terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Artur Azevedo (O Liberato)

Comédia

Oferecida ao Excelentíssimo Senhor Doutor Joaquim Nabuco

Representada pela primeira vez no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1881.


 PERSONAGENS

 GONÇALO
 DOUTOR LOPES
 RAMIRO
 MOREIRA
 DONA PERPÉTUA
 ROSINHA

 A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, em 1880.

O teatro representa uma sala. Duas janelas ao fundo, duas portas de cada lado, quatro cadeiras e uma poltrona, consolos.

Cena I

Rosinha, debruçada a uma das janelas; Dona Perpétua, entrando da esquerda, primeiro plano; logo depois Gonçalo, da direita, segundo plano.

  DONA PERPÉTUA (Entrando de muito mau humor, com um vergalho na mão.) - Ora valha-me Deus! Não me faltava mais nada!...

 ROSINHA e GONÇALO (Descendo ao proscênio.) - O que foi?

 DONA PERPÉTUA - O diabo do negro - Deus me perdoe! - agora é que se lembrou de cair doente! Como até estas horas não saía do quarto, fui buscá-lo preparada com este vergalho, e encontrei-o ardendo em febre. Desavergonhado!

 GONÇALO (Timidamente.) - O Liberato?

 DONA PERPÉTUA - O Liberato, sim senhor Pois quem havia de ser? É surdo? Que inferno! Esta só a mim acontece!

 ROSINHA - É coisa de cuidado?

 DONA PERPÉTUA - Um negro nunca tem coisa de cuidado! E este diabo, se não fosse valer uns oitocentos mil réis...

 GONÇALO - Vou chamar o médico?

 DONA PERPÉTUA - Vá, homem de Deus, vá! Mexa-se, com todos os demônios! Parece estar a dormir!

 GONÇALO (Vai buscar o seu chapéu sobre o consolo que deve estar entre as duas janelas, e dirige-se para a esquerda, segundo plano. A Rosinha, que se dirige à porta da esquerda, primeiro plano.) - Onde vai?

 ROSINHA (Naturalmente.) - Vou ver o Liberato;

 DONA PERPÉTUA (Com autoridade.) Fique! (Rosinha volta e vai para a janela.) Por causa destas e de outras confianças, é que o demônio do negro...

 GONÇALO (Quase a sair, parando.) - Adoeceu?

 DONA PERPÉTUA - Cale-se. (Gonçalo desaparece) Agora vá lá ficar o dia inteiro, como é seu costume! Que marido! (Sai pela direita, segundo plano.)

 Cena II

Rosinha, só

[ROSINHA] (À janela. Ouvindo dar horas tem um gesto de impaciência e desce ao proscênio.) - Duas horas, e primo Ramiro nada de aparecer! A que será devida esta demora? É o primeiro domingo em que não aparece logo depois do meio dia! Estará doente? (Aplicando o ouvido.) Parece que sobem a escada... Deve ser ele... É ele, é, não me engano... (Aparece Moreira da esquerda, segundo plano.- Vendo-o, despeitada.) - Ora!

Cena III

Rosinha, Moreira

 MOREIRA (Entrando.) - Licença para um. (Dirigindo-se a Rosinha, com muita amabilidade.) Como tem passado, Dona Rosinha? Tem passado bem?

 ROSINHA (Secamente.) - Bem, obrigada.

 MOREIRA (Sentando-se na poltrona. Tem deixado o seu chapéu sobre o consolo que estará entre as duas portas da esquerda.) - Eu vou indo conforme Deus é servido. (Tomando uma pitada de tabaco, movimento este que repete quatro ou cinco vezes durante a peça.) Mamãe está boa?

 ROSINHA - Boa, obrigada. (Vai à janela, a ver se chega o primo.)

 MOREIRA - Não lhe pergunto por papai, porque o encontrei ali na esquina. Disse-me que ia chamar o médico para ver o negro, que caiu doente. Isto de negros, põem-se finos com duas lambadas. Lá na fazenda,
tenho o Doutor Bacalhau que faz milagres!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - O senhor viu por aí primo Ramiro?

 MOREIRA (Muito sério.) - Vi, minha senhora, e também vi seu tio!

 ROSINHA (Interessada.) - Onde?

 MOREIRA - Na tal conferência!

 ROSINHA - Que conferência?

 MOREIRA - Pois não sabe que se trama entre nós uma grande conspiração contra a propriedade particular?

 ROSINHA - Uma grande conspiração?

 MOREIRA - Que meia dúzia de rapazolas inconseqüentes, que nada tem que perder, que não possui um moleque ou uma negrinha para remédio, arvorou-se em defender a emancipação dos escravos, empunhando o facho da discórdia, e anda a proclamar urbi et orbi - pelos botequins, pelas gazetas e até pelos teatros - a dilapidação da fortuna particular?!

 ROSINHA - Deveras?

 MOREIRA - Em outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, isto seria uma quadrilha de ladrões; aqui chama-se a isto o Partido Abolicionista! (Erguendo-se percorrendo a cena, de muito mau humor.) Pois não! Uma gente sem eira nem beira, nem ramo de figueira: uns pobres diabos, carregados de esteiras velhas, que se ralam de inveja, quando vêm um cidadão prestante como eu, que possuo cinqüenta escravos, ganhos com o suor do meu rosto! (Surpreendendo um sorriso de Rosinha.) Sim, senhora: ganhei-os com o suor do meu rosto, a trabalhar, (Gesto como se tirasse suor da testa com o polegar.) e não a dizer baboseiras no teatro...

 ROSINHA - E foi no teatro que se encontrou com primo Ramiro?

 MOREIRA - No teatro, sim, senhora: agora há comédias também de dia. E seu primo dava palmas e gritava: — Bravo! - àquela caterva de desmiolados que desejam a ruína do país!

 ROSINHA - Oh!

 MOREIRA - Do país, sim, que depositou na grande lavoura as suas esperanças. — E seu tio, o Doutor Lopes, um homem formado, que deve ter juízo, nem sequer repreendia o filho!

 ROSINHA - Modere-se, Senhor Moreira!

 MOREIRA (Esbravejando.) - A ruína do país ainda não é nada!... Mas o aniquilamento da riqueza particular? E o meu dinheiro?

 ROSINHA - Vejo que o senhor é um patriota...

 MOREIRA - Patriotismo é isto (Bate no ventre.) e isto. (Sinal de dinheiro.) Já não bastava a famosa lei de 28 de setembro, que me obriga a educar moleques que não são meus filhos, e que, se são meus filhos, não são meus escravos! Canalha! (Muito exaltado, e ameaçando, com os punhos cerrados, a porta da rua.) Canalhas!

 ROSINHA - Modere-se.

 MOREIRA - Tem razão; o melhor é não dar-lhes importância. (Põe-se de novo a passear pela sala, proferindo frases entrecortadas. Acalma-se pouco a pouco. Rosinha, durante este passeio, vai de novo à janela ver se chega o primo, e volta. Pausa.)

 ROSINHA - Com que então, o senhor tem cinqüenta escravos, hein?

 MOREIRA (Muito amável, pegando-lhe na mão.) - Cinqüenta escravos que serão seus no dia em que consentir que eu peça a seus pais esta mãozinha.

 ROSINHA (Admirada.) - Que a peça? Mas... para quem?

 MOREIRA - Para mim mesmo; pois para quem há de ser?

 ROSINHA (Retirando-lhe a mão, sorrindo.) - Neste caso, desconfio, meu caro senhor, que os seus escravos nunca serão meus.

 MOREIRA (Desabridamente.) - Veremos.

 ROSINHA - Hein?

 MOREIRA - Pois não é tão bom possuir cinqüenta escravos? Cinqüenta e um, porque eu serei o mais humilde, o mais cativo de todos os seus cativos.

 ROSINHA - Se julga que os meus pais disponham de mim com a mesma facilidade com que o senhor pode dispor de seus escravos...

 MOREIRA - Mas, Dona Rosinha...

 ROSINHA - O senhor bem sabe que meu coração já está dado, e vamos e venhamos - muito bem
dado.

 MOREIRA - Ora o seu coração! Sei que a namora o tal primo Ramiro; mas entre o namoro de um rapaz estabanado, que vai dar palmas a discursos de demagogos de meia tigela, e o amor calmo e refletido de um homem de senso prático, deputado provincial, proprietário agrícola e senhor de cinqüenta escravos, não me parece que haja hesitação possível!

 ROSINHA (À parte.) - É divertido!

 MOREIRA - E depois, nunca ouviu falar das desastrosas conseqüências de matrimônios entre parentes consangüíneos? Quer ter filhos idiotas?

 ROSINHA (Baixando os olhos.) - Senhor Moreira..

 MOREIRA - E eu... como não sou seu primo...

 ROSINHA - Não é meu primo... (Rindo-se.) mas podia ser meu avô...

 MOREIRA - Não exagere: eu tenho apenas cinqüenta anos.

 ROSINHA - Justamente o número de escravos. Nada: prefiro ter filhos idiotas a ter um marido velho. Demais, Deus é bom e misericordioso: não há de permitir que eu seja mãe de idiotas.

 MOREIRA - Se tiver filhos perfeitos, onde irá buscar meios para educá-los? Seu primo é um simples praticante de secretaria...

 ROSINHA - Amanuense, aliás.

 MOREIRA - Ou isso. Eu tenho talvez o dobro da idade dele, não nego; mas gozo de uma posição social definida. Tenho influência política... Não sou amanuense. Ser lavrador é tudo...

 ROSINHA (Atalhando.) -... neste país essencialmente agrícola, já sei... Vou prevenir mamãe de sua visita... (Vai a sair pela direita, segundo plano, e volta-se.) Diga-me cá, Senhor Moreira: seus pais eram
primos? Ah! Ah! Ah!... (Sai)

Cena IV

Moreira, só

[MOREIRA] - Ri-te, ri-te, minha sirigaita. Eu cá farei a cama a teu primo, que é o único obstáculo que se levanta entre nós. Era o que me faltava ver! Ser vencido por amanuense, eu, que sou senhor de trinta escravos...sim, porque, cá entre nós, só tenho trinta escravos. — Ao pai já falei... Mas o Gonçalo nada resolve por si... Felizmente a velha não morre de amores pelo tal priminho... Hei de falar-lhe hoje mesmo... (Depois de uma pequena pausa.) Ah, Major Gaudêncio! Major Gaudêncio! você é que é a causa destas declarações inoportunas de um amor que não sinto. — O caso é este; o Major Gaudêncio, o padrinho desta pequena, é um velho octogenário, que quebrou relações com o compadre por via das impertinências da comadre, e retirou-se para Maricá. Ora, aqui há coisa de mês e meio, o Major Gaudêncio disse-me em confiança que fizera o seu
testamento e, não tendo parentes, instituíra a afilhada herdeira universal de todos os seus bens, que hão de orçar por trinta ou quarenta contos. — Estou, por conseguinte, empregando meios e modos para apanhar esta sorte grande... O diabo é que isto de primos...

Cena V

Moreira, Rosinha, depois Gonçalo

ROSINHA (Da direita, segundo plano.) - Mamãe pede-lhe que faça o favor de ir ter com ela; espera-o na sala de jantar.

 MOREIRA - Lá vou. (Vai saindo pela direita, segundo plano, e para.) Reflita bem: com seu primo, a miséria dos amanuenses; comigo, uma bela fazenda de café, cinqüenta escravos, meia dúzia de apólices de conto de réis e, quando quiser, um título de baronesa. (Sai.)

 ROSINHA (Só.) - Nem todo o ouro da terra, nem todos os títulos do mundo me fazem esquecer do meu Ramiro. (Aplicando o ouvido.) Sobem a escada... Oh! desta vez não pode deixar de ser ele! (Vendo entrar o pai da esquerda, segundo plano, despeitada.) Ora!

 GONÇALO - Já chamei o médico. Onde está mamãe?

 ROSINHA - Lá dentro, na sala de jantar. (Gonçalo vai saindo.) Está lá também o Senhor Moreira.

 GONÇALO (Parando.) - Ah, está lá o Moreira? (Coçando a cabeça.) Este Moreira... (Resolutamente, depois de uma pequena pausa.) Olha, minha filha, tu sabes como é tua mãe... Se ela quiser, não queiras!

 ROSINHA - O quê?

 GONÇALO - Não queiras senão teu primo. Bate-lhe o pé! Se eu estiver do lado da tua mãe, não faças caso: bate-me o pé também a mim...

 ROSINHA - Mas...

 GONÇALO - Aí vem teu primo. Amem-se à vontade. (Sai.)

 ROSINHA - Ele! Finalmente!... (Corre ao encontro de Ramiro, que entra como um raio, pela esquerda, segundo plano, e conserva o chapéu na cabeça.)

Cena VI

Rosinha, Ramiro

RAMIRO - Prima!

 ROSINHA - Por que não vieste há mais tempo?

 RAMIRO - Hoje quase morri!

 ROSINHA - Credo!

 RAMIRO - De entusiasmo!

 ROSINHA - Respiro.

 RAMIRO - Que talentos! que idéias! que eloqüência! que mocidade!

 ROSINHA - Nunca te vi assim!

 RAMIRO - Pudera! Se eu nasci hoje! Até agora, tu, só tu enchias o meu coração; doravante tens uma rival: a liberdade! É que nunca me lembrei de que um milhão e meio de homens amargam neste país a sorte mais bárbara, o mais horrível destino! (Passando.) Oh! viva a liberdade, formosa deusa que ilumina o mundo!

 ROSINHA - Que entusiasmo! Não me faças tu ter ciúme da liberdade!

 RAMIRO - Onde está teu pai!

 ROSINHA - Está lá dentro, mas dize-me...

 RAMIRO - Onde está tua mãe?

 ROSINHA - Lá dentro. Mas... o que tens tu?

 RAMIRO - E o Liberato?

 ROSINHA - Está doente.

 RAMIRO - Vai chamar teu pai, vai chamar tua mãe, vai chamar o Liberato!

 ROSINHA - Mas se te acabo de dizer que o Liberato está doente?

 RAMIRO (Com piedade.) - Doente! doente!... (Outro tom.) Quero aqui reunido um conselho de família!

 ROSINHA - Um conselho de família! Mas o que será, meu Deus!

 RAMIRO - Vai, Rosinha, vai... Trago no coração um peso enorme! Meu pai não pode tardar aí. A sua presença também é indispensável.

 ROSINHA - Mas como estás hoje! Tira o chapéu, dá cá a bengala. (Ramiro obedece. Triste.) Nem sequer me perguntaste como passei.

 RAMIRO (Tomando-lhe as mãos.) - Perdoa, Rosinha, perdoa. Amo-te muito, muito, muito! És um anjo, e eu só me considerarei digno de ti, depois deste conselho de família! - vai chamar teus pais.

 ROSINHA - Vou já. (Sai pela direita, segundo plano, depois de ter posto a um canto a bengala e o chapéu do primo. Ramiro vai ao encontro de Lopes, que entra da esquerda, segundo plano.)

Cena VII

Ramiro, Doutor Lopes

 RAMIRO - Ah, meu pai! Chega em boa ocasião! Mas por que não veio comigo?

 LOPES - Tinha que ir à casa consultar a lei e arranjar os quinhentos mil réis. (Batendo na cabeça.) Cá está a lei (Batendo na algibeira do peito.) e cá está o dinheiro.

 RAMIRO - Compreendo: o pecúlio do escravo.

 LOPES - Já lhes falaste?

 RAMIRO - Ainda não. Convoquei-os a um conselho de família, aqui na sala.

 LOPES - Entusiasmou-me o teu entusiasmo, e a tua humanitária lembrança me encheu de orgulho de ser teu pai. És o homem que eu sonhava, quando te acalentava ao colo. No período abolicionista que atravessamos, ser escravagista já não é mau nem absurdo: é ser ridículo.

 RAMIRO (Olhando para a porta da direita, segundo plano.) Eles aí vem... Eles e... e o Moreira, se não me engano.

 LOPES - O Moreira? Má notícia.

Cena VIII

Ramiro, Lopes, Rosinha, Dona Perpétua, Moreira, Gonçalo

DONA PERPÉTUA (Com impertinente volubilidade, enquanto Rosinha toma a benção a Lopes, e Gonçalo e Moreira, cumprimentam Lopes e Ramiro.) - Viva lá, senhor meu sobrinho! Então Vossa Excelência não se quis dar ao trabalho de entrar? Se nos queria falar, por que não foi lá ter, senhor fidalgo? Quem tem a dor de dentes é que vai ao barbeiro. Tão longe era de cá lá como de lá cá! (Vendo o Doutor Lopes) Olé! também aí está, senhor meu mano? Viva! Como vai de saúde o senhor advogado? Há de fazer o favor de me explicar que farsa é esta de conselho de família, que a Rosinha não soube dizer. Estamos todos reunidos. Diga lá o que pretende, senhor meu sobrinho das dúzias!

 LOPES (À parte.) - É uma máquina Marinoni a falar!

 MOREIRA - Perdão, mas ao que parece, sou aqui demais.

 LOPES (Com desembaraço.) - Na realidade, uma vez que se trata de um conselho de família...

 RAMIRO (Idem) - E não pertencendo o senhor Moreira à família...

 LOPES (Idem) - Que nos conste...

 DONA PERPÉTUA - Não pertence à família, mas... quem sabe? O mundo dá tantas voltas...

 MOREIRA - Isso é verdade, minha senhora: as voltas que o mundo dá! (Indo buscar o seu chapéu à esquerda.)

 DONA PERPÉTUA - Fique. (Toma-lhe o chapéu, e coloca-o onde estava.) O Senhor Moreira é pessoa de nossa amizade; pode assistir ao conselho; pode mesmo tomar parte dele.

 MOREIRA - Nesse caso, peço licença para representar aqui o Major Gaudêncio, que é um quase parente.

 DONA PERPÉTUA - Bem lembrado: representa o compadre Gaudêncio. (Moreira senta-se.)

 LOPES - A falar no Major Gaudêncio. Aqui tem, mano Gonçalo, uma carta de Maricá... Entregou-ma o carteiro, no corredor, quando eu subia.

 DONA PERPÉTUA (Tomando a carta que ia ser entregue ao marido.) - Dê cá. Nesta casa sou eu que abro as cartas. Lerei logo mais, não tenho aqui meus óculos. (Fica com a carta fechada na mão.)

 MOREIRA (Passando perto de Rosinha.) - Este mundo dá tantas voltas!

 RAMIRO (Que observou.) - O que lhe diria ele?

 LOPES - Bem, sentemo-nos. (Colocando a poltrona no centro da cena.) Este é o ligar de honra; deve ficar aqui o dono da casa, para presidir o conselho.

 DONA PERPÉTUA (Sentando-se na poltrona.) O dono da casa sou eu.

 LOPES - Perdão, mana, mas a casa é de Gonçalo.

 DONA PERPÉTUA (Repoltreada.) - Por isso mesmo.

 LOPES - A... mana manda mais que o galo.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se de um salto.) - Observo-lhe, senhor meu mano, que eu não sou galinha.

 LOPES - Bem! Não val’zangar-se. (Colocando duas cadeiras de cada lado da poltrona.) Senta-te aqui Ramiro. (Fá-lo sentar-se na primeira cadeira a começar da esquerda.) Rosinha, tu aqui. (Na segunda.) O Senhor Moreira ali. (Na quarta.) e eu aqui. (Na terceira. - Estão todos sentados na seguinte ordem, a começar da esquerda: Ramiro, Rosinha, Dona Perpétua, Lopes, Moreira.)

 GONÇALO (De pé.) - E eu?

 DONA PERPÉTUA - Fica onde quiseres. Enquanto deliberamos, vai lá dentro, pega numa agulha e cose. (Gonçalo procura com a vista uma cadeira, e, não a encontrando, vai debruçar-se na sacada ao fundo, ficando de frente para a cena.)

 DONA PERPÉTUA - Está aberto o conselho de família.

 RAMIRO (Erguendo-se.) - Tomo a palavra. Reuni-os para comunicar-lhes uma idéia grandiosa que há duas horas me anda dançando no cérebro.

 LOPES (A uma cara de Dona Perpétua.) - Não se assuste com essa coreografia, mana.

 RAMIRO - Nós possuímos um escravo.

 DONA PERPÉTUA - Um só, infelizmente. Meu pai, teu tio, morreu sem testamento.

 LOPES - Ab intestato.

 DONA PERPÉTUA - Deixou por única herança um escravo. (Lopes ergue-se. Ramiro senta-se.)

 LOPES - Não houve composição entre os herdeiros: o escravo não foi à praça... Como o negro, apesar de ser coisa, não era coisa que se dividisse, sim, porque afinal de contas, eu não podia ficar com a cabeça, ali a mana com uma perna, etc., resolvemos fazer o que em direito se chama uma partilha amigável. O escravo veio prestar serviços à mana, sem deixar, ipso facto de nos pertencer a todos. (Senta-se. Ramiro levanta-se.)

 RAMIRO - Muito bem. Este pobre Liberato, que assim se chama o escravo...

 LOPES - Paradoxo batismal;

 RAMIRO - Esse pobre Liberato há vinte anos que nos presta muito bons serviços.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se.) Muito bons serviços? Ora, sou sua criada, senhor meu sobrinho! Muito bons serviços! Um desavergonhado! Um preguiçoso! Um beberrão!

 RAMIRO (Com violência.) - Desavergonhado! E quer que tenha vergonha um miserável escravo!

 LOPES (Idem.) - Preguiçoso! E quer que seja ativo quem nunca viu a recompensa do seu trabalho!

 RAMIRO (Idem.) - Beberrão! Nunca se constou que o Liberato bebesse! (Todos se erguem e falam ao mesmo tempo. Gonçalo desce ao proscênio. Confusão geral.)

 RAMIRO - É uma injustiça! Sugar-lhe o sangue durante vinte anos, e, ao cabo, tratá-lo desta sorte!
Isto brada aos céus!

 LOPES - Com isto já contava eu! E então quando a mana souber da idéia do Ramiro! O melhor é tratar já do depósito!

 DONA PERPÉTUA - É um preguiçoso, um beberrão, repito! Não presta para nada! Não me tem dado senão desgostos o maldito do negro!

 ROSINHA - Mas, meu Deus! o que é isto? Fale cada um por sua vez! Assim não se podem entender! Silêncio!

 MOREIRA - E então! Estamos na Assembléia Provincial? Entendam-se!

 GONÇALO - Isto parece mais a Praia do Peixe! Silêncio! Olhem os vizinhos!

 RAMIRO (Conseguindo falar mais alto que os outros, que se calam.) - Há dez anos, em 1870, penetrou um ladrão nesta casa. A senhora, minha tia, viu-o e deu um grito! O ladrão avançou, e matá-la-ia com um punhal, se o Liberato, interpondo-se, não o tivesse subjugado.

 LOPES - A mana deve a vida a esse desavergonhado, a esse beberrão!

 DONA PERPÉTUA - Grande coisa! Pois se o diabo tinha visto o ladrão, e se me ouvira gritar, não fez mais que o seu dever, que era salvar sua senhora!

 RAMIRO - Em que código está prescrito este dever?

 DONA PERPÉTUA - E sabe Deus se o negro não se achava ali com as mesmas intenções do ladrão...

 RAMIRO - Oh!...

 DONA PERPÉTUA - Os negros são capazes de tudo!

 LOPES - Você, mana, é um Clube da Lavoura... de saias...

 DONA PERPÉTUA - E você é um malcriado!

 RAMIRO - Bem, já vejo que perco o meu latim! A minha proposta está prejudicada.

 DONA PERPÉTUA - Mas o que nos queria propor este espirra-canivetes?

 RAMIRO - O quê? Ouça, mas não desmaie!

 LOPES - Tens razão. São necessárias certas precauções. Espera. (Batendo nas mãos.) Um... dois... e..

 RAMIRO - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA (Saltando.) - O quê?...

 RAMIRO e LOPES - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA - Isso nem resposta tem. Sabem que mais? Não sejam tolos, seus pedaços d’asnos! (Falam todos a um tempo. Confusão geral.)

 DONA PERPÉTUA - Era o que me faltava! Alforriar o Liberato! mas por que cargas d’água, seus idiotas?

 ROSINHA - Mas que palavras são essas, mamãe? Veja que está aqui o Senhor Moreira.

 RAMIRO e LOPES - O que queremos é justo, justíssimo! Um pobre diabo que trabalha de graça há vinte anos, e não nos custou um real!

 MOREIRA (Caindo na poltrona, às gargalhadas.) - Ah! Ah! Ah!... Só esta agora me faria rir! Ora estes abolicionistas que querem abolir o que não é seu! Ah! Ah! Ah!

 GONÇALO (À parte.) - Eles não arranjam nada como Dona Perpétua. Oh! com quem se vieram meter! Logo com ela! Boas!...

 LOPES (Dominando com sua voz as demais.) - Bem, agora falo eu! A mana quer receber em dinheiro a parte que lhe toca e a sua mulher... Oh! quero dizer: a seu marido? (Moreira ergue-se.)

 DONA PERPÉTUA (Encarando-o com desdém e encolhendo os ombros.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos, para ler esta carta. (Sai pela direita, segundo plano, abrindo a carta. Rosinha vai para a janela.)

 LOPES (A Gonçalo.) - O que diz você, mano Gonçalo?

 GONÇALO (Coçando a cabeça.) - Eu?... Eu?.... Olhe, eu vou ver o Liberato... O médico ainda não veio e... (Sai pela esquerda, primeiro plano.)

 LOPES (A Ramiro, enquanto Moreira vai conversar com Rosinha, à janela.) - Esta casa é hoje a imagem perfeita do país em que vivemos. Cada instituição tem hoje aqui o seu emblema. Nós somos os filantropos: a utopia, o direito; aquele fazendeiro pedante, a lavoura, uma força; a mana e a Rosinha, a representação nacional: imposição, sofisma, sujeição; Gonçalo, o povo, indiferença e pusilanimidade.

 RAMIRO - E lá está o pobre Liberato, para simbolizar a escravatura.

 LOPES (Indo gritar à porta, por onde saiu Dona Perpétua.) - Ah! é assim que nos trata a mana? Pois é uma questão de capricho! Daqui a uma hora o Liberato está livre! (Descendo ao proscênio.) Toma!

 DONA PERPÉTUA (Voltando, com a carta aberta na mão.) - Hein? Como é lá isso? (A Moreira, que desce ao proscênio.) Nem me deram tempo de procurar os óculos!

 LOPES - É isso mesmo! Lei número 2040 de 28 de setembro de 1871. Artigo quarto, parágrafo primeiro. pecúlio do escravo. Quinhentos mil réis! Não lhe digo mais nada! (A Ramiro.) Vamos, meu filho, vamos buscar a guia ao juízo de órfãos, para fazer o depósito no Tesouro.

 RAMIRO - Vamos! (Tomam os chapéus, e saem, arrebatadamente, pela esquerda, segundo plano.)

 Cena IX

 Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, à janela

 DONA PERPÉTUA (Atônita, de braços cruzados, depois de uma pausa.) - O que me diz a isto, Senhor Moreira?

 MOREIRA (Muito calmo.) - Digo, Senhora Dona Perpétua, que nunca vi coisa que me surpreendesse tanto! É o resultado das tais conferências abolicionistas! Só servem para semear a discórdia no seio das famílias! Mas que o Senhor Ramiro tenhas estas idéias, vá; até certo ponto merece desculpa... Mas seu irmão, minha senhora, o Senhor Doutor Lopes, um homem que me parecia tão bom, propor a alforria de um negro! Estou perplexo. Ter um negro, um só, e pretender libertá-lo! Eu cá, tenho sessenta e não liberto nem meio!

(Aproximando-se muito dela e baixinho.) E é ao Senhor Ramiro que vão dar a mão daquele anjo? (Aponta para Rosinha, que se tem conservado na janela.) Ao Senhor Ramiro?! Mas pelo amor de Deus, Senhora Dona Perpétua! o procedimento de seu sobrinho autoriza-me a reiterar o pedido que formalmente lhe fiz ainda há pouco, lá na sala de jantar.

 DONA PERPÉTUA (Muito alto.) - É sua a mão de minha filha, Senhor Moreira. (Rosinha volta-se subitamente e desce ao proscênio.) Não há mais que discutir. (Com autoridade, a Rosinha.) Está ouvindo, menina? O Senhor Moreira vai ser teu marido.

 ROSINHA (Naturalmente) - Isso não é comigo, mamãe. (Gesto de satisfação de Moreira.)

 DONA PERPÉTUA - Bem sei, é comigo.

 ROSINHA - Também não é com vossemecê.

 DONA PERPÉTUA - Queres dizer que é com teu pai. Neste casa só se faz o que eu quero.

 ROSINHA - Não duvido, mas eu não pretendo casar nesta casa e sim na igreja.

 DONA PERPÉTUA - Menina!

 MOREIRA (A Rosinha.) - Mas, minha senhora, se isto não é com a senhora, nem com seu pai, nem com sua mãe, com quem é então?

 ROSINHA - É com primo Ramiro.

 DONA PERPÉTUA e MOREIRA - Hein?

 ROSINHA - Certamente. Eu dei o meu coração a primo Ramiro. Para dá-lo a outro homem, é preciso que ele mo restitua.

 DONA PERPÉTUA - Pois tem o descoco de falar desse modo em presença de tua mãe?

 ROSINHA - Quero a minha liberdade. Parece-me que não sou o Liberato! (Vai de mau modo para a janela.)

 DONA PERPÉTUA - Não é o Liberato! Senhor Moreira, segure-me, senão, deito-me a perder.

 MOREIRA (Segurando-a.) - Minha rica senhora, o mundo está perdido. A liberdade anda agora como Salsaparrilha de Bristol.

 DONA PERPÉTUA - Uma menina educada no colégio da Baronesa de Geslin!

 MOREIRA (Segurando-a sempre.) - Já ouvi dizer que é o melhor colégio da corte!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - Primo Ramiro aí vem, Senhor Moreira. Peça-lhe que ceda o meu coração. Ofereça luvas. (Vai encostar-se a um consolo da direita.)

Cena X

Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, Doutor Lopes, Ramiro

LOPES (Entrando com Ramiro pela esquerda.) - Sai, num estado de tal excitação que me não lembrei de que hoje é domingo e o juízo de órfãos não funciona.

 MOREIRA (Sorrindo.) - Mesmos nos dias úteis, a estas horas já deve estar encerrada a audiência.

 RAMIRO - Vimos ainda uma vez propor-lhes uma conciliação. Recebam os quinhentos mil réis.

 DONA PERPÉTUA (Vai como responder, mas arrepende-se.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos para ler esta carta. (Saindo.)

 LOPES - A mesma impertinência de ainda agora.

 MOREIRA - Não é preciso incomodar-se, Senhora Dona Perpétua: se me der licença, eu leio a carta.

 DONA PERPÉTUA - Por favor. (Passa-lhe a carta e Ramiro vai ter com Rosinha.)

 LOPES (Passeando pela sala, à parte.) - Nunca vi homem mais metediço.

 MOREIRA (Depois de ler a assinatura.) - A carta vem de Maricá, mas não é do Major Gaudêncio.

 DONA PERPÉTUA - De quem é então?

 MOREIRA - É do vigário da freguesia. (À parte.) O que será?

 DONA PERPÉTUA - Ah! o vigário é conhecido velho de meu marido. Leia.

 MOREIRA (Lendo.)- “Amigo e Senhor Gonçalo. Vou ter o pesar e ao mesmo tempo o prazer de dar a Vossa Senhoria duas notícias, uma boa e outra má.” (Aproximam-se todos com curiosidade. Grupo.) “Deus foi servido chamar à Sua presença o Senhor Major Gaudêncio”. E esta!

 DONA PERPÉTUA - Pois morreu o compadre?!

 TODOS (Consternados.) - Ah!

 MOREIRA (Continuando a leitura.) - “Abri hoje mesmo o seu testamento. Deixou tudo quanto possui à sua afilhada Dona Rosa, filha de Vossa Senhoria. Os escravos, porém, ficaram livres.”

 ROSINHA - E se o não ficassem, eu libertá-los-ia.

 RAMIRO - Muito bem, Rosinha!

 DONA PERPÉTUA - Era o que havíamos de ver! - Continue, Senhor Moreira.

 MOREIRA (Que tem lido para si o resto da carta, disfarça, fecha-a e entrega-a a Dona Perpétua.) - É só.

 LOPES (Que se acha ao lado do Moreira, e tem também lido.) - Perdão, mas o senhor não leu tudo.

(Toma a carta e abre-a.)

 MOREIRA - Ah! É verdade! Esquecia-me que tenho de jantar com um amigo político à Rua de São Clemente. Minhas senhoras e senhores, passem bem! (Toma o chapéu e sai.)

 ROSINHA - Na verdade, o Senhor Moreira era aqui demais: morreu meu padrinho, já não tinha a quem representar.

 LOPES (Que tem aberto a carta, lendo.) - “O testador impôs apenas uma condição: Dona Rosa só poderá aceitar a herança, casando com seu primo, o Senhor Ramiro Lopes.!

 RAMIRO e ROSINHA - Ah! (Corre um para o outro.)

 RAMIRO - Minha tia, agora não peço: exijo a liberdade do Liberato. A felicidade de sua filha está nas minhas mãos,

 Cena XI

 Dona Perpétua, Rosinha, Ramiro, Doutor Lopes e Gonçalo

GONÇALO (Entrando, fora de si.) - Sabem?... Sabem?... O Liberato...

 TODOS - O que tem?!

 GONÇALO - Morreu!

 TODOS - Morreu?!

 GONÇALO - De repente. Quando entrei no quarto, exalava o último suspiro.

 DONA PERPÉTUA (Desabridamente, depois da muda estupefação geral.) - E eu, que recusei os quinhentos mil réis!...

 LOPES - Com esse dinheiro far-lhe-emos um enterro decente. (A Ramiro.) Disseste que o Liberato simbolizava a escravatura; vês? Decididamente a morte é o único meio eficaz de emancipação.

[Cai o pano]

FIM

Adonias Filho (O Largo da Palma) 5. O Enforcado

 Embasamento histórico: Revolução dos Alfaiates (1798).

Foco narrativo - Narrativa em 3ª pessoa, mas enquadrada à ótica de um personagem: o ceguinho da Palma.

 Presente narrativo: “dia dos enforcados” – “quatro homens, um quase menino, todos mulatos”: A “execução, um espetáculo exemplar”.

Personagens - Ceguinho da Palma e Valentim.

Crítica sócio-histórica - “o governo e os graúdos”, a opressão, o terror, o medo, a insegurança.

Ambiente - Largo da Palma, Piedade.

Linguagem - Uso dos mesmos recursos expressivos que se fazem presentes nas outras novelas: metáforas, comparações, frases nominais, enumerações etc.

 Inversão (explorando o valor expressivo do adjetivo): Inúmeros os que passavam por ele, todos apressados, alguns como que corriam.” “E porque grande era o silêncio e ouviu o barulho dos grilhões de ferro, soube que se arrastavam os que caminhavam para a morte.”

Linguagem coloquial - Adequada ao personagem central (o ceguinho), encontramos expressões e palavras de linguagem coloquial. Palavras como: “birosca”, “porrete”, “estrebuchavam”. Expressões como “quero um gole da melhor” “engolir a aguardente” “boa pinga!” “é de arrebentar o coração” “exemplo de merda”; e o uso do pronome sujeito como complemento verbal: “Que a Senhora da Palma ajude eles”.

RESUMO

O ceguinho da Palma, como todos os chamavam, era um home que de tão magro e pequeno era quase um anão. Morava em umas estrebarias abandonadas junto com índios, negros libertos, ladrões e mendigos. Nas noites quentes dormia pela rua mesmo, mas quando chovia abrigava-se dentro da igreja. Estava sempre ali no Largo da Palma a pedir esmolas.

Diziam que ele havia ficado cego por ter falado mal da Santa da Palma e agora estava ali cumprindo castigo há anos, certo de que um dia a Santa o perdoaria e ele voltaria a enxergar. Talvez isso fosse mesmo verdade, já que ele se salvava de todas as pestes, tais como tifo e a varíola, que assombravam a Bahia às vezes, como se a Santa o quisesse vivo para pagar a penitência.

Em um certo dia, quando João-o-Manco, vigia da região, veio acordá-lo logo cedo, disse que aquele seria o dia em que iriam enforcar uns condenados no Campo da Piedade. A missa daquele dia tinha apenas umas dez pessoas, e ninguém negou esmola ao ceguinho como se todos temessem alguma coisa. O ceguinho da Palma sentia uma dor no coração, não de sua tristeza, mas de uma tristeza que nascia da cidade a esperar as mortes.

O ceguinho da Palma juntou-se ao povo que caminhava em direção ao Campo da Piedade. Parecia que naquele dia a Bahia havia parado para acompanhar os enforcamentos. Perto do Convento das Freiras, ele parou na birosca do Valentim e pediu uma bebida. Valentim era um filho de escrava liberta e pai desconhecido, que havia conseguido juntar dinheiro sabe-se lá como e comprado casa, terreno e montado essa bodega. Apesar das muitas especulações que haviam em torno dele, o certo é que Valentim tinha amigos na cidade de Salvador inteira.

Então os dois seguiram juntos rumo ao Campo da Piedade para acompanhar os enforcamentos. Para o cego a cidade parecia triste, mas para Valentim a Bahia nunca fora alegre, pois uma cidade que tem escravos não pode ser alegre. Aqueles enforcamentos serviriam para que o povo aprendesse a lição, pois D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, poderia perdoar ladrões e assassinos, mas não os inimigos do Rei.

Já se encontravam no Campo da Piedade, frente à grande forca de madeira da lei, grande o suficiente para que nem mesmo um anão deixasse de ver o espetáculo. E assim, os condenados foram chegando e sendo enforcados rapidamente um a um: Manuel foi o primeiro, depois Lucas, Luís e, por fim, João.

O ceguinho da Palma não sabe que fim levou Valentim perdido no meio da multidão. Foi retornando devagar, passo a passo em direção ao Largo da Palma, que reconheceu com os pés descalços ao pisar nas pedras ásperas e a grama macia. Sentiu o cheiro do incenso e imaginou que naquele momento já estariam a cortar as cabeças e mãos dos enforcados para deixar em exposição no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio. Então o ceguinho ajoelhou-se com as mãos na porta da igreja e essa foi a única vez em toda a vida que agradeceu à Santa da Palma por ter ficado cego.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_largo_da_palma
http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/largo-palma-resumo-obra-adonias-filho-701985.shtml

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Amélia Luz (Crônica: Catatau)


Amélia é de Pirapetinga/MG
______________________


(Para Paulo Leminski)

A noite era pequena para os seus sonhos eletrizantes. Caía a madrugada e ele perdido entre letras e metáforas trabalhava no seu ofício com servidão. Às vezes ele parecia calmo, outras ele parecia agitado e inquieto no seu processo de criação. Gênio, não se cansava nunca! Dedilhava com entusiasmo e arte o velho violão, companheiro fiel da sua solidão de poeta.

A palavra era a sua lâmina sangrando veias de onde escorriam mananciais de versos conferidos de polêmicas vitórias.

Sua existência não foi vã, embora incompreensível, vazou a lápide no canto imortal, cristal transparente, além da tumba...

- “Catatau”, saia debaixo do braço do autor, chegue mais perto, chegue... Permita-nos entendê-lo na sua complexidade léxica! 

Peleja criativo o poeta no seu verso universal buliçoso e alvissareiro na “Metamorfose” da vida que o fez assim, célebre escritor!

Sinaleiro de uma geração sem rumo seguiu trafegando nas veredas da contramão, ditador de um tempo, persistente que era nas suas certezas...

Vestimos hoje o colorido alegre das suas idéias (in)questionáveis.

Somos uns bandos de inocentes galopando irreverentes em suas trilhas, multiplicadores das suas verdades, sucedâneos vigilantes da sua memória. 

Sem gravatas e honrosas pompas lambuzamos nossas mãos na matéria prima que para nós deixou argila fresca com a qual construímos silêncios, vozes e manifestos transbordados em copos de essências puras.

Embebedamos a nossa consciência numa eterna alvorada, “Sintonia para pressa e presságio”.

Dos seus lábios não há mudez de morte. Há um grito poderoso a ecoar levando-nos a velar sempre pela preciosa obra literária que herdamos das suas mãos de mestre.

“Paulo, tu és pedra” Paulo,
filosofal, literária ou poética,
“sobre ti edificaremos”
nosso castelo de sabedoria... 

Fonte:
A Autora

Trova Ecológica 87 - Wagner Marques Lopes (Pedro Leopoldo/MG)


Artur da Távola (Eu Canto a Mulher Sofrida )


Sofrida é mulher por quem a vida passou machucando uma sensibilidade menina, feita de dádiva, confiança no próximo, esperança de melhorar o mundo.

Sofrida é a mulher que não viveu em vão, na delicia burguesa de ser objeto de sexo, admiração fácil ou mimo, preferindo o caminho penoso da independência, a procura honrada da própria dimensão pessoal, existencial, política.

Sofrida não é a pessoa derrotada ou apenas sofrente, fonte de dores e masoquismo sem fim: sofrida é a pessoa que tem energia e nervos para enfrentar na carne todas as disposições e contradições necessárias a viver e a conquistar o direito à vida, à liberdade, à solidão, ao afeto dos seus.

Sofrida é a pessoa que olha ao seu lado a miséria social e humana e não fica impassível ou indiferente, apenas porque se supõe livre de idêntico perigo.

Sofrida é a mulher de uma geração que assistiu à castração de seu sonho político, embora o veja crescendo, melhorando e se transformando pelo mundo a fora.

Sofrida é a mulher que viveu varias décadas em cada uma das três ultimas. É a pessoa que soube incorporar ao seu viver todas as dores necessárias à libertação: dos preconceitos próprios e alheios; dos atrasos ancestrais; da dor de viver adiante no tempo; das agressões retrógradas; das maldades profissionais; do medo da sua mensagem renovadora.

Sofrida é a mulher que teve restrições na sua carreira, ameaças, invasões do seu espaço vital por causa das suas idéias; por causa da sua capacidade de viver com intensidade tudo aquilo em que estava crendo do fundo de sua sincera convicção.

Sofrida é a mulher que assistiu à queda de muitos, ao cansaço de outros, à morte de terceiros, à dor, à tortura, ao vicio, à desistência à loucura, à resistência,à tenacidade, ou a convicção de todos os que se insurgiram contra qualquer forma de agressão humana, de opressão ou de injustiça.

Sofrida é a mulher que aí está, cada vez melhor porque de costas erguidas a despeito de tudo o que viu. Sofreu e passou.

Sofrida é a mulher que não desistiu de Ser; que não se alienou; que não fugiu da dor; que se embelezou com as rugas conseguidas; que se purificou com as impurezas que em si descobriu; que mergulhou com igual coragem na própria miséria e na própria grandeza, saindo melhor de ambas. 

Fonte:
Artur da Távola – Cada um no meu lugar, 1980

Monteiro Lobato (Um Homem de Consciência)


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.

Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons 

- Agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...

João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. 

Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. 

Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.

- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

- Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

- Mas como? Agora que você está delegado?

- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.

E sumiu.

Olavo Bilac (A Montanha)

Soneto formatado em imagem obtida no facebook em Sonetos Célebres.

Gil Vicente (Auto da Feira)


A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente Príncipe El Rei Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

Figuras:

Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Diniz Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Doroteia, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

MERCÚRIO

Pera que me conheçais, e entendais meus partidos, todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céu, e depois vos direi qual, e quem me cá descendeu e a quê, e todo o al que me a mi aconteceu.

E porque a astronomia anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céus, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer aos anjos e a Deus,e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé; e eles todos em cabo terão um cão polo rabo, e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta d' um vintém que lh' entregou.

Porém, quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d' estrelas se poderá adivinhar, pois no céu nasci com elas. E se Francisco de Melo, que sabe ciência avondo, diz que o céu é redondo, e o sol sobre amarelo; diz verdade, não lh' o escondo.

Que se o céu fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d' azul fora a sua cor e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nascestes, se nascestes e crescestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos resplandecentes? Que fazem que todalas gentes ou são homens ou mulheres, ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum influi vida contina, a morte de cada um é aquela de que se fina, e não d' outro mal nenhum. Outrossim o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto.

E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida que quando a vista é perdida, os olhos são por demais.

E que mais quereis saber desses temporais e disso, senão que, se quer chover, está o céu pera isso, e a terra pera a receber? a lüa tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céu respeito, mingua-lhes as santidades, e cresce-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joanes Monteregio:

Mars, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas, em que os reis são ocupados, que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina, e retrogada em seu cargo, não se paga o desembargo no dia que s' ele assina mas antes por tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d' haver agora que quando os põe no madeiro, chama o povo ao carniceiro Senhor, c' os barretes fora. Depois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o signo do Bode, Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode.

E se este não hás tomado, nem Touro, Carneiro assi, vai-te ao sino do Pescado, chamado Piscis em latim, e serás remedeado: e se Piscis não tem ensejo, porque pode não no haver, vai-te ao signo do Cranguejo, Signum Cancer, Ribatejo, que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

Júpiter, rei das estrelas, deus das pedras preciosas, mui mais precioso qu' elas pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado , influência e senhoria, que faz percurso ordenado que tanto vale um cruzado de noite como de dia.

E faz que üa nau veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

Ao Zodíaco acharão doze moradas palhaças, onde os sinos estão no Inverno e no Verão, dando a Deus infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis por conjeituras que os corpos celestiais não são menos nem são mais que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam, está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa Maior, Ursa Menor e o Dragão, e Lepus, que têm paixão, porque um corregedor manda enforcar um ladrão.

Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões sejam filhos de mulheres, e os mesmos pais varões. E aqui quero acabar. E pois vos disse atéqui o que se pode alcançar, quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar.

Eu são Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor, e deus das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos e contratos, valias, preços, avenças, carestias e baratos, ministro suas pertenças, até às compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, ordeno üa feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem; e assi o hei por bem. E não falte comprador. Porque o tempo tudo tem.

Entra o Tempo, e arma üa tenda com muitas cousas e diz:

TEMPO

Em nome daquele que rege nas praças d'Anvers e Medina as feiras que têm, começa-se a feira chamada das Graças, à honra da Virgem parida em Belém. Quem quiser feirar, venha trocar, qu' eu não hei-de vender; todas virtudes qu' houverem mister nesta minha tenda as podem achar, a troco de cousas que hão-de trazer.

Todos remédios, especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente; conselhos maduros de sãs qualidades aqui se acharão. A mercadorias d' amor a rezão justiça e verdade, a paz desejada, porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da opinião.

Aqui achareis o temor de Deus, que é já perdido em todos Estados; aqui achareis as chaves dos Céus, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis soma de contas, todas de contar quão poucos e poucos haveis de lograr as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu' estão por contar. E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo, se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ó Messias memoria o teu Anjo que ande comigo, Senhor, porque temo ser esta feira de maus compradores, porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo, e os mesmos Diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:

SERAFIM 
À feira, a feira igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos; comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as samarras dos outros primeiros, os antecessores. Feirai o carão que trazeis dourado; ó presidentes do crucificado, lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado.

Ó Príncipes altos, império facundo, guardai-vos da ira do Senhor dos Céus; comprai grande soma do temor de Deus na feira da Virgem, Senhora do Mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz as cousas mais belas.

Entra um Diabo com üa tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

DIABO Eu bem me posso gavar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender, e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo.

Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m' estorva de ser eu o maior dela. TEMPO És tu também mercador, que a tal feira t' ofereces? DIABO Eu não sei se me conheces. TEMPO Falando com salvanor, tu Diabo me pareces.

DIABO Falando com salvos rabos inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são Diabos, (que eu não tenho nem ceitil) e bem honrados te digo, e homens de muita renda, que têm dívida comigo. Pois não me tolhas a venda, que não hei nada contigo.

Tempo ao Serafim

TEMPO Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar a feira.

DIABO Ladrão? Pois haj' eu perdão se vos meter em canseira. Olhai cá, Anjo de bem, eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, como quem vida não tem.

Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados, isto não releva nada; e em todolos mercados entra a minha quintalada. SERAFIM Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis. DIABO I há de homens ruins mais mil vezes que não bôs, como vós mui bem sentis.

E estes hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer o que deviam lembrar. Que o sages mercador há-de levar ao mercado o que lhe compram melhor; porque a ruim comprador levar-lhe ruim borcado.

E mais as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, porque não trazem proveito. Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe de ser primeiro o mais ruim que puder.

E pois são desta maneira os contratos dos mortais, não me lanceis vós da feira onde eu hei-de vender mais que todos à derradeira. SERAFIM Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras. DIABO Eu vendo perfumaduras, que, pondo-as no embigo, se salvam as criaturas.

Às vezes vendo virotes, e trago d' Andaluzia naipes com que os sacerdotes arreneguem cada dia, e joguem até os pelotes. SERAFIM Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céus: vai lá vender ao abisso, logo, da parte de Deus! DIABO Senhor, apelo eu disso.

S' eu fosse tão mau rapaz que fizesse força a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade; senhor, que lh' hei-de fazer?

E se o que quer bispar há mister hipocrisia e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia, porque lh' a hei-de negar? E se üa doce freira vem à feira por comprar um inguento, com que voe do convento, senhor, inda que eu não queira, lh' hei-de dar aviamento.

MERCÚRIO Alto, Tempo, aparelhar, porque Roma vem à feira. DIABO Quero-me eu concertar, porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar.

Entra Roma, cantando.

ROMA «Sobre mi armavam guerra; «ver quero eu quem a mi leva.

«Três amigos que eu havia, «sobre mi armam porfia; «ver quero eu quem a mi leva».

Fala:

Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me desbaratam, o meu socorro onde está Se os Cristãos mesmos me matam, a vida quem m' a dará, que todos me desacatam?

Pois s' eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, cant' a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar. DIABO Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado. ROMA Não pareces tu azado pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

Não julgueis vós pola cor, porque em al vai o engano; cá dizem que sob mau pano está o bom bebedor; nem vós digais mal do ano.

Eu venho à feira direita comprar paz, verdade e fé. DIABO A verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é? Não trazeis bons fundamentos pera o que haveis mister; e a segundo são os tempos, assim hão-de ser os tentos, pera saberdes viver.

E pois agora à verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade, peitai a quem vo-la ponha, a ruindade digo eu: e aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vem.

Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, mentiras, que a todas as horas vos nasçam delas favores.

E como formos avindos nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos, que aqui trago comigo. ROMA Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outras sujas mercancias, que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor de Deus, te comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu desamor; e a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades; e quantas virtudes tinha te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá. DIABO As cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:

ROMA Tão honrados mercadores não podem leixar de ter cousas de grandes primores; e quant' eu houver mister deveis vós de ter, senhores. SERAFIM Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais, e pois vós sois a primeira, queremos ver que feirais segundo vossa maneira.

Cá, se vós a paz quereis senhora, sereis servida, e logo a levareis a troco de santa vida; mas não sei se a trazeis. Porque, senhora eu me fundo que quem tem guerra com Deus, não pode ter paz c ' o mundo ; porque tudo vem dos céus, daquele poder profundo.

ROMA A troco das estações não fareis algum partido, e a troco dos perdões, que é tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh, vendei-me a paz dos céus, pois tenho o poder na terra. SERAFIM Senhora, a quem Deus dá guerra, grande guerra faz a Deus, que é certo que Deus não erra.

Vede vós que lhe fazeis, vede como o estimais, vede bem se o temeis ; atentai com quem lidais, que temo que caireis. ROMA Assi que a paz não se dá a troco de jubileus? MERCÚRIO Ó Roma, sempre vi lá que matas pecados cá, e leixas viver os teus.

Tu não te corras de mi; mas com teu poder facundo assolves a todo o mundo, e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. ROMA Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos. MERCÚRIO Dá-lhe, Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit' embora.

Um espelho aí acharás, que foi da Virgem Sagrada, co' ele te toucarás porque vives mal toucada, e não sentes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida: e não digas mal da feira; porque tu serás perdida, se não mudas a carreira.

Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, pelo que fazes cá em fundo: que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós e a qualquer meu amigo, quem não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deus, e não temerá perigo.

DIABO Prepósito Frei Sueiro, diz lá o exemplo velho: dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o conselho.

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:

AMÂNCIO VAZ Compadre, vás tu à feira? DINIZ LOURENÇO À feira, compadre. AMÂNCIO VAZ Assi, ora vamos eu e ti ó longo desta ribeira. DINIZ LOURENÇO Bofá, vamos. AMÂNCIO VAZ Folgo bem de te vir aqui achar. DINIZ LOURENÇO Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar?

AMÂNCIO VAZ Isso te quero contar, e iremos patorneando, e er também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha mulher é muito destemperada, e agora, se Deus quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada.

Qu'eu quando casei com ela diziam-me, «Hétega é». E eu cuidei pola abofé que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era hétega assim foi o que m' a mim danou: avonda qu'ela engordou e fez-me hétego a mim.

DINIZ LOURENÇO Tens boa mulher de teu: não sei que tu hás, amigo. AMÂNCIO VAZ S'ela casara contigo renegaras tu com' eu e dixeras o que eu digo. DINIZ LOURENÇO Pois, compadre, cant'à minha, é tão mole e desatada, que nunca dá peneirada que não derrame a farinha.

E não põe cousa a guardar, que a tope quanda a cata; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. Trás d' üa pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão pouco o que fará.

Pera que t'hei-de falar? Quando ontem cheguei do mato pôs üa enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape a um gato. Quant'a mansa, mansa é ela; dei-m'ê logo conta disso. AMÂNCIO VAZ Juro-t'eu que mais vale isso cinquenta vezes qu'ela.

A minha te digo eu que se a visses assanhada, parece demoninhada, ante São Bertolameu. DINIZ LOURENÇO Já sequer terá esp'rito: mas renega da mulher que ó tempo do mister não é cabra nem cabrito.

AMÂNCIO VAZ A minha tinh'eu em guarda pera bem da minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda. Folga tu que ess'outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo logo me salta nas grenhas.

Então tanto punho seco me chimpa nestes focinhos; eu chamo polos vizinhos, e ela nego dar-me em xeco. DINIZ LOURENÇO Isso é de coraçuda; não cures de a vender, que s'alguém te mal fizer, já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tão cortês, que se viesse ora à mão que m'espancasse um rascão, não diria, «Mal fazês». Mas antes s' assentaria a olhar como eu bradava. Todavia a mulher brava é, compadre, a qu'eu queria.

AMÂNCIO VAZ Pardeus! Tanto me farás que feire a minha contigo. DINIZ LOURENÇO Se queres feirar comigo, vejamos que me darás. AMÂNCIO VAZ Mas antes m' hás-de tornar pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato nem na corte.

Outro bem terás com ela: quando vieres da arada, comerás sardinha assada, porqu ' ela jenta a panela. Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira. DINIZ LOURENÇO Eu faria per maneira que esperasse ela por mi. AMÂNCIO VAZ Que lh'havias de fazer?

DINIZ LOURENÇO Amâncio Vaz, eu o sei bem. AMÂNCIO VAZ Diniz Lourenço, ei-las cá vêm! Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar, qu'elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu'eu daqui hei-d' espreitar.

Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

BRANCA ANES Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima, comprarei cá üa gamela, para o ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro ; e quantas uvas penduro jeita nas gorgomileiras: parece negro monturo.

Vai-se-m'às ameixieiras antes que sejam maduras, ele quebra as cerejeiras, ele vindima as parreiras, e não sei que faz das uvas. Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada, e sempre me diz que há fome.

Jesu! Jesu! Posso-te dizer e jurar e tresjurar, e provar e reprovar, e andar e revolver, qu' é melhor pera beber, que não pera maridar. O demo que o fez marido, que assim seco como é beberá a torre da Sé! Então arma um arruído assi debaixo do pé.

MARTA DIAS Pois bom homem parece ele. DINIZ LOURENÇO Aquela é a minha frouxa. MARTA DIAS Deu-t'ele a fraldinha roxa? BRANCA ANES Melhor lh'esfole eu a pele. Que homem há i da puxa. Ó diabo que o eu dou, que o leve em fatiota, e o ladrão que m'o gabou; e o frade que me casou inda o veja na picota.

E rogo à Virgem da Estrela, e a santa Gerjalem, e ós choros de Madanela e à asninha de Belém, que o veja ir à vela pera donde nunca vem. DINIZ LOURENÇO Compadre, no mais sofrer: sai de lá desse silvado. AMÂNCIO VAZ Pera eu ser arrepelado. Não havi'eu mais mister.

DINIZ LOURENÇO E não n'hás tu de vender? AMÂNCIO VAZ Tu dizes que a qués feirar. DINIZ LOURENÇO Não qu'ela se me tomar leixar-m'á quando quiser. Mas demo-las à má estreia; e voto que nos tornemos, e er depois tornaremos com as cachopas d'aldeia: entonces concertaremos.

AMÂNCIO VAZ Isso me parece a rni muito melhor que eu ir lá. Oh, que couces que me dá, quando me colhe sob si! DINIZ LOURENÇO Cant' àquela si dará. DIABO Mulheres, vós que quereis? Nesta feira que buscais? MARTA DIAS Queremo-la ver, no mais. Pera ver em que tratais, e as cousas que vendeis.

Tendes vós aqui anéis? DIABO Quejandos? De que feição? MARTA DIAS D'uns que fazem de latão. DIABO Pera as mãos, ou pera os pés? MARTA DIAS Não -- Jesu, nome de Jesu, Deus e homem verdadeiro!

Foge o Diabo e Marta Dias diz:

MARTA DIAS Nunca eu vi bofalinheiro tão prestes tomar o mu. Branc'Anes mana, crê tu que, como Jesu é Jesu, era este o Diabo inteiro.

BRANCA ANES Não é ele pau de boa lenha, nem lenha de bom madeiro. MARTA DIAS Bofá, nunc'ele cá venha. BRANCA ANES Viagem de Jão Moleiro, que foi pola cal d'azenha. MARTA DIAS Pasmada estou eu de Deus fazer o Demo marchante! Mana, daqui por diante não caminhemos nós sós.

BRANCA ANES S'eu soubera quem ele era, fizera-lhe bom partido: que me levara o marido, e quanto tenho lhe dera, e o toucado e o vestido. Inda que mais não levara desta feira, em extremo. Me alegrara e descansara, se o vira levar o Demo, e que nunca mais tornara.

Porque, inda que era Diabo, fizera serviço a Deus, e a mi mercê em cabo; e viera-me dos céus, como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

MARTA DIAS Dizei, senhores de bem, nesta tenda, que vendeis? SERAFIM Esta tenda tudo tem; vede vós o que quereis, que tudo se fará bem. Consciência quereis comprar, de que vistais vossa alma?

MARTA DIAS Tendes sombreiros de palma muito bons pera segar, e tapados pera a calma? SERAFIM Consciência digo eu, que vos leve ao Paraíso. BRANCA ANES Não sabemos nós qu'é isso: dai-o ó decho por seu, que já não é tempo disso.

MARTA DIAS Tendes vós aqui burel, do pardo de lã meirinha? BRANCA ANES Eu queria üa pucarinha pequenina pera mel. SERAFIM Esta feira é chamada das virtudes em seus tratos. MARTA DIAS Das virtudes! E há aqui patos? BRANCA ANES Quereis feirar a cevada quatro pares de sapatos? SERAFIM Oh, piedoso Deus eterno! Não comprareis pera os céus um pouco d'amor de Deus que vos livre do Inferno? BRANCA ANES Isso é falar per pincéus.

SERAFIM Esta feira não se fez para as cousas que quereis. BRANCA ANES Pois cant' a essas que vendeis, daqui afirmo outra vez que nunca as vendereis. Porque neste sigro em fundo todos somos negligentes: foi ar que deu polas gentes, foi ar que deu polo mundo, de que as almas são doentes.

E se hão-de correger quando for todo danado: muito cedo se há-de ver; que já ele não pode ser mais torto nem aleijado. Vamo-nos, Marta, à carreira, que as moças do lugar virão cá fazer a feira, que estes não sabem ganhar, nem têm cousa que homem queira.

MARTA DIAS Eu não vejo aqui cantar, nem gaita, nem tamboril, e outros folgares mil, que nas feiras soem d'estar: e mais feira de Natal, e mais de Nossa Senhora, e estar todo Portugal. BRANCA ALVES S'eu soubera que era tal, não estivera eu cá agora.

Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças, cobertos, cantando. E, como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o Serafim:

SERAFIM Pois vindes vender à feira, sabei que é feira dos céus; por tal, vendei de maneira que não ofendais a Deus, roubando a gente estrangeira. TESAURA Responde-lhe, Leonarda, tu Justina, ou Juliana. JULIANA Mas responda-lhe Giralda, Tesaura, ou Merenciana.

MERENCIANA Responde-lhe, Teodora, porque creio que a ti creia. TESAURA Responda-lhe Doroteia. pois que mora, junto c'o Juiz d'aldeia. DOROTEIA Moneca responderá que falou já com senhor. MONECA Responde-lhe tu, Nabor, contigo s'entenderá.

Ou Denísio, ou Gilberto, qualquer de vós outros três e não vos embaraceis ou torveis, porque é certo que bem vos entendereis. GILBERTO Estas cachopas não vêm à feira nego a folgar, e trazem de merendar nestes cestos que i têm.

Mas pois quanto ao que entendo, sois, samica, anjo de Deus; quando partistes dos céus, que ficava Ele fazendo? SERAFIM Ficava vendo o seu gado. GILBERTO Santa Maria! Gado há lá? Oh, Jesu! como o terá o Senhor gordo e guardado!

E há lá boas ladeiras, como na serra d'Estrela? SERAFIM Si. GILBERTO E a Virgem que faz ela? SERAFIM A Virgem olha as cordeiras, e as cordeiras a ela. GILBERTO E os Santos de saúde todos, a Deus louvores? SERAFIM Si. GILBERTO E que léguas haverá daqui à porta do Paraíso, onde São Pedro está?

NABOR Lá vêm ó redor das vinhas compradores a comprar samica ovos e galinhas. DOROTEIA Não lhe hei-de vender as minhas, que as trago pera dar.

Vêm dous compradores, um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

MATEUS Vós rosa do amarelo, mana, tendes i queijadas. JUSTINA Tenho vosso avô marmelo! Conhecei-lo? MATEUS Aqui estão emborilhadas. JUSTINA Estade má ora quedo, pela vossa negra vida. MATEUS Menina, não hajais medo: vós sois mais engrandecida que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos, meus olhos, não m'os vendais a ninguém. JUSTINA Andar em burra e ter bem: ouvide ora o rasca-piolhos (azeite no micho!) em que vem! VICENTE Minha vida, Leonarda, traz caça pera vender? LEONARDA Vossa vida negra e parda não lhe abastará comer da vaca com da mostarda?

VICENTE E a mesa de meu senhor irá sem ave de pena? LEONARDA Quem? E vós sois comprador? Pois nem grande nem pequena não matou o caçador. VICENTE Matais-me vós logo bem com dous olhinhos qu'eu digo. LEONARDA Mais vos mata a vós o trigo, porque não vale a vintém, e traz mau micho consigo.

VICENTE Vós fazeis de mi rascão. LEONARDA Pação vos fizestes vós; porém bem nos vimos nós guardar bois no Alqueidão. MATEUS Que vindes vender à feira, Teodora, alma minha? minha alma, minha canseira? Trazei algüa galinha? TEODORA São vossa alma galinheira.

Que má ora cá viestes pera quem vos pôs no paço! MATEUS Senhora, eu vos faço, que vos agastais tão prestes? Dizei-me vós, Teodora, trazeis vós tal cousa e tal deste jeito, muito embora? Mas lá dessoutro metal não falam à lavradora.

VICENTE Senhora Moneca, trazeis algum cabrito recente? MONECA Não bofé, Senhor Vicente: quisera ora trazer três, de que vós foreis contente. VICENTE Juro à Santa Cruz de palha qu' hei-de ver o que aqui está. MONECA Não revolvais aramá, que não trago nemigalha.

VICENTE Não me façais descortês, nem queirais ser tão garrida. MONECA Pola vossa negra vida! Olhade como é cortês ! Oh, que lhe saia má saída. MATEUS Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos? GIRALDA Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei. Comereis vós estorninhos? MATEUS Respondeis como mulher muito de sua vontade. GIRALDA Pois digo-vo-la verdade: pássaros hei-de vender? Olhai aquela piedade!

VICENTE Senhora minha Juliana peço-vos que me faleis discreta palenciana, e dizei-me que vendeis. JULIANA Vendo favas de Viana. VICENTE Tendes alguns laparinhos? JULIANA Sim, de porca. VICENTE Nem coelhos? JULIANA Quereis comprar dous francelhos, pera caçardes ratinhos? JULIANA Quero, polos Evangelhos!

MATEUS Vós, Tesaura, minha estrela, não viríeis cá em vão. TESAURA Pois si, vossa estrela vos er'ela: como aquilo é de rascão! MATEUS Mas como isso é de donzela! Porém vá já como vai, e casemo-nos, senhora. TESAURA Pois casai co'ele, casai, Casar, ma ora, meu ai, casar, má hora.

MATEUS Porém trazeis algum pato? TESAURA E quanto dareis por ele? Hui, e ele revolve o fato: olho mau se meta nele. MATEUS Não trazeis vós o qu'eu cato. VICENTE Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito. Não m'haveis de revolver MERENCIANA senão, pardeus, que dê grito tamanho, que haveis de ver.

VICENTE Eu hei-de ver que trazeis. MERENCIANA se vós no cesto bulis. . . VICENTE Senhora, que me fareis? MERENCIANA Um aqui-d'el-rei, ouvis? Não sejais vós descortês. VICENTE Não quero senão amores, pois vosso, senhora, sou. MERENCIANA Amores de vosso avô, o da ilha dos Açores. Andar aramá vós só.

MATEUS Vamo-nos daqui, Vicente. VICENTE Bofá vamos. MATEUS Nunca vi tal feira. VICENTE Vamos comprar à Ribeira, que anda lá cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

SERAFIM Vós outras quereis comprar das virtudes? Senhor, não. SERAFIM Saibamos por que rezão. DOROTEIA Porque no nosso lugar não dão por virtudes pão. Nem casar não vejo eu por virtudes a ninguém. Quem tiver muito de seu, e tão bons olhos com'eu sem isso casará bem.

SERAFIM Pois porque viestes ora cansar à feira de pé?

TEODORA Porque nos dizem que é feira de Nossa Senhora: e vedes aqui porquê. E as graças que dizeis que tendes aqui na praça, se vós outros as vendeis, a Virgem as dá de graça aos bons, como sabeis.

E porque a graça e alegria, a madre da consolação deu ao mundo neste dia, nós vimos com devação a cantar-lhe úa folia. E pois que já descansámos assi em boa maneira, moças, assi como estamos, demos fim a esta feira, primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram.

Cantiga.

I CORO «Blanca estais colorada, «Virgem sagrada. «Em Belém vila do amor «da rosa nasceu a flor: «Virgem sagrada.»

II CORO «Em Belém vila do amor «nasceu a rosa do rosal: «Virgem sagrada.»

I CORO «Da rosa nasceu a flor: «pera nosso Salvador: «Virgem sagrada.»

II CORO «Nasceu a rosa do rosal, «Deus e homem natural: «Virgem sagrada.»

Gratias agamus Domino Deo nostro

Fonte: 
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/gil-vicente/auto-da-feira.php