quarta-feira, 20 de junho de 2018

Contos e Lendas do Mundo (América do Norte: Contos da Grande Lebre)

Segundo contos narrados pelas tribos algonquinas, o deus Michabo era filho do Vento do Oeste e portador da Luz. De palavra fácil e vigoroso, tomou a forma do primo do coelho, a lebre.

Michabo, a Grande Lebre, nadava no oceano. Com as suas poderosas patas traseiras, era um excelente nadador. Mergulhou até onde o oceano era de um azul muito escuro, as longas orelhas espetadas para trás.

Nunca mergulhara tão fundo, e resolveu ver se conseguia chegar ao fundo. Continuou, cada vez mais para baixo, até os pulmões darem a sensação de ir rebentar. Chegou então ao fundo do oceano.

Em triunfo, apanhou um grão de areia e voltou à superfície, empunhando o grão na pata. Colocou então o troféu do seu triunfante mergulho na superfície do oceano. Aí, o simples grão transformou-se num milhar de grãos, e de um milhar num milhão... até formar uma ilha, depois um continente, depois algo ainda maior.

Mas qual a extensão? Os Algonquinos contam que um dia um lobo pequeno deu consigo num extremo da terra e resolveu atravessá-la. Quando o lobo chegou à idade adulta, o outro extremo ainda não se vislumbrava... mas prosseguiu a sua caminhada, determinado a atingir o seu objetivo. Vagueou anos a fio, até que os seus anos se esgotaram atingira a velhice sem ter completado a sua viagem. Quando o animal se deitou para morrer após uma longa vida, o extremo da terra ainda não se vislumbrava. Era esta a extensão da terra.

Muitos povos - de muitas tribos e muitas raças - vieram viver nesta terra. Este pedaço de terra, criado a partir de um grão de areia, é aquilo que agora entendemos como Terra, e Michabo foi o seu criador.

Um dia, a Grande Lebre passava por um enorme rio que corria por entre as árvores como uma gigantesca cobra prateada. Um rapaz estava de pé nos baixios da água cristalina, imóvel como as pedras do leito pedregoso do rio. De repente, um peixe passou como um raio prateado junto à superfície. O rapaz lançou-lhe uma lança - a ponta afiada falhou por pouco o alvo. O rapaz apanhou a lança e ficou novamente imóvel, à espera que o peixe seguinte passasse por perto.

Michabo deitou-se, encostado a uma rocha, ao sol da tarde, e pensou naquilo que acabara de ver. Achava que o rapaz quando fosse homem seria provavelmente um bom caçador e pescaria muitos peixes para a sua mulher e filhos. Mas deveria haver certamente uma maneira mais fácil de arranjar comida.

Ainda a pensar neste problema, a Grande Lebre mergulhou no sono, ao sol da tarde. Quando acordou, sentiu algo a tinir no alto da cabeça. Imaginem a sua surpresa quando descobriu que, enquanto estivera a dormir, uma aranha tecera uma delicada teia entre as suas orelhas!

No entanto, Michabo não ficou zangado. Riu-se. Apanhou cuidadosamente a aranha entre as suas patas e pousou-a suavemente em cima de uma rocha, de onde ela desatou a fugir em busca de abrigo... não antes de ele ter estudado a delicada teia que ela tecera. Dera uma ideia ao deus.

A aranha usava a teia para apanhar moscas... moscas que ela comeria mais tarde. Costumava tecer a sua teia num ramo - ou até entre as orelhas de um deus - e esperava que as moscas voassem até lá e ficassem presas.

Porque não fazer uma teia semelhante de fio? Teria de ser muito maior e mais forte do que a teia da aranha, mas a ideia era a mesma. Em vez de lançarem uma teia para o ar para apanharem moscas, as pessoas poderiam atirar uma rede para dentro de água para apanharem os peixes. E foi assim que a rede de pesca foi inventada - graças à Grande Lebre e à aranha.

Noutra ocasião, Michabo, deixara a sua terra no Oriente - a terra da Luz e do Bem - e estava sentado na margem de um rio, a fazer desenhos na areia molhada com um galho. Um homem e uma mulher passaram por ele, cumprimentaram-no, depois foram apanhar ervas para a floresta.

Sem grandes cogitações, a Grande Lebre, preguiçosamente, desenhou os contornos deles na areia.

Ao regressarem, passaram uma vez mais por Michabo e a mulher olhou para as imagens que ele desenhara na areia. E perguntou-lhe o que é que ele estava a fazer.

- A fazer desenhos - disse-lhes ele.

O homem riu-se.

- Parecemos nós os dois a caminhar lado a lado - disse ele com alegria e apontou para as figuras na areia.

- E essas árvores parecem a floresta ali defronte - disse a mulher, entusiasmada. - E muito inteligente! Parece uma história, não em palavras mas em rabiscos na areia. Quem os vir, saberá que um homem e uma mulher foram à floresta.

- E voltaram com ervas - disse Michabo, fazendo outro desenho a seguir. Deu um pulo, maravilhado, e aspirou o vento com o focinho a fungar, como uma lebre vulgar faz quando tem uma grande ideia. 

- Se eu fiz vários desenhos, cada um dos quais com um significado diferente, então as pessoas poderiam deixar mensagens umas às outras - disse ele alegremente. - Nem sequer teriam de estar no mesmo lugar, ao mesmo tempo, para falarem umas com as outras. Que invenção mais útil!

E foi assim que, segundo os Algonquinos, a escrita pictórica foi inventada.

Michabo mostrava frequentemente ser um verdadeiro amigo do seu povo. Ensinava-lhe muitos truques de caça - como a altura para esperar e a altura para atacar, e a forma de seguir uma presa contra o vento para que ela não se apercebesse da sua presença - e dava-lhe muitos amuletos para o ajudar. Porém, antes da vinda de cada Inverno, deixava os seus amigos humanos e voltava para a sua terra, para o seu longo sono, pronto a voltar na Primavera seguinte.

Criador, inventor, impostor ou louco, havia sempre um lugar no coração de Michabo para o seu povo, e nos corações dos Algonquinos para ele.
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Algonquinos (ou Algonquianos)

Os algonquianos eram um grupo de tribos nativas americanas que tradicionalmente ...

Os algonquinos eram um grupo de tribos nativas americanas que tradicionalmente falavam idiomas semelhantes e tinham modos de vida parecidos. Crees, moicanos, delawares, ojibwas, shawnees e algonquinos são algumas das muitas tribos algonquianas.

No início, os algonquianos provavelmente viviam no sul do Canadá, em uma área ao norte do rio São Lourenço. Ao longo do tempo se espalharam e terminaram ocupando grande parte dos Estados Unidos e do Canadá atuais. Seu território incluía a Nova Inglaterra, a região chamada Costa Atlântica, a área dos Grandes Lagos e parte das Grandes Planícies.

A maior parte dos algonquianos construiu suas aldeias ao longo dos rios. Eles cultivavam milho, feijão e abóbora nas áreas próximas. Caçavam veados, coelhos e castores e, às vezes, animais maiores, como alces, uapitis e bisões. Confeccionavam boa parte de suas roupas com peles de animais.

A maioria dos povos algonquianos construía casas em forma de abóbada chamadas wigwams (cabanas). Algumas tribos erguiam casas compridas de madeira e de casca de árvore suficientemente grandes para abrigar várias famílias. Outras viviam em tendas em formato de cone.

Havia várias práticas religiosas entre os algonquianos. A maioria das tribos compartilhava a crença em um grande espírito chamado Manitu. Acreditava-se que ele estava presente em todas as coisas na Terra.

Os algonquianos que moravam ao longo do litoral do Atlântico estiveram entre os primeiros índios a estabelecer contato com os colonizadores europeus. Acolheram os primeiros imigrantes peregrinos dos Estados Unidos e os colonizadores da cidade de Jamestown, que chegaram no início do século XVII. Muitos morreram de doenças trazidas pelos colonos europeus. Os recém-chegados também obrigaram os índios a abdicar de suas terras. Em meados do século XIX, a maior parte dos algonquinos vivia em reservas que lhes foram destinadas. Milhares de pessoas de ascendência algonquiana ainda vivem nos Estados Unidos e Canadá.

Fontes:

terça-feira, 19 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 23


Caldeirão Poético 9


ADORMECIDA

Ses longs cheveux épars Ia couvrent tout entière.
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière,
Et qu'elle va la faire en s'éveillant demain. *
(A. de Musset)

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos

- beijá-la. Era um quadro celeste!...

A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!...”
________________
Nota:
A citação de Musset acima, com meu parco conhecimento do idioma francês é mais ou menos assim. Se alguém tiver melhor conhecimento do idioma, coloque nos comentários caso necessário corrigir:
“Seu longo cabelo espalhado cobre todo o seu corpo.
A cruz do seu colar está em sua mão
Como se para testemunhar que ela fez a sua oração,
E ela vai fazer isso acordando amanhã.”



ESTE INFERNO DE AMAR

Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui n'alma...quem foi?
Esta chama que atenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei…


IDEAL

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vênus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora mostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo…


MEU SONHO

Eu
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso…
E galopas do vale através…
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?…
Tu escutas… Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? - que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O Fantasma

Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!…


LEITO DE FOLHAS VERDES

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo 
À voz do meu amor moves teus passos? 
Da noite a viração, movendo as folhas, 
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d'alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazoia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes 
À voz do meu amor, que em vão te chama! 
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil 
A brisa da manhã sacuda as folhas!

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Trova 309 - Elen de Moraes Kochman (Rio de Janeiro/RJ)

Fonte: http://elendemoraes.blogspot.com/

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) III


UM GRÃO DE INCENSO
A Lourenço Cayolla

Entraste com ar cansado
Numa igreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
– E nem ao menos me viste...

Ficaste a rezar ali,
Naquela imensa tristeza.
Rezei também, mas a ti,
– Que aos anjos também se reza...

Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
– E a caridade te falta?...

A MÁSCARA
A Santos Tavares

Por acaso, parou na minha frente,
De "loup" e dominó de seda negra,
Uma mulher d'olhar resplandecente
E mento breve de figura grega.

Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas...

E os seus olhos doirados reluziram
Como os punhais ao sol, quando se tiram,
Aguçados e frios, das bainhas.

– Máscara, quem és tu?

– E tu quem és?...

– Um homem que te viu e te deseja...

E um riso vago, de desdem talvez,
Floriu na sua boca de cereja.

Ergui-lhe as mãos ascéticas. Beijei-as.

Em vibrações entrecortadas, secas,
Tiniam taças irisadas, cheias.
E uma frase d'amor, toda em colcheias,
Vibrava nas arcadas das rebecas.

Levei-a para o vão duma janela.
– Máscara, quem és tu?

– Para que insistes?...

Outro riso subiu da boca dela
Aos olhos enigmáticos e tristes.

E descobriu a face. No capuz
Emoldurou-se um rosto lindo e sério.

Que diferente porém do que eu supus!

A gente nunca deve entrar com luz
Nos divinos recantos do mistério...

IN PROMPTUM PASTORAL
A Amadeu de Freitas

«Muito vence quem se vence
Muito diz quem não diz tudo,
Porque a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.»
("Copla do Infante D. Luiz")

Sob este céu criador
De manhã vergiliana,
Apetece ser pastor
E tocar frauta de cana;

Não, pastor d'autos d'amor,
D'éclogas frias e velhas,
Mas verdadeiro pastor
De verdadeiras ovelhas...

Não conhecer o talento
Nem nada do que se ensina.
Esta dor do entendimento
É pior do que se imagina...

Guiar o meu coração
Num ingênuo cristianismo.
Esta civilização
É cheia de pessimismo...

Comer pão negro, pão duro,
Beber o leite das pearas.
Pão de centeio é escuro,
– Mas põe as almas às claras...

Amar alguma pastora
Com palavras e com obras.
Estas senhoras d'agora
São mais falsas do que as cobras...

E ver criar com carinho,
Com cuidados infinitos,
À companheira, um filhinho...
E às ovelhas, borreguitos...

A CANÇÃO DAS PERDIDAS
A Vianna da Motta

I

Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
– É Maria Magdalena...

II

Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

III

Meu pai foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora de pena...

IV

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai...

V

Aquele que me roubou
A virtude de donzela
Se outra honra lhe não dou,
– É porque só tive aquela!...

VI

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'água cantante,
Quem te quer, para um bocado.
Quem não quer, passa adiante...

VII

O meu amor, por ama-lo,
Pôs-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixa-lo.
Mas ao menos não me paga!

VIII

Nem toda a água do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

IX

Como querem ver contente
Este país desgraçado,
Se dão só livros à gente
Nas escolas do pecado...

X

Dormia o meu coração
Cansado de fingimento.
Bateste-me, e vai então
Acordou nesse momento.

XI

Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse voz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. 
Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

Olivaldo Júnior (Pequeno Conto Junino)


O menino tinha apenas uns dez anos de vida. Não sei ao certo, pois eu não morava na Cidade. Era um forasteiro que, de quando em quando, passava por ali. Mas o rosto do moleque não me saía da lembrança, pois se parecia muito com o rosto do filho que tive e que Nosso Senhor tão cedinho levou... Que saudade! A mesma que eu matava toda vez que chegava à cidadezinha em que morava o menino que era filho do dono da venda, o pequeno José.

José adorava quermesse. Seus olhinhos de quem ainda não viu quase nada faiscavam quando viam as faíscas da fogueira que o povão aprontava no terreno baldio, detrás da igreja. Quanta vontade de fazer como a galera mais velha e sair pisando a brasa, para a prova de que o fogo só queima os mais lentos! Sentia outro fogo em si mesmo, em sua alma infantil, sempre envolta em traquinagens com o amiguinho João. Eu, que nem morava lá, via tudo isso.

No dia de São João, José e seu amiguinho corriam soltos pela praça quando eu, que arrastava asa para uma bela morena, caso antigo, em pleno revival, topei com os dois, que derrubaram toda a pipoca no chão. “Minha pipoca!”, disse José, todo choroso. João, mais conformado, ofereceu uns trocos ao pobre e, quando já se iam embora, deixei a dona de lado e, num gesto de coragem, falei com José: “Deixa que eu pago a pipoca dos dois”, que, no início, não queriam aceitar, mas, depois de pensarem por exatos cinco segundos, aceitaram o agrado. “Espera, amor, que já volto!...”, falei para a bela que me dava bola e bebia um quentão.

Assim, na barraca de pipoca e milho verde quentinho, paguei pipoca e leite quente para os dois, que me agradeceram muito e, de posse dos mimos, lá se foram para a festa, ao som de modas de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Elba e Companhia Ilimitada, pessoal do Norte e Nordeste que tanto canta a tradição popular brasileira, sobretudo a junina. Nem olharam para trás, mas, ao dar pipoca e leite para o José, dava um pouco de alegria para o meu filho.

“Olha pro céu, meu amor / Vê como ele está lindo / Olha pra aquele balão multicor / Como no céu vai sumindo”... E a bela da noite, doidinha por mim, notou uma lágrima junina em meus olhos, que, ainda hoje, diz que foi por ela...

 Fonte: O Autor 

domingo, 17 de junho de 2018

Trova 308 - Lourdes Gutbrod (Rio de Janeiro/RJ)

Fonte: Facebook (Grupo: Meus Irmãos Trovadores)

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 6


TÃO PERTO E TÃO LONGE

MOTE:
Tanta luz, tanto carinho,
neste olhar abrasador
eu tão perto e tão sozinho
sem provar o seu amor.
Belmiro Ferreira

GLOSA:
Tanta luz, tanto carinho,
tanta paz, tanta ternura,
você deixa no caminho
num rastro só de ventura!

Vejo um brilho alucinante
neste olhar abrasador
perpetuando aquele instante
do meu eu, tão sonhador.

Essa distância é um espinho
que se pôs entre nós dois,
eu tão perto e tão sozinho
no meu hoje. E o meu depois?

Fico sem saber porquê
o porquê de tanta dor...
estar perto de você
sem provar do seu amor.

SONHO CONTIGO

MOTE:
Sonho contigo dormindo,
sonho contigo acordada,
eu levo a vida sorrindo
vivendo a vida sonhada!
Dalvina Fagundes Ebling

GLOSA:
Sonho contigo dormindo,
num êxtase incontrolado,
e do sono vou fugindo
para ficar ao teu lado.

Tu és o meu grande amor
sonho contigo acordada,
sem sonhar, o desamor
eu teria em minha estrada.

Por lembrar teu rosto lindo,
o teu beijo e o teu carinho,
eu levo a vida sorrindo
sou feliz no meu caminho.

Agora, no meu depois
me sinto realizada,
revivo o amor de nós dois,
vivendo a vida sonhada!

É LOGO ALI...

MOTE:
Por mais que a vida se oponha
traze os sonhos junto a ti,
porque aos olhos de quem sonha,
o infinito é logo ali!...
Edmar Japiassú Maia

GLOSA:
Por mais que a vida se oponha
segue a sonhar, continua...
não precisas ter vergonha,
a vida é somente tua!

Para viver o teu dia
traze os sonhos junto a ti,
pois te darão alegria
e o sonho sempre sorri!

Jamais ficarás tristonha,
serás feliz de verdade
porque aos olhos de quem sonha,
só existe a felicidade!

Sim! Existe! Está pertinho,
sonhando feliz previ...
Avistei do meu caminho
O infinito... é logo ali!…

A TERNURA

MOTE:
Ai! Que seria da gente,
neste mundo de amargura,
sem o bálsamo clemente
que nos oferta a ternura!
Hugo Ramirez

GLOSA:
Ai! Que seria da gente,
se o amor não existisse
e esse carinho envolvente
para nós nunca sorrisse?

Devemos saber viver
neste mundo de amargura,
ter muito amor e amor ser:
ser dele a imagem mais pura!

O amor é algo consciente
que nos traz muita alegria!
sem o bálsamo clemente
do amor, que de nós seria?

Assim, em nosso caminho
numa vida de ventura
nós veremos o carinho
que nos oferta a ternura!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós
abril de 2003.

Mário Quintana (Prosas Poéticas) I

Da paginação

        Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas...

Momento

        O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos. A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida. E Veio um riso límpido, e irresistível - em i, em a, em o - do fundo de um pátio da infância. Um riso... Senão quando o homem achou os fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes...

Objetos perdidos

        Os guarda-chuvas perdidos.. aonde vão parar Os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras, os lenços com pequenas economias, aonde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes? Não sabes? Vão parar nos anéis de Saturno, são eles que formam, eternamente girando, os estranhos anéis desse planeta misterioso e amigo.

Do inédito

        E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável NOVO do outro lado do mundo, quase do Outro lado da vida, uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado... Nós, os antípodas, somos assim.

Feliz!

        Deitado no alto do carro de feno... com os braços e as pernas abertos em X... e as nuvens, os voos passando por cima... Por que estradas de abril viajei assim um dia? De que tempos, de que terras guardei essa antiga lembrança, que talvez seja a mais feliz das minhas falsas recordações?

Sinais dos tempos

        Esses que, pelas estradas claras dos primeiros séculos, mendigavam e faziam pueris e deliciosos milagres, e viraram agora transformistas de palco. Santos que perderam a fé, socorrem-se habilmente dos recursos inesgotáveis que a técnica hoje em dia nos proporciona, quando seria muito mais fácil um milagre... A divina simplicidade de um milagre.

Aventura no parque

        No banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: "Colhe o momento que passa". Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira. "Quem monta num tigre (dizia, à página seguinte, um provérbio chinês), quem monta num tigre não
pode apear.

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. 
Porto Alegre/RS: Editora Globo, 1948.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) IV


ANJINHO CAÍDO DO CÉU

Quem é esta garota de loiros cabelos,
De olhos azulados, com um lindo chapéu...
De boca pequena, de pés pequeninos,
Mas parece um anjinho caído do céu.

É toda formosa de pele bem clara.
De rosto bonito e encantador olhar,
Quando ela passa cheia de graça,
O povo que passa, resolve parar.

Pois no mundo até então, nunca se tinha visto,
Criatura tão perfeita, de beleza tão grande,
Que ao vê-la qualquer mortal perde a voz,
Se ela é da terra ou de outro planeta,
O mais importante é que está entre nós.

COMO ME ILUDI 

Entre outras que conheci...
Tu foste aquela...
Que sempre amei. 
Eras para mim,
A fonte de ternura! 
E único amor que sempre devotei. 

Eras para mim a eterna claridade. 
Mesmo nos dias nublados... 
E noites sem lua!
Eras para mim o sol,
Com o seus raios divinos.
Ao me aquecer... 
Após uma noite fria! 

Hoje apesar dos tempos... 
Já passados! 
E saber que já... 
É uma página virada...
Como me iludi!
Com estes pensamentos... 
Como posso te esquecer, 
Se tu foste a minha amada.

FERRO DE BRASA

A vovó era simpática,
Morava aqui na Comasa.
E passava toda a roupa,
Com o seu ferro de brasa.

Quando chegou o ferro elétrico,
Começou a reclamar
Dizendo este ferro não esquenta
Como é que vou passar?

Como é que irei passar...
O terno do João?
E o vestido da Geralda?
Este ferro não esquenta
As roupas ficam amassadas.

E era assim todas às vezes
Que a vovó ia passar
As roupas que precisava
Sempre a questionar.

Foi então que mamãe disse
Já de tanto intrigada,
Este ferro esquenta sim
A senhora é que não está acostumada.

Mas resolveu em segundos
Problema de quase um mês,
Depressa foi na dispensa,
Trouxe o de brasa outra vez.

OUÇO ISSO COM TRISTEZA

Porque ainda temas em dizer me, que me amas,
E que o teu amor é o mais puro do mundo!
E que a minha fisionomia está sempre diante de ti,
E por isso não podes esquecer-me nem por um segundo.

Ouço isso com tristeza prima da hipocrisia,
Pois quando estávamos juntos, fingias amar-me!
Usando uma formula que na verdade!
Eu já conhecia.

Acredito teres algum curso de teatro!
Ou quem sabe vês muita novela...
No momento vejo-te como uma atriz,
Representando o papel duma delas.

Fonte: O Poeta