cessar estes inconvenientes, formulando com o auxílio dos entendidos um regulamento severo do turf. Convém substituir o sinal da partida por outro mais forte e mais preciso, e só admitir à inscrição cavalos parelheiros já habituados à raia.

Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com as inovações necessárias para comodidade dos espectadores; e que desse alguma atenção à parte cômica do divertimento. Instituindo-se corridas de burrinhos e de pequiras. Nós ganhávamos com isto uma boa meia hora de rir franco e alegre, e estou certo que por esta maneira o gosto dos passatempos hípicos se iria popularizando.

A uma hora da tarde estava tudo acabado, e os sócios e convidados disseram adeus às verdes colinas do Engenho Novo, e voltaram à cidade para descansar e satisfazer a necessidade tão trivial e comum de jantar, insuportável costume, que, apesar de todas as revoluções do globo e todas as vicissitudes da moda, dura desde princípio do mundo. À tarde, aqueles que tiveram a honra de um convite foram a Saúde assistir à inauguração do Instituto dos Cegos na casa que serviu de residência do primeiro Barão do rio-Bonito.

Há muito tempo que se esperava a realização desta bela instituição humanitária, destinada a dar às pobres criaturas privadas da luz dos olhos a luz do espírito e da inteligência. Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada a sua administração que em pouco conseguiremos resultados tão profícuos como têm obtido a França e os Estados Unidos.

A inauguração fez-se em presença de SS.MM. e de um luzido e numeroso concurso de senhoras e de pessoas de distinção, que aí se achavam animados pelo mesmo sentimento, e como para realçarem aquele ato humanitário com a tríplice auréola da majestade, da virtude e da ilustração.

Depois de tudo isto, uma bela noite sem lua, fresca e estrelada; algumas partidas no Catete, um passeio agradável ao relento, ou o doce serão da família em redor da mesa do chá; e por fim cada um se recolheu a repassar lentamente na memória os prazeres do dia, e a lembrar-se de um sorriso que lhe deram ou de uns olhos que não viu.

Entretanto a mim não me sucedeu o mesmo. Tinha-me divertido, é verdade; mas aquele domingo cheio, que estreava a semana de uma maneira tão brilhante, fazia-me pressentir uma tal fecundidade de acontecimentos, que me inquietava seriamente. Já via surgir de repente uma série interminável de bailes e saraus, um catálogo enorme de revoluções e uma cópia de notícias capaz de produzir dois suplementos de qualquer jornal no mesmo dia. E eu, metido no meio de tudo isto, com uma pena, uma pouca de tinta e uma folha de papel, essa tripeça do gênero feminino, com a qual trabalham alguns escritores modernos, à moda do sapateiro remendão dos tempos de outrora.

É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam – folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada idéia.

Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e graça e a mesma monchalance com que uma senhora volta as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!

Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de vontade conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de magia e de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel, livre como o espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida para ostentar o brilho fascinador de suas cores; mas engana-se: [e apenas uma formiga que criou asas para perder-se

De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que o folhetinista inventou em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma que plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se não disse a mesma coisa, teve intenção de dizer, porque, enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa séria, a amável leitora amarrota o jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente a que é impossível resistir.

Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o velho tira os óculos de maçado e diz entre dentes:”Ah! o sujeitinho está namorando à minha custa! Não fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura”.

O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu certo toilette, o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo, as velhas porque não falou na decadência das novenas, as moças porque não disse claramente qual era a mais bonita, o negociante porque não tratou das cotações da praça, e finalmente o literato porque o homem não achou a mesma idéia brilhante que ele ruminava no seu alto bestunto.

Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante confusão, e estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar, vamos ao Hotel da Europa; se desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o teatro. Compramos luvas no Wallerstein, perfumarias no Desmarais, e mandamos fazer roupa no Dagnan. O poeta glosa o mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um título para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim é que há de sair fora da regra geral, e ser uma espécie de panacéia, um tratado de omni scibili et possibili, um dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o Instituto de França e a Academia de Lisboa não concordarem numa exata definição do folhetim, tenho para mim que a coisa é impossível.

Façam idéia, estando ainda dominado por estas impressões da véspera, como não fiquei desapontado no dia seguinte, quando me fui esbarrar com a nova da chegada do paquete de Southampton, o qual parece que mesmo de propósito trouxe quanta notícia nova e velha havia lá pela Europa.

Nicolau, vendo que nada arranjava com os seus primos da Áustria e da Prússia, assentou de aliar-se com o Judeu Errante, um certo indivíduo inventado, no tempo em que ainda se inventava, e correto e aumentado no Século 19 por Eugênio Sue. Entretanto saiu-lhe a coisa às avessas, porque os ingleses e franceses com o cólera ficaram verdadeiramente coléricos e então não há mais nada que lhes resista. Tomaram Bommarsund, e é de crer que a esta hora já tenham empolgado Sebastopol.

Ao passo que eles lá no Oriente pelejam combates e batalhas para se distraírem durante a convalescença da moléstia, os Egípcios deram ao mundo uma grande lição de política constitucional a seu modo em duas palavras – pau e corda; e mostraram claramente que toda a ciência de governar está na maneira de empregar aqueles dois termos.

Se Abbas-Paxá tivesse aprendido na escola de Napoleão pequenino, em vez de mandar meter o bastão nos mamelucos para estes o enforcarem, teria usado da outra forma simbólica de governar, corda e pau, isto é, teria-os mandado enforcar num pau qualquer, e estaria agora vivo e bem disposto para mandar enforcar uma nova porção.

Políticos do mundo inteiro! Jornalistas do orbe católico! Publicistas, que desde Hugo Grocio queimais as pestanas a resolver a grande questão das formas de governo! Podeis fazer cartucho de vossos jornais, podeis vender os vossos enormes infólios para  papel de embrulho, podeis dar aos vossos pequerruchos as memórias que elaborastes para que eles se divirtam a fazer chapéu armado! Paula majora canamus! Tudo quanto escrevestes, tudo quanto meditastes não vale aquela lição simples e grande dada por dois mamelucos!

Quereis ver como a coisa está agora clara e simples? Teoria do governo constitucional – pau e corda. Teoria do governo absoluto – corda e pau. Quanto à república, como é a forma de governo simples por excelência, será simbolizada unicamente pela corda. Os democratas estão livres do bastão, e contentam-se em enforcarem-se uns aos outros como na revolução inglesa, ou a guilhotinarem-se, como têm o bom gosto de fazer os nossos vizinhos do Sul.

Além destas notícias que vos tenho referido, todas as mais, trazidas pelo paquete, não valem uma ode que nos veio também por ele, e que foi publicada no Portuense. Não se riam, nem pensem que há nisto exageração! Leiam, e depois conversaremos. É um homem obscuro, lá de um recanto de Portugal, com o nome mais antipoético do mundo, que de repente sentiu na mente uma centelha de Vitor Hugo, recebeu uma inspiração do céu, tomou uma folha de papel, e lavrou a sentença da Inglaterra com uma ironia esmagadora, com um metro enérgico e uma rima valente. Leiam, e digam-me se neste pensamento grande, nesta concepção vasta, nesta forma imponente, não há como um pressentimento, como a profecia de um acontecimento, que  talvez não esteja muito longe?

Ia-me esquecendo de outra notícia, a da aposentadoria do Sr. Delavat y Rincon, Ministro da Espanha, no caráter diplomático da missão que exercia no Brasil. Residindo entre nós há muitos anos, o Sr. D. José tem-se ligado intimamente ao Brasil, não só pelos laços de família que o prendem, como pelas atenções que sempre mostrou para com o nosso país.

Com tanta novidade curiosa chegada pelo paquete, e que oferece larga matéria à palestra e aos comentários, ainda assim não ficamos de todo livres de certas conversas divertidas, muito  usadas nos nossos círculos.

Não sabeis talvez o que é uma conversa divertida? Pois reparai, quando estiverdes nalgum ponto de reunião, prestai atenção aos diversos grupos, e ouvireis um sem-número desta espécie de passatempo, que é na verdade de um encanto extraordinário.

Uma conversa divertida – é um pretendente que vos agarra no momento em que se vai dançar, para demonstrar a vantagem da reforma das secretarias. É um médico que aproveita a ocasião em que pode ser ouvido por todos, para proclamar a probabilidade da invasão da cólera no Brasil . É um sujeito que escolhe justamente o momento da ceia, para contar casos diversos de indigestão e congestões cerebrais. É um indivíduo qualquer que se vos posta diante dos olhos, como uma trave, e vos tira a vista da vossa namorada, para perguntar-vos com voz de meio-soprano: o que há de novo?

Na primeira revisão do Código Penal é preciso contemplar estes sujeitinhos nalgum artigo de polícia correcional. Uns furtam-nos o nosso tempo, que é um precioso capital – time is money, e, o que mais é, furtam com abuso de confiança, porque se intitulam amigos; por conseguinte incorrem na pena de estelionato. Os outros são envenenadores, porque com as suas conversas de cólera e febre amarela vão minando surdamente a nossa vida com os ataques de nervos e com as terríveis apreensões que fomentam.

Enquanto, porém, aquela reforma não tem lugar, chamo sobre eles a atenção do Sr. Dr. Cunha, assim como também sobre a desordem que reina no teatro nas noites de enchente.

A princípio, um homem sentava-se comodamente para ver o espetáculo. Entenderam que isto era sibaritismo, estreitaram o espaço entre os bancos, e tiraram-nos o direito de estender as pernas.

Ainda a coisa não ficou aí: pintaram os bancos e privaram-nos do espreguiçamento do recosto. Julguei que tinham chegado ao maior aperfeiçoamento do sistema, mas ainda faltava uma última demão. Agora aqueles que querem ver ficam de pé; e os que preferem ficar sentados têm o pequeno inconveniente de nada verem. Não cabem dois provérbios num saco, diz o provérbio: ou bem ver, ou bem sentar.

Isto pode ter muita graça para a diretoria; porém aquele que compra o direito de ver, sentado e recostado, não pode sofrer semelhante defraudação. É urgente proceder-se a uma rigorosa lotação das cadeiras do teatro, e proibir a introdução de mochos e travessas. Este expediente, acompanhado da severa inspeção na venda e recepção dos bilhetes, restituirá a ordem tão necessária num espetáculo onde a presença de Suas Majestades e de pessoas gradas exige toda a circunspeção e dignidade.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Concurso de Trovas Navegando nas Poesias – 2011 (Vencedores)


TEMA: PRESENÇA

Saibam, irmãos trovadores,
que a rosa, nos dotes seus,
muito mais que as outras flores,
tem a presença de Deus!
JOSÉ ANTONIO DE FREITAS/MG
                
Estás longe... mas nem tanto,
porque, na saudade imensa,
pela casa, em cada canto,
eu sinto a tua presença.
WANDERLEY PEREIRA GOMES/MG
                 
Mesmo em foto esmaecida,
tua imagem, sem piedade,
é presença em minha vida,
na redoma da saudade...
VANDA DE PAULA MOUTHÊ/MG

Dou-te atenção e carinho,
tu me dás indiferença,
pois, mesmo estando pertinho,
me negas tua presença.
RENATO ALVES /RJ

Um bom pai faz diferença,
com seu calor e carinho.
- É a decisiva presença,
que ao filho aponta o caminho!
A. A. DE ASSIS/PR

A tua presença, amado!
É tão forte, tão marcante,
que estarás sempre ao meu lado
mesmo que estejas distantes.
[+} FRANCISCO DAS NEVES MACEDO/ NATAL/RN

Fonte:
Agostinho Rodrigues. Editor de Alternativo Navegando nas Poesias
Nº 154 – abril de 2012

Nilto Maciel (Tonho França: o adeus do cais)


Eu não deveria iniciar esta crônica com um chavão, mas não temerei a cara feia de ninguém: A Internet é uma maravilha. Pronto, está escrito o chavão. E por que isto?  Porque, não fosse a Internet, eu não teria conhecido dezenas de escritores. Ora – dirão os eternos insatisfeitos –, muitos não valem nada, não sabem escrever, são uns principiantes. Pois tenho tomado conhecimento de centenas de bons escritores, primeiro na tela do computador, depois em livros. Esta semana foi a vez de Tonho França, que mora em Guaratinguetá, São Paulo, nasceu em 1965, publicou quatro obras e, com outro jovem escritor, Wilson Gorj, criou a Editora Penalux. (No prelo, mais um manuscrito meu. Umas memórias literárias. Porém, isto é assunto para depois).

             Não fosse o prazer de conhecer escritores jovens ou velhos, a Internet ainda me deu (e dará) a felicidade de me aproximar de pessoas maravilhosas. Sem ela, não teria me abeirado de Sofia Correia. Conto como foi: Acordei um dia cedinho (costumo sair da cama com o sol a meio caminho do zênite), liguei o computador e fiz uma busca: Sophia Loren. Por que isso? Porque horas antes tivera um sonho: encontrava-me com a atriz em Roma. Caminhávamos pela Via Appia, chovia fininho, fazia frio, era noite. Súbito, aparecia um sujeito com cara de Marlon Brando jovem e se punha a me chamar de vagabondo, plebeo, gaglioffo. E eu despertava. Como observou o eterno William, pelos lábios de Hamlet: 

“There are more things in heaven and earth, Horatio, 
Than are dreamt of in your philosophy”. 

Pois não é que outra Sofia me apareceu naquela mesma manhã? Assim: deixei a Loren de lado e passei ao correio eletrônico (todo dia leio primeiro as mensagens de meus amigos e da gente nova, depois de deletar as armadilhas dos hackers). E lá se achava, na primeira linha, certa Sofia Correia. Em três dias de mensagens curtas, eu já sabia trinta curiosidades dela: amava os Beatles e os Rolling Stones, lia Julio Cortázar todo dia, gostava muito de meus “textos”, tinha uma cadela chamada Teresa, etc.

Volto ao assunto principal desta crônica: recebi semana passada, de Tonho França, seu mais novo rebento: O bebedor de auroras (Rio de Janeiro: Futurarte Poesias, julho de 2009). A capa, de Luiza Romar (em azul, preto, branco e amarelo), é um primor. O prefácio vem de meu amigo Tanussi Cardoso. O impresso tem 80 páginas: versos, prefácio, posfácio (de Igor Fernandes), sumário, etc. Li-o em seis dias, entre um gole de Hamlet e um naco de Cortázar. No sétimo dia, deu-se o pecado: a menina dos Rolling Stones surgiu em traje de ninfeta aos meus olhos cansados de letras. E pus-me a ler para ela os tantras de Tonho França: “Na soleira, deixo minhas rotas e meus mapas antigos”. Ela bateu palmas: O viajante, o explorador, o aventureiro, o poeta que parte livre. Sim, deve ser isso – exaltei-me, e corri à geladeira para lhe trazer suco de uva. Ela pediu para ler em voz alta: 

“Não percebo mais minha estrela polar 
e todas as preces que sabia”. 

Tentei dar uma opinião. Ela me fez calar e eu me embasbaquei. Pensei: Para que servem guias e pedidos de proteção? Ela continuou a leitura, enquanto molhava os lábios de roxo: 

“A mesma xícara de todos os dias 
onde me sirvo numa entrega plena, completa 
num ritual todo íntimo 
como cabe à solidão e ao poeta”. 

Pensei em fugir. Fiquei e balbuciei: Eu não disse? 

Deixo de novo a doçura de lado e me atenho ao que Tanussi Cardoso anotou (a essência da arte de Tonho): “Distanciando-se de um tipo de poesia, ora anódina e de conteúdo inócuo, ou de uma outra, que considera a realidade objetiva como tese de poesia e não de prosa, os poemas de Tonho França têm a propriedade de iluminar o cotidiano”.

De volta à realidade, sugeri a Sofia uma leitura mais amena, como o “Cântico dos cânticos” de Salomão. Ela recusou a troca: Hoje prefiro este poeta. E voltou a ler: 

“Tenho nas mãos uma lua e duas moedas antigas 
brinco de jogar pedrinhas”. 

Fiz nova interrupção: É a brincadeira, a infância, a pureza, que é poesia, que é metáfora. Ela fechou o volume: E há poesia sem pureza? Sim, há. Pois o que é o absurdo, o “demoníaco”, o inaceitável? Ela se levantou do sofá: Este poeta prefere ser divino e, ao mesmo tempo, visível. Abriu de novo o tomo: 

“o vento que toca em meus cabelos longos 
é íntimo conhecedor de destinos”. 

Olhei para o céu, pela porta entreaberta: Ora, pois, é o vento (são os ventos) quem nos conduz.

Quando ela se retirou, reli o prefácio de Tanussi: O bebedor de auroras “tem certos motivos preponderantes: emoção à flor da pele, poemas autobiográficos, preocupação existencial e social, visão ambígua do cotidiano, musicalidade, boa escolha vocabular, imaginação vertiginosa, a imensa solidão do poeta, o fazer literário, e uma eterna ‘viagem’ como símbolo abstrato de uma liberdade, mais sensorial do que real, em que o poeta se debate, entre ‘estrelas e luares’ e o caos urbano”. Ufa! Sim, ufa. No entanto, era isto o que eu queria dizer.

Não sei se por culpa de Sofia, saí da leitura de O bebedor de auroras como quem entra num outro mundo, numa outra dimensão. Como se tivesse morrido e aqui estivesse para constatar a enorme diferença entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre o real e o sensorial. Lembro-me de ter lido para ela: 

“Há os que precisam ancorar 
Há os que desejam se perder”. 

E ela comentou, muito séria: Chegar e partir. Aportar ou sair aos mares. Li trecho do posfácio de Igor Fagundes: “Tonho França parece bastante ciente de que a poesia, então, não é uma fuga à realidade, a um reino da fantasia que se lhe opõe, mas, arrebatadoramente, significa o encontro intensivo como o que, na realidade, persevera com sua potência e vigor”.  

Encerramos aquela tarde (eu ia dizer fagueira, mas pareceria tão fora de moda o adjetivo, que me calo) com mais versos de Tonho: “Um ponto no horizonte, as dores nunca mais, / Quem dera pudesse, o adeus do cais...”

A fagueira (agora ouso usar este romântico adjetivo) Sofia Correia, tão adornada de rubros lábios, se despediu de mim e saiu. Guardei os saltérios de Tonho numa estante e fui dormir. Talvez sonhasse com Sophia Loren, sem Marlon Brando por perto.

Fortaleza, 3 de outubro de 2012.

Fonte:

sábado, 13 de outubro de 2012

Wagner Marques Lopes/MG (Trovas-Tributo à Mata da Serra do Cipó)


                                  Foto Jornal Hoje em Dia, 11.10.12

Durante a semana, a mata do Parque Nacional da Serra do Cipó, nas proximidades de Pedro Leopoldo, riquíssima por sua biodiversidade, foi alvo de um incêndio, supostamente de origem criminosa. Avaliou-se uma perda de 1/6 da área, correspondente a 500 estádios de futebol. Um rapaz da região, que disse conhecer cada cantinho da mata, exclamou, desolado: "Queimaram parte de mim".



Incêndio feroz, ranzinza,
impiedoso, sem dó.
E faz muito verde em cinza,
lá na Serra do Cipó.

Ante o fogo violento,
em rodopios sem fim,
diz um moço, em seu lamento:
“ – Queimaram parte de mim!...”

Quem provocou a queimada?...
Algum tresloucado ser?...
A vida, em longa jornada,
buscará reverdecer!...

Antonio Carlos de Faria (O Mundo Sem Colombo)


 -Não consigo deixar de pensar nisso.

-Nisso o quê?

-Como teria sido o mundo sem Colombo. Nós nem estaríamos aqui nesse botequim bebendo chope e papeando...

-Então, salve Colombo! Deixe de pensar nele. Viva o presente e, principalmente, pague o que me deve. 

-Você não entendeu. Não estou pensando em Colombo. Estou pensando no que teria sido o mundo sem ele.

-Com ele ou sem, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro e hoje alguém iria estar tomando chope em um botequim como esse. Tudo seria mais ou menos igual. Até um caloteiro como você iria existir.

-Você está enganado. Sem Colombo, nós não estaríamos aqui. Sem ele, iria prevalecer o método de Portugal, que eram as cabotagens em torno da África e da Ásia. Um processo muito mais lento. Em qualquer lugar em que vissem mulher bonita, os portugueses paravam e se punham a fazer versos e a tocar suas guitarras.

-Eles estavam certos, quer coisa melhor do que mulher, poesia e música?

-Mas perceba as conseqüências. Seguindo as cabotagens, os portugueses chegariam ao Japão, como fizeram realmente, mas talvez demorassem muito mais para se arriscar em linha reta ao Oriente. Foi a loucura de Colombo que fez os portugueses virem direto para a América. Se dependesse deles, isso poderia ter demorado mais, quem sabe uns duzentos anos.

-E daí? Um pouco antes, um pouco depois, terminaria tudo como estamos vendo agora.

-De forma alguma. Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa. Sem batatas, a população européia iria continuar passando fome, crescendo devagar. Não haveria o excedente que criou o exército de mão-de-obra de reserva, a mais valia. Não teria havido a Revolução Industrial.

-Você não acha que está exagerando um pouco?

-Claro que não. Sem Colombo, não teria havido luta de classes e as revoluções que balançaram o mundo no último século.

-Aonde você quer chegar com essa conversa?

-Ora, meu ponto de vista é claro. A ousadia de Colombo criou o mundo como o conhecemos. É preciso ser ousado, é preciso ir além do convencional.

-Ainda não entendi o que quer dizer esse papo todo.

-Bom, você mesmo podia ser mais ousado e fazer um gesto inesperado. Por exemplo, poderia perdoar essa dívida que veio me cobrar.

-Tenha paciência. Está me achando com cara de Jesus Cristo? Essa conversa toda é apenas mais uma forma de você adiar o pagamento. Você está me enrolando.

-Longe de mim essa idéia! Mas continuando nosso assunto, como teria sido a história do mundo sem Jesus Cristo? Você já pensou nas conseqüências?

Fonte:
Folha On Line. 27/09/2004

Amadeu Baptista (Poemas Avulsos)


“A NOITE CAI”

A noite cai e o poeta parte para a cidade.
 O alforge vai cheio de sedimentações, beringelas, 
 leiras de feijão, e um potente holofote,
 para iluminar o tempo.

Recém-chegado da província, cabe-lhe 
 manusear o livro, o alfa, o ómega, ainda que 
 abomine tanto tumulto, tantos carros que 
 passam, tanto grito,

e se creia um centauro nas avenidas novas. Os
 bairros, as áleas rectilíneas, ampliam a 
 indiferença, havendo em tudo um poder

infernal de crateras sobre os muros, destroços
 nas janelas, marchas forçadas, farpas.

(Do livro “Atlas das Circussntâncias” . Ed. “Lua de Marfim”)

SONETO EXPOSTO

(ou uma certa ideia de memória do país)

O desengonçado trânsito cavernícola.
 A eterna crise com os dentes afiados.
 Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
 em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
 Os pardais semoventes sobre as praças.
 Alguns homens sombrios com a ânsia
 de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
 Uns quantos menos bons e outros muito maus.
 Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
 do que queira ou não queira a sua gente.
 E fica no soneto exposto Portugal.

“TEMPLO DE LUXOR”

Sei agora que o gato tem espírito,
 um dom poético, uma expressão
 reveladora, perante o fogo
 é um brilho, sobre a água
 uma forma de ser que subtilmente
 usa os sentidos alerta para falar
 o idioma principal, esse mistério
 de prevalecer na crença
 da invocação egípcia, uma presença
 divina entre o silêncio, a vertigem
 e a intensidade que emerge do espaço
 e avassala as colunas, a impressiva
 modulação dos arcos, os blocos
 inclinados para dentro
 para que a rapidez inclua nos testículos
 uma parte devoradora e outra felina,
 uma parte excessiva e outra ágil
 nas sete mortes
 que antecedem o admirável suicídio.

O PINTOR APLAUDIDO PELA INSPIRAÇÃO

sou a inspiração que o pintor procura 
 em lugares desabridos e raramente encontra. 
 ele procura-me onde ninguém suspeita,
 e eu existo e não existo, sem que possa
 revelar a minha presença imperscrutável. 
 às vezes nem uma sombra sou e o pintor 
 não pode mais fazer do que lançar o olhar 
 sobre os desígnios do mundo, 
 a decifrar a amplitude da luz 
 que reiteradamente lhe entrego
 quando o vento e a memória reproduzem 
 os decisivos sinais do desvendamento. 
 ele prepara a tela, estica-a na madeira, cria 
 as condições para que o abismo funcione 
 e, com o olhar, arrisca procurar-me no mistério 
 em que a limpidez esboça uma formulação de vozes 
 e presenças complexas. inspiro-o, inspiro-o, sempre,
 e o seu olhar é dramático e abrupto, a convergir
 num julgamento sumário, uma ameaça
 em que o sangue assume a dimensão de um incêndio,
 uma devastação. onde estou? onde está a linguagem
 que comigo vem? 
 onde estarei antes mesmo de, na sua nuca, 
 me tornar implícita no que quer que pense? 
 onde estarei na cabeça do pintor? 
 onde lhe inflijo o golpe para que tudo desvende
 para nada desvendar, levando-o 
 a uma folha de nogueira e uma marca na carne como adivinhação 
 e indício seguro de um prodigioso esplendor? 
 essa marca lacera-o,
 essa marca impele-o para um exercício 
 de hipóteses entre as escolhas inúmeras 
 e, num momento, o pintor decide-se por uma ideia simples, 
 cabendo-lhe aguardar que o rastilho magnífico se incendeie. 
 o meu rastilho, a inspiração, o confronto inevitável 
 com o clarão que lhe sitia as têmporas e ele sabe existir 
 quando opta entre este e aquele pincel de cerdas muitas espessas,
 ou liberta o óleo na superfície danada que o mata em cadeia
 e lhe coloca no coração insuperável
 a última questão que a pintura levanta. 
 o pintor é bravio, evoca a distância, transpõe a agitação,
 faz coincidir a incoincidência com o tumulto e o uso, 
 semicerrando as mãos, sentindo no pescoço
 as forças avassaladoras e vitais que o entregam
 à tarefa de dar corpo ao corpo da existência.
 sem que me veja, o pintor pressente-me, 
 convoca-me, aceita-me, 
 e as cores soltam-se-lhe das mãos, remontam à inocência.
 o pintor é um eremita a perscrutar
 a pedra, sondando-lhe o interior, a ver
 na escuridão uma seara povoada por infinitas
 legiões de camponeses que mergulham as mãos na luz 
 e, como anjos, 
 vislumbram no horizonte imperfeito um mar de trigo a arder,
 sempre a arder, na distância. 
 o pintor procura-me,
 procura-me em lugares desabridos, procura-me
 do início ao fim da vida, sempre a supor
 que só me encontrará pela possibilidade perpétua
 do desencontro, esta pedra, esta colheita, tudo quanto
 irradia pelo centro nervoso do pintor 
 sempre que a inquietação sobrevem e a cegonha 
 e a garça cortam o ar irrespirável,
 ou um fio de azeite flui na malga nacarada e azul,
 ou o leite fumegante se derramada,
 lentamente se derrama para que a visão prevaleça
 e o latido de um cão negro, mais do que ouvir-se ao longe, possa ver-se. 
 o pintor sabe, ou suspeita, insidiosamente,
 que a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e o meu assédio é total, brutal, eficaz. 
 entrego o poder de sonhar ao pintor e ele constrói
 destruindo, e destrói, construindo, 
 sobrepondo as camadas de tinta numa organização 
 envolvente e transgressora, prefigurando no caos 
 a maciez do espanto e o orvalho da força. 
 não havia no mundo esta irrisão, não estava esta mão
 a segurar o encarnado na tela omnisciente,
 não podia esta asa reflectir na treva a indefectível
 aventura, mas, de repente, a alguma coisa 
 qualquer coisa se acrescenta, 
 o lento corrupio emerge da criação, 
 a luz faz-se,
 apartam-se as águas, 
 há o homem, há a mulher.
 e eu a atormentá-lo sempre, a perseguir o artista,
 a zurzir-lhe nos ombros a vara da aflição e do fascínio, 
 a prender-lhe aos cabelos a escuridão das casas 
 e dos lugares em que concebe um traço e outro, 
 um espaço e outro espaço. 
 ali está a árvore dos seus mortos, 
 aqui está a mãe a espevitar o lume, 
 naquele berço os filhos que há-de ter
 e há-de ver crescer, 
 ali está, no exacto lugar em que a luz oscila,
 a figura subtílima que só em sonhos pode ver, 
 o quadro. 
 o quadro, ainda,
 com todas as suas ramificações obscuras 
 e os seus lados brilhantes. 
 inspiro-o, inspiro-o sempre. 
 e o pintor recomeça,
 a obra há-de fazer-se. a boca solta 
 vários sentidos nesse único sentido, a boca 
 regurgita o negro e a alegria.
 de novo o levo a preparar a tela, de novo prende e liga
 as coisas entre si, esta tesoura apara, 
 aquele grampo une, segura
 esta travessa os paus duma jangada que o pintor quer 
 encontrar para rumar ao sul. 
 é agora um jovem e vai-se enamorar.
 no ar incendiado a rapariga passa e o pintor 
 perscruta-a com o coração. 
 a uma janela, penteia-se, a mulher,
 e sente-se o seu perfume a invadir o ar.
 tens nome, rapariga? e o pincel responde com a densa 
 intrepidez de quem está no incêndio para morrer
 e pôr o corpo todo na pincelada breve. 
 eis os cabelos negros, essa camisa branca. 
 e um seio desenha-se. na farta cabeleira 
 alastra a luz perfeita, como se a luz soltasse,
 naquela zona escura, toda a paixão que assiste
 a quem desvenda a terra. 
 tens nome, rapariga? e o pintor procura-a, 
 procura-me o pintor,
 e não sabe se existo ou se não existo,
 e como assim o induzo à maldição de sempre,
 ou lhe segredo ao ouvido o que não quer ouvir. 
 encontram-se no real todos os vestígios 
 com que se armam as cenas, os sinais poderosos 
 que há nos gritos dos homens. 
 os símbolos que utiliza são do chão que lhe chegam,
 anota na vertigem a vertigem dos dias.
 os homens que conhece possuem um vigor
 que a si mesmo ultrapassa. 
 um deles é um amigo, morreu assassinado. 
 morreu por pouca coisa.
 quando matam alguém porque tem fome apenas 
 e é pão que reclama , morre-se sempre 
 por muito pouca coisa. de madrugada o mataram, 
 à queima-roupa o mataram, 
 com um tiro na nuca, porque pedia pão 
 e era pintor também. 
 o pintor interpreta esta morte como se lhe tivessem 
 disparado o revólver na boca, 
 o sangue cai em flocos como se estivesse a nevar
 e a neve em presença fosse uma pintura vermelha,
 extensa, obsessiva, aterradora.
 o pintor amplia a verosimilhança dos temas,
 procura e procura-me, procura
 e encontra-me,
 e eu inspiro-o a que aja.
 havia um animal numa certa casa antiga, 
 tantas vezes o viu que acabou por esquecê-lo. 
 até que, ali onde trabalha, entregue a pensamentos
 que não pode explicar, o viu surgir do nada, a voar
 sobre os quadros. então aconteceu
 que impôs à tela branca o animal acossado
 e o pintou assim, num duplo encantamento
 de o estar a ver ali e onde o vira quando, 
 não mais que um menino, representava a noite
 com pequenas estrelas traçadas a carvão.
 esse animal, sou eu, obviamente,
 que em várias noites venho por montanhas
 e vales a inspirar, 
 a conspirar,
 para despertar no pintor o que em si dorme há séculos
 e em pura fúria persiste sob o eterno interdito
 ou essa lâmpada, 
 a balbuciante lâmpada da tristeza. 
 a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e eu instigo o pintor a que me procure
 para que sobre as coisas outra coisa perdure.
 algumas destas figuras são o pintor a sonhar.
 algumas destas figuras são o pintor a sofrer.
 aqui, ali, onde quer que me encontre e te encontre
 o pintor não pode esmorecer. talvez
 seja possível entre a penumbra ver. a inspiração,
 a pintura, são uma revelação incerta,
 sem limites,
 onde os vendavais circulam.
 e não há refúgio para sobreviver.
 nesse clarão, às vezes, os sinais luminosos
 que estão em toda a parte,
 mas permanecem invisíveis porque não sabemos,
 ou porque não podemos, ainda, procurar,
 aparecem, 
 tal como acontece ao espírito do artista,
 visível a olho nu,
 nas obras que executa.

Fontes: