sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Henrique Wellen (“O Leitor” e a crítica da racionalização da irracionalidade)

 Via de regra, existe uma tendência de que o processo de adaptação de obras literárias para o cinema repercute em perda de qualidade artística. Seja na impossibilidade de exibição dos detalhes presentes nos livros, seja, especialmente, nas dificuldades em expor qualidades subjetivas dos personagens, os leitores costumam acusar alguma frustração quando se deparam com as transformações dos textos romanescos em filmes. Esse não é, todavia, o caso do filme O Leitor que, inspirado no livro homônimo de Bernard Schlink, tem muito mais a oferecer que a peça original. O filme dirigido por Stephen Daldry não somente consegue narrar melhor a história contida no livro, entrelaçando mais precisamente os tempos narrados, como é capaz de superar algumas das limitações de forma e conteúdo que travejam o texto de Schlink.

A narrativa, que se passa na Alemanha, e que se reparte em tempos históricos distintos, intenta, a partir do romance entre um jovem estudante e uma mulher adulta, suscitar reflexões sobre as relações sociais das gerações que vivenciaram e herdaram a época nazista. O tempo é medido pela exposição dos momentos de vida do personagem principal, Michael Berg, na sua juventude e nos momentos da vida adulta (respectivamente expressos nas boas atuações de David Kross e de Ralph Fiennes). O papel da sua amante, Hanna Schmitz, é estrelado de forma precisa e destacada por Kate Winslet, garantindo os momentos mais artísticos do filme.

O encontro dos dois personagens ocorre em 1955, na cidade de Neustadt, num momento de doença do jovem estudante, que é ajudado por Hanna. Depois de uma visita destinada ao agradecimento, os dois acabam se envolvendo sexualmente e, com o desenvolvimento da relação, passam a alternar os momentos de relação sexual com a leitura de obras literárias, lidas pelo estudante para a sua amante. Daí surge, portanto, o título do livro. Contudo, a relação dos dois, perpassada por qualidades de afetividade e de carinho (momentos mais expressivos no filme do que no livro), é quebrada quando Hanna desaparece misteriosamente. Os dois só voltam a se encontrar num segundo momento, em 1966, quando Berg, agora estudante de direito na universidade de Heildelberg, depara-se com Hanna no tribunal, sendo julgada por crimes ocorridos nos campos de concentração nazistas.

A forma narrativa utilizada no livro se estabelece na primeira pessoa, descrevendo atos e fatos passados, dando o tom de uma confissão refletida de Michael Berg. Já o filme, utilizando-se da metanarrativa, consegue superar algumas incoerências narrativas presentes no livro. Tal recurso, além de auxiliar no desenvolvimento da história, facilitando a apreensão sobre os tempos distintos intercalados, também proporciona tons de credibilidade ao personagem principal, na sua tentativa de expurgo de uma culpa implícita. Isso porque, o filme, ao estender a esfera narrativa, fornece uma visão mais ampla das relações sociais, evitando o isolamento no subjetivismo.

Não obstante, o filme não consegue superar algumas limitações da obra original, reproduzindo cenas em que personagens e fatos aparecem pré-determinados e sem possibilidade de alteração, descritas de maneira naturalista. Por outro lado, mesmo que tal problema seja mais expressivo no livro, fica patente a intenção de criticar e superar as qualidades passivas dos personagens a partir de uma concepção antípoda. De um lado o naturalismo e de outro o subjetivismo idealista. Os personagens não são capazes de ultrapassar a passividade das suas vidas, mas são cobrados moralmente e subjetivamente por isso. Especialmente no caso do livro, ocorre a relação entre essas duas questões, pois, ao passo que centra esforços narrativos e dramáticos naquela, não aprofunda de forma necessária e criteriosa a análise social.

Tal fato poderia apresentar qualidades estéticas positivas, caso os personagens fossem sínteses dessas determinações e, a partir das suas condutas pessoais, expressassem mediações particulares desse movimento da totalidade social. No entanto, a história narrada, pecando pela ausência dessa relação social, não apenas hipertrofia a singularidade, como tece nuances que parecem inverossímeis. Tal processo se pluga numa concepção idealista e moralista do escritor, elegendo o mundo das ideias como causa motora dos atos humanos e, dessa forma, derrapa para um julgamento idealista e valorativo dos acontecimentos sociais. Às vezes esses dois movimentos se unem em tons naturalistas: ora situando o enredo (as lembranças do passado) como pré-determinadas e a crítica limitada apenas à contemplação dos fatos e, principalmente, apresentando a personagem principal – Hanna – como intelectualmente e cognitivamente e portadora de problemas psicológicos. Tal descrição se apresenta, portanto, ausente de verossimilhança.

Essa personagem não apresenta muitas qualidades tão reais pois, caso as suas limitações fossem tão elevadas, quais os atrativos que ela poderia exercer sobre o jovem e, inversamente, se ela fosse dominada pela angústia ou pela culpa, o desfecho seria diferente. Trata-se de uma mulher adulta, independente, fisicamente atrativa, mas muito ignorante, com pouca noção dos seus atos sociais. Mas, sendo assim, por que o seu isolamento? Por que a sua brutalidade a priori contra os outros? Se ela é realmente movida pela culpa, esses elementos se entronizariam no seu ser e se apresentariam em forma de contradições. O problema é que, principalmente no livro, essas contradições não são suficientemente apresentadas. O grande suposto desfecho, que representaria o principal enigma do livro, fica antecipadamente explicitado: a incapacidade de leitura de Hanna representa um ingrediente a mais na sua limitada personalidade e não, como desejaria o escritor, uma contradição ao seu ser.

Outro paradoxo existe  na construção do relacionamento do casal, uma vez que, mesmo sendo jovem, o menino – Michael – apresenta inquietações e reflexões mais amplas que Hanna e, pela aparência, a única medida da sua atração por ela ocorre pelo sexo. Mas seria possível a manutenção dessa relação apenas por esse motivo? Aqui o autor não exerce um determinismo biológico, tão presente nos livros naturalistas? A idade precoce dele explica em parte a permanência dessa relação, mas não serve para sustentar a narrativa. Além disso, o autor não expõe no livro outros motivos de admiração dele por ela (diferentemente do filme). Os carinhos que ele recebe ou se restringem ao teor sexual ou aparentam uma relação maternal. Por isso a ausência de admiração autêntica. Inclusive cogita-se que o jovem tenha também problemas psicológicos, o que fermenta ainda mais o grau de naturalismo.

Schlink tenta criar um clima de drama com expectativa sobre o futuro, mas sem sucesso, seja pela própria ausência de drama e suspense, seja, especialmente, pela superficial e introdutória construção dos personagens. Diferentemente, no filme, os fatos e as relações entre os personagens são esteticamente mais elaborados e humanamente melhor abordados, apresentando cenas delicadas e imagens que envolvem o expectador, ora apresentando o problema, ora insinuando as limitações da personagem central. A Hanna da tela é mais humana do que a do livro e isso, mesmo sem alcançar a intensidade almejada, ajuda a segurar a ação trágica e dramática. O filme apresenta uma relação amorosa mais delicada, em que Hanna não apenas instrui seu amante nos roteiros sexuais, como existe uma admiração por parte de Michael perante o comportamento sensível da parceira. Da mesma forma se apresentam nuances emotivas da personagem, quando essa escuta e se emociona com as histórias lidas pelo amante. Um exemplo dessas diferenças encontra-se na cena da igreja, dentro do passeio realizado pelo casal. Enquanto o livro tende a demonstrar um grau mais elevado de ignorância ou brutalidade em Hanna, o filme a apresenta com tons de humanismo, expondo suas sensações emotivas ao ouvir o coro das crianças. É nesse sentido que se justifica a ausência de uma cena do livro, a da agressão de Hanna em Berg que, não sendo incorporada, serviu para elevar a qualidade humana em detrimento de elementos naturalistas.

A distância estética entre as duas obras diminui a partir da segunda parte, quando o livro passa por uma alteração dinâmica de forma e conteúdo. Nesse novo ambiente literário, em que se descrevem os meandros do mundo jurídico (campo profissional de Schlink), os detalhes exibidos passam a funcionar esteticamente na sua dupla atuação de reflexo: como descrição dos fatos da realidade e na exposição artística dessas determinações sobre os personagens. Ainda que os personagens não alcancem méritos artísticos capazes de sustentar sua plena verossimilhança, aqui eles estão mais humanizados e problematizados. Mostram-se e se escondem com base nas suas contradições humanas. Inclusive quando se apresentam covardemente e passivamente, essa condição está mediada pelas circunstancias sociais. É nesse momento que essas obras estéticas conduzem o leitor e/ou expectador a uma importante reflexão filosófica. O julgamento das guardas nazistas, dentre elas Hanna Schmitz, sobre a culpa em crimes cometidos durante o holocausto, constitui-se como ápice artístico e reflexivo de O Leitor. Nesse ambiente podem se observar três tipos de julgamentos e de culpas. Dois desses recaem diretamente sobre os personagens principais, enquanto o terceiro é mais amplo e de maior impacto atual.

Pelo desenvolvimento das cenas, fica clara não apenas a culpa de Hanna pela morte de prisioneiras judias, mas, em seguida, também a de Berg, culpado de omissão por não revelar a condição de analfabetismo da ré e que alteraria a sentença auferida. É a culpa que representa a tônica do filme, servindo como motor da história até o desfecho do filme quando, finalmente, Berg tenta realizar a sua purgação. O julgamento mais importante, contudo, é sobre a organização racional da irracionalidade, que se inicia com a reflexão sobre a vigência da lei. A lei pode ser retroativa ou não? Os guardas nazistas, que seguiam as leis da época, podem ser culpados?

A primeira indicação filosófica sobre esse julgamento é orientada pelo professor de direito (uma bela atuação de Bruno Ganz) – que acompanha os estudantes durante os processos nazistas. Ele afirma que “As sociedades pensam que funcionam através de conceitos morais, mas não. Elas funcionam através de algo que se chama lei. Ninguém é culpado de nada só porque trabalhou em Auschwitz”. “Para provar um homicídio tem que provar o dolo. Esta é a lei”. “A questão não é se foi errado, mas se foi dentro da lei. E não das leis atuais. Não, das leis da época”.

Apesar da tentativa de apreensão social e histórica sobre esses fatos, no fundo se descai em uma análise idealista, utilizando alguns princípios morais deslocados do tempo e do espaço como parâmetros para análise. Utiliza-se de um imperativo categórico para analisar outro: a lei pela moral. Não se consegue, assim, encontrar fundamentos ontológicos que permitam superar uma concepção idealista. A questão se Hanna, que cumpriu ordens, pode ser condenada, deve ser antecipada por outra que analise e fundamente os princípios históricos da própria lei. E são, contraditoriamente, as afirmações de Hanna que indicam os elementos para essa análise.

Ao ser perguntada por que ela ingressou na SS, a resposta de Hanna é simples: “Eu soube que havia vagas” e, assim, foi trabalhar como guarda no campo de concentração de Auschwitz. Além disso, Hanna assume a participação na morte de prisioneiras, quando realizou seleção daquelas que seriam escolhidas para morrer: “éramos seis guardas e decidimos que cada uma escolheria dez pessoas. Era o que fazíamos”. E, ao ser perguntada pelo juiz se ela não havia percebido “que estava mandando essas mulheres para a morte?”, ela responde burocraticamente: “Sim, mas novas prisioneiras chegavam a toda hora e as antigas tinham que dar lugar às novas”. O diálogo se intensifica e o juiz a questiona: “Para arranjar espaço você escolhia as mulheres dizendo: ‘Você, você e você serão mandadas de volta para morrer”. Mais uma vez a resposta de Hanna é operacional: “O que o senhor teria feito?”.

