sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Sogra Enganando o Diabo)


 Dizem, não sei se é ditado,
 Que ao diabo ninguém logra;
 Porém vou contar o caso
 Que se deu com minha sogra.
 As testemunhas são eu,
 Meu sogro, que já morreu,
 E a velha, que é falecida.
 Esse caso foi passado
 Na rua do Pé Quebrado
 Da vila Corpo Sem Vida.

 Chamava-se Quebra-Quengo
 A mãe de minha mulher,
 Que se chamava Aluada
 Da Silva Quebra-Colher,
 Filha do Zé Cabeludo.
 Irmã de Vítor Cascudo
 E de Marcelino Brabo,
 Pai de Corisco Estupor;
 Mas ouça agora o senhor
 Que fez a velha ao diabo.

 Minha sogra era uma velha
 Bem carola e rezadeira,
 Tinha seu quengo lixado,
 Era audaz e feiticeira;
 Para ela tudo era tolo,
 Porque ela dava bolo
 No tipo mais estradeiro.
 Era assim o seu serviço:
 Ela virava o feitiço
 Por cima do feiticeiro!

 Disse o demo: — Quebra-Quengo,
 Qual é a tua virtude?
 Dizem que és azucrinada
 E que a ti ninguém ilude?
 Disse a velha: — Inda mais esta!
 Você parece que é besta!
 Que tem você c’o que faço?
 Disse ele: — Tudo desmancho,
 Nem Santo Antônio com gancho
 Te livra hoje do meu laço!

 Ela indagou: — Quem és tu?
 Respondeu: — Sou o demônio,
 Nem me espanto com milagre,
 Nem com reza a Santo Antônio!
 Pretendo entrar no teu couro!
 E nisto ouviu-se um estouro!
 Gritou a velha: — Jesus!
 Ligeira se ajoelhou
 E, depois, se persignou
 E rezou o Credo em cruz!

 Nisto, o diabo fugiu.
 E, quando a velha se ergueu,
 Ele chegou de mansinho,
 Dizendo logo: — Sou eu!
 Agora sou teu amigo
 Quero andar junto contigo,
 Mostrar-te que sou fiel.
 Minha carta, queres ver?
 A velha pediu pra ler
 E apossou-se do papel.

 — Dê-me isto! grita o diabo,
 Em tom de quem sofre agravo.
 Diz a velha: — Não dou mais!
 Tu, agora, és o meu escravo!
 Disse o diabo: — Danada!
 Meteu-me numa quengada!
 Sou agora escravo dela!
 E disse com humildade:
 — Dê-me a minha liberdade,
 Que esticarei a canela!

 Disse a velha: — Pé de pato,
 Farás o que te mandar?
 Respondeu: — Pois sim, senhora,
 Pode me determinar,
 Porque estou no seu cabresto
 Carregarei água em cesto,
 Transformarei terra em massa,
 Que para isso tenho estudo;
 Afinal, eu farei tudo
 Que a senhora disser — faça!

 Disse a velha: — Vá na igreja,
 Traga a imagem de Jesus.
 Respondeu: — Posso trazê-la,
 Mas ela vem sem a cruz,
 Porque desta tenho medo!
 Disse a velha: — Volte cedo!
 Ele seguiu a viagem
 E ao sacristão iludiu:
 Uma estampa lhe pediu
 Que só tivesse uma imagem.

 A velha, então, conheceu
 Do cão o quengo moderno,
 E, receando que um dia
 A levasse para o inferno,
 Para algum canto o mandou
 E em sua ausência traçou
 Com giz uma cruz na porta.
 Voltou o cão sem demora,
 Viu a cruz, ficou de fora,
 Gritando com a cara torta.

 Gritou o cão no terreiro:
 — Aqui não posso passar!
 Venha me dar minha carta,
 Quero pro inferno voltar!
 Disse a velha que não dava,
 Mas ele continuava
 A rinchar como uma besta.
 — Pois fecha os olhos! ela diz.
 Ele fechou e, com giz,
 Fez-lhe outra cruz bem na testa!

 Aí entregou-lhe a carta
 E o demo pôs-se na estrada,
 Dizendo com seus botões:
 — Não quero mais caçoada
 Com velha que seja sogra,
 Porque ela sempre nos logra!
 Foi, assim, a murmurar.
 Quando no inferno chegou,
 O maioral lhe gritou:
 — Aqui não podes entrar!

 — Então, já não me conhece?
 Perguntou ao maioral.
 — Conheço, porém, aqui
 Não entras com tal sinal:
 Estás com uma cruz na testa!
 Disse ele: — Que história é esta?
 Que é que estás aí dizendo?
 Mirou-se dum espelho à luz:
 Quando distinguiu a cruz,
 Saiu danado, correndo!

 E, na carreira em que ia,
 Precipitou-se no abismo,
 Perdeu o ser diabólico,
 Virou-se no caiporismo,
 Pela terra se espalhou,
 Em todo lugar se achou,
 Ao caipora encaiporando,
 Embaraçando seus passos
 E com traiçoeiros laços
 As sogras auxiliando...

 Deste fato as testemunhas
 Já disse todas quais são.
 Agora, quer o senhor
 Saber se é exato ou não?
 Invoque no espiritismo
 Ou pergunte ao caiporismo,
 Este que sempre nos logra,
 Se sua origem não veio
 Do diabo imundo e feio
 E do quengo duma sogra!

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folclore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário

Coelho Neto (Mano) Parte 2


SEDE

Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.

Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.

Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:

- Tenho sede!

De tais palavras à rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”

Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.

Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais solícito,

Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?

Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno caldo?

Não, não era febre, se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.

Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.

E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saía-lhe tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?

E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.

VOLTA AO NINHO

Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.

Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?

Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?

Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.

Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.

“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”

Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda que à custa de martírios.

Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.

Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que... sabe-se lá o que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! - talvez não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.

Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e correntias.

Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.

Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre. 

O VIÁTICO

Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu

Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.

Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.

Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.

Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.

Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beija-flor.

Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.

O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.

Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.

Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.

Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.

Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.

Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:

“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda pode ser...”

O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.

Que fazer? Que dizer?!

Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:

- Que tens? Porque me olhas assim?

Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava à morte?

Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!

De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”

É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.

Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.

Tentei justificar o meu procedimento:

“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.

As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.

- Você quer?

Solucei, acenando afirmativamente.

- E mamãe?

Respondi com o olhar.

- Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.

Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.

Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.

Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.

Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.

Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.

Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.

Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer. 

E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:

“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amando-nos”.

Mas... E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!

Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.

–––––––––continua

Fonte:
http://leituradiaria.com

Larissa de Oliveira Neves (A Linguagem dos Tipos Cômicos em O Cordão – Burleta de Artur Azevedo)


Unicamp/IEL. 

RESUMO:A peça O Cordão, de Artur Azevedo, evidencia um dos recursos mais usados pelo autor para identificar seus tipos cômicos: a diferenciação através do discurso. Inovador, Artur Azevedo colocava na boca de suas personagens a linguagem oral que ouvia pelas ruas do Rio de Janeiro. O Cordão foi representada pela primeira vez em 1908, durante o Carnaval. Sua singularidade consiste na separação das personagens em dois núcleos: o da sociedade educada e o dos incultos membros de um cordão carnavalesco. A oposição entre os dois núcleos verifica-se através da caracterização das personagens, realizada principalmente através do modo de falar. 

1. Artur Azevedo e O Cordão.

A burleta O Cordão (comédia entremeada de números musicais), de Artur Azevedo, foi encenada pela primeira vez no dia 22 de fevereiro de 1908 (durante o carnaval), pela companhia Silva Pinto, no teatro Carlos Gomes.

O enredo da peça, simples, não foge ao que normalmente apresentam as comédias de costumes. Existe uma intriga amorosa e, a pretexto desta, os costumes de um setor da sociedade são representados ao público. No caso de O Cordão, a cena passa-se durante o Carnaval. Representa-se no palco um hábito típico do século XIX, antes do estabelecimento definitivo dos desfiles de avenida e bailes carnavalescos de salão: os cordões. Trata-se de um período de transição, percebido por Artur Azevedo, que caracteriza o cordão como o verdadeiro carnaval de tradição, em oposição às novas maneiras de se divertir que surgiam. 

O enredo, em resumo, consiste no namoro de duas moças casadoiras (Florinda e Rosa) com dois rapazes comuns (Alfredo e Gastão). O pai das moças (Remígio), um praça reformado do Exército, é participante assíduo dos cordões em época de Carnaval. O cordão era um evento popular por excelência, seus participantes faziam parte da camada pobre da população: mulatos, malandros e capoeiras. A prática chegou a ser proibida pela polícia, o que aparece indicado na peça, por causa da desordem promovida durante os desfiles. Nestes ocorriam, muitas vezes, lutas entre grupos de capoeiras rivais. Os rapazes enamorados de O Cordão procuram tirar suas amadas desse ambiente que eles consideram maléfico à pureza das duas moças, e o fazem através do casamento.

Existe, assim, uma oposição, evidente na comédia, entre as personagens de sociedade educada e os participantes costumeiros do cordão. A diferenciação das personagens pertencentes aos dois núcleos distintos se faz pela caracterização física e pela linguagem (principalmente pela linguagem, já que a caracterização física está mais implícita na fala das personagens do que evidente por uma descrição nas rubricas). Assim, propõe-se neste estudo analisar as personagens de O Cordão a partir de suas falas, porque é através da recorrência de figuras presentes nelas que os tipos são diferenciados.

O teatro de Artur Azevedo nunca fugiu aos tipos, como ocorre em geral nas comédias de costumes. A crítica contemporânea ao autor costumava elogiar as comédias encenadas, em detrimento das revistas de ano e paródias também escritas por ele. Entre os elogios, um dos mais freqüentes referia-se aos tipos bem delineados. Em relação a O Cordão, por exemplo, encontramos o seguinte comentário em uma crônica: “E no meio daquela série de tipos dos namorados, namoradas, dos capoeiras, do pessoal do cordão, há dois esplêndidos: o do conselheiro e o do Remígio, ex-herói da pátria.”[3] 

Os mesmos caracteres bem feitos, que originaram os elogios dos colegas de imprensa de Artur Azevedo, serviram para uma depreciação de seu teatro por teatrólogos do século XX. Sábato Magaldi criticou o comediógrafo por este não conseguir conceber personagens complexas: “Que não tentasse, porém, análise psicológica mais profunda: somos levados a julgar ingênuos seus ensaios de introspecção...”[4] 

A crítica posterior exigiu de Azevedo algo diferente do que ele sempre desejou fazer: um teatro de qualidade, mas também de diversão. Teatro que acompanhava a tradicional linha das comédias de costumes vindas de Molière, modelo seguido pelo dramaturgo brasileiro, em que a tipificação das personagens é evidente e proposital.

