quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 3

Nota:
– As palavras com *, o significado está no glossário após os sonetos.
– Foi mantida a grafia da época para não comprometer a rima ou a contagem silábica.

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ANFITRITE

Louco, às doidas, roncando, em látegos*, ufano,
O vento o seu furor colérico passeia...
Enruga e torce o manto à prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.

A seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pássaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo o pano.

Sossega o vento; cala o oceano a sua mágoa;
Surge, esplêndida, e vem, envolta em áurea bruma,
Anfitrite, e, a sorrir, nadando à tona d'água,

Lá vai... mostrando à luz suas formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco* amículo* das ondas.
* * * * * * * * * * * * * *

ÂNGELUS

Desmaia a tarde. Além, pouco e pouco, no poente,
O sol, rei fatigado, em seu leito adormece:
Uma ave canta, ao longe; o ar pesado estremece
Do Ângelus ao soluço agoniado e plangente.

Salmos cheios de dor, impregnados de prece,
Sobem da terra ao céu numa ascensão ardente.
E enquanto o vento chora e o crepúsculo desce,
A ave-maria vai cantando, tristemente.

Nest'hora, muita vez, em que fala a saudade
Pela boca da noite e pelo som que passa,
Lausperene* de amor cuja mágoa me invade,

Quisera ser o som, ser a noite, ébria e douda
De trevas, o silêncio, esta nuvem que esvoaça,
Ou fundir-me na luz e desfazer-me toda.
* * * * * * * * * * * * * *

EGITO

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe* somente arranca um raro piorno*
Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto
De um adelo* que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranquilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.
* * * * * * * * * * * * * *

MUSA IMPASSÍVEL

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme* de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra*,
Cante aos ouvidos d alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
* * * * * * * * * * * * * *

MUSA IMPASSÍVEL (II)

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro* do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
* * * * * * * * * * * * * *

NATUREZA

Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,

Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.
* * * * * * * * * * * * * *

VÊNUS

Branca e hercúlea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de trono, a formosa escultura,
Vênus, túmido o colo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.

Um sopro, um quê ele vida o gênio lhe insuflara;
E impassível, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A majestade real de uma beleza rara.

Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gládio arranca,
Julgo vê-la descer lentamente do trono,

E, na mesma atitude a que a insolência a obriga,
Postar-se à minha frente, impassível e branca,
Na régia perfeição da formosura antiga.
* * * * * * * * * * * * * *
 
GLOSSÁRIO:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados; belchior; comerciante.
Amículo – pequeno manto feminino, espécie de mantilha.
Anguiforme –  que tem forma de cobra.
Crebra – que ocorre repetidamente; frequente, amiudado.
Glauco – esverdeado
Ibe não encontrei o significado. Se alguém souber, favor me escrever para eu fazer uma errata.
Látego – correia ou corda própria para açoitar; chicote, açoite.
Lausperene – exposição solene e permanente do Santíssimo Sacramento à adoração dos fiéis na igreja.
Piorno – designação comum a diversas plantas de diferentes gêneros, especialmente Genista e Retama, da família das leguminosas, nativas da Europa.
Plaustro – veículo descoberto, carreta.

Fonte do Glossário: Dicionário Houaiss

Monteiro Lobato (A Mosca e a Formiguinha)


– Sou fidalga! – dizia a mosca à formiguinha que passava carregando uma folha de roseira. – Não trabalho, pouso em todas as mesas, lambisco de todos os manjares, passeio sobre o colo das donzelas – e até me sento no nariz. Que vidão regalado o meu...

A formiguinha arriou a carga, enxugou a testa e disse:

– Apesar de tudo, não invejo a sorte das moscas. São malvistas. Ninguém as estima. Toda gente as enxota com asco. E o pior é que têm um berço degradante: nascem nas esterqueiras.

– Ora, ora! – exclamou a mosca. – Viva eu quente e ria-se a gente.

– E além de imundas são cínicas – continuou a formiga. – Não passam de umas parasitas – e parasita é sinônimo de ladrão. Já a mim todos me respeitam. Sou rica pelo meu trabalho, tenho casa própria onde nada me falta durante o rigor do mau tempo. E você? Você, basta que fechem a porta da cozinha e já está sem o que comer. Não troco a minha honesta vida de operária pela vida dourada dos filantes.

– Quem desdenha quer comprar – murmurou ironicamente a mosca.

Dias depois a formiga encontrou a mosca a debater-se numa vidraça.

– Então, fidalga, que é isso? – perguntou-lhe.

A prisioneira respondeu, muito aflita:

– Os donos da casa partiram de viagem e me deixaram trancada aqui. Estou morrendo de fome e já exausta de tanto me debater.

A formiga repetiu as empáfias da mosca, imitando-lhe a voz: “Sou fidalga! Pouso em todas as mesas... Passeio pelo colo das donzelas...”, e lá seguiu o seu caminho, apressadinha como sempre.

Moral: Quem quer colher, planta. E quem do alheio vive, um dia se engasga.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 162 (Especial Sara Furquim)

A trovadora paranaense, professora Sara Furquim nasceu em 27 de dezembro de 1918 e faleceu sexta-feira, dia 10 de janeiro de 2020, aos 101 anos de idade.




Rachel de Queiroz (Os Sobrenomes)

    

O nome de batismo, pai e mãe escolhem tirando de livro, de artista. de celebridade ou da folhinha. Mas sobrenome a gente herda dos antepassados. Seria curioso se pudesse descobrir como esses nomes se fixaram, o que significam. A maioria, claro, veio de apelidos; no sertão está ainda em curso a transformação de alcunha em sobrenome; (Luiz Ferreiro, João Zarolho, Maria Boleira), como a formação dos patronímicos: Zé Cirilo, Mané Rosa, Chico Júlio são os filhos de Cirilo, Rosa e Júlio.

Aliás essa dos patronímicos é a base de inúmeros sobrenomes que trouxemos de Portugal: Rodrigues filho de Rodrigo, Fernandes de Fernão, Peres de Pero, Mendes de Mem ou Mendo, Sanches de Sancho, Álvares de Álvaro, e daí por diante.

Há, porém, entre os muito usados os que não fazem mais sentido nenhum, não têm tradução inteligível atualmente; Queiroz, Peixoto, Macedo, Fonseca, Alencar (que Pedro Nava diz vir do árabe), Andrade etc.

Entre os nomes de árvores (que alguns pretendem foram os adotados preferencialmente pelos cristãos-novos), nota-se a particularidade de que só algumas árvores vindas do Velho Mundo são as escolhidas: — Carvalho, Pereira, Pinheiro, Silveira (ou Silva) ; já bananeira, aroeira, abacateiro, por serem árvores do Novo Mundo, não têm tempo nem tradição para se transformarem em genealógicas.

Os bichos são aqueles onde reina a mais singular discriminação. Nome de bovino, por exemplo, usa-se só o Bezerra; bezerro masculino, vitelo/a, boi, vaca, touro, ninguém usa. Carneiro e Cordeiro há aos milhares; mas ovelha, borrego. não. Dos suínos tirou-se o Leitão, mas jamais o porco. Da capoeira saem Pinto, Galo, Pato, Coelho; mas galinha e peru, não. Tem Leão mas não tem leoa; poucos Tigres e Camelos; inúmeros Lobos, Falcão. Mas hiena, chacal, crocodilo, píton, abutre, não tem, e todos são do Velho Mundo e não novidades americanas. Dir-se-á que é porque se trata de bichos traiçoeiros, peçonhentos ou repugnantes. Mas então por que ninguém usa a inocente girafa, o belo leopardo, o majestoso elefante, a imperial águia? São comuns Rato, Barata, nossos inimigos. Porém os dois maiores amigos do homem, o cão e o cavalo, não têm vez.

Muitos usam o nome de um país como apelido: França, Portugal, Holanda. Brasil. Mas não tem Inglaterra, Alemanha, Noruega etc. Por quê? Embora alguns dos seus gentílicos apareçam; lembro Inglês de Souza, Freire Alemão, Ferreira Francês. Os profissionais deveriam ser muitos, mas são poucos — Monteiro, Lavrador; e Ferreiro, que, curiosamente, só existe no feminino; Ferreira,

Das províncias brasileiras só dão sobrenome Amazonas, Bahia, Maranhão. Não conheço Sergipe, Pará, Mato Grosso etc. Por que será? E há os nomes dos descendentes dos nobres do império, que não podendo herdar o título ficavam na terra do título — Jaguaribe, Ouro Preto, Rio Branco.

Os sobrenomes mais comuns do brasileiro são, como se sabe, Silva, Costa, Lima, Pereira, Oliveira. Costa, evidentemente, não se refere ao detalhe anatômico no caso seria ‘‘Costas’’; terá alguma conotação com marujo ou negreiro, homem ido ou vindo da “costa’’ (d’África)? E se é verdadeiro que os nomes de árvores e plantas são de cristãos-novos, todos os nossos milhões de Lima, Silva, Oliveira, Pereira serão descendentes de judeus batizados?

Está aí um estudo para se fazer. A gente procura resolver os mistérios da Lua e Marte, mas com os mistérios que pululam ao nosso redor ninguém se preocupa.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 1976.

J. G. de Araújo Jorge (Solilóquios)


SOLILÓQUIO AMARGO

As vezes (e estamos em nossas vidas, naturalmente,
vivendo dias e noites, dias e noites
há tanto tempo . . . )

- e, de repente, um pensamento amargo e insólito
toma conta de mim.

Um dia - e ele chegará - um de nós terá
que partir,
e o outro, vai ficar.

Eu? Você? Quem terá que se despedir
sem dizer para onde? Quem terá que ficar
sem dizer para que?

Imagino esse dia, - e um estranho pavor me paralisa
por alguns momentos.
Não concebo minha vida sem Você,
e, - desculpe-me - tenho mais pena de Você
se for eu que tiver que ir embora.

Ha tantos anos vimos trazendo nossas vidas como uma vida só,
e de tal modo as juntamos que o dia em que tivermos que separá-las
a que ficar, será um simples destroço, um pedaço mutilado de vida
incapaz de sobreviver.

Para que, meu Deus? a gente construir com duas vidas
um destino só,
fazer esse trabalho dias e noites, de tantas pequeninas coisas
aparentemente insignificantes,
de momentos de puro prazer, de horas de lenta agonia,
construí-lo lentamente, como quem estivesse fazendo uma
obra para sempre,
e, subitamente - sem o menor aviso, sem a menor razão,  
depois de tanta coisa juntada, e sonhada, e sofrida,
uma força maior - como uma faca - corta tudo ao meio
e uma metade se enterra, e a outra metade, de pé, se desmorona
como um auto-mausoléu de areia?
.....................................................................................................

Eu te agradeço, Senhor, que este pensamento
só raramente me venha, e logo o sopres além...

Que seria de mim, afinal, se ele pousasse por mais tempo
em minha vida?

SOLILÓQUIO AO ENTARDECER

I

Interessante, amor, como depois de tantos descaminhos
de tantos desajustes, a vida vai ajeitando a felicidade,
ou a felicidade vai se ajeitando na vida, sem a gente perceber,
se enrodilhando em si mesma como um gato no tapete.

Como vamos reduzindo as proporções de nossos sonhos
(sem que nos apercebamos disto),
modificando nossos planos (aquelas aspirações que eram
como viagens à Marte),

limitando os horizontes de nossa felicidade,
e por isso mesmo, tornando-a possível, real, palpável,
capaz de ser possuída, sem nada perceber de seu conteúdo,
antes tomando uma forma imprevista. Apenas.

Estranho, amor, como a felicidade
pode se reduzir a um quase nada ( sem deixar de ser tudo)
sem deixar de ser felicidade!

(Sabe uma coisa, amor? A gente só pode ser feliz depois
de ter andado muito, e ter provado
os tragos amargos da vida,
e depois que afinal a gente chega a uma espécie de filosofia
sobre o querer, e o poder alcançar...)

Interessante, amor, mas vamos concluindo que a renúncia
é a irmã mais velha da felicidade,
- Irmã Renúncia! - e só por ela, chegamos tantas vezes
aquela alegria de saber
quanto nos basta esse pouco que nos transborda das mãos...

II

Hoje, por exemplo, basta estar em casa, basta Você estar comigo
para que me sinta feliz...
De repente me ocorre que há hoje tanta gente que não pode estar em casa,
que não sabe o que é estar em casa - sentir vagamente, em torno
o calor de uma companhia que faz de cada coisa inanimada
algo que existe, e vibra, e sente, e sofre, e ama,
como um Ser.

( De deixe que lhe confesse, depois de tanto tempo lado a lado:
- nunca a casa me parece tão vazia, como agora
se acaso chego, e não a encontro...)
É tão fácil entender: Você está em toda parte: nas flores das jarras,
na porta entreaberta, no rumor da cozinha, na bolsa sobre a cama,
em tantos lugares! na ordem das coisas, no gosto dos detalhes,
(em tantos detalhes só acessíveis à minha percepção...)

Hoje, basta você estar em casa e já me sinto feliz,
se seu andar, seu vulto, sua voz,
"materializam" sua presença a todo instante.

Basta saber que cada providência sua é um pensamento em mim,
basta saber que vamos nos sentar juntos, à mesa ( e essa é
sempre uma hora de comunhão)
- e vamos nos deitar juntos... E até já não importa se
conversamos tão pouco
sobre o tão pouco de nossas vidas,
se nossos corpos apenas se tocarão, ao acaso, sob os lençóis,
como dois ramos acenando, na sombra, ao entardecer.

Quem nos vir há de pensar que somos apenas duas pessoas sentadas
à mesa,
conversando na sala,
vendo televisão,
duas pessoas dormindo na mesma cama;
e entretanto, que engano !
- somos dois mundos, duas vidas
construídas há tantos anos em tantos irreconstituíveis momentos,
unidas como fios, por duas agulhas que tecem
a mesma malha,
e eu não poderia olha-la como a olho, se Você não viesse de tão longe
em meu coração,
nem Você sorriria para mim desse modo, se eu não fosse para Você
tanta coisa de que talvez nem Você mesmo se aperceba.

Não sei se consigo traduzir essa sensação de felicidade
que me vai possuindo inteiro - e se vai entranhando em mim,
numa infinita tranquilidade
que sinto na alma, no coração, nas mãos, nos braços, no corpo todo,
sem nenhuma razão aparente,
e por tão pouco, dirão.

Mas hoje basta Você estar em casa, mais nada, apenas estar em casa,
na tua casa que é a minha casa, na nossa casa,
para que eu me sinta feliz.

III

Chega a ser tola, confesso, essa emoção que faz com que
me deixe ficar esquecido
numa poltrona, em silencio, na penumbra, nesta hora quase noite...
E olhando as coisas em torno, e recostando o corpo pesado,
e cerrando os olhos para me ver melhor, me digo sem nenhum medo
que me sinto tão bem, tão em paz com a minha vida
que ate podia morrer.

(Nada deve haver de pior, afinal, para a felicidade,
que a gente chegar de volta, ao fim do dia,
e não encontrar em sua casa
senão uma casa vazia.)

Hoje, basta saber que continuamos juntos, a seguiremos assim
até o fim;
que tormentas medonhas não conseguiram separar-nos,
que vencemos obstáculos que pareciam intransponíveis
além das nossas forças;


- que continuamos juntos, no mesmo barco, como dois remadores
que ficaram em seus lugares quando as vagas cresceram,
e apertaram suas mãos aos duros punhos dos remos
e somaram a sua fé, a avançaram mais fortes, a sentiram que sobreviveram
porque estavam juntos.

Hoje, basta pensar que alcançaremos as calmarias do fim da viagem
quando as correntes e os ventos não estremecerão mais
nossos nervos cansados,
nem agitarão nossos cabelos grisalhos,
e, quem sabe? - chegaremos à terra, braços dados
um no outro, como antigamente, quando era o começo,
e cegos e aventurosos não conhecíamos o roteiro,
nem perigos e emboscadas...

Hoje, basta Você estar em casa para que me sinta feliz...

E nesse momento em que a felicidade parece se reduzir
e ficar mais leve,
para que a possamos carregar,
deixa que lhe confesse amor, que hoje, Você é sempre,
e é muito mais que aquele amor que foi, e continua sendo,
porque posso chamar Você agora
( e até a hora derradeira )
o que Você não podia ser outrora:
- a minha companheira.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Quatro Damas. 1964.

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: A Árvore da Saúde)

Era uma vez um homem que tinha três filhos. Quando estava prestes a morrer, chamou-os e disse que a única coisa que tinha para lhes deixar era o pomar, pelo que o deviam repartir de modo que cada um ficasse com uma parte. Acrescentou que uma das árvores produzia frutos da saúde, mas absteve-se de explicar qual ou onde se situava.

Poucos dias mais tarde, expirou e os filhos prepararam-se para dividir a herança. Mas o mais novo era ainda tão pequeno que não o incluíram e repartiram o pomar em duas partes iguais. O irmão deserdado ficou apenas com a árvore solitária situada no centro do terreno. Decidiram não lhe atribuir terras, por pensarem que, se fosse precisamente aquela a da saúde alguns frutos cairiam nas áreas que lhes pertenciam.

Um dia, inteiraram-se de que a princesa do país estava gravemente doente e o rei prometera concedê-la como esposa, além de oferecer metade do reino, a quem fosse capaz de a curar. Em face disso, os irmãos decidiram tentar a sorte. O mais velho foi o primeiro a dirigir-se ao pomar com uma cesta no braço, para colher uma peça de fruta de cada uma das suas árvores, após o que se encaminhou para o palácio. No entanto, o percurso obrigava-o a atravessar um bosque e, assim que penetrou nele, surgiu-lhe uma mulher idosa.

— Bom dia. Que levas na cesta?

— Rãs e sapos — replicou o rapaz. — Mas que tens com isso?

— Então, serão rãs e sapos — decidiu ela, e afastou-se.

Ele reatou a marcha até que alcançou o palácio, onde um guarda lhe perguntou:

— Que pretendes, rapaz?

— Trago na cesta frutos da saúde e quero entrar para curar a princesa — foi a resposta.

Disseram-lhe que admiravam a boa intenção, mas primeiro tinham de inspecionar o conteúdo da cesta. Quando levantaram a tampa, depararam-se-lhes numerosas rãs e sapos, que tentavam sair. Ato contínuo, aplicaram uma valente surra no rapaz e expulsaram-no.

Entretanto, o segundo irmão foi por sua vez ao pomar e encheu uma cesta com todo o tipo de frutos. Ao entrar no bosque, encontrou-se com a mesma velha, que o cumprimentou e perguntou que continha a cesta.

— Serpentes e víboras — informou o rapaz, não sem alguma brusquidão.

E ela replicou:

— Então, serão serpentes e víboras.

Uma vez diante da entrada do palácio, ele pretendeu passar com os frutos da saúde, mas, quando os guardas levantaram a tampa da cesta, viram-se perante as serpentes e víboras mais repelentes, o que lhe valeu uma surra não menos contundente que a sofrida pelo irmão.

Por último, o mais novo dos três rapazes quis tentar igualmente a sorte. Colheu frutos da sua árvore e pôs-se a caminho. No bosque, surgiu a inevitável velha.

— Bom dia. Que levas na cesta?

— Também te desejo um muito bom dia — replicou ele, cordialmente. — A cesta contém frutos da saúde.

— Então, serão frutos da saúde — determinou ela, e seguiu o seu caminho.

O irmão mais novo atravessou o bosque e, um pouco adiante, desembocou numa praia, onde viu que a rebentação arrastara para terra um grande esturjão, agora ofegante na areia.

— Vou ajudar-te, peixinho infeliz — articulou ele.

Apressou-se a lançá-lo à água e, no momento imediato, o esturjão assomou à superfície e gritou:

— Muito obrigado! Se alguma vez estiveres em apuros e puder valer-te, não hesites em me chamar.

O rapaz seguiu de novo o seu caminho. Pouco depois, avistou um corvo e um enxame de abelhas que travavam luta renhida, com estragos consideráveis em ambas as partes. Ele dirigiu-se-lhes e tentou fazer-lhes compreender a insensatez da peleja, pois podiam voar para onde desejassem. Reconheceram que tinha razão e, enquanto se afastavam, tanto o corvo como as abelhas lhe gritaram:

– Obrigado pelo bom conselho! Se alguma vez te vires em apuros e pudermos ajudar-te, não hesites em nos chamar!

O jovem prosseguiu em frente, até chegar à entrada do palácio.

— Que pretendes daqui, rapaz? — perguntaram-lhe.

— Trago nesta cesta frutos da saúde, para que a princesa os coma e se cure.

Louvaram-lhe a boa intenção, mas insistiram em inspecionar o conteúdo, porque já se lhes haviam deparado as coisas mais estranhas. Com efeito, a cesta estava cheia de maçãs de aspecto admirável. Ele ofereceu duas a um dos guardas, que comeu uma e sentiu-se imediatamente mais leve e alegre e o acompanhou à presença do rei e da princesa.

O jovem ofereceu algumas maçãs a esta última, a qual, quando consumiu a primeira, conseguiu levantar a cabeça da almofada, após a segunda pôde sentar-se e, no final da terceira, ergueu-se de um salto e pôs-se a dançar no quarto.

O rei alegrou-se profundamente e prometeu ao rapaz que seria o marido de sua filha. No entanto, ela não estava de acordo, por o considerar demasiado insignificante. Explicou ao pai que o homem com o qual se prontificaria a casar tinha de ser alguém no mundo. De qualquer modo, se devia desposar aquele jovem, este tinha previamente de recuperar o anel que o rei perdera no mar, vinte e quatro anos antes.

Ante isto, o jovem ficou preocupado. Todavia, lembrou-se do esturjão, correu à praia, chamou-o e comunicou-lhe a situação em que se encontrava. O peixe mergulhou ao fundo do mar e reapareceu pouco depois com o anel. O rapaz regressou ao palácio profundamente aliviado.

O rei recebeu-o com particular assombro, procurou a princesa e anunciou-lhe:

— Sabes perfeitamente que deves casar com quem te curou. Por conseguinte, deixa-te de exigências e desposa-o sem mais delongas.

No entanto, ela respondeu que não o podia fazer. Queria ter um marido que estivesse em condições de construir um palácio tão grande e magnificente como o do pai, além de que devia ser de cera e brilhar ao sol como se fosse de ouro puro. O rei tratou de transmitir estas exigências ao rapaz, que, a princípio, assumiu uma expressão carrancuda, mas acabou por se recordar das abelhas, afastou-se rapidamente, chamou-as e revelou-lhes o dilema em que se encontrava. Elas, porém, asseguraram-lhe que fariam tudo ao seu alcance para o comprazer. Quando, no dia seguinte, todos se levantaram, erguera-se um palácio de cera de dimensões e magnificência idênticas às do que o rei habitava, resplandecente ao sol como se fosse de ouro puro.

O monarca voltou a consultar a filha e advertiu-a:

— Agora, não posso conceder mais adiamentos. Tens de casar com ele, já que as suas capacidades excedem de longe as de qualquer homem médio.

A princesa mostrou-se muito surpreendida com o que via, mas não se deu por satisfeita. Quis que o pai comunicasse ao rapaz que obtivesse os três tições mais velhos do inferno. Prometeu que, se o conseguisse, não faria mais exigências e casaria com ele de bom grado.

O rei ficou extremamente indignado com a nova pretensão, mas acabou por ceder e informou o jovem. Este, a principio, sentiu-se muito apreensivo, mas não tardou a lembrar-se do corvo, o apóstolo de Satanás, ao qual valera numa aflição. Por conseguinte, chamou-o e expôs-lhe o problema. A ave prometeu fazer tudo ao seu alcance para o ajudar e não tardou a reaparecer com os três tições. O rapaz aceitou-os, dirigiu-se prontamente ao palácio e largou-os no regaço da princesa. Arderam imediatamente, e ela esteve na iminência de ficar sufocada com o fumo. Muito assustada, pôs-se de pé de um salto e correu para os braços do pretendente. Já não havia nada que impedisse o casamento. Celebraram-se, pois, as bodas e os noivos receberam metade do reino como dote.

Fonte:
Contos Tradicionais da Dinamarca

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 161


Alcântara Machado (O Lírico Lamartine)


(Desembargador Lamartine de Campos)

Desembargador. Um metro e setenta e dois centímetros culminando na careca aberta a todos os pensamentos nobres, desinteressados, equânimes. E o fraque. O fraque austero como convém a um substituto profano da toga. E os óculos. Sim: os óculos. E o anelão de rubi. É verdade: o rutilante anelão de rubi. E o todo de balança. Principalmente o todo de balança. O tronco teso, a horizontalidade dos ombros, os braços a prumo. Que é que carrega na mão direita? A pasta. A divina Temis não se vê. Mas está atrás. Naturalmente. Sustentando sua balança. Sua balança: o Desembargador Lamartine de Campos.

Aí vem ele.

Paletó de pijama sim. Mas colarinho alto.

- Joaquina, sirva o café.

Por enquanto o sofá da saleta ainda chega para Dona Hortênsia. Mas amanhã? No entanto o desembargador desliza um olhar untuoso sobre os untos da metade. O peso da esposa sem dúvida possível e o índice de sua carreira de magistrado. Quando o desembargador se casou (era promotor público e tinha uma capa espanhola forrada de seda carmesim) Dona Hortênsia pesava cinquenta e cinco quilos. Juiz municipal: Dona Hortênsia foi até sessenta e seis e meio. Juiz de direito: Dona Hortênsia fez um esforço e alcançou setenta e nove. Lista de merecimento: oitenta e cinco na balança da Estação da Luz diante de testemunhas. Desembargador: noventa e quatro quilos novecentas e cinquenta gramas. E Dona Hortênsia prometia ainda. Mais uns sete quilos (talvez nem tanto) o desembargador está aí está feito Ministro do Supremo Tribunal Federal. E se depois Dona Hortênsia num arranque supremo alargasse ainda mais as suas fronteiras nativas? Lamartine punha tudo nas mãos de Deus.

- Por que está olhando tanto para mim? Nunca me viu mais gorda?

- Verei ainda se a sorte não me for madrasta! Vou trabalhar.

A substância gorda como que diz: Às ordens.

Duas voltas na chave. A cadeira giratória geme sob o desembargador. Abre a pasta. Tira o Diário Oficial. De dentro do Diário Oficial tira O Colibri. Abre O Colibri. Molha o indicador na língua. E vira as páginas. Vai virando aceleradamente. Sofreguidão. Enfim: CAIXA DO O COLIBRI. Na primeira coluna: nada. Na segunda: nada. Na terceira: sim. Bem embaixo: PAJEM ENAMORADO (São Paulo) - Muito chocho o terceto final do seu soneto SEGREDOS DA ALCOVA. Anime-o e volte querendo.

Não?

Segunda gaveta à esquerda. No fundo. Cá está.

Então beijando o teu corpo formoso
Arquejo e palpito e suspiro e gemo
Na doce febre do divino gozo!

Chocho?

Releitura. Meditação (a pena no tinteiro). Primeira emenda: mordendo em lugar de beijando.

Chocho?

Declamação veemente. Segunda emenda: lebre ardente em lugar de doce febre.

Chocho?

Mais alma. Mais alma.

A imaginação vira as asas do moinho da poesia.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja da China.

Lóla Prata (Parlendas)


São versos de poucas sílabas poéticas, recitados para entreter, acalmar e divertir crianças, escolher quem deve iniciar um jogo ou os que devem tomar parte numa brincadeira. São sempre rimas ou ditos educativos ou satíricos e não têm música.

Em Portugal, a parlenda é chamada de cantilena ou lengalenga. Foi introduzida no Brasil pelos portugueses.

Considerada literatura oral ou vocal,    (é...)

As parlendas se encontram

* nos acalantos. que são cantigas para fazer criança dormir;

* nos jogos. onde há sempre disputa e competição;

* nas canções de roda: Senhora D. Sancha; Ciranda, cirandinha;

"A Ciranda deveria ser (simbolicamente é) a dança da vida. Ficamos em círculo, olhando uns para os outros, damos as mãos, cantarolamos juntos e tentamos acertar o passo ao ritmo de uma música. Bonito isso, não? Deveria ser assim o convívio dos humanos..." Edna Lopes

* nas adivinhações ou que é que é ...

–  o que é que é que cai de pé e corre deitada?

– o que é que é feito para andar e não anda?

– o que é que é surdo e mudo, mas conta tudo?

– o que é que é que sobe quando a chuva desce?

– o que é que é que sempre se quebra quando se fala?

– o que é que pela manhã caminha com 4 pernas, ao meio-dia com 2 e à tarde com 3? (um dos enigmas mais conhecidos no mundo inteiro, talvez o primeiro dos três que a Esfinge propôs a Édipo).

* nos brincos, parlendas mais fáceis, ditas e recitadas pelos pais ou babás para entreter ou aquietar as crianças:

Palminha, palminha
Palminha de São Tomé
Pra quando papai vier
*

Dedo mindinho
Seu vizinho
Maior de todos
Fura-bolos
Cata-piolhos

MNEMONIA. do grego mnem = lembrança.

Segundo Luís da Câmara Cascudo, quando as parlendas se destinam a fixar ou ensinar algo às crianças (números ou ideias) são chamadas de mnemonias:

Um, dois, feijão com arroz
Três, quatro, feijão no prato
Cinco, seis, feijão pra três
Sete oito, comer biscoito
Nove, dez, comer pastéis

Outra parlenda muito conhecida;

Uni, dune, tê,
salame mingue,
um sorvete colore,
o escolhido foi você!

***

Rebola, bola / Você diz que dá na bola
Você diz que dá, que dá / Na bola você não dá...

A parlenda é um dos primeiros entendimentos da criança, permanecendo gravada na memória na idade adulta.

Há parlendas que são de iniciativa da própria criança, utilizadas nas suas
brincadeiras. Algumas das mais conhecidas, contando os botões do casaco
para ver com quem vai casar,

Rei / Capitão / Soldado / Ladrão.

*

(desfolhando uma flor e pensando em alguém)
Bem me quer. Mal me quer,
Bem me quer. Mal me quer....

Muito conhecidas também são as parlendas para colocar os distraídos em armadilhas; pede-se que a pessoa repita uma determinada expressão depois da última palavra dita, por exemplo "de sete facadas".

Eu ia por um caminho...
Caminho - de sete facadas...
Encontrei uma vaca...
Vaca - de sete facadas...
Encontrei uma casa...
Casa - de sete facadas...
Encontrei um morro...
Morro - de sete facadas!

A tradição oral das parlendas é transmitida de geração em geração, com variantes regionais. Infelizmente, hoje, essa rica manifestação popular só sobrevive em algumas regiões rurais brasileiras e em alguns trabalhos de folcloristas que as catalogaram.

TRAVA-LÍNGUA

Outro tipo de parlenda interessante no folclore brasileiro, trava-língua, poesia admirada por crianças, consiste em versos rimados ou não, difíceis de pronunciar:

Se o papa papasse papa / Se o papa papasse pão
O papa tudo papava / Seria o papa papão,

*

Se a liga me ligasse, eu ligava a liga.
Mas, como a liga não me liga eu não ligo a liga.

*

O doce perguntou pro doce qual era o doce mais doce.
O doce respondeu pro doce que o doce mais doce
era o doce de batata doce.

*

A aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha.

*

Um tigre, dois tigres, três tigres.

*

O rato roeu a roupa do rei de Roma.

*

Três dragões graduados.

*

Chá mancha o chão?

*

O peito do pé de Pedro é preto.

*

O tigre tragou o trigo.

*

Trinta brincos trincados.

*

Três tigres trituram trinta terrinas de trigo.

*

Bagre branco, branco bagre.

*

Como pouco coco / Como pouco / coco compro.

*

Eu tagarelaria / Tu tagarelarias / Ele tagarelaria

*

O relógio tique-taqueia tique-taque, tique-taque;
antes que o tique ticasse, o taque não tiquetacava.

*

Em francês: Un chasseur sachant chasser sans son chien est un bon chasseur.

*

Em italiano: Trenta tre trentini entrarono in treno, tutti trenta tre trotellerano.

*

Em inglês: How much wood would a woodchoaker choak if a wood-choak could choak wood?

Fonte:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.
Livro enviado pela autora

Nilto Maciel (O Julgamento de Rui)


Quando ela chegar em sua carruagem de névoa, estarei pronto para a partida. Terei arrumado as malas, tomado banho, trocado a roupa. Tudo estará em ordem: móveis, papéis, semoventes. Abraçarei parentes e amigos, e, sereno, caminharei até a sege. O cocheiro, impaciente, olhará para trás. À janelinha, direi adeuses. E, talvez chorando, partirei.

         Sim, logo chegará minha vez de partir. Antes, porém, quero deixar anotadas algumas recordações. Não para o público, que não sou escritor, mas para meia dúzia de parentes.

         Não falarei de minha infância nem de minha mocidade. Não é aquele passado tão remoto o que me interessa e atormenta. Principiarei do meio do caminho. Depois de juiz, casado e pai.

         Minha intenção é recordar Cândida, seu tempo. Talvez para esquecer sua tragédia, seu fim. No entanto, não poderei falar dela, sem lembrar-lhe a morte.

         Encontraram o corpo de minha filha a boiar num poço do rio das Lajes. Havia ferimentos na cabeça, nos braços, nas pernas. E rasgões no vestido.

         O achamento do corpo se deu graças a uns meninos. Costumavam tomar banho naquela parte do rio. Pulavam de cima das pedras.

         Os exames médico-legais não foram conclusivos. Cândida poderia ter escorregado nas pedras e se afogado. No entanto, ela sabia nadar. Além disso, nunca tomava banho em rio. Talvez nem conhecesse aquele rio.

         Falaram em suicídio. Padre Divino repeliu de pronto tal hipótese. Fez-nos ameaça: não daria sepultamento cristão à morta, caso tivesse havido suicídio.

         Não, Cândida não tinha razões para se matar. Todos falavam de sua beleza. Não aquela beleza cinematográfica. Talvez beleza angelical. Nenhum problema para atormentar-se, quer de saúde, quer financeiro.

         Havia ainda a hipótese de homicídio. Quem faria isso? A menos que um louco a tivesse encontrado às margens do rio.

         Ainda hoje guardo alguma suspeita de Rui de Alencar. Não há, porém, nenhuma prova a incriminá-lo. Não foi sequer indiciado, apesar de seu comportamento esquisito.

         Diziam nutrir ódio a Cândida. Por não dar ela a menor importância a ele. Segundo outros, sentia ciúmes insuportáveis. A própria Cândida dizia, no entanto, ter ele inveja dela. Desde os tempos de menina. De suas tranças balouçantes, de seus pulinhos na calçada, de seu riso exuberante.

         Aos 15 anos se elegeu Rainha do Partido Azul, nas festas da padroeira da cidade. A mocinha do Partido Vermelho, ou Encarnado, quase morreu de indignação. Teve médico à cabeceira. E reza prolongada dos pais. Retornou à vida dias depois, completamente sem cor.

         Para comemorar o feito, realizou-se outra festa no Clube Esportivo de Palma. Algumas brigas entre os rapazes. Todos disputavam o amor da bela filha do juiz.

         A beleza de Cândida chamou a atenção de homens e mulheres desde seus primeiros anos. “Parece um anjo do céu”, diziam. Referiam-se às figuras pintadas na cúpula da igreja matriz.

         A comparação se tornou mais crível no dia da primeira comunhão dela. Trajada de anjo, com asinhas e vestido longo, encantou meia cidade. A outra metade não saiu de casa, não foi ver a cerimônia.

         Nesse dia Rui sofreu como nunca. A beleza da menina o martirizava. E esse martírio se desenvolveu ao longo do tempo. Quanto mais Cândida crescia, mais Rui se atormentava.

         Embora não tenham sido sequer namorados um do outro, Rui vivia espionando Cândida. Certa feita, ao flagrá-la em beijos com outro rapaz, aprontou um memorável escândalo. Toda a cidade comentou o espetáculo. Ora, circo só aparecia de ano em ano, e ninguém se afoitava a sair da linha. A não ser durante bebedeiras. Mas bêbados se repetiam, e ninguém mais os achava escandalosos. Mesmo quando caíam ou urinavam nas ruas.

         A fúria do rapaz parecia incontrolável. Sentia-se ultrajado. Sobretudo porque chegou a seu conhecimento que Cândida o chamara de besta. E o insulto teria sido pronunciado em local público, diante de várias pessoas, a plenos pulmões.

         Se o “besta” tivesse sido circunstancial, em razão do beijo, Rui talvez tivesse esquecido logo o insulto. Porém, Cândida o considerava besta por muitos outros motivos e momentos. Como por ele se vangloriar de ser advogado, orador, poeta, professor e futuro vereador. O homem mais importante de Palma. Um petulante!

         Se ela apenas visse defeitos nele – presunção, por exemplo –, Rui ainda poderia ter esperanças de enamorado. Na verdade, ele significava um defeito ou os defeitos. Em consequência, ela não gostava nada dele. Nunca aceitou os galanteios dele. Se pudesse, nem sequer o veria. Quando para ele olhava, seu olhar refletia desdém. Como o espelho do punhal à luz do sol reflete luz. E cega, fere, mata.

         Ó amor-próprio ferido! Pois quantos sonetos ele rabiscou, burilou, soletrou para ela!

         Um deles, de uma pieguice imensurável, ela rasgou, queimou, jogou ao lixo. E mandou recado: faria o mesmo a tantos quantos ele enviasse.

***

         Até no cabaré de Ana Souto se soube da beleza de Cândida. Para desespero de Rui, as raparigas constantemente traziam à baila o nome dela e sua formosura. Chamavam-na de “tua namorada”, “tua amada”, quando com ele falavam. Ele se zangava. Não queria o nome “dela” ali, naquele ambiente de pecado, devassidão, sujeira.

         Desesperado, chegou a culpá-la de tão constrangedora situação. Se fosse mais recatada, menos mostrada, exibida, espevitada, seu nome não estaria na boca de todos. Até das raparigas.

         E para que escrever versos e publicá-los no jornal? O cúmulo da vaidade! De fato, Cândida havia rabiscado uns versinhos, coisa bem ingênua e sem nenhuma poesia. Umas quadras cheias de flores e amores. Dei-lhes retoques, impus métrica e as mandei para a folha do comendador Jeremias.

         Não saíram maus versos. Como os de minha juventude. Sim, aos vinte anos fui poeta. Não sei o destino de tantas odes e cantigas. O tempo, o casamento, a magistradura, tudo se encarregou de sepultá-los.

         Talvez Rui não tivesse gostado da concorrência. Poeta só ele em Palma.

         Motivos não faltaram, pois, para que Rui desejasse a morte de Cândida. O mais grave deles talvez tenha sido a suposta platônica paixão dela pelo tenente Benévolo. Alguém deve ter cochichado horrores aos ouvidos dele. Sim, aquilo cheirava a sem-vergonhice. Pois o delegado tinha esposa e filhos, além de ser muito mais velho que ela.

         E uma agravante – ele, poeta, ser trocado por um soldado!

         Por tudo isso, não me convenço da inocência de Rui. Sobretudo por ter sido visto, naquela tarde, nas proximidades do rio das Lajes.

         Regressava ao cento da cidade, a pé, quando testemunhas o avistaram. Parecia nervoso, agitado, além de ter as roupas molhadas e sujas de lama.      E aquela gota de sangue coagulado no rosto? Só pode ter sido provocado por unha. Porém, Rui negou tudo. Não gostava de rios, mal sabendo nadar. E naquele dia, bem longe do rio, escorregara numa poça de lama, daí os leves ferimentos e a roupa suja.

         Testemunhas afirmam ter visto o rapaz nas proximidades do local onde o corpo de Cândida foi encontrado. No entanto, o delegado chamou-as de mentirosas. Ameaçou-as de prisão e tortura. Como costumava agir. Os gritos dos presos assustavam as crianças à noite.

         Benévolo não escondia sua simpatia pela pena de morte. Antecedida de prolongada tortura. E não foram poucos os presos mortos nas celas da Delegacia. As conclusões eram sempre duas: suicídio e assassinato (cometido por outro preso). E logo o “outro preso” também amanhecia morto.

         Como Cândida conseguiu gostar de tão feio carniceiro? Águeda me falava desse amor, dessa paixão. A menina sonhava com o monstro. Em seus sonhos ele virava cavaleiro andante, salvador de donzelas, amante fiel, herói insuperável.

         Casado, pai de quatro ou cinco meninos, Benévolo vivia no cabaré de Ana Souto. A pretexto de fazer ronda, não perdia oportunidade de se deixar arrastar para a cama das raparigas.

         Conquistador bem sucedido, não desprezava também as empregadas domésticas e as moças mais pobres.

                                                        ***

         Cinco foram as paixões de Rui.

         A primeira aconteceu aos oito aninhos de Cândida. Brancas pernas roliças, longos cabelos castanhos, peraltice pelas calçadas, parecia a dona do país das maravilhas. Lá fora, no entanto, reinava o terror. O governo cassava deputados, feito gato atrás de ratos. Rui, sempre solteiro, ria dos ratos, perseguia Cândida com olhos de gato. E tinha 34 anos de solidão.

         Alguns anos depois, mataram Lamarca. Minha filha fazia 13 anos. Atolado na dor, Rui andava pelas ruas de Palma feito sonâmbulo. Acontecia sua segunda paixão. As pernas de Cândida estavam mais roliças e tentadoras, seus cabelos lembravam o vento, seus olhos pareciam cisternas profundas.

         Mais uma vez Cândida não tomou conhecimento de nada. Nenhuma paixão a visitava. Nenhum terror a martirizava. Tudo nela devia ser cor-de-rosa.

         A terceira paixão de Rui se deu em 73. Acabava de entrar na casa dos quarenta, um ou outro cabelo branco a surgir na vasta cabeleira. Seus versos falavam então de adolescência, flor desabrochada.

         Mais dois anos, e uma quarta paixão feria seu já gasto coração. No dia da morte de Herzog, bebeu em demasia e terminou numa das camas de Ana Souto. Começou louvando a morte de todos os comunistas e acabou chorando aos pés de uma rapariga, que confundiu com Cândida.

         E veio a última das paixões. Minha filha chegava perto dos vinte anos e havia concluído o curso de normalista. Parecia mais bela que nunca. Rui e outros a chamavam de deusa, ninfa, graça. Nas grandes cidades, multidões se manifestavam nas ruas, pedindo liberdade. Rui se irritava com aquilo, e mais seus cabelos embranqueciam.

         Dias depois o governo fechou o Congresso. E Cândida apareceu morta.

***

          Menina-moça, Cândida já ouvia falarem de seu casamento com Rui. As amiguinhas brincavam: já nasceu com casamento pedido. Pois toda  Palma sabia da paixão de Rui por minha filha. E o tempo passando, ele envelhecendo, enchendo-se de rugas e cabelos brancos.

         Se se referiam à sua solteirice prolongada, ele se zangava. Quando encontrasse a moça ideal, anunciaria o noivado a todos. Daria uma grande festa no Clube. Publicaria notícia no jornal do comendador.

         Por que não se casava logo? Por que não se casara ainda, se havia tantas moças solteiras em Palma?

         Como se acusado de grave falta, ele se defendia com unhas e dentes. Não ia casar-se com qualquer uma. Casamento para ele só com amor. Mas tivessem paciência: um dia a mulher de seus sonhos surgiria.

         Às escondidas riam dele. Pelo jeito casaria com a morte.

                                                        ***

         Houve quem duvidasse da virilidade de Rui. Exatamente por sua solteirice crônica. Porém, ele frequentava com assiduidade o cabaré de Ana Souto. Não toda noite, é certo, mas pelo menos uma vez por semana. Nunca aos sábados e domingos. Detestava disputar as mulheres. E a companhia de bêbados.

         Rui e Ana mantinham uma espécie de pacto. Ele não dava dinheiro às raparigas com quem se deitava. Em troca, se obrigava a dormir na cama dela uma vez por mês.

         Conheciam-se desde a primeira mocidade dela. Nesse tempo já navegava Ana na barca dos cinquenta anos. E já administrava, com sabedoria de vestal, sua casa repleta de mocinhas.

         A fama do cabaré de Ana se mantinha desde os primeiros tempos. Lá viviam as mais novas e bonitas raparigas de Palma. O plantel se renovava constantemente. Coitada de quem adoecesse, engravidasse, abortasse. Nenhuma chegava aos trinta anos. Casa respeitada e frequentada pelos mais importantes homens da região. Desconhecido de Ana não punha os pés no batente de sua casa. Só se conduzido e apresentado por algum amigo.

         Assim, nunca o cabaré foi palco de qualquer briga. Além do mais, a polícia garantia a ordem na casa. Benévolo e seus soldados davam proteção a Ana e suas “meninas”. Em troca, não pagavam nada. Bebiam à vontade, dançavam e podiam escolher a mulher que lhes apetecesse.

         Sempre bem vestidas, pintadas, perfumadas, as raparigas de Ana gozavam da mais alta admiração de todos. Seus nomes andavam de boca em boca e até nos versos de Rui.

         Também Ana frequentava a pena do poeta, como no poema intitulado “Caftina”, que apesar de versos assim e das noitadas no cabaré, havia quem afirmasse nunca ter Rui tocado uma só das mulheres de Ana. Outros se faziam menos cruéis. Ia para a cama, sim, mas após muita insistência. E, para não sair falado, mostrava-se o mais competente dos machos. Capaz de deixar cansada a mais calejada rapariga.

         Finda a pândega, corria para casa, feito rato assustado. Como se tivesse enfrentado o mais temível dos gatos. De tão angustiado, não conseguia dormir. E só faltava supliciar-se ante as imagens dos santos. Rezava infinitas orações, ajoelhado, quase a chorar, coração a explodir de dor. E se banhava, uma, duas, três vezes. Cobria-se de espuma, gastava sabonetes e sabões, a água gelada a lavar-lhe o corpo pecador.

         Nos dias seguintes, transfigurado, quase branco, cheirando a santo, lia seguidamente a Bíblia e vidas de santos e mártires cristãos. Rezava a mais não poder, assistia a todas as missas, confessava-se a cada madrugada, engolia hóstias atrás de hóstias. E ninguém via nisso exageros ou loucura. Padre Divino mostrava um riso contínuo, como o de algumas imagens da Igreja.

         Na sequência do delírio, Rui cantava intermináveis hinos, em casa, na rua, na igreja. E não só cantava, escrevia-os. E não só hinos, como salmos e versos religiosos da mais variada métrica.

         Passados dias, semanas, meses nessa prática de asceta, Ana Souto enviava-lhe embaixadas. Aparecesse, fosse dizer umas poesias, alegrar a casa. Ele inventava doenças, viagens, afazeres muitos e inadiáveis. A Prefeitura, onde trabalhava, não lhe dava um dia de folga. Vida de cachorro!

         Na verdade, nem ia trabalhar. Finda a fase de beato, desterrava-se em sítios de parentes ou continuava em prisão domiciliar. Quando ressurgia, gordo e cheio de novidades, apresentava uma das duas explicações: viajara ou estivera doente. Preferia, no entanto, as viagens, os lugares mais exóticos do mundo. Na terra dos anões, por exemplo...

         Apesar disso, nunca o prefeito o censurava. No máximo, esperava uma explicação razoável. E o rol das doenças de Rui não parava de crescer. A primeira fora caxumba. Por causa dela quase não pôde comemorar a morte de Stalin.

         Simples amanuense, passava os dias datilografando ofícios e carimbando documentos. Emprego arranjado pelo comendador Jeremias. Para pagar votos conseguidos pelo pai de Rui. Além do mais, o “menino” tinha estudos, quase chegara a padre. Recém saído do seminário.

         Com o tempo, novas tarefas lhe foram impostas. De amanuense passou a assessor. Dos ofícios chegou aos discursos, aos relatórios. E tinha estilo – diziam.

         Não demorou, tornou-se intelectual, poeta. Deixou crescerem bigode e cabeleira, arranjou roupas mais decentes, passou a carregar debaixo do braço sempre um livro diferente.

         Para completar a figura, deu para beber. Poeta de respeito devia viver na boêmia. Logo, porém, mudou de ideia. Os mais velhos não gostavam de bebarrões. E passou a beber com moderação, quase nada. Para não cair aos pés dos postes e não causar escândalos. No entanto, bastava uma cerveja e se punha a discursar. Sempre em defesa da moral burguesa e cristã, do ideário político do comendador, do lindo pendão da esperança...

         A afeição de Jeremias por Rui levou-o a abrir as portas de seu jornal ao jovem intelectual. E mensalmente A verdade trazia versos, crônicas e artigos do ex-seminarista.

         Ler tornou-se um vício para Rui. Aos vinte anos já havia decorado meia Bíblia, duzentos sonetos parnasianos, uma infinidade de salmos e orações. Preso nessa babel, às vezes rezava apaixonados versos de Castro Alves. Outras vezes, bêbado, misturava o Pai-Nosso a versos de Casemiro de Abreu.

         Gostava também Rui de jornais e revistas. Mesmo velhos. A morte de Stalin frequentou suas conversas até os anos 70. Sempre calcado na notícia que leu num jornal de 1953.

         Sem jornal, revista ou livro, não ia à latrina. Sem eles, nem sequer conseguia defecar. Prisão-de-ventre durante dias. Em compensação, um salmo longo lhe proporcionava a melhor das evacuações. Chegava a dar louvores a Deus, aos berros.

         Outra mania de Rui: narrar num caderno seus sonhos noturnos. Espécie de diário do inconsciente. Acordava, corria à escrivaninha e se punha a escrever. Se ocorria esquecer trechos do sonho, inventava-os.

         Alguns dos sonhos se repetiam sempre. Como aquele em que Cândida, ainda menina, fugia para o campo e se perdia no mato.

         Nada irritava tanto Rui, afora esquecer seus sonhos, do que sentir quebrada sua rotina. Como não sair de casa após o jantar. Ou deitar-se por volta das 23 horas. Quando bebia ou visitava o cabaré de Ana – exceções em suas noites – sentia-se transtornado. Toda a rotina dos dias subsequentes se quebrava: não conseguia ler na latrina, adoecia, deixava de ir à Prefeitura...

         Rotineiramente jantava à hora do ângelus, perfumava-se, trocava de roupa e saía. Às segundas ia direto a casas onde houvesse moças. Sentados à calçada, lia ou recitava versos seus ou de outros. Sempre poesias líricas. Às terças procurava amigos mais velhos, para falar de política. Às quartas jogava bilhar. Às quintas percorria as ruas da cidade, a passo lento. Às sextas visitava parentes. Aos sábados vestia o terno de linho branco e sumia. Uns diziam que ia namorar, porém nunca se disse o nome da moça. Outros falavam de encantamento – Rui virava lobisomem. Aos domingos se dedicava a Deus: participava de terços, novenas etc. Se nada disso acontecesse em Palma, circundava a igreja matriz até alta noite.

***

         Rui sempre foi de poucas amizades. Mesmo quando mais jovem. Mesmo ao tempo de colégio. Contavam-se nos dedos. E os anos se encarregaram de afastar dele aqueles poucos amigos. Um morreu, outro foi embora de Palma, fulano constituiu família, e assim por diante.

         Súbito sentiu-se só. Os pais mortos, e sumidos os irmãos e amigos de infância e adolescência. Ninguém com quem conversar. A não ser os desconhecidos ou antigos desafetos.

         Apegou-se, então, a pessoas como o comendador Jeremias, o padre Divino e eu. Pessoas socialmente importantes: o chefe político, o chefe religioso, o chefe da lei.

         Nem sei como tudo começou. Talvez num julgamento de réu sem advogado. Haviam me falado de certa eloquência, de alguma leitura, de umas crônicas do jovem José de Deus, então rebatizado para Rui de Alencar. Em conversa com o comendador, confirmaram-se os predicados do rapaz.

         Vieram as primeiras audiências. Nomeado defensor de réus pobres, mostrou algumas aptidões. Porém, desconhecia leis e doutrinas jurídicas. Mesmo assim, nossa rabulice não podia exigir nada além do palavreado de Rui.

         Por uns tempos chamaram-no de Doutor Rui. E muitos até acreditavam tratar-se do famoso orador baiano. Outros, embasbacados, diziam: parece um padre. E realmente suas defesas orais lembravam sermões.

         Rui quase chegou a padre. Pela vontade de D. Maria das Dores, o filho seria um apóstolo de Cristo. Não por promessa, apesar de muito carola. O rapazinho, porém, cedo demonstrou falta de vocação para o sacerdócio. Aquela vida de recluso não o cativava. E, mal lhe nasciam pelos na cara, regressou ao lar materno. Voltou sombrio, solene e sábio. Falava com desembaraço e escrevia como ninguém na cidade. Até mesmo poesia. E logo o chamaram de poeta. Às vezes de padrezinho.

         Nos quatro anos passados junto aos jesuítas, leu quase tudo, exceto romances realistas e naturalistas. E escreveu os primeiros versos. Chegou a receber elogios dos padres pelo poema “Desembarque na Normandia”. E contava apenas 12 anos de idade.

         Às vésperas de deixar o seminário, soube do assassinato de Gandhi. E perpetrou um soneto, cujo primeiro quarteto dizia:

         O grande Gandhi – luminoso guia
         da paz na Terra – que se foi agora,
         criou no Ganges longo a utopia
         que o Ocidente nega, enquanto adora.


         Não podendo estudar junto às normalistas e não querendo transferir-se para cidade maior, onde pudesse cursar o científico ou o clássico, abandonou os estudos. Não, porém, as letras, os versos. E logo todos o chamavam de poeta. Inclusive os comerciantes. E era como se o chamassem de louco, vagabundo, joão-ninguém.

         Apesar de tudo, Rui se sentia poeta mesmo. Sobretudo quando outros rapazes o procuravam para mostrar-lhe seus versos. Sentia-se o mestre deles.

         Na verdade, Rui conhecia toda a poesia brasileira. Pelo menos até os princípios do século XX. E tentava imitar ora Castro Alves, ora Raimundo Correia. Para mim não passou de um parnasiano retardado e sem talento.

         Assim mesmo, elegeram-no o príncipe dos poetas de Palma. Por maioria absolutíssima. O segundo colocado recebeu apenas três votos e havia escrito até então somente algumas quadrinhas.

         Toda a cidade participou da eleição. Como se escolhesse prefeito e vereadores.

         Surgia o mito Rui.

         A partir de então alguns rapazes passaram a bajulá-lo e imitá-lo. Até no modo de andar, nos gestos mais comuns, no jeito de ser.

         Dezenas de mocinhas se apaixonaram por ele. Menos Cândida.

         E faltava a Rui exatamente isto – o amor de Cândida. Além de outro sonho literário: publicar livros e fundar uma academia de letras em Palma. Tornar-se um pequenino Machado. Um Machadinho de Assis.

         Para realizar mais este sonho, contava ele com o incentivo do comendador Jeremias. Sim, continuasse a escrever. O primeiro livro logo seria editado. Porém, o velho morreu antes do esperado. Em consequência, o jornal também deixou de existir. Assim mesmo, Rui continuou a escrever. Por algum tempo mais. Até perder completamente o interesse pela poesia e dar por encerrada a carreira de poeta.

         Apesar disso, parte de sua obra sobreviveu a esta drástica decisão. É o caso da “Ode à cabra”, recitada em lares e praças, bares e becos.

         Orgulhoso desse feito, planejou uma ode ao bode. No entanto, não foi além dos três primeiros versos. Ficou num elogio aos chifres.

O melhor de Rui nunca foi publicado. Trata-se de uma quadra biográfica, cujo original ainda guardo:

         Se eu fosse Rui de Alenca
         e não de Alencar o Rui,
         era como se fosse avenca
         – aquilo que nunca fui.


         Rui também gostava de paródias. Um de seus sonetos começava assim:

         Arma minha viril que te partiram
         qual seda em festa no sertão mais quente,
         repousa lá no céu de minha gente
         e viva eu cá no chão dos que mentiram.

         Embora lesse desde os tempos de seminário, Rui passou a ler muito mais após o desaparecimento do jornal do comendador. E como não houvesse livraria e biblioteca públicas em Palma, poucas eram suas chances de ler. Na verdade, tirante a biblioteca do colégio dos salesianos, só duas casas abrigavam livros: a minha e a do comendador. Salvo algum clássico que me restou dos tempos de estudante, só havia em minha estante literatura jurídica. Assim mesmo, Rui devorou tudo.

         Dos padres e de Jeremias leu vidas de santos, missais, alguns filósofos e uma enciclopédia.

         Quando leu tudo, ainda andava na casa dos vinte anos. Viciado, apegou-se a jornais e revistas. Sempre com muito atraso. Alguns bodegueiros lhe vendiam ou davam restos de periódicos. Em algumas bodegas desfrutava o direito de escolher o que levar. Gato doméstico à caça de ratos.

         De tanto ler, Rui estragou a visão. Quase não enxergava nada. E passou a usar óculos de grossas lentes.

         Assim como a morte do comendador matou em Rui a vontade de escrever, propiciando-lhe o vício da leitura, este causou-lhe miopia e, em consequência, despertou-lhe o vício da fala. Tornou-se orador.

         Se me fosse lícito elaborar uma análise psicanalítica do rapaz, eu diria

         À falta de ouvintes, Rui falava aos ventos, às estrelas, à lua. Até descobrir o silêncio dos sepulcros. Todas as noites refugiava-se no cemitério e se punha a pregar aos mortos.

         Descoberta sua nova mania, aconselhou-o padre Divino a fazer discursos fúnebres à hora dos funerais. Agradaria às famílias enlutadas e possivelmente aos recém-falecidos, sem precisar se expor aos fantasmas noturnos.

         Nascia o primeiro necrologista de Palma.

         Mal acordava, saía à rua. Queria saber das novidades. Que novidades? Se havia defunto novo na cidade. Se não, acabrunhava-se e até perdia a vontade de trabalhar. Caso contrário, corria à casa do morto para os pêsames e para colher informações biográficas sobre o cujo. Depois, à beira do túmulo, emocionado, choroso, tristíssimo, pronunciava o mais belo discurso fúnebre de sua vida.

         Afastado das lides poéticas, aproveitava as exéquias para enxertar nos discursos seus versos mais piegas. Os parentes chorosos do morto só faltavam morrer de emoção.

         O próprio orador não se continha e chorava feito um desgraçado. Mesmo não conhecendo o falecido e sua família.

         Obcecado pela morte (dos outros), Rui amanhecia contando sonhos terríveis: acidentes, assassinatos, suicídios... Talvez pretexto para falar de morte. “Sonhei que Jonas morreu afogado no Rio das Lajes. Será verdade?”

         Terminou amigo do mestre carpina. Vez por outra visitava a carpintaria de Seu José. Admirava a arte daquele homem rústico. Só um artista podia fazer móveis tão belos. Especialmente caixões. Que magníficos ataúdes!

         Passava horas alisando a tampa, pegando nas alças. Sim, logo estaria ajudando a carregar aquele precioso esquife. “Tomara que seja defunto maneiro.”

         Talvez essa fosse a esquisitice mais repelente de Rui. Porque admirar outras terras, o estrangeiro, ser quase um xenófilo não me parece grande defeito. Pois o poeta conhecia toda a geografia política da Terra. Cidades, montanhas, rios, tudo ele conhecia. Falava com desembaraço dos lagos Baikal e Malavi, do rio Murray, do Pântano de Kutch, de Odessa, Addis Abeba, os cafundós de judas. Porém, isso não significava xenofilia. Pois conhecia também o Brasil, desde as maiores cidades até os sertões mais desertos, a Amazônia, o Pantanal. Falava de São Paulo, suas ruas, seus bairros, como se falasse de Palma.

         Muita gente acreditava ter ele viajado pelo mundo. Pois, quando reaparecia após prolongadas ausências, dizia ter viajado. E contava casos vividos ou presenciados em Fortaleza, Manaus, Livramento etc.

         Tudo mentira. Nunca saiu de Palma. O resto do Brasil e do mundo ele conhecia de livros, revistas, jornais, mapas, cartões postais e toda sorte de informativos.

         Pobre homem! Sim, Rui não passou de um sonhador e um derrotado. Sonhou ser poeta. Nunca escreveu poesia de verdade. Sonhou viagens. Nunca foi além dos sítios de Palma. Sonhou ser vereador, prefeito, deputado. Talvez governador. Talvez Presidente da República.

         Candidatou-se diversas vezes à Câmara Municipal. Fazia comícios, redigia e distribuía manifestos, criava slogans estapafúrdios, prometia mundos e fundos. Um aeroporto. Voos diários para todas as capitais do país e até para o exterior. Os amigos e vizinhos batiam palmas, gritavam “está eleito”.

         Concluídas as apurações, revoltava-se. Não conseguia sequer uma  suplência.

         Talvez fosse sua a culpa pelo fracasso. Precisava então mudar de tática. Deixar o local e atingir o nacional e mesmo o universal. Em vez de chafarizes, jardins, aeroportos – a pátria forte, o heroísmo, uma ideologia.

         E apegou-se ao integralismo. Andava de camisa verde, colava retratos de Plínio Salgado, explicava o significado do sigma.

         Com a derrota de seu candidato, virou janista. Quando Jango assumiu, organizou uma passeata em defesa da liberdade, contra o comunismo.

         Convidou-me a participar da marcha. Recusei. Sendo juiz, não tinha o direito de estar ao lado deles. Seria estar contra a lei. Embora não simpatizasse nada com Jango e seus aliados.

         A passeata percorreu as ruas de Palma. À frente iam Rui, o comendador, padre Divino. A seguir, beatas e carolas. Carregavam estandartes e bandeiras de todas as cores e desenhos. Parecia uma palhaçada.

         A última campanha eleitoral de Rui deu-lhe meia dúzia de votos. Dizia-se democrata. Prometia a mais autêntica das democracias. Se eleito, faria da pesquisa de opinião pública a ponto de partida para a elaboração das leis. Se a maioria quisesse mudar o nome da cidade, Palma teria outro nome.

         Seriam feitas perguntas que poderiam mudar os rumos da Ciência: se o Brasil era mais populoso que a China; se a Terra era maior que o Sol; se o homem havia pisado o solo lunar...

         O povo decidiria tudo.

                                                        ***

         José de Deus Evangelista. Esse o nome oficial de Rui de Alencar. Imposto por D. Maria das Dores, sua mãe. A contragosto de Seu Augusto. Para ele o nome do filho seria Isidoro ou Artur. Em homenagem à Revolução Constitucionalista, de que era fervoroso adepto. Por inspiração do comendador Jeremias Coqueiro, seu chefe. Desde aqueles belicosos tempos.

         Três vezes prefeito, dono de inúmeras casas, sítios, tipografia, jornal, Jeremias mandava e desmandava em Palma. O vigário, o delegado e o juiz eram por ele indicados. Quando a indicação não partia dele, o nome do indicado precisava do seu aval. Minha nomeação demorou a sair exatamente porque o comendador não simpatizou com meu currículo. Na juventude fui poeta e socialista.

O tormento demorou. Só após muitas ponderações resolveu dizer sim. No entanto, outro tormento sobreveio. Porque interminável. Passei a ter sonhos horríveis. O comendador seduzia Cândida, violentava-a. Eu acordava desesperado. Águeda se assustava, queria saber de meus pesadelos. Eu calava, mentia, falava de monstros. Ela culpava a bebida. Sim, eu gostava de cerveja e cachacinha. Para suportar aquela vida apagada numa cidade de dez mil idiotas. E ainda ter de prestar contas de meus atos a Jeremias. Não só isso – decidir segundo a vontade dele. Só me faltou mandar prender vítimas.

         À noite o comendador virava bicho, lobisomem, fauno, o diabo. Às vezes se confundia com o delegado. Outro sem-vergonha. No entanto, Cândida gostava do tenente. Águeda me relatou as confidências que nossa filha lhe fizera. Vivia sonhando com o homem. E não conseguia se livrar desses sonhos. Mesmo sabendo de seu estado civil. E pior: de sua extrema rudeza, de seu caráter de bandido, de seus hábitos de mulherengo.

         Rui nunca soube desses sonhos de Cândida. Se tivesse sabido, como teria reagido? Talvez a matasse, se é que não a matou.

         E o que sonhava Rui, vivendo tão triste, tão solitário?

         Apesar de ser um dos mais velhos da família, terminou ficando só com os pais. Os irmãos mais novos foram aos poucos saindo de casa, por se casarem ou buscarem outras cidades. Dois deles faleceram ainda jovens.

         O velho Evangelista morreu quando gargalhava. Assistia a uma novela de televisão – O Bem-Amado.

         Viviam os dois em constantes rusgas. O pai chamava o filho de preguiçoso e indolente. 40 anos e ainda sem família, sem casa própria, sem nada, a não ser o empreguinho na prefeitura.

         Mesmo assim, Rui chorou muito e quase conseguiu escrever uma elegia para o pai.

         Restavam a mãe e Totonha, a criada negra que tudo fazia na imensa casa. Desde os tempos do casamento de Augusto e Maria.

         O pior aconteceu três anos depois – a mãezinha também se foi.

         Macambúzio, ao voltar do enterro encontrou a velha criada morta.

         Definitivamente só, pensou em vender a casa, os móveis antigos, a prataria, e fugir para São Paulo, onde moravam alguns irmãos. Porém, o rádio anunciou a explosão de uma bomba na Rua Isidoro Dias Lopes. Lembrou-se do pai e chorou mais uma vez.

                                                        ***

         Lembro-me bem do nascimento de Cândida. Tempos difíceis, de seca e fome. Havia, porém, alegria no país. Na Suécia nossa seleção de futebol ganhou a Taça. Eufórico, Rui declamava nas esquinas versos de louvor a Garrincha, Didi, Pelé, cada um dos campeões. Eu também me sentia feliz. Nunca tinha sido pai. E o bebê parecia tão cândido! No entanto, viveu tão pouco minha filha!

         Ou não morreu de verdade? Terá sido apenas um sonho ruim? Terei imaginado aquela morte horrível? Ou tudo inventei?

         Não, lembro-me com nitidez do velório, das rezas, do padre Divino, da tristeza de todos. Depois o caixão sendo conduzido ao cemitério. Eu segurando uma das alças. Era de tarde. Rui chorava. Parecia desesperado. Em dado momento tomou a palavra e pôs-se a discursar:

         Ó cândida menina de meus sonhos,
         ó tu que para a eternidade partes...


         Naquele momento eu ainda não suspeitava dele. E o aplaudi.

         Agora não sei mais o que pensar, dizer.

         Talvez esteja enlouquecendo. Ou indo ao encontro dela – a Morte.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo, contos. Brasília: Códice, 1998.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 160


Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) 4


Vivo vida de opulência
impregnado de poesia,
e vida melhor quereria,
eu e as musas em essência?
* * * * * * * * * * * * * *

Nós, seres humanos, somos como
viajantes que vogamos sobre o eterno
rio do Tempo, que embarcamos em certo
ponto e desembarcamos em outro, a fim
deixar lugar aos que, rio abaixo,
esperam a sua vez de subir a bordo.
navegue em águas tranquilas.
* * * * * * * * * * * * * *

Mágicas mádidas manhãs.
Cálidas calendas calcificantes.
Serenos sábados sorridentes.
Vidas vívidas vivificando.
Verão. Vereis vós. Verão.
* * * * * * * * * * * * * *

Ler
escrever
respirar
pensar
caminhar.
Como vou parar ?
* * * * * * * * * * * * * *

De onde é que têm surgido
os teus versos, oh vivente,
não serão algum prurido
que carregas na tua mente ?
* * * * * * * * * * * * * *

As minhas:
gavetas diurnas
sempre
abertas
albergando
versos.
* * * * * * * * * * * * * *

O que se gasta para viver
nesta vida de sobrevivência,
se o ideal é apenas o ser,
por que tanto querer-demência ?

* * * * * * * * * * * * * *

Todos
podem
devem
escrever
des(a)fiar
perenizar
a arte.
Eu lavro
minha parte.
* * * * * * * * * * * * * *

Palavras são sementes
geradoras
de sonhos
de caminhos
de ideias
de ideais
de vidas
* * * * * * * * * * * * * *

De onde será, veio o veio,
o veio dos ventos uivantes,
será que veio de abrantes,
em redemoinhos ele veio ?
* * * * * * * * * * * * * *

Não discuto com a vida
varamos silêncios
em luta renhida
* * * * * * * * * * * * * *

Sou eterno aprendiz,
sabendo que a vida
é mesmo assim:
o aprendizado
não tem fim.
* * * * * * * * * * * * * *

Sabiás voando rasantes
no "bosco", na galharia,
serão pensares passantes
na sabatina sombria ?
* * * * * * * * * * * * * * 

Fonte:
Versos enviados pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (O Ladrão)


O bloco passava lá fora, “experimentando” o Carnaval. Minha amiga foi atender o telefone, e ao voltar viu que sumira o relógio de pulso, deixado sobre a mesinha de cabeceira. Abriu a gaveta e examinou a caixa de joias: vazia. Nada de preço, mas de estimação: colar de pérolas cultivadas, anéis, broches, essas coisas. Cada peça lhe viera de uma pessoa querida, e era como se os ofertantes vivessem ali, disfarçados e condensados pelo ourives. Minha amiga ficou aborrecida. Não que participasse do horror capitalista a ladrões. Sem capital, achava exagerado esse sentimento. Nas vezes em que discutira o problema, opinara quase favoravelmente aos gatunos. Coitados, não tiveram boa formação familiar; a miséria é grande e espalhada, o corpo social se caracteriza pelo egoísmo. Erraram, apenas. E depois, tanto ladrão gordo por aí, recebido em sociedade, incólume, benemérito!

Por isso mesmo, sentia-se chocada com o acontecimento. Por que lhe faziam uma dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, daria. Se não tinham coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem objetos caseiros, sem história. É certo que ladrão não pode saber se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o compra.

Foi ao andar de cima conferenciar com o vizinho. Ele nada percebera, mas armou-se de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se esse acidente geográfico retivesse propriedades maléficas, extensíveis aos indivíduos que o habitam. Mas enfrentar o morro, àquela hora da noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os suspeitos que passassem, e não passaram.

Na noite seguinte, passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que, inteirada do fato, pensou logo em Curió.

— Curió hoje de tarde estava querendo vender uns troços de ouro, umas correntinhas.

— Então me tragam o Curió que eu quero conversar com ele. Mas por favor, não o maltratem, hem — pediu minha amiga.

Curió apareceu pela manhã, encalistrado, com os policiais. Pequeno, modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. “Não faça isso — ordenou-lhe minha amiga. Vamos conversar sentados no chão, que é melhor.”

Cosme e Damião preferiram ficar de pé, Curió não se fez de rogado, e o vizinho adotou o figurino.

— Curió, foi você quem levou minhas joias de estimação?

De cabeça baixa, Curió admitiu que sim. Passara por ali, à hora em que o bloco descia, viu luz acesa, nenhum movimento, janela baixa, e tal, ficou tentado. Conhecia de vista a moradora, até simpatizava com ela. Mas praquê deixar tudo aberto, exposto, provocando a gente?

Lealmente, ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara.

— Você fuma, Curió?

— Aceito, madame.

Cigarro ajuda a resolver. Cheio de boa vontade, Curió não podia restituir tudo. Parte dos objetos fora vendida, os brincos ele dera a uma senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se madame quebrasse o galho — e apontou para Cosme e Damião.

— Estão aí com você?

— Não, madame, mas pode fiar do meu compromisso.

O vizinho ia exclamar: “Essa não”, porém minha amiga pediu-lhe que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando amigavelmente. Aquela fora a primeira vez, Curió vive de biscates, vida apertada, madame compreende.

No outro dia voltou com as joias, menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha amiga achou que não valia a pena magoar a moça, e louvou o desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa, encerador, bombeiro e cão de guarda, procurados há muito. O vizinho é que, indignado, e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.