A pergunta produziu dois impactos, pois não apenas demonstrava à limitação das reflexões da ré diante da ordem estabelecida e, por isso, representava, para ela, uma pergunta inédita, como acarretou implicações para o juiz que, não sabendo o que responder, balbuciou respostas transversais. Tal anátema se amplia para o público quando um episódio genocida é narrado pela sua sobrevivente. Durante uma noite, quando ocorria uma travessia de 300 prisioneiras, o local onde estas estavam abrigadas começou a pegar fogo e, sendo mantido trancado pelas seis guardas, produziu o trágico acontecimento genocida. Ao ser questionada sobre os motivos de não ter aberto as portas, Hanna responde: “É óbvio. Por um motivo óbvio. Não podíamos abrir”. “Éramos guardas. Nossa tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixa-las escapar”. “Se abríssemos as portas, seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem?”.

Essa é a grande reflexão colocada por O Leitor: a burocratização de práticas irracionais que, limitando-se ao cumprimento de ordens e padrões estabelecidos, serve para legitimar a mais absurda das ideologias. Pena que, aos poucos, o seu roteiro se encaminhe para uma naturalização e individualização do problema, ora apresentando a ré como portadora de patologia mental, consubstanciada de qualidades sádicas, ora como intelectualmente e cognitivamente incapaz de entender o que se passa em sua volta. Por isso que, conforme afirmamos, o suposto grande segredo do filme, de que Hanna era analfabeta serve, dentro desses termos, mais para fermentar essa postura escapista e idealista do escritor, do que para providenciar ingredientes de suspense para a trama.

E, dessa forma, não adentra na análise de elementos essenciais sobre os fatos acontecidos e, principalmente, sobre as possibilidades de transformar a irracionalidade em sistema racionalmente operacionalizado, estabelecida pela imediaticidade e pela manipulação das atividades práticas. Não tangencia para a questão sobre os limites da práxis imediata e manipulatória que, atendendo aos requisitos de uma organização racional pragmática, tende ao automatismo e ao imediatismo superficial e, dessa forma, impossibilita a reflexão entre meios e fins. Atendendo a uma organização racional autômata, descarta-se o vínculo entre os atos imediatos e as suas consequências futuras. Tais práticas, naturais em qualquer esfera da vida cotidiana, são dependentes da esfera moral que lhes fornece validação e, a depender do contexto social, essas se estabelecem sem reflexão sobre o real, tomando-se apenas pela sua aparência, com um circuito de adaptação e, portanto, de validação e legitimação do sistema vigente.

Nesse sentido, pode-se fazer outra pergunta, mais filosófica: é possível estabelecer uma organização racional de uma proposta de um sistema irracional? A lei positivista e instrumental pode servir para validar uma sociedade de exceção? Se o crime é – dentro dos cânones positivistas – um atentado à lei e essa, por sua vez, representa um fato social independente e superior, mesmo que oriundo de uma cristalização histórica de valores e regras morais, existe alguma impossibilidade dessas qualidades se vincularem ao irracionalismo? Como combater a maldição nazista com instrumentos de forma e conteúdo manipulatórios?

Inversamente, a única forma real de combater o irracionalismo e a sua possibilidade de organização racional não é pela adoção da razão manipulatória, mas com base no humanismo e, assim, com base no pensamento dialético. Da mesma forma, se o objetivo é extinguir as possibilidades prenhas de estados de exceção social e de teor irracionais, como o nazismo, a única solução é a extrema democratização da vida social, em todos os seus expoentes, desde a participação política até a produção e distribuição da riqueza social. É por essa via que o humanismo torna-se capaz de superar os imperativos da propriedade privada, uma vez que, por mais distante ou nebuloso que possa aparecer para alguns ideólogos de plantão, no horizonte do sistema burguês, especialmente em momentos de crise (como a vivenciada atualmente), encontram-se presentes vários ingredientes da exceção social e do irracionalismo, tendo como sua protoforma a vigência da mercadoria como fonte de mediação entre as pessoas.

Se a medida das relações sociais se dá pela craveira monetária e a mercadoria aparece como a síntese da sociabilidade, como negar que a desigualdade econômica, amplificada pela ideologia consumista não derive na adversidade entre seres humanos e, assim, estabeleça círculos limitadores da vida humana? E, a partir desse ponto, como se evitar a construção irracional de tipologias humanas, criando insulamentos grupos sociais em diferentes guetos? Nessa medida de adversidade humana, com a negação do humanismo, as pessoas são adestradas ao mais cínico egocentrismo e, entre essa concepção de mundo e uma ideologia de aristocracia humana, em que algumas pessoas são apresentadas como os eleitos, a fronteira é muito tênue.

Muitas vezes as duas perspectivas se misturam, sendo uma catalizadora da outra. A liberdade de mercado sobrepujando a igualdade de possibilidades e acessos a objetivações sociais, ou seja, subordinando a liberdade dos seres humanos, é um elemento central nesse processo ressuscitador de monstros não tão adormecidos. O capitalismo não é apenas o pai do imperialismo mas, nas suas crises permanentes e distintas, encontra-se o germe da besta nazista. Esse embrião pode até ter sido, em momentos anteriores, um ente bastardo, mas hoje se apresenta bem próximo de ter a marca do seu DNA.

Todavia, ainda que avance bastante em relação ao livro de Schlink, o filme de Daldry não introduz o expectador nesse campo de reflexões. Sua narrativa aparece mais como uma revolta pessoal – fixada em valores morais – de alguns indivíduos contra a passividade de seus atos. É a partir desse lugar que se situam as críticas das práticas nazistas; menos pela estrutura que sustentou os delineamentos desse sistema social e mais pelo trato das pessoas como desprovidas de autonomia da vontade. Como se as pessoas, se não fossem desconhecedoras dessas práticas, ao menos não teriam coragem e capacidade de atentar contra o status quo. Uma crítica idealista contra uma análise naturalista.

Mesmo avançando no argumento individual, como um plano importante da exposição artística, o filme fica ausente de mediações profundas nas relações entre indivíduo e sociedade, elegendo os valores morais de maneira categórica e, contraditoriamente, exigindo dos sujeitos que não sigam as determinações históricas. Ausente da crítica aos fundamentos estruturais da sociedade, O Leitor admoesta a culpa a partir de concepções moralistas. Também por isso a sua construção artística não resiste a uma apreciação mais crítica. O reflexo realista encontra-se ofuscado, ficando na porta de entrada e, assim, nem a amplitude da culpa é efetivamente julgada, nem os personagens conseguem expurgar o peso das suas consciências.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Mensal - Julho de 2013 – Ano XI - ISSN 15196186 – Editor: Antonio Ozaí da Silva (UEM).

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Um Homem Perfeito

Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente. O Sr. Cesário, às doses espaçadas e discretas, faz bem. É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, é demais.

Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro novo, folheado a furto, com a continuação se converte num símile dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera do dentista ou na loja do barbeiro.

Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável do Sr. Cesário é que ele me dá lições de estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém às relações públicas entre funcionários e pessoas colocadas. Ele não é, mas devia ser diretor de uma repartição.

Fala como um bom minutador de ofícios. Tem a serena compenetração de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito das fórmulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe acabado. Por esse aspecto burocrático, o seu contato é útil. Boa pedra de amolar. O mau é que às vezes amola demais.

Que rico fundo de idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim como quem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde, fiz uma boa coleta de opiniões do meu distinto amigo.

O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário é um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniático. Já houve mesmo um indivíduo maldoso, de cujo nome nem me quero lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um filho dileto da Opinião Pública."

O Sr. Cesário sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão de ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicção, a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum é o que há de menos comum entre os homens". Também costuma declarar, com um gesto fisionômico de aguda intuição, que "tudo é relativo".

Acerca de moral, só lhe ouvi por enquanto um conceito genérico nitidamente formulado: "Inteligência sem caráter é droga".

Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, costuma ser mais explícito, provavelmente porque a sua situação de amigo do vigário da paróquia e de irmão do Santíssimo lhe tem permitido certa familiaridade com o mistério.

Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Além são necessários e são insubstituíveis.

O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é seu dever de católico nato e praticante acatar as injunções da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui mesmo" - "se bem que não se devam aceitar certos exageros de pessimismo".

Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religião é um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."

As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio enxuto e corrente:

Todas as formas de governo são boas, desde que haja honestidade.
O nosso povo não estava preparado para a República.
Governar é uma questão de bom senso e de recursos.
É um grande mal a oposição sistemática.
Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.
A política de hoje é eminentemente econômica.
A maior das nossas necessidades é a educação, - em termos.
O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.
Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas.
Somos um povo em formação.
A boa administração depende da estreita harmonia dos poderes.
A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar.
A esmola deprime e nada adianta.
O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.
A retórica é outro vício brasileiro.
A dissolução dos costumes caminha a passos de gigante.
O Brasil é uma terra de poetas.
A maior das nossas desgraças é a crise de caráter.
"A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".

Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a propósito de um romance de Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou que não era para ele, mas para a senhora. Não gosta senão de romances históricos e instrutivos, como os de Júlio Verne e Vítor Hugo.

Passou a expender idéias sobre outros ramos. Não perde tempo com poesias, mesmo porque não as entende. Os dramas e tragédias já não são para os nossos dias; ninguém mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida. O teatro deve ser humorístico e moral.

Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios de análise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesário está convencido de que todos os clássicos, que aliás nunca leu, são cacetes e intragáveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo: "Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui, entendeu?"

Acha que a língua italiana é a mais suave, quando bem pronunciada; mas que a mais útil, na atualidade, é a inglesa. Quanto à nossa, acredita que seja a mais difícil de todas, a mais "cheia de dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando português.

O que aí fica é resultado de uma colheita muito irregular, mas já basta a caracterizar as
qualidades fundamentais deste sólido e harmonioso espírito.

Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.

Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia, eu poderia tomar o meu amigo como um compêndio vivo das filtrações eruditas e literárias de segunda mão na mentalidade média da burguesia nacional, e explorá-lo metodicamente. Daria para um belo estudo de Psicologia Idiomática, cheio de conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o alienista, -um belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduos que a Providência destacasse para lhe meterem a lenha.

As expressões frias do Sr. Cesário são algo de suculento e de opíparo. Algumas, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o aspecto original de um homem que acha graça nas crepitações do próprio pensamento.

Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às "trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara do anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "num crescendo assustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsáveis.

De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom à conversação, e o Sr. Cesário se desata em chuveiros de preciosidades.

A propósito de política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos de sereia". Mas também, por um estríqueto "dever de imparcialidade", não podia deixar de "verberar o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas de leite os postos de sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta de carga".

Terminou resumindo-se numa sentida peroração:

"Enfim, meu caro amigo! é a tal crise de caráter.

"Mas que quer? Nem a majestade da religião escapa a esse referver de paixões subalternas! Até no seio das irmandades se intromete a politicagem rasteira! Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés de lã, e... Homem! paremos por aqui.

"O tempora!"

De onde pude inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com algum desaguisado na paróquia.

A um espírito assim ricamente organizado não podia faltar um certo aparelho de erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como convém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:

"Laborônia vince -Cosivá ilmondo -Senon évéro... -Lemondemarche -Arraite! -Tâimismónei -Savá sandire -Via crúcis -Tante grácie, cabalhero! -Por mares nunca dantes navegados Festim de Baltazar -Ciumento como um Otelo -As trevas da Idade Média -Crueldade neroniana -Justiça imanente -Psicologia das multidões Os meio intelectuais -O poverélo de Assis -As lições da sociologia -A ciência de Ádan-Esmite -O último romântico -Os tonéis da Danaide - Vá derrétro!"

Enfim, grande caçador de frases perante o Eterno!

Fonte:
Domínio Público

Rita Jover-Faleiros (O conceito de gênero textual e seu uso em aula)

Para trabalhar com gêneros nas aulas, deve-se ter atenção às razões de sua escolha, às características e às funções do tipo selecionado. Isso é essencial para elaborar bons planos de aula e para que esses resultem em relatos de experiência excelentes

1. Fatores a considerar no trabalho em sala

Há cerca de dez anos, durante uma sessão de fechamento dos trabalhos do Congresso de Leitura (Cole), evento organizado a cada dois anos pela Associação de Leitura do Brasil na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), um eminente pesquisador da área dizia-se impressionado pelo modo como o conceito de gênero textual marcara presença entre os trabalhos apresentados naquele ano. Segundo o professor, a tendência era o conceito aparecer cada vez mais. Ele tinha mesmo razão. "Gênero" tornou-se uma referência comum em pesquisas, propostas curriculares e nas práticas de sala durante as aulas de Língua Portuguesa.

De fato, há grande consenso quanto ao interesse em se explorar a noção de gênero textual em contexto didático. Entretanto, para que essa atividade seja proveitosa, é necessário que o professor esteja bastante consciente de alguns fatores:

- Quais as razões para selecionar determinado gênero;

- Quais características o configuram;

- Quais as funções específicas do gênero selecionado;

- Quais objetivos de aprendizagem (específicos à área) o gênero selecionado propicia atingir junto a seu grupo de alunos;

- Que saberes prévios e estratégias de leitura ativa o gênero selecionado mobiliza.

A mim parece necessário que esses pontos estejam claros para os que se lançam à empreitada de desenvolver propostas de atividades com o uso do gênero. Nos capítulos deste artigo, proponho abordarei cada um desses aspectos, culminando com a ênfase em dois gêneros importantes para o professor: o plano de aula e o relato de experiências.

2. Uma breve história do conceito de gênero

Os Parâmentros Curriculares Nacionais (PCNs) atestam a importância do gênero para o ensino de Língua Portuguesa

Para começar, vale a pena expor uma breve história do conceito de gênero. Como nos ensina o linguista Luiz Antônio Marcuschi no artigo "Gêneros textuais: definição e funcionalidade" (presente no livro Gêneros textuais & ensino), os gêneros são formas presentes já em povos de cultura essencialmente oral, e passam a se multiplicar com o advento da escrita alfabética por volta do século 7 a.C.

Isso significa que tratar da gênese dos gêneros implica falar da relação com o homem com a linguagem ao longo de toda a história. Como defende o célebre filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975), só nos comunicamos por meio de gêneros.

A apropriação do conceito pelo ensino, porém, é bem mais recente. Nesse sentido, merecem destaque os trabalhos dos pesquisadores Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, da Universidade de Genebra. No Brasil, um marco importante são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1998. No documento, a organização curricular em Língua Portuguesa dos anos equivalentes ao Ensino Fundamental 2 aparece estruturada sobre o conceito de gênero textual.

A partir de então, cresce o interesse pelo conceito e sua aplicação em sala. Tive uma mostra disso no ano de 2012, quando fui selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10. Entre os trabalhos inscritos, realizados por professores de todas as regiões do Brasil - de escolas rurais ou urbanas, públicas ou privadas, resultando num quadro cultural e socioeconômico bastante heterogêneo -, é possível identificar traços comuns dentro da diversidade.

Uma das semelhanças diz respeito ao fato de que, em parte significativa dos projetos, havia interesse comum pelo desenvolvimento de propostas orientadas pela noção de gênero textual. Como reforcei anteriormente, quem deseja trilhar esse caminho deve ter consciência de suas escolhas, levando em conta aspectos que abordarei a seguir.

3. O que é um gênero textual

Do bilhete à poesia, a estabilidade de cada gênero se manifesta por suas características comuns

Como nos ensina Bakhtin, gêneros textuais definem-se principalmente por sua função social. São textos que se realizam por uma (ou mais de uma) razão determinada em uma situação comunicativa (um contexto) para promover uma interação específica. Trata-se de unidades definidas por seus conteúdos, suas propriedades funcionais, estilo e composição organizados em razão do objetivo que cumprem na situação comunicativa.

Explicando melhor: isso significa que, a cada vez produzo um texto, seleciono um gênero...

... em função daquilo que desejo comunicar;

... em função do efeito que desejo produzir em meu interlocutor;

... em função da ação que desejo produzir no meio em que me inscrevo.

Isso vale das trocas mais prosaicas do cotidiano, nos bilhetes registrados em post-its colados nas geladeiras, passando pelas mensagens eletrônicas, entrevistas (orais e escritas), bulas de remédio, orações, cordéis, dissertações, romances, piadas etc. Uma das principais características dos gêneros é o fato de serem enunciados que apresentam relativa estabilidade. É esse aspecto que permite, justamente, com que sejam compreendidos.

Um exemplo extremo disso está no gênero "bula de remédio". Nos idos dos anos 1980, a linguista francesa Sophie Moirand mostrou como a estabilidade desse tipo de enunciado permitiria que qualquer falante do francês sem conhecimento nenhum de grego pudesse localizar informações (nome comercial, princípio ativo e posologia, por exemplo).

4. Como um gênero dá origem a outros

Transmutabilidade: gêneros como o e-mail guardam "parentesco" com outros, como a carta

No capítulo anterior, enumerei uma série de gêneros (bihlete informal, bula de remédio, dissertações etc.) e poderia seguir numa lista virtualmente infindável, pois justamente uma das características dos gêneros textuais reside em sua transmutabilidade - ou seja, novas formas geradas a partir de formas já existentes.

Por exemplo: é possível considerar que um correio eletrônico guarda muitos traços comuns com a carta que costumávamos mandar pelo correio. Essa origem pode mesmo ser atestada pelo nome em português (correio eletrônico), em inglês (e-mail, abreviação para electronic mail) ou em francês (courriel, courrier para correio contraído com o adjetivo électronique).

A partir de uma disposição existente, a da carta, desenvolve-se uma forma relativamente nova, mas que guarda a familiaridade do gênero de que provém, adaptada às funções e objetivos do contexto em que é gerada. Se antes a carta estava contida em um envelope e, nele, algumas informações paratextuais (os endereços de destinador e destinatário), no gênero correio eletrônico essas informações passam a constar da mensagem, ainda que de forma periférica, mas com implicações na forma como redigimos.

Pensemos na data, que no correio eletrônico consta automaticamente dos cabeçalhos, ao passo que na carta era de responsabilidade do destinador indicar no texto ou à direita no papel. Todo sistema de referências temporais se articula a partir da informação dada, que não nos cabe inserir, nem alterar, pois ela é gerada pelo servidor que envia e recebe as mensagens.

5. O plano de aula e o relato de experiência como gêneros

Saber como analisar e usar os gêneros é o primeiro passo para produzir bons relatos de experiência

Proponho, agora, analisar como as características dos gêneros - em especial sua função social, a estabilidade de enunciados e a transmutabilidade - aparecem em dois tipos de texto de fundamental importância para o professor.

Imaginemos que tenho a tarefa de elaborar uma aula e que essa elaboração deve estar registrada em uma estrutura que permita com que eu e outros leitores compreendamos. Existe algum gênero que se ajuste a essa intenção comunicativa? Sim: trata-se de um registro de aula a ser dada, que deve conter, digamos, objetivos, suporte, tempo destinado à atividade e metodologia. A articulação desses elementos em contexto didático nos remete ao gênero plano de aula.

As formas de anotação de um plano de aula variam de acordo com o professor e instituição, principalmente de acordo com as razões para seu registro. Mas, como regra, podemos dizer que trata-se de um plano, logo, de algo a ser realizado. Por essa razão, os verbos indicando as atividades devem aparecer no infinitivo ("debater", "dividir o grupo em duplas", "distribuir o texto para leitura", "ler" etc.) ou mesmo (para as anotações mais pessoais) no futuro simples ("debateremos", "dividirei o grupo em duplas", "distribuirei o texto para leitura", "leremos").

Suponhamos, agora, que um professor muito contente com os resultados da aplicação de um plano de aula resolva se inscrever num concurso, por exemplo. Para que esse professor possa adequar-se à nova situação de comunicação que se apresenta a ele, é necessário que transforme o que era o registro de suas intenções (seu plano de aula) em um relato de experiência.

Em outras palavras, é necessário descrever que as ações realizadas em sala de aula resultaram em uma atividade rica e transformadora de aprendizagem para seus alunos e para ele, e um dos elementos para que seja operada essa transformação é justamente a passagem dos verbos do infinitivo ou futuro (originalmente no plano de aula) para o pretérito perfeito (relato de experiência).

Analisar nossos planos e registros da atuação em sala com consciência dos aspectos fundamentais do conceito de gênero é uma caminho frutífero para que se elaborem bons planos de aula e para que esses resultem em relatos de experiência excelentes. O convite está feito!

Fonte:
Revista Nova Escola. Março de 2013.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 20

CAPÍTULO XII
Voltou de lá As três horas da tarde do dia seguinte.

— Mais um dia perdido! Considerava ele amargamente ao entrar em casa já ao cair da noite e depois de ter jantado em companhia de amigos.

Ainda no corredor foi detido pelo Coruja, que lhe disse com reserva:

— Acho bom que não subas agora! Aquela sujeita do Almeida, a Ernestina, está aí A tua espera. Não subas!

— Está aí? perguntou Teobaldo deveras contrariado. Que diabo quer ainda de mim essa mulher?

— Não sei; diz o Caetano que ela já aí está há quatro horas.

— Ora esta! E, logo hoje, que eu precisava dormir!

— Recolhe-te mais tarde; ela talvez não se demore.

— Qual! Vou despachá-la! Verás!

E, enquanto subia a escada acompanhado pelo amigo:

— Não faltava mais nada!... Estou mesmo muito disposto a aturar mulheres!... Já me bastam as maçadas que me dão as outras! Além dela ninguém me procurou?

— Depois de eu chegar, não.

Teobaldo tinha por costume perguntar sempre se alguém o procurara na sua ausência. É que esperava que a fortuna viesse um belo dia ao encontro dele, como vinham as mulheres; era uma espécie de vaga confiança no acaso; um modo preguiçoso de desejar ser feliz.

Assim, quando pilhava dinheiro, arriscava algum na roleta ou na loteria. Foi de mau humor que ele entrou na sua pequena sala, abriu a porta com um empurrão e dirigiu-se de cara fechada para a rapariga, que o esperava.

— Teobaldo! Exclamou esta, querendo lançar-se-lhe nos braços.

— Perdão! Disse o perseguido, afastando o corpo. Não estou disposto a dar abraços; venho incomodado. Faça o favor de dizer o que deseja, mas que seja breve!

— Oh! Não te reconheço! Não pareces o mesmo!…

— Diz muito bem! Eu com efeito já não sou o mesmo. Grandes transformações se deram na minha vida. — Adiante!

— Compreendo; é que amas a outra!

— Ai, ai, ai, minhas encomendas! Gritou o rapaz, sem poder dominar a impaciência. Teremos ainda discussões sobre o amor? Mas, minha senhora, há uma porção de dias que não ouço falar em outra coisa! Estou farto! O que se pode chamar farto! Oh!

Ernestina pôs-se a chorar.

— Então, então! Resmungou ele; deixe-se de asneiras e diga o que a trouxe.

— Ah! Já não me posso iludir; amas a outra!

— Engana-se! Não amo mulher alguma!

— Nem a mim?

— Mas que lembrança foi essa a sua de vir aqui? Há mais de dois anos que nos separamos, creio que sem protestos e sem juramentos!... E vê-la assim, sem mais nem menos, tirar-se dos seus cuidados e…

— É que então eu não era livre, não podia acompanhar-te: vi via meu marido!

— Marido?

— Sim. O Almeida afinal enviuvou, casou-se comigo, e três meses depois faleceu nos meus braços.

— Que não casasse... Respondeu Teobaldo, rindo.

— És cruel!

A mesma frase da outra, pensou ele, com um suspiro de tédio.

Ernestina circunvagou os olhos em torno de si, para certificar-se de que estava a sós, e acrescentou:

— Um dia ofereceste-me a tua proteção, não é verdade? Venho reclamá-la…

— Sim, mas é que os tempos se mudaram; já não tenho com que proteger ninguém, nem a mim mesmo! Estou na espinha!

— Teobaldo! Eu não vim pedir-te esmola!

— Então diga o que veio pedir.

— Vim em busca de amor! Para esquecer-me de ti fiz o que era possível; nada consegui e cá estou, disposta a afrontar o último sacrifício, contanto que fique ao teu lado. Amo! E, dizendo isto, tenho dito tudo!

— Sim?... Perguntou o rapaz, apertando os olhos. Mas não me fará o obséquio de dizer que culpa tenho eu disso?

— Não sei; amo-te, e nós, as mulheres, quando amamos deveras, somos capazes de tudo!

— Pois se é capaz de tudo, veja se consegue deixar-me em paz!

— Menos isso!

— Pois, olha, filha, custa-me a confessar, mas acredite que estou em uma tal situação que não me é possível absolutamente pensar em mulheres. Não imagina! Acho-me com a vida muito atrapalhada; falta-me tempo para tudo; os dias fogem-me por entre os dedos como se fossem minutos. Se a senhora é minha felicidade, não queira ser a primeira a criar-me novos obstáculos. Já tenho tantos!

— Não! Quero apenas saber se amas a uma outra mulher.

— Não! Já lhe disse que não, e acrescento que se não amo, é porque não posso, é porque não tenho jeito, não tenho tempo, e é porque agora me faltam recursos para isso! Está satisfeita?

— Pois, se não amas a outra, juro-te que hei de, a força de dedicação, fazer-me amada por ti! Verás!

— Aconselho-lhe que não tente semelhante coisa! Perderia o seu tempo! O que não falta por aí são rapazes em muito melhores circunstâncias do que eu. Experimente e verá!

— Mas se só a ti desejo e amo? Se ninguém é belo, forte, inteligente como tu?

— Sempre a mesma cantiga! Exclamou Teobaldo. Malditos dotes! Afinal, preferia ser mais feio do que o Coruja!

— Não blasfemes!

— Qual blasfemes, nem qual histórias! Quer saber de uma coisa? Errou a pontaria. Veio buscar amor? Pois bem — não há!

E, passeando de um lado para outro furioso:

— Oh! Oh! É demais! Não tenho obrigação nenhuma de aturar isto! Apre!

Ernestina defronte daquele transbordamento de cólera, principiou a soluçar, dizendo que era a mais desgraçada das mulheres; que amava um homem que a tratava daquele modo, e, enfim, que — Se Teobaldo não estivesse disposto a ser mais generoso, ela daria cabo da vida.

— Faça o que entender, minha senhora!

— Tu serás a causa. de minha desgraça!

— Paciência!

— Malvado!

— Não acho! A senhora é infeliz porque me ama; não me amasse!

Ela então lançou-lhe os braços em volta do pescoço e abriu a dizer entre beijos:

— Não! Não é possível que sejas tão mau! Sei que dizes tudo isso para me experimentar! Amo-te, adoro-te! Estou disposta a afrontar tudo!

Teobaldo desembaraçou-se das mãos dela grosseiramente, foi buscar o chapéu, enterrou-o na cabeça e saiu, dando-se aos diabos. A pobre rapariga, depois do esforço que fizera para dete-lo, deu ainda alguns passos, muito ofegante, até à porta e afinal caiu sem sentidos. Esta crise era promovida pelo despeito e em grande parte pela ausência do jantar.

Coruja, que no seu quarto aprontava com pressa um trabalho para o dia seguinte, ouviu-lhe o baque da queda e correu a socorre-la.

— Que significa isto? Perguntou ele, erguendo-a do chão e indo depo-la sobre a cama de Teobaldo, que ficava na alcova próxima.

— Fugiu-me! Disse a infeliz, abrindo os olhos e soluçando com mais ânsia; — fugiu-me, depois de dizer que não me amava e que nunca me amaria!

— Pois ele disse isso!... Murmurou André, sem saber o que devia fazer, muito perturbado com aquelas lágrimas e com aquele desespero.

— É um ingrato! É um homem mau! Exclamava ela nas curtas intermitências do choro. É um malvado.

— Veja se consegue ficar tranqüila... Aconselhava o professor a acarinhá-la. Faça por isso…

E, com uma idéia:

— Mas, agora reparo, a senhora está aqui há um bom par de horas e naturalmente precisa comer. Vou arranjar-lhe qualquer coisa.

— Não se incomode.

— É que por essa forma a senhora ficará pior. Vamos, procure tranqüilizar-se enquanto lhe arranjo a ceia.

Ela aceitou afinal e o Coruja afastou-se.

No fim de um quarto de hora voltava ele com uma bandeja nos braços.

— Veja se consegue sempre meter alguma coisa no estômago, dizia a arranjar a mesa; eu lhe farei companhia. Vamos.

Ernestina arrastou-se ainda muito chorosa até à mesa e, entre suspiros, principiou a comer. O Coruja ao seu lado desfazia-se em solicitudes, sem aliás conseguir animá-la.

— Oh! Mas é que dói muito semelhante ingratidão! Exclamava ela com a boca cheia. Um rapaz, por quem eu seria capaz de dar a vida, tratar-me deste modo, dizer-me cara a cara o que me disse e, afinal, sair como saiu, desprezando-me, nem que se eu fosse um cão tinhoso!

— É que ele estava hoje de mau humor, coitado! Arriscou André. Há de ver que amanhã já a tratará de outro modo...

— Qual! Amanhã fará pior; tola fui eu em mostrar-me apaixonada Ingrato!

O professor empregou ainda alguns esforços para tranqüilizá-la e depois confessou que estava muito atrapalhado de serviço e precisava continuá-lo.

— Não me posso descuidar um instante, acrescentou. É um trabalho com pressa. Olhe, a senhora fique a seu gosto, está em sua casa, se precisar de qualquer coisa é só chamar por mim. Com licença. Até logo.

E, enquanto ele se afastava, muito feio com o seu ar giguento e mal amanhado, Ernestina murmurava:

— Foi-se aquele ingrato e ainda por cima deixa-me aqui este maldito Coruja, que a gente só de olhar para ele parece que fica doente! Credo! Que estupor!
––––––––––-
continua…

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 19

CAPÍTULO XI

Resolveu não ir, mas no dia imediato, quando deu por si, estava defronte da casa de Leonília.

Tencionava não entrar, mas uma grande confusão de vozes que vinha das salas, prendeu-lhe a atenção.

— Que diabo significa isto? Pensou ele. Dir-se-ia que fazem leilão em cima. Pelo corredor viam-se entrar e sair negros e galegos carregados de móveis; ao passo que um formigar de homens sem bigode, cabelo curto, de jaqueta, sem gravata e sem colete, enchia todos os aposentos da casa.

“E” um leilão! Não há dúvida!... Considerou o rapaz, subindo até ao primeiro andar, e o seu raciocínio foi confirmado logo pela presença de um sujeito que, de martelo em punho, apregoava o preço dos móveis a um grupo de arrematantes:

— Vinte mil réis pelo espelho! É de graça, meus senhores! Vinte e cinco mil réis! Ninguém dá mais?.

Teobaldo, com esta música a perseguir-lhe os ouvidos, atravessou a sala e depois os quartos, até encontrar o criado que o recebera naquela noite do Lírico.

— Ah! É o Sr. Teobaldo?

— Sim, disse este.

— Aqui tem esta carta.

O rapaz tomou a carta, abriu-a e leu:

Mudei-me para Santa Teresa; agora já não tens razão para fugir de mim; espero-te, não te demores.
Tua Leonília.

Vinha escrito o nome da rua e o número da casa.

Teobaldo sem ânimo de entestar com as idéias que lhe trouxe a leitura dessas poucas palavras, desceu à rua e, quase que maquinalmente, foi seguindo a indicação do bilhete.

Chegou às três horas ao lugar marcado; era uma casinha nova, muito modesta e pequenina, escondida entre meia dúzia de árvores e coberta de trepadeiras, que lhe davam um aspecto encantador. Ele atravessou o pequeno jardim e bateu. Leonília veio em pessoa abrir a porta. Não parecia a mesma, tal era a transformarão porque passara; até a sua própria fisionomia parecia outra.

Trazia um singelo vestidinho de chita, apertado à cintura, que mal deixava perceber uma pequena parte do colo; os braços, porém, mostravam-se livres por entre a largura das mangas e o cabelo, enrodilhado sobre a nuca e seguro por um simples pente de tartaruga, já lhe não caía na testa como dantes, mas ao contrário dividia-se-lhe em dois bandós naturais fazendo ver uma fronte cor de mármore, cujos sutis reflexos de ouro mais pálida a torravam.

Por únicas jóias trazia ao pescoço a medalha que lhe dera Teobaldo e no dedo anular da mão esquerda uma aliança de casamento; em vez de caprichosos sapatos de peito aberto e grande salto, que ela até aí usava, tinha agora uma honesta botina, preta, de duraque, apenas guarnecida por um laço de fita da mesma cor.

O filho do barão, ao vê-la assim tão outra, ficou longo tempo a contemplá-la. perguntando com o gesto que significava aquela transformação. Ela, em resposta ao pensamento dele, sorriu e disse, indo colocar-se-lhe ao alcance dos lábios:

— Estás satisfeito?

— Eu?

— Sim, creio que não poderás dizer agora o que disseste ontem.

— Mas tu és doida?... Não te compreendo, filha.

— Isto quer dizer que em resposta à tua frase de ontem, resolvi separar-me de tudo que me prendia ao passado; vendi o carro, a mobília, as jóias, as roupas, e, com o produto dessas coisas, suponho que terei um pequeno fundo de reserva para o dia em que me abandonares.

E passando-lhe o braço no ombro:

— Aqui nada há que te possa fazer corar!... Nada disto foi pago ainda e não o há de ser sem ordem tua; também é tudo tão pouco que não tens que recear pela despesa...

Ficaram ambos calados por um instante.

— Vem ver a casa comigo, disse ela afinal, puxando-o brandamente para fora da pequena sala. É um verdadeiro ninho de noivos pobres... Aqui tudo é simples quanto  pode ser: mobília americana, louça de família... Vês?... Tenho até uma máquina de costura...

Teobaldo olhava para tudo aquilo, como se assistisse à representação de uma comédia; afigurava-se-lhe que, uma vez caído o pano do teatro, Leonília tornaria logo ao primitivo estado.

— Então? perguntou esta, — Não me dizes nada? Ficas assim, mudo, como se nada disto te interessasse?.

— É que ainda não voltei a mim, filha. Estou pasmo!

— Pois então prepara-te para ouvir o mais extraordinário: do princípio do mês que vem em diante vou trabalhar em casa do Gabardan.

— Que Gabardan?

— Aquele cabeleireiro da rua Direita.

— Tu?

— Sim. Meu pai, que era francês como já sabes, foi o primeiro cabeleireiro aqui da corte; eu aprendi a trabalhar com ele e, até o dia em que lhe fugi de casa, tinha as honras da sua primeira discípula; ninguém me excedia na oficina!... E juro-te que, se voltar ao serviço, hei de sair-me tão bem ou melhor do que nesse tempo! Ah! Não calculas! Eu fazia muito mais do que todas as minhas companheiras e apresentava sempre trabalho muito limpo; já ganhava um belo ordenado!

— É admirável! Respondeu o rapaz.

— Ora, prosseguiu Leonília, o Gabardan há muito que me fala em entrar para a casa dele; hoje lhe mandei dizer que aceito e, do princípio do mês que vem cm diante, é natural que…

— De sorte que tencionas fazer uma completa regeneração…

— Só depende de ti…

— É por conseguinte uma regeneração por meio do amor?

— Não! O amor servirá apenas para dar o primeiro impulso; depois o interesse e a ambição se encarregarão do resto.

— A ambição?

— De certo; trabalhando com vontade, é natural que apareçam lucros e com estes a febre de prosperar. Então, todo o meu ideal será ter uma boa casa, uma firma bem acreditada, um capital seguro e, para conseguir tudo isso, é indispensável uma conduta exemplaríssima; é necessário que não possam dizer a mais pequenina coisa contra mim. Compreendes?

— Sim, senhora; o plano é engenhoso e faz honra ao teu espírito, mas convém saber se terás bastante energia e bastante perseverança para realizá-lo…

— Não me conheces!

— Oh! Se conheço!... Vocês, pobres filhas do vicio, são como os ingleses: por mais que viagem, por mais que se demorem nos países estrangeiros, tem sempre o sentido, a alma e o pensamento voltados para a pátria! Veio-te agora a fantasia de dar um passeio pelo amor, mudaste de roupa, tiraste as jóias, tomaste para disfarce esse modesto vestidinho de chita, e desferiste afinal o vôo; mas, se quiseres falar com franqueza, hás de confessar, minha querida, que a tua alma não se prende a esta pobre casinha sem espelhos, sem tapetes e sem as fosforescências do luxo; tua alma ficou lá donde partis-te! Apenas trouxeste a imaginação para uso da viagem! Eu seria capaz de apostar a cabeça em como a tua primeira idéia, quando resolveste fazer tudo isto, não foi o amor, nem a ambição, mas pura é simplesmente calcular o efeito que semelhante fantasia iria produzir sobre as tuas companheiras e sobre os teus admiradores!... — Que dirá fulana quando souber?... Que dirão fulanos e beltranos?... “Com certeza hão de achar-me original, caprichosa, uma verdadeira heroína de romance...” E, se manhã suceder que as tuas companheiras e os teus amantes, em vez de enxergarem na tua regeneração uma fantasia original, entendam que te regeneraste por necessidade, que te fizeste sóbria e modesta por já não poderes ser extravagante e opulenta; se eles julgarem assim, filha, juro que a tua mal-entendida vaidade de cortesã despertará furiosa, e então tu, para provares que não és inferior a nenhuma das tuas competidoras, voltarás fatalmente ao primitivo estado!

— Cala-te!

— Ah! Bem sabes, minha Leonília, que as recaídas são sempre muito mais perigosas do que a própria moléstia!…

— És cruel!

— Não; sou apenas sensato!

— E de que pretendes me convencer com a tua sensatez?

— De que não acredito em semelhante reabilitação!

— Nem no meu amor?

— Nesse acredito. Não que ele dure muito tempo, mas acredito que ele exista agora. Toda a mulher ama sempre; algumas dedicam-se a um só homem durante a vida — São as constantes; outras gostam de variar — São as do gênero a que pertences. Mas, no fim de contas, todas elas amam, naturalmente, sem esforço, por uma fatalidade orgânica, sem haver nisso outro mérito mais do que se obedecessem a qualquer uma das funções fisiológicas do seu corpo.

— Pois então no amor que te consagro, cujas provas reais acabo de dar-te, pão há mérito algum?…

— Não digo isso, filha! Há um mérito relativo no que acabas de fazer; apenas sustento que o amor, qualquer que ele seja, não me causa entusiasmo nem admiração de nenhuma espécie. Se não me amasses, amarias a outro; amas-me, não porque eu seja forte, inteligente ou bom. mas sim por uma razão multo simples — Porque és mulher! O caso seria para espantar. se em vez de te apaixonares por mim, te apaixonasses por uma estatua ou por uma árvore ou por um elefante ou por esta bengala!

— Enganas-te! Amo-te, não pelo simples fato de ser mulher. mas porque tu reúnes em ti todos os dotes que nos seduzem; és nobre e altivo como um príncipe; és forte e corajoso como um homem; és belo como uma estátua; original como um gênio; e espirituoso como um parisiense; e tudo isso reunido: força, altivez, beleza, espírito e 0riginalidade, tudo Isso é o que eu amo e o que faz de mim a tua escrava!

— Logo, se eu fosse feio, estúpido e fraco, não me amarias?

— Não, decerto.

— E é esse amor que entendes tu, deve me entusiasmar?... Tem graça!

— Por quê?

— Nada conheço mais egoístico, mais buxo e mesquinho do que semelhante amor! No fim de contas não é a mim que amas, é a ti própria; não é a mim a quem pretendes contentar, é ao teu próprio gosto, e ao teu próprio coração! Se te sacrificas por mim, se me preferes a tudo e a todos, não é porque eu goze muito com isso, mas sim porque tudo isso é necessário para a tua felicidade; e se me desejas o bem, é ainda para que a minha ventura se reflita sobre ti; é para que tu a possas desfrutar, para que a possas saborear com delícia!., Não achas que isto é exato?…

— E conheces porventura algum amor que não esteja nessas condições? Perguntou Leonília. Olha em torno de ti; procura em todos os corações um amor que não tenha sempre por base o mesmo egoísmo!

— O amor materno... Respondeu Teobaldo, transpondo com a amante oportão da chácara e indo assentar--se ao lado dela sob um caramanchão. A mãeama sempre o filho, seja este feio, estúpido ou mau.

— Mas só ama o próprio, o seu, é esta idéia de propriedade só por si é já egoísmo. Vai dizer a qualquer mãe que faça pelos filhos dos outros o que a natureza lhe inspira por aquele que lhe saiu das entranhas; ela te responderá que "quem pariu Mateus que o embale". E se há uma dedicação sem a menor sombra de altruísmo é essa justamente, porque a mãe nunca ama o filho pelas qualidades que ele possui, mas tão somente porque ele é uma continuação dela, porque ele é um pouco de sua carne e porque é a conseqüência palpitante, por bem dizer a personificação do amor de quem a possuiu. No filho ela se vê a si e vê também o homem a quem amou; isto é, vê todos os gozos, todas as egoísticas venturas de que há pouco falavas; e, meu amigo, se penetrares no âmago de todas as outras afeições, hás de sempre encontrar lá dentro a mesma mola feita de egoísmo.

— E o amor filial?

— Não existe.

— Como não existe?

— Não existe, porque o amor filial é a convivência, é o hábito, é o primeiro beijo que recebemos, é a canção que nos embalou o berço, é a lágrima que se juntou à nossa primeira lágrima, o sorriso que se fundiu com a nossa primeira alegria e, mais tarde, é a recordação de tudo isso! Separa ao nascer um filho dos braços maternos e dir-me-ás depois qual é o amor que ele sente pela mãe. E assim são pouco mais ou menos todos os afetos; uns amam para gozar, outros por hábito, outros simplesmente por necessidade.

— Estás iludida, replicou Teobaldo, acendendo um charuto. Eu, pelo menos, tenho em minha vida uma afeição que se constituiu sem o concurso de nenhuma dessas circunstâncias; tenho um amigo, cuja única boa qualidade que possui e que me leva a estimá-lo, é ser bom; bom, não só para comigo, mas para todos, todos, seja lá quem for!

— Um amigo?

— Sim, o Coruja; não o conheces e bem provável que não chegues nunca a conhecê-lo.

— Por que não?

— Porque ele teria medo desse teu espírito diabólico e profanador. É uma alma imaculada, que se retrai e fecha ao mais leve rumor de tudo que é feliz, espetaculoso e barulhento, com a mesma facilidade com que se abre para tudo aquilo que chora e sofre. É uma triste criatura que vive silenciosamente para a dedicação e para o amor. Tanto é capaz de sacrificar-se pelo bom, como pelo mal; um estúpido ou um gênio, uma mulher monstro ou uma mulher encantadora, todos lhe merecem a mesma ternura, desde que há uma lágrima a estancar ou a mais ligeira sombra de sofrimento a desfazer. É capaz de despir o paletó para cobrir um cão que tem frio, e fica triste se em sua presença decepam uma árvore qualquer.

— É um santo, disse Leonília, a rir.

— Não, volveu Teobaldo; é simplesmente um homem feliz.

E, depois de descrever o tipo do amigo:

— Tenho inveja dele. Confesso.

— Tu?!

— Sim; tenho-lhe inveja...

— Ora essa!...

— Calculo quanto não gozará ele com ser tão dos outros e tão pouco de si mesmo; calculo a infinita volúpia da sua abnegação; o prazer supremo de não ter um vício, a consciência de não ter cometido uma ação má durante toda a sua vida.

— Há de haver um pouco de exagero de tua parte…

— Qual! Não disse a metade do que ele é…

— Que entusiasmo! Parece que o estimas mais do que a mim!…

— Pudera! Resmungou o rapaz, disposto a continuar o elogio do Coruja; mas foi interrompido pelo criado, que os chamava para jantar.

Teobaldo tinha as vezes dessas expansões; dava para discorrer com entusiasmo sobre alguém que na ocasião o impressionava; ao passo que no dia seguinte seria capaz de fazer o mesmo por uma pessoa completamente oposta.

Do meio para o fim do jantar, jantarzinho de hotel, porque nesse dia ainda não se havia acendido o fogão da casa, ele se mostrou menos pessimista a respeito do amor das mulheres e mais disposto a corresponder com os carinhos ao sacrifício de Leonília; entretanto, quando esta lhe falou em viverem juntos, Teobaldo protestou energicamente.

— Não! Isso não era possível!

Ele tinha lá as suas aspirações, precisava fazer carreira e não estava resolvido a começar com o pé esquerdo.

— És um ingrato!... Queixava-se ela, enxugando as lágrimas. És um ingrato! Até aqui fugias de mim, Porque eu não era só tua; pois abandono tudo, venho meter-me neste canto e tu, mesmo assim, declaras abertamente que não queres morar comigo!... Oh! Isto também é demais! Já passa à maldade!

— Não, filha; é impossível morarmos juntos! Não posso. Hei de aparecer-te de vez em quando, sempre, talvez todos os dias, mas…

— És um homem mau, um egoísta.

E multiplicaram-se as recriminações. Afinal Teobaldo, apesar do firme propósito em que estava de muscar-se depois do jantar, resolveu não ir; ficou.

— Também que diabo! Seria crueldade deixá-la ali, naquela casa, em companhia de um criado admitido na véspera.

E de mais, pensava ele, que posso eu recear?... Quando a coisa se torna perigosa, mando-a plantar batatas!
––––––––
continua…

III Concurso Literário “Literatura da Natureza 2013” (Resultado Final)

MENÇÕES HONROSAS

CATEGORIA “POESIA”

DOUGLAS MATEUS MELLO
(Fraiburgo-SC)
Cálido D’um Jamais Não!!!

EDÍLSON NASCIMENTO LEÃO
(Urandi-BA)
O Mar

EMILIANA MARIA DE SOUSA TEIXEIRA
(Itapipoca-CE)
Ecos da Natureza

HELENICE MARIA REIS ROCHA
(?)
A Onda

MARIA DOROTEIA TEIXEIRA SANTOS REIS
(Guanambi-BA)
Desafio e Esperança

ROZELENE FURTADO DE LIMA
(Teresópolis-RJ)
Natureza Completa

TERESA C. C. M. AZEVEDO
(Campinas-SP)
Acordai!

VINÍCIUS PÉRRISSÉ MAIA VERAS
(Rio de Janeiro-RJ)
Não Te Verei Amanhã

CATEGORIA “PROSA”

AUTA LEAL BARBOSA DA SILVA
(Divinópolis-MG)
Borboletinha Azul

GILDA MARIA MARTINS SOARES
(Rio de Janeiro-RJ)
As Flores e o Homem

 QUADRO DE MEDALHAS

CATEGORIA “POESIA”

MEDALHA DE OURO

:
LÚCIA PÉRRISSÉ MOREIRA VERAS
(Rio de Janeiro-RJ)
Chuva

MEDALHA DE PRATA:

ADRIANA APARECIDA DE OLIVEIRA PAVANI
(Barra Bonita-SP)
Bendita Seja a Água

MEDALHA BRONZE:

IRONI LÍRIO – TEREZINHA TEIXEIRA SANTOS
(Guanambi-BA)
O Rio da Minha Infância 

CATEGORIA “PROSA”

MEDALHA DE OURO:


AGLAÉ TORRES CRISTÓFARO
(São Paulo-SP)
Cortinas e Gritos de Água – A Viagem

MEDALHA DE PRATA:

FLÁVIO RENÉ KOTHE
(Brasília-DF)
Ondas do Mar

MEDALHA DE BRONZE:

MARIA RITA DE CÁSSIA PRETO MIRANDA
(São Sebastião do Paraíso-MG)
Vida à Vida

Festival Poético do Sesc de Cornélio Procópio (Prazo: 9 de Agosto)

Desde 1985, o Sesc Paraná, por meio da unidade Cornélio Procópio, realiza o Festival Poético. O evento, que tem abrangência nacional, se configura num espaço de revelação de novos talentos da poesia.

O Festival Poético é uma promoção do Sesc – Serviço Social do Comércio, Rotary Club de Cornélio Procópio, Lions Club, Academia de Letras, Artes e Ciências de Cornélio Procópio Prefeitura do Município de Cornélio Procópio e Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Tem como objetivos básicos: descobrir e incentivar valores; oportunizar aos poetas a divulgação de seus trabalhos.

01- Da Realização

Art. 1º – O Festival Poético é uma promoção do Sesc Cornélio Procópio – integrante do Sistema Fecomércio Sesc Senac PR, Rotary Club de Cornélio Procópio, Lions Clube, Prefeitura do Município de Cornélio Procópio, Academia de Letras, Artes e Ciências de Cornélio Procópio (ALACCOP) e Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
02 – Dos Objetivos

Art. 2º – O Festival Poético tem como objetivos básicos:

    Descobrir e incentivar valores.
    Oportunizar aos poetas a divulgação de seus trabalhos.
    Promover o intercâmbio cultural entre todos os segmentos envolvidos no evento.
    Incentivar os declamadores de poesias.

03 – Da Participação

Art. 3º – Podem participar candidatos de qualquer idade, sendo o enquadramento da faixa etária até a data do término das inscrições, apresentando no máximo 02 (duas) poesias de própria autoria, com o tema livre.

Art. 4º – Categorias

- Outras Cidades:
A – de 07 a 10 anos – misto: 1º ao 4º classificado.
B – de 11 a 14 anos – misto:  1º ao 4º classificado.
C – acima de 15 anos – misto: 1º ao 4º classificado.

- Cornélio Procópio:
A- de 07 a 10 anos – misto: 1º ao 4º classificado.
B – de 11 a 14 anos – misto: 1º ao 4º classificado.
C – acima de 15 anos – misto: 1º ao 4º classificado.

- Comerciário:
A – de 07 a 10 anos – misto: 1º ao 4º classificado.
B – de 11 a 14 anos – misto:  1º ao 4º classificado.
C – acima de 15 anos – misto: 1º ao 4º classificado.

    Entende-se como “Comerciários”, os comerciários e seus dependentes, assim como empresários do Comércio.

Art. 5º – Identificação

Os trabalhos devem ser entregues da seguinte maneira:

    Sem nenhuma identificação, com pseudônimo no rodapé dos poemas.
    Anexar a ficha de inscrição devidamente preenchida e assinada.

Das inscrições

Art. 6º – As poesias inscritas devem ser inéditas e originais, ou seja, poesias que não tenham sido publicadas sob qualquer hipótese ou premiadas  em outros concursos, e as poesias não plagiadas.

Art. 7º – Para a inscrição da Categoria “Comerciário”, deverá ser enviada a cópia do Cartão Cliente Sesc atualizado(carteirinha), no interior do envelope de identificação.

Art. 8º – Serão aceitas as poesias emitidas até o dia 09 de agosto de 2013, sendo válida a data de postagem dos trabalhos encaminhados via correio. As poesias devem ser digitadas em espaço 2 (dois), em papel sulfite (A4), em 5 (cinco) vias e encaminhadas para o seguinte endereço:

Sesc – Cornélio Procópio
Av. Nossa Senhora do Rocio, 696 (Centro)
CEP: 86.300-000 -  Cornélio Procópio – PR
Informações:

Tel. (43) 3904-1600
e-mail- anamello@sescpr.com.br

Art. 9º – Início das inscrições: 02 de maio de 2013 (quinta-feira)
Término das inscrições: 09 de agosto de 2013 (sexta-feira)
Entrega da premiação: 21 de novembro de 2013 ( quinta-feira)
Horário: 19h30
Local: Anfiteatro da UTFPR  (Universidade Tecnológica Federal do PR) Câmpus Cornélio Procópio

04 – Do julgamento

Art. 10º – Serão premiados os 4 melhores poemas de cada faixa etária da categoria “Outras Cidades”; os 4 melhores de cada faixa etária da categoria “Comerciário” e os 4 melhores de cada faixa etária da categoria “Cornélio  Procópio”, classificados por ordem alfabética dos nomes dos selecionados, por uma comissão composta por 20 membros da área literária.

05 – Do Resultado

Art. 11º – O resultado será divulgado na imprensa local e disponível no site do Sesc PR – www.sescpr.com.br,  a partir do dia 10 de setembro de 2013.

06 – Da Premiação

Art. 12º – Os poemas premiados conforme o art. 9º,  farão parte de um “Varal de Poesias”  itinerante.

Art. 13º – Os premiados receberão troféus, certificados e coletânea das poesias classificadas no Festival Poético 2013.

Art. 14º – Serão premiados com troféus os “dois” melhores declamadores de cada faixa etária.
Declamadores destaque: 07 a 10 anos. Declamadores destaque: 11 a 14 anos. Declamadores destaque: acima de 15 anos. A comissão julgadora, para esta categoria, será composta por no mínimo três componentes.

07 – Das disposições gerais

Art. 15ª – Não será exigida, neste concurso, a adaptação do texto às novas mudanças ortográficas, as quais serão utilizadas como critério de seleção para os próximos concursos

Art. 16º – Os poemas inscritos no Festival Poético não serão devolvidos.

Art. 17º – Os poetas que fizerem uso de plágio serão imediatamente desclassificados do Festival Poético.

Art. 18º – O poeta, caso classificado, deverá encaminhar uma foto ao e-mail: anamello@sescpr.com.br até o dia 1º de outubro de 2013.

Art. 19º – Caberá à Comissão Organizadora resolver os casos omissos no presente regulamento.

Ficha de Inscrição em
http://www.sescpr.com.br/wp-content/uploads/2013/04/festival-poetico-2013_regulamento.pdf

Os resultados serão divulgados a partir do dia 10/09/2013.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n.164 - agosto de 2013)




Para mantê-los me empenho,
porque penso sempre assim:
tendo os amigos que tenho,
eu nem preciso de mim!
Izo Goldman
 

Nascemos irmãos comuns,
mas a ambição e os engodos
puseram nas mãos de alguns
o mundo que era de todos!
José Maria M. de Araújo

Digo tudo sem receio…
Sei, amor, que não aprovas.
Meu coração retalhei-o
e, dos pedaços, fiz trovas…
Luiz Otávio

É tanto o amor que me invade
quando em teus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
Newton Meyer
 

Dona Saudade, velhinha,
bordadeira paciente,
não tem agulha nem linha,
mas borda os sonhos da gente!
Onildo de Campos

Meu coração, hoje em dia,
desfeito, cansado e mudo,
lembra uma feira vazia,
depois que venderam tudo!
Pe. Celso de Carvalho

 

Tem muita trova que choca,
e é natural que aborreça...
Exemplo: a trova-minhoca,
que não tem pé nem cabeça!
Antônio da Serra – PR

No verão ela anuncia
que o nudismo é a sensação
e o que só o marido via,
agora todos verão!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

“Há fantasma”, alguém dizia,
“neste beco”, e com razão.
– Era contramão de dia,
mas à noite... quanta mão!
Clenir Neves Ribeiro – Austrália

Chaminelar... chaminilo!
Você lembra o que é que é?
É poder fazer aquilo
em cima da chaminé!
Gislaine Canales – RS

Chega da farra na boa,
como quem acha que pode.
No escuro, beija a “patroa”...
sente na boca um bigode...
Jaime Pina da Silveira – SP

Ao homem muito ciumento
há um dilema que aperreia:
ou esquece o casamento,
ou casa com mulher feia!
Josa Jásper – RJ

Certa mocinha atrevida,
com seus namoros no mato,
sempre aparece mordida
por “dentes” de carrapato...
Thereza Costa Val

 
Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.
A. A. de Assis – PR

Esta lágrima que escorre,
deixando marcas no rosto,
é água que me socorre,
purificando o desgosto.
Adélia Woelllner – PR
 

Num jogo de sombra e luz
fui tomado de emoção,
ante a porta que conduz
o meu ao teu coração.
Agostinho Rodrigues – RJ

Tuas recusas sem jeito
mostram, de modo evidente,
que tens meu corpo em teu leito,
com outra imagem na mente.
Almerinda Liporage – RJ

Entre as escolhas que fiz,
eu sofri e sei por quê:
uma só me fez feliz,
foi essa de amar você!
Almir Pinto de Azevedo – RJ

Há um farol em teu olhar
que ilumina a minha vida;
sem ele (estou a cismar),
ficarei cego, querida!
Amilton Maciel – SP

Uma vida de alegria
eu precisava buscar;
e encontrei na poesia
meu eterno e doce lar.
Angela Stefanelli – RJ
 

Quero, por tudo e por nada,
esquecer-te a qualquer preço
mas a distância danada
já sabe o meu endereço!
Antonio Colavite Filho – SP
 

Se receber uma ofensa
só tente ficar calado...
Terá como recompensa
nosso respeito dobrado!
Arlene Lima – PR

Não se faz mais amizade
como dantes se fazia...
– Hoje até felicidade
anda assim: meio vazia.
Ari Santos de Campos – SC

Não há guarda no portão
nenhum trinco ou cadeado;
mas não me faça invasão,
só entre se for chamado.
Cida Vilhena – PB

Por te amar, tenho sofrido,
mas não me arrependo: Vem!
– Quem ama as rosas, querido,
ama os espinhos também!
Carolina Ramos – SP
 

A vida é dura, renhida,
porém tem muita poesia.
Faço parte da torcida
da esperança a cada dia.
Cônego Telles – PR

No silêncio do meu grito
ouço a voz da solidão...
Nos meus versos deixo escrito
como está meu coração.
Dáguima Verônica – MG

Sem vitupérios e afrontas,
cerra às ofensas teus lábios,
que, em muito acerto de contas,
vence o silêncio dos sábios!
Darly O. Barros – SP
 

Cem vezes tu repetiste
que me amavas loucamente...
Cem vezes tu me mentiste
e cem vezes eu fui crente!
Delcy Canalles – RS
 

Na mesma rede embalados...
Porém a vida é tão dura!
– No que pensam namorados
se não na vida futura?!
Diamantino Ferreira – RJ

Desamarrando a fitinha
das lembranças, tenho medo
de que dentro da caixinha
não seja eu... teu segredo!
Dilva Moraes – RJ

Foste embora e, na saudade,
a ofensa se fez lição:
descobri que o amor-verdade
se alicerça no perdão!
Domitilla B. Beltrame – SP

Trem-de-ferro, o teu apito
lembra-me um sino plangente:
tanta mágoa no teu grito,
tanta saudade na gente!
Dorothy Jansson Moretti – SP

Corre o rio em harmonia,
sem saber que mais à frente
a ganância humana, fria,
devasta o meio ambiente.
Eliana Jimenez – SC

Tataravó dos poemas,
a toda hora se inova.
– Não importa quais os temas,
todos cabem numa trova.
Eliana Palma – PR

Minhas mãos... venho trazê-las,
até parecem vazias,
mas são repletas de estrelas
que eu colho todos os dias...
Elisabeth Souza Cruz – RJ
 

Memória é um caderno aberto
aos olhos do coração,
com registros que, por certo,
nunca mais se apagarão…
Ercy Marques de Faria – SP

Toda tarde o passarinho
bate as asas, quando canta.
Quanto mais longe do ninho,
mais afinada a garganta!
Francisco Garcia – RN

Em nossas carícias quentes,
não pesa a idade, nem nada,
porque somos dois poentes
que explodem numa alvorada!
Héron Patrício – SP
 

As flores que o ipê espalha
refletem a luz da lua.
Beleza não atrapalha;
ao contrário: enfeita a rua.
Hulda Ramos – PR
 

A beleza da poesia
– eu vou contar pra você –
não vem da mente que cria
e,sim, d’alma de quem lê!
JB Xavier – SP
 

Por mais poder e dinheiro,
muitos homens, desalmados,
expõem Jesus no madeiro...
e escondem bolsos recheados...
Jeanette De Cnop – PR

Terra de tanta riqueza,
fertilidade, alimento;
eu canto tua beleza,
choro teu desmatamento.
Jessé Nascimento – RJ
 

Pensamento ao mar, areia,
tarde sonora, quimera...
em leves ondas vagueia
na solidão de uma espera!
João Batista X. Oliveira – SP
 

Depois de arrastar a cruz,
que pesa mais na subida,
feliz de quem vê a luz
no fim do túnel da vida!
José Lucas de Barros – RN

Pôr do sol... em frente ao mar,
na rede os jovens, sentados,
num cenário singular,
trocam segredos e agrados.
Jessé Nascimento – RJ
 

Cultivemos o jardim
do amor, com perseverança,
para que seja o estopim
de um futuro de esperança.
José Feldman – PR
 

Ante a dor que me espezinha,
a esperança se evapora...
Até a saudade que eu tinha
não quis ficar... foi embora!
José Messias Braz – MG
Que saudade, Mestre Izo Goldman. Você será sempre reverenciado pelas suas belas trovas e por tudo de bom que pela trova fez.

No sótão da alma vazia,
com tanta saudade em jogo,
se a ausência atira água fria,
a lembrança aviva o fogo!
José Ouverney – SP

Nada consigo de graça,
mas batalho pra valer,
pois somente a vida abraça
quem gostar de seu viver.
José Roberto P. de Souza – SP

Jamais busco o falso atalho
da glória não merecida…
É no suor do trabalho
que se constrói uma vida!
José Valdez – SP

Sou guerreira, sou versada,
venha a luta que vier;
minha paz é conquistada
na força de ser mulher.
Karla Bitencourt – PR

Nesse exílio que me imponho,
não senti que era miragem
e dos pedaços de sonho
eu recompus tua imagem.
Luiz Carlos Abritta – MG
 

Quisera que o mundo visse
meu ar de felicidade
assim que você me disse:
“Namoro” – e não: “Amizade”.
Luiz Hélio Friedrich – PR
 

Árvore... da terra abrigo,
que insensato o homem destrói,
pondo a vida ao desabrigo...
desatino, que corrói.
Mª Conceição Fagundes – PR

Meu bem, chegue aqui pertinho,
tenho um segredo a contar:
o teu amor e carinho,
lamento, não vou guardar!
Mª Luiza Walendowsky – SC

Num lugar do coração
habita sempre o menino
que faz bolhas de sabão
para iludir seu destino...
Mª Thereza Cavalheiro – SP
A trova é muito mais que um poema de quatro versos; principalmente quando traz mensagem útil no seu bojo.

Sonho um mundo colorido,
flores perfumando a estrada,
sem um ai, sem um gemido
de criança abandonada.
Marina Valente – SP
 

A grande, a maior virtude
é de quem pode mostrar
que sendo apenas açude
tem a grandeza do mar!
Marta Paes de Barros – SP

As medalhas com que cobre
o seu peito de vaidade
mostram que falta a mais nobre:
– a medalha da humildade.
Maurício Cavalheiro – SP

Plácido, corres no leito,
às margens, onde nasci;
ó Iguaçu, trago em meu peito
a água que é parte de ti.
Maurício Friedrich – PR
 

Numa insônia persistente
sinto a alma espedaçada,
a imprimir na noite em frente
fria e longa madrugada.
Mifori – SP
 

Ao buscar o que ela quer,
na luta por seu direito,
é no labor que a mulher
vence qualquer preconceito.
Nei Garcez – PR

O maior dos desamparos
que se impõe a um trovador
é ver seus versos tão caros
julgados por amador.
Nilsa Melo – PR

Viajei pelo mundo inteiro
e nunca mais pude achar
o que no instante primeiro
encontrei em seu olhar.
Olga Agulhon – PR
 

Planto o grão com uma meta:
 – gerar vida em profusão...
E este ciclo se completa
quando o trigo vira pão.
Renato Alves – RJ

Mais fraternidade. Mais criatividade. Menos competição.

Cada vez em que é agredida
na sua obra e beleza,
cai uma gota, sofrida,
dos olhos da natureza.
Roberto Acruche – RJ
 

A natureza hoje chora
a cruel devastação
que faz o verde ir embora
e veste de cinza o chão !...
Sônia Ditzel Martelo – PR
 

Bravura é viver sorrindo
embora seja evidente
que a vida é dor insistindo
em ser mais forte que a gente.
Thalma Tavares – SP
 

Por mágoas que me consomem,
hoje eu culpo os erros meus.
Ele era apenas um homem...
fui eu que fiz dele um deus!
Therezinha Dieguez Brisolla – SP.

O mendigo solitário,
perambula pela rua.
Ao redor só o cenário
de uma imensa e fria lua.
Vanda Alves da Silva – PR
 

A minha alma adolescente,
de braços dados com a vida,
parece nem ser parente
desta face envelhecida.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Água límpida é preciosa
para o planeta, vital;
pura, líquida ou gasosa,
tesouro fundamental.
Vânia Ennes – PR
 

Lago azul – trecho do céu,
encravado na vertente:
os cisnes – nuvens ao léu;
a barca – lua crescente.
Wagner Marques Lopes – MG
 

A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
Wanda Mourthé – MG
 

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terça-feira, 30 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 18

CAPÍTULO X

Só no dia seguinte, as 2 horas da tarde, foi que ele saiu da casa de Leonília. Sentia-se aborrecido e como que importunado por uma espécie de remorso: afigurava-se-lhe que em torno daquele seu desleixo pela vida girava um mundo de atividade dos que trabalham para comer, dos que labutam desde pela manhã.

Pungia-lhe a idéia de haver-se deixado arrastar por uma mulher, cujo amor seria para ela uma virtude, mas para ele nada menos do que uma depravação moral. Ao chegar ao centro da cidade, o movimento comercial das ruas, o vaivém das classes laboriosas, ainda mais lhe agravaram a consciência da sua inutilidade e da sua inércia.

— Por que, perguntava consigo, não pertenço ao número desses que trabalham, desses que sabem ganhar a vida?

E arrependia-se de ter ido ao Lírico, de haver oferecido de beber a Leonília, em vez de a tratar com frieza, o que afinal seria digno de sua parte. E vinham-lhe de novo os ímpetos de reação e um grande desejo de atirar-se a qualquer trabalho produtivo e honesto.

— Mas, por onde principiar? Onde e em que descobrir ocupação? Fazer-se professor? Isso, porém, era tão precário, tão maçante e tão subalterno... Empregar-se na redação de um jornal? Mas em qual? E como? A quem devia dirigir-se?

E daí não passavam as íntimas reclamações do seu caráter.

Às vezes, à mesa dos cafés, dizia ele aos companheiros:

— Homem! Vejam se me arranjam um emprego!... Eu preciso trabalhar! É preciso viver, que diabo!

Mas estas palavras caiam por terra, sem aparecer quem as erguesse. O que aparecia eram novos e novos convites para tomar alguma coisa — para jantar em companhia de mulheres suspeitas e para assistir a espetáculos bufos. O Aguiar, principalmente nunca o a abandonara com as suas franquezas de moço rico e com os seus eternos protestos de estima e admiração.

E Teobaldo topava a tudo, considerando interior mente, para se desculpar, "que não seria metido em casa que ele havia de descobrir arranjo; precisava furar, ir de um lado para outro, até achar o que desejava".

E, visto que aceitava esses obséquios, apressava-se a retribui-los, quando porventura lhe caía de Minas algum dinheiro, sem reservar nenhum para os seus credores.

Por várias vezes, em ceias fora de horas, depois de enxutas algumas garrafinhas de Chiante e Malvasia, que eram os seus vinhos prediletos, os amigos de Teobaldo, na febre dos brindes, faziam-lhe grandes elogios ao talento e à educação; e ele, coitado ouvia tudo isso já com uma certa amargura, porque ia cada vez mais se convencendo de que lhe faltava a competência para ganhar a vida. E, quando, pelas três ou quatro da manhã conseguia chegar à casa tinha a cabeça em vertigem e o coração estrangulado por um desgosto profundo.

A casa! Que suplício para ele... Como tudo aquilo que respirava a presença do Coruja lhe exprobrava silenciosamente as suas culpas. Era aí que Teobaldo mais sentia o  peso brutal de própria nulidade; era aí, já recolhido aos lençóis, que ele considerava, um por um, todos os seus passos na vida. E excitado, cheio de revolta contra si mesmo, levava longo tempo a virar-se de um para outro lado da cama, antes de conseguir pegar no sono.

Na manhã seguinte acordava muito prostrado, sem ânimo de deixar o colchão e, ainda de olhos fechados, chamava pelo moleque. Quase sempre, em vez do Sabino, era o fiel Caetano quem acudia ao seu primeiro chamado, e, enquanto Teobaldo se preparava defronte do toucador, o pobre velho o observava com um profundo olhar de comiseração. Depois, meneava a cabeça, suspirando, e punha-se a escovar a roupa que o rapaz tinha de vestir.

Teobaldo às vezes batia-lhe carinhosamente ao ombro, dizendo:

— Como tudo isto mudou, hein, meu velho amigo?... Como tudo isto é tão diverso dos nossos bons tempos!...

O criado então levava os olhos à manga de sua velha libré, que nunca mais fora reformada depois da morte do barão e entre lágrimas falava neste para desabafar.

Teobaldo perguntava sempre a que horas saíra o Coruja.

— Às seis da manhã, respondia invariavelmente o criado.

E os dois conversavam um pouco; depois Teobaldo descia ao banheiro, que era no primeiro andar. Banho, café, vestir e leitura dos jornais nunca se liquidava antes do meio-dia. Por almoço tomava em geral dois ovos quentes, um cálice de vinho; feito o que, saia logo, sem destino, à procura de tal colocação.

No dia imediato ao em que ele esteve com Leonília, acordou mais cedo do que de costume, vestiu-se com certa presteza, foi à secretária e escreveu a seguinte carta:

"Querida — Não voltarei a ter contigo e peço-te que não dês o menor passo com o fim de fazer-me mudar de resolução, porque perderias o tempo. Aceita a insignificante lembrança que com esta te envio, e esquece-te, para sempre, do mais infeliz Teobaldo que há no mundo."

Fechada a carta, meteu-a no bolso e saiu.

Na véspera, antes de dormir, havia deliberado o que agora punha em prática. Era preciso, era indispensável, não tornar à casa de Leonília, ainda que para isso fosse necessário que ele se fizesse mal e grosseiro. E, neste propósito, chegou à rua dos Ourives, à loja de um joalheiro, a quem vendera as jóias de Santa, escolheu uma medalha de ouro, com um pequeno brilhante no centro e perguntou quanto custava.

— Cem mil réis, respondeu o joalheiro.

— Do que tenho comigo posso apenas dispor de cinqüenta. Consente que lhe fique devendo o resto?

O dono da casa fez um ligeiro ar de hesitação, mas disse em seguida:

— Pois leve.

— Já não quero! Exclamou Teobaldo, empurrando de defronte de si o escrínio onde estava a jóia. Pode guardá-la!

— Não, doutor, leve-a! Peço-lhe que a leve!

E, por suas próprias mãos, introduziu o estojo no bolso do rapaz.

Este passou-lhe os cinqüenta mil réis e correu logo para a casa de Leonília. Entrou, bateu, entregou ao criado a carta e mais o estojo e, sem esperar pela resposta, saiu apressado.

À noite desse mesmo dia, atravessava a rua do Ouvidor, quando o Aguiar foi ao encontro dele e disse-lhe, estendendo-lhe o braço pelas costas:

— Amanhã faço anos e quero que jantes comigo. Serás o único rapaz que terei ao meu lado! Prometes ir?

— Pois bem, respondeu Teobaldo. Mas onde é o jantar?

— No Pharaoux.

— A que horas?

— Às cinco...

— Lá estarei.

No outro dia, quando Teobaldo chegou ao hotel, não lhe passou despercebido certo cupê, que estacionava à porta; mas não fez caso e subiu a escada.

— É aqui, disse-lhe um criado discretamente, mal o viu, e fê-lo entrar para um gabinete particular.

Teobaldo ficou surpreso ao dar com Leonília, que estava à cabeceira da mesa.

— Ah! Fez o Aguiar, como em resposta ao gesto do amigo, convidei esta dama para te ser agradável, sabendo que a companhia dela só poderia dar-te gosto...

— Oh! Certamente, certamente! Exclamou o filho do barão, puxando uma cadeira e assentando-se ao lado de Leonília, a quem cercou de galanteios.

— E esta outra senhora?... Perguntou ele depois, apertando a mão a uma rapariga de pouca idade, que se quedava assentada à esquerda de Leonília.

— Ah! Essa convidei para ser agradável a mim mesmo, respondeu o Aguiar, por sua vez tomando assento junto da tal rapariga.

— É uma amiga das minhas, explicou a outra, que parecia muito empenhada no jantar.

E, voltando-se diretamente para Teobaldo:

— Só desta forma conseguiríamos pilhá-lo hoje! Com efeito! O senhor faz-se agora de manto de seda!...

— É que às vezes a gente pretende dar valor às coisas, exigindo por elas muito mais do que valem...

— Bravo! Gritou Aguiar. Eis uma teoria comercial na boca de Teobaldo! Estou encantado! Não te fazia capaz de tanto!...

— Ah! Respondeu o outro, a rir; o comércio é toda a minha vocação!...

— E não digas brincando... Quem sabe se algum dia não serás meu colega no comércio?...

— Pode ser! E que todo o meu mal fosse esse!...

— Eu... Queres que te diga?... Eu, pelo menos, continuou o Aguiar, derramando Madeira nos cálices, nunca me arrependi de haver entrado para o comércio. Verdade é que nada fiz por mim e que não estaria na posição em que me acho, se não fosse meu pai, mas nem por isso sou menos feliz, verdadeiramente feliz! Que diabo! Ganhar sem sentir, às vezes sem trabalhar!... Pode haver coisa melhor? Passo semanas e semanas inteiras na pândega, gasto por vinte e, quando julgo que os negócios vão mal, diz-me o guarda-livros que ganhei mais do que nunca! Ah! Nada há como o comércio para fazer dinheiro! E hoje, deixem falar quem fala, o dinheiro é tudo! Com ele tudo se obtém: — Glórias, honras, prazeres, consideração, amor! Tudo! Tudo!

— É exato! Confirmou Teobaldo, sorrindo amargamente e no íntimo arrependido de ter aceitado o convite do Aguiar. É exato!

— Ah! Disse a rapariga, que este convidara para ser agradável a si mesmo. Quem pode negar a grande superioridade do dinheiro sobre todas as coisas?

— Eu! Acudiu Leonília, que acabava de observar os gestos de Teobaldo. Protesto contra as teorias de Aguiar e juro que o dinheiro não representa para mim a menor sedução... Gosto dele, não nego, mas nos outros, não por ele, mas pelo gostinho de o extrair gota a gota, beijo a beijo, e tanto assim que, mal o apanho, lanço-o à rua pela primeira janela que encontro aberta. Nunca depenei um ricaço por amor ao seu dinheiro, mas tão somente pelo gostinho de o deixar depenado. É uma paixão comparável à dos jogadores ricos, uma paixão de glória, uma febre de querer vencer, de querer derrotar, ainda com o sacrifício dos próprios interesses.

E erguendo o copo:

— Dinheiro! Dinheiro! Rio-me dele! O dinheiro, quanto a mim, é a mais triste recomendação que um homem pode ter! Quais seriam os milhões que valeriam, por exemplo, o amor deste demônio?

E, dizendo isto, levava as mãos ao cabelo de Teobaldo e chamava a atenção dos outros para a cabeça dele, como quem mostra um objeto de arte.

— Que dinheiro vale a doçura aveludada destes olhos mais belos que os diamantes?... Que dinheiro vale toda esta riqueza? esta boca, este sorriso desdenhoso, estes dentes, esta palidez de estátua e este ar de senhor que mata de amores as suas escravas? Sim! Que me digam as mulheres qual é o dinheiro que paga tudo isto, sem contar ainda com o que há escondido neste tesouro — O talento, o caráter, a educação e a energia!

— Olha a Leonília apaixonada! Exclamou o Aguiar rindo muito.

— E por que não? Perguntou ele a encará-lo firme. Por que não? Julgas que sou incapaz de um sentimento nobre e desinteressado?... Pois olha, filho, queres que te diga? No dia em que abandonei o meu banqueiro estava em véspera de receber das mãos dele alguma coisa que eqüivale a tanto como o que possuis, e não foi por isso que não o mandei passear, logo que entendi que o devia fazer!

— Ah! Todos sabem que tu és mulher caprichosa...

— Caprichosa, não! Sou apenas mulher! Tenho coração, tenho nervos! Quando adoro um homem, sou capaz de tudo por ele, de tudo! Compreendem? De tudo! Ainda que tivesse de quebrar todas as conveniências como quem quebra isto!

Assim dizendo, tinha arrancado do pescoço o seu colar e arremessava-o partido sobre a mesa.

Teobaldo compreendeu a intenção com que isso fora feito, e lançou sobre ela um olhar de ameaça.

— Que significa esse olhar? Perguntou a cortesã. Não o compreendo.

— Tanto melhor para mim! Disse o moço esvaziando o copo — porque não tenho a menor necessidade de ser compreendido por quem não o merece!

— Sempre o mesmo orgulho e a mesma vaidade! Replicou Leonília.

— Ah! Volveu aquele, rindo com desprezo. Estás à beira da praia e julgas-te em pleno oceano! Meu orgulho! Conhecê-lo-ás depois, se te passar pela fantasia a idéia de experimentá-lo!

— Então! Então! Reclamou o Aguiar, nós não estamos aqui para discutir questões dessa ordem. Perante a pândega somos todos iguais. Faço anos e exijo que se lembrem um pouco de mim! Ainda não me fizeram um só brinde!

Leonília soltou uma risada e disse voltando-se para o festejado:

— Desculpa, filho, mas já não me lembrava que te devo o obséquio de teres feito anos hoje.

— Não repares, acrescentou Teobaldo, batendo com o seu copo no do outro rapaz. E — Bebamos à tua saúde! — Para que nunca te arrependas de tuas teorias sobre o dinheiro!...

— Obrigado! Respondeu Aguiar, mas consente que eu te diga uma coisa com franqueza: Eu não faço anos hoje!

— Como assim?

— Perdoa-me, mais tarde o saberás!

Teobaldo olhou para o amigo, depois para Leonília e afinal sacudiu os ombros.

Já haviam comido a sobremesa e dispunham-se a tomar café, quando aquele deu por falta do Aguiar e da rapariga que este convidara para seu recreio.

— Para onde teriam ido? Perguntou ele a Leonília.

— Foram-se embora. Chega-te mais para mim e ouve o que te vou dizer.

Teobaldo obedeceu.

— Sabes? Disse da. Este jantar foi uma cilada que te armei; eu, só eu, podia fazer com que o Aguiar se achasse na intimidade em que o viste com aquela rapariga; em troca, ele empregou os meios para te arrastar até aqui.

— De sorte que eu servi de divertimento a vocês ambos?... Servi para objeto de especulação, fui negociado!

— É exato, respondeu ela, e creio que não levarás a tua birra ao ponto de me deixares aqui sozinha, em um hotel!...

— Mas por que não procederam de outro modo?

— Porque já te conheço e tenho plena certeza de que só assim havias de vir.

— E, se por gosto eu não teria vindo, para que obrigar-me então a vir à força?

— Porque antes assim do que nada. Para o amor todos os meios são bons.

— Pois saiba que errou nos seus cálculos, disse Teobaldo, indo buscar o chapéu; estou disposto a acompanhá-la até à casa, mas não subirei um só degrau de sua escada.

— Por quê?

— Porque, para fazer da senhora a minha amante — Sou pobre demais, e para ser o seu amant de coeur — Sou muito rico e muito orgulhoso.

— Eu então só posso pertencer a um homem rico?

— De certo, porque é preciso muito dinheiro para comprar o luxo com que a senhora se habituou.

— Bem, volveu ela; já não precisa vir comigo. Adeus, Só lhe peço um obséquio...

— Qual?

— Vá amanhã à minha casa depois do meio-dia

— Fazer o que?

— Buscar a resposta do que acabou de me dizer agora. Vai?

— Vou. Adeus.

Leonília saiu. meteu-se no carro e Teobaldo ainda ficou no hotel, a fumar charutos e a beber, multo enfastiado de sua vida.
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continua…