O tipo é a personagem que possui uma personalidade básica, não modificada no decorrer da peça, portanto previsível. As peripécias inventadas pelo escritor regem o desenvolvimento da ação e as personagens seguem o modelo estereotipado que lhes foi designado. Décio da Almeida Prado explicou o surgimento dos tipos: “A necessidade de não perder tempo, somada a inércia do ator ao desejo de entrar em comunicação instantânea com o público, desenvolveram no teatro uma predileção particular pelas personagens padronizadas.”[5]

Os tipos podem, no entanto, ir além do padrão comum, encantando o público pela singularidade. Tal ocorre quando há a invenção de tipos novos. Artur Azevedo criava, a partir da observação das pessoas do Rio de Janeiro, tipos brasileiros que se tornavam únicos através da caracterização adequada realizada pelo autor. A importância do discurso surge na medida em que este auxilia a identificação do tipo pelo público e provoca o riso de diferentes maneiras. 

Ivo C. Bender enumerou essas maneiras ao desenvolver um rápido panorama sobre o cômico baseado na teoria aristotélica. Ele citou a homonímia, a sinonímia, a repetição da mesma palavra, a paródia literária, a transferência e o modo de falar como sendo as possibilidades do comediógrafo para instituir o cômico no discurso de suas personagens.[6] Especificamente sobre a obra de Artur Azevedo, existe o detalhado trabalho feito por Antonio Martins: Artur Azevedo: a palavra e o riso,[7] em que se realizou uma análise completa do discurso cômico do autor.

Antonio Martins dividiu o discurso teatral de Azevedo em duas variantes propiciadoras de humor: a recorrência (citações latinas, uso de arcaísmos, termos populares, anexins) e a discrepância (neologismos, gírias, falares religiosos, normas lingüísticas de diferentes classes sociais). A discrepância está presente em todo o vocabulário das personagens participantes do cordão carnavalesco. A nós interessa estudar como o uso desses recursos permitiu salientar a caracterização do tipo cômico na comédia O Cordão.

2. As personagens de O Cordão.

Jean-Pierre Ryngaert ressaltou a importância do nome das personagens para identificação das mesmas: “Os discursos das personagens são reunidos sob a mesma sigla, que constitui a primeira pista de sua identidade. Os nomes atribuídos às personagens são uma indicação importante...”[8] A didascália de O Cordão nos fornece, além dos nomes, uma pequena descrição que imediatamente remete aos tipos encontrados no decorrer da peça. 

A divisão entre os dois núcleos citados (que nomearei arbitrariamente de “núcleo do cordão” e “núcleo da sociedade”) se faz perceber, de imediato, através dos nomes das personagens atribuídos pelo autor. Temos, na ordem de citação do texto, que é a ordem de entrada em cena:

Alfredo, namorado de Florinda.

Gastão, namorado de Rosa.

(São os tipos de rapazes enamorados, que fazem o possível para se casarem com as moças de quem gostam).

Remígio, praça reformado do Exército.

(O pai das moças possui boa parte de seu discurso cômico voltada para as descrições de suas proezas – falsas – realizadas quando soldado).

Florinda, filha de Remígio.

Rosa, irmã de Florinda.

(São as “ingênuas”, moças bem educadas, a despeito do pai fanfarrão, que desejam a vida honesta ao lado dos rapazes que escolheram para maridos).

Salustiano, presidente do Cordão.

(Essa personagem é assim descrita por Artur Azevedo em uma das poucas rubricas em que há a caracterização de uma personagem: “Salustiano, pernóstico, pardavasco, grande carapinha, pretensa elegância, procurando os termos e sibilandos.” O linguajar de Salustiano é um dos mais peculiares da comédia, e identifica o tipo do mulato que deseja se fazer de erudito através de um palavreado esdrúxulo).

Emerenciana, esposa de Salustiano.

Zeca, filho de Salustiano e Emerenciana.

(Emerenciana e Zeca representam os crioulos da cidade após a libertação dos escravos, incultos, sem perspectiva de futuro, apresentam um discurso repleto de desvios da norma culta, principalmente evidenciados na concordância verbal e na ditongação).

Cazuza, malandro.

(Cazuza é o malandro típico, o capoeira da virada do século XIX – XX, sua enunciação consiste em uma combinação de gírias sobre gírias, sendo inclusive difícil ao leitor de hoje entender o que ele diz).

Zé, português, tocador de bumbo.

Joaquina, esposa de Zé.

(O sotaque português é caracterizado pela troca da letra v por b).

Gaudêncio, tocador de harmônica.

(Mais um malandro, bêbado, para compor o grupo dos “desordeiros” do cordão).

Por fim,

Conselheiro, chefe de repartição dos dois primeiros.

(O Conselheiro, única personagem sem nome próprio, representa exatamente o tipo do conselheiro, que acalma os ânimos e promove a paz, através de um discurso erudito).

Assim, logo no princípio da leitura do texto, observamos alguns tipos que serão delineados na peça: o malandro, o português, os namorados. Essa delineação ocorrerá principalmente através da fala, que permitirá ao espectador também realizar de imediato a identificação evidente ao leitor na primeira página do texto.

Ryngaert, ao tratar na enunciação, não acredita em uma regra de caracterização da personagem pelo discurso: “Além do mais, às vezes é difícil identificar uma fala própria a cada personagem, que a caracteriza. Essa identificação ocorre no teatro naturalista, em que uma personagem se define por sua linguagem, mas raramente ocorre no teatro clássico, no qual as réplicas e as tiradas de todos obedecem às mesmas regras retóricas e utilizam o mesmo léxico.” Realmente, o discurso diferenciado não é uma regra constante nas obras teatrais. O uso desse recurso depende exclusivamente do desejo do autor e/ou intérprete.

No caso de Artur Azevedo, o uso da linguagem para identificar suas personagens é prática comum. Em muitas peças, – sendo O Cordão a peça em que esse recurso está mais evidente, pelo grande número de tipos diferentes – os diálogos fornecem ao leitor-espectador indícios claros de distinção da personalidade teatral.

Artur Azevedo possuía o domínio pleno da língua brasileira falada em seu tempo. Por conviver com as diversas classes sociais e escrever para o povo, sabia utilizar o discurso para enriquecer seus textos, identificar as personagens e, principalmente, propiciar o humor. 

Escreveu Décio de Almeida Prado: “os verdadeiros dramaturgos (...) mostram-se sempre capazes de elaborar um estilo pessoal e artístico a partir das sugestões oferecidas pela palavra falada, aproveitando não somente a gíria, as incorreções saborosas da linguagem popular, mas, também, a sua vitalidade quase física, a sua vivacidade, a sua irreverência e a sua acidez, as suas metáforas cheias de invenção poética.”[9] Artur Azevedo encaixa-se perfeitamente na descrição acima, porque aproveitava o conhecimento da linguagem falada dos segmentos distintos da sociedade para propiciar ao texto teatral a vivacidade observada por todos os críticos, inclusive aqueles que lhe faziam ressalvas.

3. O “núcleo do cordão”. 

Ao iniciar o capítulo intitulado “A Discrepância” de seu livro sobre a linguagem cômica de Artur Azevedo, Antonio Martins sublinha a diferença entre os modos de falar dos ricos e dos pobres e exemplifica com uma passagem de O Cordão: “Em virtude da disparidade entre as liberalidades lingüísticas de um malandro do Catumbi e seus próprios meios de expressão, Gastão teme pelos destinos do idioma pátrio.”[10]

Mas qual seria o idioma pátrio? A linguagem “correta” trazida pelos portugueses e falada pela elite, ou as invenções originadas pela mistura das raças e faladas correntemente pelo povo brasileiro? O objetivo de Artur Azevedo nunca foi atribuir um julgamento, ou responder a essa difícil indagação; seu desejo fundamentava-se em ser realista e retratar comicamente a vida cotidiana do Rio de Janeiro de então. Na citação de Antonio Martins, Gastão, um membro da sociedade letrada, funcionário de repartição, assusta-se ao ouvir o palavreado tortuoso do mulato Salustiano. Diz Gastão: “Mas que linguagem tão esquisita! Dez homens assim são capazes de reformar a língua portuguesa.”[11]

Salustiano, o mulato pernóstico de grande carapinha, possui o discurso melindroso, recheado de palavras “difíceis” inseridas em contexto errôneo. Os exemplos são inúmeros:

Ao anunciar às moças que a polícia permitiu o ensaio do cordão: “As donzelas são melindrosas flores, que devem ser guardadas com o mais espontâneo recato. Tenham a bondade, senhoritas, de dizer ao vosso honrado progenitor, quando ele voltar do labor cotidiano e sintomático, que hoje há ensaio.”[12] Essa introdução excessiva de termos para transmitir um recado simples faz parte constante da enunciação de Salustiano. As falas da personagem auxiliam na constatação rápida do tipo retratado por Artur Azevedo: o malandro inculto, que deseja mostrar sapiência.

Quando se dirige a Gastão e Alfredo: “Vejo que falo com pessoal escovado. Mas eu não percebo o motivo desta intervenção jurídica e jubilosa para o meu eu.”[13] E ao se despedir deles: “Creiam, cidadães conspícuos, que têm neste seu criado um servo preponderante, pródigo e observante de todas as pragmáticas ultrasociais.”[14] Devido à vontade de mostrar-se importante aos dois rapazes, Salustiano seleciona palavras das quais não conhece o significado e insere-as aleatoriamente em seu discurso, incorrendo no uso semanticamente deslocado de termos, o que dificulta o entendimento imediato, mas propicia o riso.

Desse modo, a personagem não percebe que o efeito de seu discurso nos jovens é exatamente o oposto do pretendido. Após conhecê-lo, os dois rapazes reasseguram a necessidade de afastar suas namoradas de tipos como Salustiano. O palavreado da personagem faz o leitor/espectador rir da falta de consciência de ridículo e da surpresa por encontrar termos em lugares textuais em que não seriam utilizados corriqueiramente. Essa inconsciência de seu “defeito” faz parte do tipo cômico. A personagem não percebe a reação que está causando em seu interlocutor.

A linguagem de Salustiano representa um item fundamental para a determinação do tipo criado pelo autor. Sua personalidade está toda voltada para a maneira como fala. A relação entre ele e as outras personagens também se faz através do discurso. Enquanto os rapazes da sociedade educada sentem aversão ao tipo, após poucos minutos de diálogo, principalmente pelo seu discurso, como fica explícito pela fala de Gastão acima transcrita; as personagens de sua convivência habitual admiram o linguajar empolado, que não são capazes de entender (Joaquina: “Este seu Salustiano fala como um libro averto”[15]).

É o que se verifica por este comentário de Emerenciana, mulher de Salustiano: “Você é muito bom home, seu Salustiano, é um home inteligente que até fala dificel, mas tem um defeito...”[16] O defeito de Salustiano é a bebida. Henri Bergson, ao analisar o caráter cômico, institui o “defeito” inconsciente como uma propriedade comum às personalidades que provocam o riso. Esse defeito poderá ser leve ou até mesmo grave, desde que o autor saiba tratá-lo de maneira cômica: “peut-être n’est-ce pas parce qu’un défaut est léger qu’il nous fait rire, mais parce qu’il nous fait rire que nous le trouvons léger”.[17]

O alcoolismo, com certeza, não é um problema leve, mas, dentro do texto, da maneira como Artur Azevedo pinta o bêbado Salustiano, ele se torna repleto de comicidade. Isso porque o humor nasce da sociedade, de seus preconceitos, de seus pensamentos, existe sempre uma “maneira de pensar” por trás de uma piada, por isso que muitas são hilárias para uma determinada cultura, mas perdem a graça quando contadas em um país estrangeiro. 

Ainda segundo Bergson, a personagem cômica pode ser inserida na classificação de gêneros (genres), com sentido de generalidade – muitas pessoas podem ser como aquele tipo: existem muitos malandros bêbados no Rio de Janeiro –, enquanto a personagem trágica deve ser única (individus) – quantos Hamlets encontramos na vida real? A personagem cômica demonstra superficialmente seu tipo, porque ela nasce de uma observação exterior e ligeira das pessoas. Artur Azevedo, em seus andares pela cidade, na convivência com o povo que assistia a suas peças populares, cruzava com “tipos” como Salustiano, por isso conseguiu retratá-lo superficialmente (da maneira como via o malandro carioca) e caricaturá-lo a fim de propiciar o riso de sua platéia.

Grande observador, sem a preocupação elitista (tão comum na época) de escrever de acordo com as normas portuguesas, Artur Azevedo retirava o material de sua obra tão brasileira diretamente da vida ao seu redor. E para fornecer mais realidade aos tipos inspirados no povo, escrevia o texto da maneira como os ouvia falar. Por isso o discurso tornou-se elemento fundamental na caracterização de suas personagens.

Enquanto Salustiano representa na comédia o tipo do malandro que usa um vocabulário chamado por Antonio Martins de “requintado discurso bestialógico”[18], Cazuza, o capoeira, fala por gírias, gírias dos capoeiras do séc. XIX. Os capoeiras, assim chamados, obviamente, por jogarem capoeira na cidade, eram malandros severamente repreendidos pela polícia, por comandarem bagunças e tumultos.

Cazuza entra em cena, fugido da polícia, e sua primeira frase é: “Aqui estou seguro... que sangangu de maçadas! Que sangangu onça, seu Salustiano!”[19] Quem, hoje em dia, sabe o que significa “sangangu”? (O termo equivale à briga, confusão). Cazuza continua narrando sua aventura através da linguagem informal: “O Miudinho abriu o chambre pelo Nheco acima e eu abri esta menina (Abre uma navalha e faz passos de capoeiragem) – E brinquei cinco minutos assim. Depois meti a cabeça numa praça (Quer meter a cabeça em Alfredo, que foge).”[20] A cena, representada, deve ser engraçadíssima, principalmente pela reação dos rapazes “educados” Alfredo e Gastão, terrivelmente assustados com os modos dos participantes do cordão. 

Assim, percebe-se que a personagem Cazuza – além dos passos de capoeira e de uma caracterização física não delineada pelo autor – é determinada fundamentalmente pela linguagem. Como também o são outros dois participantes do ensaio carnavalesco: Zé da Carroça e Joaquina. Na rubrica, são assim descritos por Artur Azevedo: “Entram Zé da Carroça e Joaquina, tipos de portugueses de cortiço”[21]. Caberia aos atores criar o sotaque português? Não, porque Artur Azevedo fornece o sotaque ao escrever como se fala. Aos tipos de portugueses basta a linguagem para assim serem identificados pelo público.

Diz Zé: “Bamos indo, bamos indo, graças a Deus! Bim bere o ensaio do grúpio.” E a mulher, Joaquina: “Mas não debes abusare porque ano passado, depois do carnabal, lebaste uma s’mana inteira que nem podias muber o braço.”[22] Imagine-se, portanto, a cena, com essa mistura de linguajares diferentes: Salustiano e seus vocábulos sinuosos, Cazuza e a gíria dos capoeiras, Zé e Joaquina com o sotaque português! Some-se ainda o modo de falar de Emerenciana e Zeca, mulher e filho de Salustiano.

Emerenciana e Zeca demonstram na fala não apenas uma divergência no sotaque, ou no jeito de se pronunciar as palavras, como ocorre com os outros (ainda que também cometam “erros de português”), mas o que transparece essencialmente, em seu linguajar, é a falta de educação formal. O menino tem doze anos e nunca foi à escola, por não possuir roupa adequada. E à mãe provavelmente ocorreu o mesmo: “Torna a trazê pra dentro a mesinha e as cadeira, que tu levou pro quintá. (A Salustiano) Se você esperava dois amigo, pra quê foi bebê?”[23]

Quando chegam Remígio e as moças, o grupo está completo. Remígio representa uma ponte entre os dois núcleos da peça: o “núcleo da sociedade” e o “o núcleo do cordão”. Conta lorotas sobre a guerra, e seu discurso não se afasta do coloquial correto também utilizado por Gastão, Alfredo, Rosa e Florinda. Em meio à confusão do ensaio, os quatro namorados conseguem fugir. Gastão e Alfredo demonstram claramente a repugnância pelo ambiente em que estão – Alfredo: “Não há tempo a perder... as senhoras não podem ficar aqui nem mais um momento.” Quando as moças relutam em fugir do pai – “Nesse caso, adeus para sempre! Porque se continuam aqui, não serão dignas de nós.”[24]

4. O “núcleo da sociedade”

O “núcleo do cordão” adquire comicidade maior quando colocado em confronto direto com o “núcleo da sociedade”. A oposição entre os dois, - o espanto e o medo de Gastão e Alfredo frente à beberagem, aos modos de agir e ao discurso das personagens do cordão, - ressalta o efeito cômico que, sozinhos, os participantes regulares do cordão teriam em menor grau.     

Após fugirem, Gastão e Alfredo “depositam” suas amadas na casa do diretor da repartição na qual trabalham, o Conselheiro. Esta personagem, assim descrita por Artur Azevedo: “O Conselheiro é um velho de suíças brancas, vestido com trajes matinais e boné; aparece ao fundo com um Diário Oficial”[25], possui uma enunciação cuidada e formal. Utiliza termos não corriqueiros, porém sem um uso inadequado, como o faz Salustiano.

O Conselheiro representa o maior grau da alta sociedade. Gastão, Alfredo, Rosinha e Florinda possuem linguajar correto, porém comum, já o Conselheiro enuncia-se, a todo o momento, através de um discurso cerimonioso e culto. Por exemplo, ao dispensar os namorados para conversar a sós com Remígio: “Na ocasião oportuna chamar-vos-ei. Ide para debaixo daquele caramanchão, mas espero do vosso critério, procedais com toda circunspeção e dignidade”; e ao censurar Remígio pelo mau exemplo frente às moças: “Em vez de resguardar suas filhas e afastá-las do mal, vossemecê leva-as a um desses antros denominados cordões carnavalescos, em casa de um homem de má vida, onde se reúnem bêbedos e desordeiros.”[26]

Portanto, o Conselheiro é um típico... conselheiro. Aconselha os noivos, aconselha Remígio, e promove a paz entre todos. Seu linguajar auxilia o seu papel, porque transmite o exemplo de uma pessoa respeitável e culta, que sabe o que é melhor para todos. Ele está acima das outras personagens e o discurso demonstra isso claramente. Assim, convence imediatamente Remígio sobre a necessidade de permitir o casamento das moças. Sua autoridade é explicitada logo no início do diálogo, quando se apresenta: “Vossemecê está em presença do conselheiro Faria, velho funcionário, com quarenta anos de serviço... Conselheiro e Oficial da Roda pelo império, e tenente-coronel honorário do Exército pela República. (Remígio levanta-se, perfila-se e faz continência militar)”[27].

A peça termina com o “núcleo do cordão”, que sai para se apresentar no dia de Carnaval. E Remígio, falsamente reabilitado pelo Conselheiro e por seus genros, não resiste e cai na folia junto a seus antigos companheiros. Este epílogo é altamente popularesco. Apesar da crítica clara aos costumes do povo, realizada através das palavras do Conselheiro e das reações dos namorados quando presentes ao ensaio do cordão, o fim da comédia demonstra abertamente a simpatia de Artur Azevedo pelo que é originário da cultura popular.

Desse modo, a peça se sustenta constantemente nesse meio termo. Diz Alfredo, para ganhar a simpatia de Salustiano e conseguir embrenhar-se no ensaio do cordão e “salvar” sua amada: “O amigo e eu somos doidos pelo carnaval... mas o verdadeiramente popular, o carnaval bem entendido, o carnaval de cordão”[28].  Depois, quando já inseridos no núcleo do cordão, os dois rapazes da sociedade, apesar de dançar e participar da festa, freqüentemente proclamam a aversão que sentem.

Essa aversão dos namorados frente à folia dos participantes do cordão não chega a comprometer os últimos perante o público, porque todas as personagens são capazes de angariar simpatia. E a finalização, com os namorados encaminhados para o casamento, e Remígio de volta ao velho vício, demonstra que Artur Azevedo escreveu uma peça para agradar a todas as classes sociais do Rio de Janeiro da época.

A elite culta poderia perfeitamente entender o texto como uma crítica ao vício e à depravação do carnaval. Já o povo pobre veria nela a exaltação dos costumes populares. Essa oposição permanente no texto gera a comicidade constante presente do começo ao fim da comédia. O Cordão reforça a posição ambígua de Artur Azevedo na época, entre o meio intelectual do Rio de Janeiro, com o qual convivia diariamente nas rodas literárias e nos jornais, e o povo iletrado, público de suas peças musicadas. 

O autor recebia críticas severas dos literatos por se dedicar ao teatro popular. Estes exigiam que o autor dedicasse sua pena somente à chamada alta comédia. Algumas vezes, o comediógrafo conseguia contentar a todos (à população mais pobre e à elite econômica e intelectual), tal acontecia quando unia seu talento de autor do teatro ligeiro a um enredo de comédia mais elaborado. Essa situação pode ser exemplificada com O Cordão, em que visualizamos o evidente esforço de atingir com êxito as diferentes camadas da população do Rio de Janeiro.

5. Os tipos cômicos de Artur Azevedo

Em O Cordão os tipos cômico diferenciados pela linguagem são muitos. Cada um se sobressai quando colocado em oposição a outro. As gírias de Cazuza tornam-se mais engraçadas ao lado do “discurso bestialógico” de Salustiano, que se contrapõe ao sotaque português de Zé e Joaquina, junto com os erros de concordância de Emerenciana e Zeca. Todos esses, vistos (e ouvidos) pelos olhos arregalados de espanto dos namorados, resultam em um conjunto de alta comicidade, tanto no tempo em que a peça foi escrita, como hoje (ainda que as gírias de Cazuza sejam praticamente incompreensíveis a nós, leitores e espectadores do século XXI).

O conhecimento da língua falada, e dos desvios lingüísticos presentes entre a população (de maioria iletrada), forneceu a Artur Azevedo material para criação de tipos inesquecíveis, não só em O Cordão, como em praticamente todas as suas comédias. Talvez nesse fator se encontre o segredo de seu sucesso na época e da longevidade de seus textos, encenados com êxito ainda hoje.

As pessoas se identificavam com as personagens criadas pelo dramaturgo, não só na maneira de falar, como nos trejeitos e nos enredos das peças. Acima de tudo, as comédias eram entendidas facilmente pelo povo, o que não ocorria com os textos voltados unicamente para a elite (muitos representados em italiano ou francês, por companhias estrangeiras). Escreveu Antonio Martins: “Importa lembrar que, ao enriquecer sua galeria de tipos, alguns deles com nítida função humorística, Artur Azevedo vai de encontro a toda a tradição purista que esteve presente em nosso teatro, até posterior a ele.”[29]

A partir da década passada, os estudos sobre Artur Azevedo têm ido contra a tendência tradicional da crítica do decorrer do século XX, que denegria o dramaturgo por escrever peças ditas “superficiais”, sem “nada de próprio ou especial a dizer”[30]. Hoje, as qualidades, observadas principalmente nos tipos cômicos e na linguagem, moderna para o seu tempo, estão sendo ressaltadas e apreciadas pelos estudiosos. O Cordão é apenas uma das peças em que a diversidade das personagens e dos diferentes discursos demonstram a riqueza ainda por descobrir na obra de Artur Azevedo.

6. Referências bibliográficas

AZEVEDO, Artur. O Cordão. In: Teatro de Artur Azevedo. Vol.5. Antonio Martins de Araújo (org.). Rio de Janeiro: Funarte, 1995
BARRETO, Paulo. Quinta. Gazeta de Notícias, 01/03/1908.
BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS / EDPUCRS, 1996.
BÉRGSON, Henri. Le Rire: essai sur la signification du comique. Paris: Presses Universitaires de France, 1950.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Global, 1997.
MARTINS, Antonio. Artur Azevedo: a palavra e o riso. São Paulo; Perspectiva; Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: Cândido, Antônio (org). A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Ed. Perspectiva
______. A evolução da literatura dramática. In: A literatura no Brasil vol. 2 org. Afrânio Coutinho - Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana SA, 1955.
[3] “Quinta”, Barreto, Paulo. In Gazeta de Notícia, 01/03/1908.
[4] Magaldi, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Global, 1997.
[5] Prado, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In. Cândido, Antônio (org). A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Ed. Perspectiva.
[6] Bender, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS / EDPUCRS, 1996.
[7] Martins, Antonio. Artur Azevedo: a palavra e o riso. São Paulo; Perspectiva; Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.
[8] Ryngaert, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[9] Prado, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In. opus cit. – grifo nosso.
[10] Martins, Antonio, opus cit.
[11] Azevedo, Artur. O Cordão. Teatro de Artur Azevedo. Vol.5. Antonio Martins de Araújo (org.). Rio de Janeiro: Funarte, 1995.
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Bergson, Henri. Le Rire: essai sur la signification du comique. Paris: Presses Universitaires de France, 1950. “Talvez não seja por ser leve que  um defeito provoque o riso, mas o consideramos leve porque ele provoca o riso.”
[18] Martins, Antônio. Opus cit.
[19] Azevedo, Artur. Opus cit.
[20] Idem.
[21] Idem.
[22] Idem.
[23] Idem.
[24] Idem.
[25] Idem.
[26] Idem.
[27] Idem.
[28] Idem.
[29] Martins, Antonio. Opus cit.
[30] Prado, Décio de Almeida, A evolução da literatura dramática, In. “A literatura no Brasil” vol. 2 org. Afrânio Coutinho - Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana SA, 1955.

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. 
 CD-ROM : il.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 781)



Uma Trova de Ademar  

Lágrimas... Águas em fugas, 
que de maneira inclemente, 
deixam escritas nas rugas, 
os sofrimentos da gente... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz… 
–Izo Goldman/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Jamais eu me recusei
a confessar meu pecado,
a vida toda eu amei,
jamais me senti amado.
–Wellington Freitas/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012   -   Cantagalo/RJ 
Tema   -   ESPAÇO   -   6º Lugar 

A maquiagem pesada,
diante do espelho, desfaço
e em minha cara lavada
rugas brigam por espaço... 
–Élbea Priscila de Souza/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Há muito mais amizade,
mais esperança e doçura,
depois que veio a saudade
perturbar nossa ventura.
–Hélio Garcia de Matos/RJ– 

U m a P o e s i a  

Nesses clássicos contos eu me fiz,
ao invés de um poeta ou de um patrício,
fui num “conto de fadas fictício” 
um “mocinho” de um fim nem tão feliz...
nesses contos e histórias infantis 
seriamente eu deixei de acreditar!
feito um príncipe eu saí para encantar
mas faltou uma bela adormecida
“os meus becos são todos sem saída
e eu não sei como faço pra voltar”.
–Dudu Morais/PE– 

Soneto do Dia  

VOZ QUE SE CALA. 
–Floberla Espanca/ESP– 

Amo as pedras, os astros e o luar
que beija as ervas do atalho escuro,
amo as águas de anil e o doce olhar
dos animais, divinamente puro. 

Amo a hera, que entende a voz do muro
e dos sapos, o brando tilintar
de cristais que se afagam devagar,
e da minha charneca o rosto duro. 

Amo todos os sonhos que se calam
de corações que sentem e não falam,
tudo o que é Infinito e pequenino! 

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
do nosso grande e mísero Destino!...

Georgina Mart (Releitura de Esopo: No Tempo em que os Bichos Falavam)


Houve um tempo em que os bichos falavam, e eles falavam tanto que Esopo resolveu recolher e contar as histórias deles para todo mundo. 

Esopo era escravo de um rei da Grécia, e divertia-se inventando uma moral para as histórias que ouvia dos animais.

Na verdade, nem todos os moradores do país eram capazes de entender a linguagem dos animais, mas Esopo era. Sobretudo dos pequeninos, que falavam muito baixinho, como por exemplo os ratinhos que moravam num buraco da parede da cozinha do palácio.

Um dia, quando limpava o chão da cozinha, Esopo ouviu uns ruídos que vinham de dentro do buraquinho. Os ratinhos estavam muito agitados e preocupados pois, o rei havia colocado um gato grande e forte para tomar conta dos petiscos reais e o tal gato não era de brincar em serviço, já tinha devorado vários ratos.

Esopo apurou os ouvidos e pôde ouvir tudo o que os ratinhos diziam:

Um deles, muito espevitado, parecia ser o líder e, de cima de uma caixa de fósforos, discursava:

— Meus amigos, assim não é mais possível, não temos mais paz e tudo porque o rei resolveu trazer aquela fera para cá. Precisamos fazer alguma coisa, e logo, porque senão esse gato vai acabar com a nossa raça!

Era uma assembléia de ratos e todos estavam muito empenhados em solucionar o problema que os afligia: um gato, grande e forte, que o rei havia mandado colocar na cozinha.

Já tinham perdido vários amigos nos dentes afiados da fera: o Provolone, o Roquefort, o Camembert e o pobre Tatá, o mais amado de todos.

Planejaram, planejaram e não conseguiram chegar a nenhuma conclusão que agradasse a todos. Precisavam de estratégias eficazes e seguras.

Uns achavam que deveriam matar o tal gato; outros diziam que era impossível: "Como matar uma fera daquelas?"

Horácio estava quase convencido de que a sina de seu povo era morrer entre os dentes do gato. Com lágrimas nos olhos, já ia descendo da caixa de fósforos quando Frederico, um ratinho muito tímido que nunca falava, resolveu dar sua opinião:

— Como vocês sabem, eu não gosto muito de falar, por isso serei rápido, mas antes vocês vão responder a uma pergunta: Por que esse gato é tão perigoso para nós, se somos tão ágeis e espertos?

E Horácio respondeu:

— Ora, Frederico, esse gato é silencioso, não faz nenhum barulho. Como é que vamos saber quando ele se aproxima?

— Exatamente como eu pensei. Me perdoem a modéstia, mas acho que a idéia que tive é a melhor de todas as que ouvi aqui .Vejam só, é simples: Vamos arrumar um guizo, pode ser até aquele que pegamos da roupa do bobo da corte. Lembram? Aquele que achamos bonitinho e que faz um barulho enorme.

Os ratos não estavam entendendo nada, para que serviria um guizo?

Frederico tratou de explicar: 

— A gente pega o guizo e coloca no pescoço do gato. Quando ele se aproximar, vamos ouvir o barulho e fugir. Não é simples? 

Todos adoraram a idéia. Era só colocar o guizo que todos ouviriam o gato se aproximar.

Todos os ratos foram abraçar Frederico e estavam na maior euforia quando, de repente, um ratinho que não parava de roer um apetitoso pedaço de queijo, resolveu perguntar:

— Mas quem é que vai colocar o guizo no pescoço do gato?

Todos saíram cabisbaixos. Como não haviam pensado naquilo antes?

Era o fim da euforia dos ratinhos. Para Esopo, a moral da história era a seguinte: "Não adianta ter boas idéias se não temos quem as coloque em prática". Ou ainda: "Inventar é uma coisa, colocar em prática é outra".

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos