quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Leon Eliachar (Dicionário de Bolso) Letras A até D



A

Adiar — é essa atitude que estamos sempre tomando daqui a pouco.

Adultério — é isso que liga três pessoas sem uma saber.

Agiota — é esse sujeito que ganha a vida alugando dinheiro.

Aliança — é isso que sai de uma mão para outra e consegue arrastar um homem.

Ama-seca — quem ama o molhado, seco lhe parece.

Aniversário — comemoração que sempre fazemos com menos um ano de entusiasmo.

Armário embutido — é um pedaço da nossa casa que entra pelas paredes.

B

Baliza — uma rede com goleiro e um fotógrafo atrás. O goleiro perde as melhores bolas e o fotógrafo as melhores chapas.

Biombo — é isso que separa uma curiosidade de um lado e um assustado de outro.

Biquíni — é um pedaço de pano cercado de mulher por todos os lados.

Boxe — é esse esporte em que um milhão de indivíduos brigam de graça por causa de dois sujeitos que brigam por dinheiro.

Boxeador — sujeito que se prepara durante oito horas por dia para se deitar na lona durante dez segundos.

Buzina — é esse ruído que irrita o motorista da frente quando o de trás já está irritado.

C

Cabeleireiro — é esse sujeito que primeiro muda a fisionomia da mulher e depois a do marido.

Cabotino — é esse sujeito que consegue transformar qualquer assunto numa autobiografia ou seja, sujeito que não encontra assunto para colocar entre dois eu.

Cadeira de balanço — é essa cadeira que a gente tem que ficar empurrando pra frente e pra trás para ter a sensação que está descansando. 

Camelô — um susto cercado de curiosidade por todos os lados. É esse sujeito que passa a metade do dia explicando aos curiosos como funciona o seu balangandã e a outra metade à polícia como funciona o seu negócio.

Canhoto — sujeito que só escreve direito com a mão esquerda.

Cartão de visita — pequeno mostruário de nossas vaidades.

Cartório — lugar onde se reconhecem firmas completamente irreconhecíveis.

Certidão de nascimento — documento que a gente é obrigada a mostrar para provar que nasceu.

Cigarro — é a única coisa que não acaba no fim.

Clips — é esse grampinho que ajuda a gente a perder mais de um documento.

Cobrador — é esse sujeito que nunca tem a sorte de encontrar alguém em casa.

Confidência — é isso que a gente diz a todo mundo pra não dizer a ninguém.

Confissão — limpeza que fazemos na nossa consciência tendo o cuidado de deixar sempre um pequeno saldo.

Convenção social — é o fato de um indivíduo segurar uma pequena todinha e depois ir ao pai dela pedir a sua mão.

Coquetel — grupo de pessoas dividido em vários grupinhos.

Corista — o mínimo de cabeça no máximo de pernas.

Crédito — é esse lucro que o comerciante divide em parcelas.

Cruzamento — sinal luminoso cercado de palavrões por todos os lados.

D

Datilografa — funcionária que tem agilidade nos dedos mas impressiona mais com os joelhos.

Delicadeza — quatro sujeitos cansadíssimos diante de uma cadeira vazia.

Democracia — é esse sistema de governo em que todos concordam em discordar um do outro.

Dentista — sujeito que ganha a vida com o suor do rosto alheio.

Desastre — encontro pontual de dois veículos.

Devedor — sujeito que tem a habilidade de nunca estar em lugar nenhum.

Discussão — é isso que começa quando duas mulheres chegam a um acordo e uma terceira está ouvindo.

Displicente — sujeito que passa o dia inteiro preocupado em aparentar displicência.

Dívida — é uma desculpa a longo prazo.

Fonte:
Leon Eliachar. O homem ao quadrado.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Monteiro Lobato (Burrice)


Caminhavam dois burros, um com carga de açúcar, outro com carga de esponjas.

Dizia o primeiro:

— Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa.

O outro redarguiu:

— Onde está o perigo? Basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui.

— Nem sempre é assim. Onde passa um, pode não passar outro.

— Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciência toda se resume em só imitar o que os outros fazem.

— Nem sempre é assim, nem sempre é assim… continuou a filosofar o primeiro.

Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caíra na véspera.

— E agora?

— Agora é passar a vau.

O burro do açúcar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contato da água, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta.

O burro da esponja, fiel às suas ideias, pensou consigo:

— Se ele passou, passarei também — e lançou-se ao rio.

Mas sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo.

— Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar — comentou o outro.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Oceano de Letras (Solidão) n. 2



Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

No silêncio dos meus dias,
alheio a tudo e à razão,
eu vivo as noites vazias
abraçado à solidão...
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Elizabeth Misciasci
São Paulo/SP

Não Me Atrevo

Partir daqui sem olhar pra trás…
pura ilusão
levou na bagagem um passado
já bem distante.
O que restou de um futuro
incessante a questionar
é presente apenas nos teus dias
Não me atrevo a falar de dor
nem tão pouco de solidão,
as marcas se somam as mágoas e estas não
merecem reflexão.
Hospedeira de alegrias me transformo
Em repudio aos teus recalques me esquivo
Tudo posso dizer…
Respiro com a vontade de viver
Desfaço laços que um dia fora usado para unir
desamarro as cordas que em outrora,
me prenderam a ti
Nada quero das quirelas
que sem pudor me oferecestes
Estas a ti pertencem
O tempo se fez meu amigo e com este
compartilho meus momentos
Quero sorrir com a certeza da sorte
a me acompanhar
Das tuas convicções errôneas,
dos teus fracassos e insanidades
me evadi
Sou outra Mulher
Plena e audaz
Satisfeita por ver
esta porta se abrir pra você sair
e agradeço… por
Partir daqui sem olhar pra trás
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Mifori 
São José dos Campos/SP

Perdi meu sonhos e anseios...
Com a tristeza convivi
entre estranhos de entre - meios
 - solidão que não pedi.
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Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão.
Victor Hugo 
Besançon/França, 1802 - 1885, Paris/França
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Francisca Júlia
Xiririca (atual Eldorado Paulista)/SP, 1871 - 1920, São Paulo/SP

Outra Vida

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
Depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
De sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
Que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
Lei que me condenou à tortura constante;
Porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
Abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
Na minha solidão a sua voz escuto,
E sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
Que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio…
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Aurora Pierre Artese
São Paulo/SP

Solidão... pautas vazias,
cantigas lentas, remotas...
solfejo marcando os dias
no descompasso das notas!
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Hernando Feitosa Herrera Chagall
São Paulo/SP

Liberdade Cativa

Voei alto nas asas da imaginação
Procurando pela liberdade
A passos lentos me alcançou a solidão
Jogando-me nos braços da saudade.
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Antonio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF

O abandono era patente,
no abraço da solidão:
- duas voltas de corrente
num velho e tosco portão...
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J.G. de Araújo Jorge
Tarauacá/AC, 1914 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

Desarvorado Navio 

 A verdade é que depois que tu partiste
vou ficando cada vez mais triste,
cada vez mais morto,
de amor em amor, como um navio
de porto em porto…

Nesta angústia em que morro,
a olhar o céu vazio,
sem uma estrela para me guiar,
tenho a impressão de que vou acabar, como esse navio,
soçobrando, sem socorro,
na solidão do mar…
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O Que é Solidão
Solidão não é a falta de gente para, conversar, passear, namorar ou fazer sexo… isto é carência. 
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar… isto é saudades. 
Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe às vezes para realinhar os pensamentos…isto é equilíbrio. 
Tampouco é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsoriamente, para que revejamos a nossa vida… isto é um princípio da natureza. 
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado… isto é circunstância. 
Solidão é muito mais que isto… Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.
Francisco Cândido Xavier
Pedro Leopoldo/MG, 1910 - 2002, Uberaba/MG
____________________

Marcos Assumpção
Niterói/RJ

A Porta

é sempre assim
todo dia você se prepara e sai
não esquece a bolsa as chaves os jornais
mas nunca me pergunta como vai o amor

pode ser que no momento de atravessar a porta
você pressinta o quanto nos tornamos sós
a luz do sentimento quase se apagou

ai então, vera que o amor não e´ um filme
e como as rosas de um jardim que você deve regar
solidão a dois agora mais do que parece
precisamos enxergar antes da porta fechar
____________________

Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Nos momentos de perigo,
de amargura e solidão,
que conforto o ombro amigo
e o abraço de um irmão!
____________________

Hernando Feitora Herrera Chagall
São Paulo/SP

Albatroz

Tenho as asas abertas
Tamanhas abrangem tudo
Voo por áreas desertas
Onde as cores falam
E o som fica mudo
Não participo de nada
Tudo fico a observar
Tenho a boca selada
E um discurso no olhar
Sou um pássaro grande
Desajeitado e louco
Louco para pousar
Fazer morada num ninho
Descansar um pouco
Ser um albatroz
Livre da solidão
Continuar meu caminho
Dentro de um coração.
____________________

Aurolina Araújo de Castro 
Manaus/AM, 1933 - 2004, Rio de Janeiro/RJ

Além de dar alegria,
a música é solução,
quando se quer companhia
nas horas de solidão.
____________________

Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

Como Dizia O Poeta

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não
____________________

Alcy Ribeiro Souto Maior 
Rio de Janeiro/RJ, 1920 - 2006

A casa ainda é aquela...
ainda é o mesmo portão... 
na sala, a mesma aquarela
junto à mesma solidão!
____________________

Debora Martins Fontes
São Paulo/SP

Desabafo

 Aqui estou eu, em plena madrugada,
 tentando escrever uma poesia,
 me sinto só e abandonada, 
 repleta de enorme melancolia.

 Penso em você e começo a chorar, 
 tento esquecer para me livrar do sofrimento, 
 quando penso que tudo vai passar, 
 lá está você novamente em meu pensamento.

 Me deito e procuro dormir, 
 depois de horas venho conseguir,
 mas acordo antes de amanhecer,

 e recomeça todo o meu sofrer.
 Volta toda a solidão e melancolia.
 Percebo que te amo até mesmo em poesia.
____________________
Quando somos abandonados pelo mundo, a solidão é superável; 
quando somos abandonados por nós mesmos, a solidão é quase incurável.
Augusto Cury
São Paulo/SP
____________________

Aparício Fernandes  
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Posso entender o martírio
da pureza junto ao mal,
vendo a solidão de um lírio
no lodo de um pantanal.
____________________

Lilian Maial
Rio de Janeiro/RJ

Sedimento

    Recolho os seixos lisos desse rio,
    Qual lágrimas, são contas de um rosário.
    Margeio a lua, refletindo o estio,
    Conduzo estrelas frias p’ro estuário.

    Rabiscos, risco ao léu! Meu desafio
    Consiste em dar teu nome a esse cenário.
    A noite enfeita, em mim, o olhar sombrio,
    Revela a dor exposta em antiquário.

    Saudade é conterrânea do meu peito,
    Traduz em pedra a falta do teu toque,
    E deixa esse vazio a soçobrar.

Afundo nessas águas como um leito,
    Arrasto essas lembranças a reboque,
    Permito à solidão sedimentar.
____________________

Angélica Villela Santos  
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

Tornam-se mais encurvados
os ombros de um ancião,
quando suportam, cansados,
o peso da solidão!
____________________

Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

De Repente

Olho-te espantado:
Tu és uma Estrela do mar.
Um mistério estranho.
Não sei…

No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão.
Era sempre o teu seio!

Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão…

Mas agora enchem-se de sombra os cântaros.

E só o meu cavalo pasta na solidão.
____________________

Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA

Num cantinho iluminado
pela luz da solidão,
um coração desprezado
espera outro coração.
____________________

Gislaine Canales
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

E É Quase Dia…

MOTE:
No talvez da quase noite,
quando a espera me angustia,
horas batem feito açoite…
Tu não vens…e é quase dia…
Wanda De Paula Mourthé
(Belo Horizonte/MG)

GLOSA:
NO TALVEZ DA QUASE NOITE,
eu me perco em devaneios
e temo que a dor se amoite
e se instale nos meus seios!

O pranto cai devagar
QUANDO A ESPERA ME ANGUSTIA,
sentindo – não vais chegar,
morre em mim toda a alegria!

A tristeza faz pernoite
no meu pobre coração…
HORAS BATEM FEITO AÇOITE…
sem nenhuma compaixão!

Quando a solidão aumenta,
a noite perde a magia
e minha alma não aguenta,
TU NÃO VENS…E É QUASE DIA…

Fonte:
Folhetim Desiderata - n. 5 - jan. 2019 - Solidão

Monteiro Lobato (O Cão e o Lobo)



Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão – mas um cão e tanto, gordo, forte, de pelo fino e lustroso.

Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: – “Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo”.

O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse :

– Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pelo macio! Vê-se que o amigo se trata …

– É verdade! – respondeu o cão. Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo.

– Como?

– Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu.

– Explique-me lá isso por miúdo, pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.

– É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, nacos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome.

– Aceito! – respondeu o lobo. Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim?

– Em troca disso – continuou o cão – você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.

– Fechado! resolveu o lobo – e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.

– Que diabo é isso que você tem no pescoço?

– É a coleira.

– E para que serve?

– Para me prenderem à corrente.

– Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?

– Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa?

O lobo entreparou, refletiu e disse:

– Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço.
Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.

E afundou no mato.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Ogui Lourenço Mauri (Pobre criança, num canto)


Monteiro Lobato (Júri na roça)



Não é meu este caso, mas dum tio, juiz numa Itaoca beira-mar. Homem sessentão, cheio de rabugens, pigarros e mais macacoas da velhice, nem por isso deixa de ser amigo da pulha, como diria Mestre Machado. Gosta de contar pilhérias e casos de truz, que a meio descambam em caretas reumáticas, muito de apiedar corações sobrinhos.

Os seus domínios jurídicos são o reino da própria Pacatez. Os anos ali fluem para o Esquecimento no deslizar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas nem corredeiras encrespadoras do espelho das águas — distúrbio, tiro ou escândalo passional. O povo, escasso como penas em frango impúbere, vive de apanhar tainhas e mariscos. Feito o que, da capo às tainhas e mariscos.

É extrema a penúria de emoções. Vidas há que ardem inteirinhas sem o tremelique duma comoção forte. Só a Morte pinga, a espaços, no cofre dos acontecimentos, o vintém azinhavrado dum velho mariscador morto de pigarro senil, ou o tostão duma pessoa grada, coletor de rendas, fiscal, agente do correio.

Em tempos deu cédula graúda, um visconde da Jamanta, último varão conspícuo de que ficou memória no lugar.

Fora disso nada mais bole com a sensibilidade em perpétua coma de excelente povo — nem dramas de amor, nem rixas eleitorais, nem coisa nenhuma destoante dos mandamentos do Pasmado Viver.

A taramelagem das más-línguas vê-se forçada, nos serões familiares, ou na venda do José Inchado (clube da ralé), ou na Botica do Cação de Ouro (aqui o escol), a esgaravatar as castanhas chochas do assunto sovado ou frívolo. Sempre conversinhas que não vão nem vêm.

A grande preocupação de todos é matar o tempo. Matam-no, os homens, pitando cigarrões de palha, e as mulheres, gestando a prole enfermiça. E assim escorregam-se para o Nirvana os dias, os meses, os anos, como lesmas de Cronos, deixando nas memórias um rastilho dúbio que rapidamente se extingue.

Nessa lagoa urbana rebentou com estardalhaço a notícia duma sessão do júri. O povo rejubilou. Vinte anos havia que o realejo da justiça popular empoeirava num desvio do Fórum, mudo à falta dum capadócio que lhe metesse no bojo o níquel dum modesto ferimento leve. Fizera-o agora o Chico Baiano, ave de arribação despejada ali por um navio da Costeira. Que regalo! Ia o promotor cantar a tremenda ária da Acusação; o Zezeca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada de Defesa. Sua Excelência o Meritíssimo Juiz faria de ponto e contrarregra. Delícias da vida!

Ao pé do fogo, em casebre humilde, o pai explicava ao filho:

— Aquilo é que é, Manequinho! Você vai ver uma estrumela de gosto, que até parece missa cantada de Taubaté. O juiz, feito um gavião-pato, senta no meio da mesa, num estrado deste porte; à mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papéis na frente. Embaixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda. E a coisa garra num falatório até noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e refala; o Zezeca rebate e tal e tal. Uma lindeza!

O assunto era o mesmo na venda do José Inchado.

— Lembra-se, compadre, daquele júri, deve fazer vinte anos, que “absorveu” o Pedro Intanha? Eh, júri macota! O doutor Gusmão veio de Pinda especialmente e falou que nem um vigário. Era só o “nobre orgo do ministério” praqui, o “meretrício doutor juiz” prali. Sabia dizer as coisas o ladrão! Também, comeu milho grosso!, pra mais de quinhentos bagos, dizem. Mas valia. Isso lá valia.

Na Botica do Cação de Ouro o assunto ainda era o mesmo.

— Não, não; você está enganado; não foi desse jeito, não! Ora! Pois se eu até servi de testemunha!… Não teime, homem de Deus!… Sabe como foi? Eu conto. O Pedro Intanha teve um bate-boca com o major Vaz, perdeu a cabeça e chamou ele de estupor bem ali defronte da Nhá Veva; e vai o major e diz: “Estupor é a avó”. Foi então o Pedro e…

Só não gostou da notícia o meu tio juiz. Maçada. Incomodarem-no por causa de um crimezinho tão à toa. E tinha razão. O delito do mulato não valia uma casca de ostra.

Chico Baiano costumava todas as noites “soverter” um martelo da “legítima” no botequim do Bento Ventania. Ficava alegrete, chasqueador, mas não passava disso. Certa vez, porém, errou a dose, e em vez do martelo do costume chamou ao papo três. A pinga era forte; subiu-lhe imediatamente à torre das ideias. A princípio Baiano destabocou. Deu grandes punhadas no balcão; berrou que o Sul é uma joça; que o Norte é que é; que baiano é ali no duro; que quem fosse homem que pulasse para fora etc. etc. O botequim estava deserto; não havia quem lhe apanhasse a luva, a não ser o Ventania; mas este acendeu o cigarro pachorrentamente, trancou as portas na cara do bêbado e foi dormir.

Chico Baiano, na rua, continuou a desafiar o mundo — que rachava, partia caras, arrancava fígados. Infelizmente também a rua estava deserta e nem sequer a minguante a pino lhe dava sombras com que esgrimir-se. Foi quando saltou do corredor da casa dos Mouras o Joli, cachorrinho de estimação da Sinharinha Moura, bicho de colo, metade pelado, metade peludo, e deu de ladrar, feito um bobo, diante do insólito perturbador do silêncio.

O Baiano sorriu-se. Tinha contendor, afinal.

— ’guenta, lixo! — berrou e, cambaleando, descreveu uma “letra” de capoeiragem, cujo remate foi o valentíssimo pontapé com que projetou o totó a cinco metros de distância. Joli rompeu num ganir de cortar a alma, e o ofensor, perdido o equilíbrio, veio de lombo no chão.

A Mourisma despertou de sobressalto, surgindo logo à porta o redondo da Câmara, Maneco Moura, de camisola, carapuça de dormir e vela na mão.

Estrovinhado, o homem não enxergava coisa nenhuma desta vida, a não ser o clarão da luz à sua frente.

— Que é lá aí? — berrou ele para a rua.

— É pimenta-cumari! — roncou o mulato já a prumo; e enquanto, esfregando os olhos, o Moura perguntava a si próprio se não era aquilo pesadelo, o facínora desenhou no chão uma figura de capoeiragem chamada “rabo de arraia”. Consequência: o pesado vereador aluiu com vela e tudo, esborrachando o nariz no cimento da calçada.

Era esse o fato sobre o qual ia a Justiça manifestar-se.

Fale o tio:

— Foi uma seca sem nome o tal do júri. O promotor, sequioso por falar, com a eloquência ingurgitada por vinte anos de choco, atochou no auditório cinco horas maciças duma retórica do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher balaios. Principiou historiando o direito criminal desde o Pitecantropo Erecto, com estações em Licurgo e Vedas, Moisés e Zend-Avesta. Analisou todas as teorias filosóficas que vêm de Confúcio a Freixo Portugal: aniquilou Lombroso e mais “lérias” de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre-arbítrio é a maior das verdades absolutas e que os deterministas são uns cavalos, inimigos da religião de nosso país; arrasou Comte, Spencer e Haeckel, representantes do anti-Cristo na terra; esmoeu Ferri. Contou depois sua vida, sua nobre ascendência entroncada na alta prosápia duns Esteves do rio Cávado, em Portugal: o heroísmo de um tio morto na Guerra do Paraguai e o não menos heroico ferimento de um primo, hoje escriturário do Ministério da Guerra, que no Combate de Cerro Corá sofreu uma arranhadura de baioneta na “face lateral do lobo da orelha sinistra”.

“Provou em seguida a imaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da acusação feita no julgamento-Intanha; citou períodos de Bossuet — a águia de Meaux, de Rui — a águia de Haia, e de outras aves menores; leu páginas de Balmes e Danoso Cortez sobre a resignação cristã; aduziu todos os argumentos do doutor Sutil a respeito da Santíssima Trindade; e concluiu, finalmente, pedindo a condenação da ‘fera humana que cinicamente me olha como para um palácio’ a trinta anos de prisão celular, mais a multa da lei.”

Aqui o tio parou, acabrunhado. Correu a mão lívida pela testa em suor. Negrejaram-se-lhe as olheiras.

— Sinto um cansaço de alma ao recordar esse dia. Como é fértil em recursos a imbecilidade humana! Houve réplica. Houve tréplica. O Zezeca bateu o promotor em asnice. Engalfinharam-se, disputando acirrados o cinturão de ouro do Ornejo. Horror… O borbotão de asneiras era caudal sem fim e o conselho já dava evidentes sinais de canseira. A tantas, um jurado levantou-se e pediu licença para ficar de cócoras no banco, porque, “com perdão da palavra, estava com escandescência”. Veja você!…

— Afinal…

— Afinal foram os jurados para a sala secreta. Noite alta já. Os candeeiros de petróleo, com os vidros fumados, modorravam funerariamente. O Fórum, deserto de curiosos, estava quase às escuras. O destacamento policial (dois praças e um cabo) cabeceava, a dormir em pé. Três horas já haviam corrido, de sonolenta expectação, quando da sala secreta saem os jurados com o papelório.

Entregam-mo. Corro os olhos e esfrio. Tudo errado! Era impossível julgar com base na salada de batata e ovos que me fizeram dos quesitos. Tive de reenviá-los ao curral do conselho. Expliquei-lhes novamente, com infinita paciência, como deveriam proceder. Façam isto, assim, assado, entenderam?

"— Entendemos, sim, senhor — respondeu um por todos —, mas por via das dúvidas era bom que o seu doutor mandasse cá dentro o João Carapina pra nos ajudar.

"Abri a minha maior boca e olhei assombrado para o escrivão:

"— E esta, amigo Chico?

"O escrivão cochichou-me que era sempre assim. Em não sorteado o João Carapina, não havia meio de a coisa correr bem na sala secreta. E citou vários antecedentes comprobatórios. Não me contive — berrei, chamei-lhes nomes, asnos de Minerva, onagros de Têmis, e fi-los trancafiar de novo na saleta.

"— Ou a coisa vem conforme o formulário, ou vocês, cambada, ficam aí toda vida!

"Decorreu mais outra hora e nada. Nenhum ruído promissor na sala secreta. Perdi a esperança e acabei perdendo a paciência. Chamei o oficial de justiça.

"— Vá desentocar-me esse Carapina e ponha-mo cá debaixo de vara, dormindo ou acordado, vivo ou morto. Depressa!…

"O oficial saiu, lépido, e meia hora depois voltava com o carpinteiro dos nós górdios a bocejar, estremunhado, de chinelas e cobertor vermelho ao pescoço.

"— Senhor João — gritei —, meta-se na sala secreta e amadrinhe-me esse lote de cavalgaduras. Com seiscentos milhões de réus, é preciso acabar com isto!

"O carpinteiro foi introduzido na sala secreta.

"Logo em seguida, porém, toc, toc, toc, batem lá de dentro. O oficial de justiça abre a porta. Surge-me o Carapina com cara idiota.

"— Que há? — perguntei, escamado.

"— O que há, senhor doutor, é que não há ninguém na sala; os jurados fugiram pela janela!…

"— !!!

"— E deixaram em cima da mesa este bilhetinho para Vossa Excelência.

"Li-o: ‘Senhor Doutor Juiz, nos desculpe, mas nós condenamos o bicho no grau máximo.’
Máximo foi a palavra que decifrei pelo sentido: estava escrito ‘maquécimo’.

"Levantei-me, possesso.

"— Está suspensa a sessão! Senhor comandante, recolha o réu à… Que é do réu?

"Firmei a vista: não vi sombra de réu no banquinho. O comandante, que estava a dormir de pé, despertou sobressaltado, esfregando o olho.

"— Senhor, que é do réu? — gritei.

"O pobre cabo, com a ajuda dos dois soldados a caírem de sono, deu busca embaixo da mesa, pelos cantos, no mictório, dentro das escarradeiras. Como nada encontrasse, perfilou-se e disse com respeitosa indignação:

"— Saberá Vossa Excelência que o safado escafedeu…

"O relógio da matriz badalava três horas — três horas da madrugada!… Era demais. Perdi a compostura e explodi.

"— Sabem duma coisa? Vão todos à… — e berrei a plenos pulmões o grande palavrão da língua portuguesa.”

— E?…

— E fui dormir.