sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: A Constelação das Plêiades)

Era uma vez um homem que tinha seis filhos aos quais não dera nomes, como as pessoas costumam fazer, limitando-se a chamar-lhes, de acordo com a idade, Primeiro, Segundo, Terceiro, Antepenúltimo, Penúltimo e Último. 

Quando o Primeiro completou dezoito anos e o Último doze, o pai mandou todos percorrerem o mundo, para que aprendessem um ofício. Eles puseram-se a caminho e, durante algum tempo, seguiram juntos, mas não tardaram a chegar a um dupla encruzilhada, da qual partiam seis caminhos diferentes. Reconheceram então que deviam se separar e cada um optaria pelo seu próprio percurso. Decidiram igualmente que, dois anos exatos mais tarde, voltariam a reunir-se naquele local, de onde regressariam à casa paterna.

Com efeito, no dia combinado, encontraram-se de novo aí e regressaram juntos a casa do pai, o qual perguntou a cada um que arte aprendera. 

O Primeiro disse que se tornara mestre de construção naval e era capaz de construir barcos que se deslocavam sozinhos. 

O Segundo embarcara, ascendera a piloto e sabia comandar qualquer tipo de barco ou veículo. 

O Terceiro apenas aprendera a escutar, mas conseguia, num reino, ouvir o que se passava noutro. 

O Antepenúltimo tornara-se atirador, e cada um dos seus disparos atingia o alvo com precisão. 

O Penúltimo aprendera a trepar, pelo que podia escalar uma parede como se fosse uma mosca, e não havia encosta rochosa suficientemente escarpada para o desencorajar.

Depois de se inteirar das capacidades dos cinco, o pai admitiu que não era mau de todo, mas, não obstante, esperava mais deles, pois, em última análise, o que tinham aprendido também outros eram capazes de fazer. Por fim, quis saber o que aprendera o Último, no qual sempre depositara as suas maiores esperanças, por se tratar do seu filho preferido.

O Último alegrou-se por finalmente ser a sua vez e anunciou, muito satisfeito, que se convertera em mestre do roubo. Ao ouvir aquilo, o pai ficou tão furioso, que o agarrou pelas orelhas e bradou:

— Que vergonha! Atraíste a desonra sobre mim e toda a família!

Aconteceu então que um mago de má índole roubou ao rei do seu país a jovem e encantadora filha. E o monarca prometeu-a como esposa — além de metade do reino como dote — a quem a descobrisse e arrebatasse ao raptor. Ao tomarem conhecimento disso, os seis irmãos decidiram tentar a sorte. 

O mestre de construção naval construiu um navio que navegava autonomamente. O piloto pilotou-o por terra e por mar. O de ouvidos apurados escutou em todas as direções e acabou por anunciar que detectara a princesa no interior de uma montanha de cristal, para onde se dirigiram. O escalador trepou a toda a velocidade e, uma vez no topo, avistou o mago, que dormia, com a horrível cabeça pousada no regaço da princesa. A seguir, reuniu-se aos irmãos, chamou o ladrão magistral, fê-lo subir para as suas costas e conduziu-o ao topo. O ladrão magistral tirou a princesa de baixo da cabeça do mago sem que este percebesse, após o que o escalador transportou ambos até ao navio.

Depois de se encontrarem todos a bordo, zarparam. Entretanto, o de ouvidos apurados não parava de prestar atenção aos movimentos do mago. Ainda não se tinham distanciado muito, quando comunicou aos irmãos:

— Acaba de acordar... Espreguiça-se... Dá pela ausência da princesa... Começa a dirigir-se para aqui!

A princesa revelou então um medo intenso e declarou que estariam todos perdidos, a menos que houvesse um atirador excelente a bordo, pois o mago podia deslocar-se pelo ar até qualquer lugar e não tardaria a alcançá-los. Acrescentou que era invulnerável e as balas não o molestavam, salvo se o atingissem num pequeno ponto negro que tinha no peito, não maior que o buraco de uma agulha.

E, na verdade, o mago surgiu a sobrevoar o navio a toda a velocidade. Sem perda de tempo, o atirador visou-o com a arma, disparou e atingiu-o em pleno sinal preto no meio do peito. Quase simultaneamente, o mago explodiu em milhares de pedaços incandescentes, que dispersaram fumegantes, em todas as direções, sendo por esse motivo que se encontram tão grandes quantidades de pederneira em todas as partes do mundo.

Os seis irmãos chegaram por fim a casa com a princesa, que depois conduziram à corte do pai. Todos se tinham apaixonado por ela e cada um podia afirmar que, sem a sua intervenção, nunca se salvaria. O rei viu-se então perante um grande dilema, por não saber a qual devia entregar a filha. E ela achava-se em idênticos apuros, já que não conseguia determinar qual amava mais.

Odin, pai dos deuses, contudo, não quis que houvesse divergências contundentes entre eles, pelo que fez com que os seis irmãos e a princesa morressem na mesma noite. Depois, distribuiu os sete pelos céus, convertidos em estrelas, que são as que agora conhecemos por Plêiades. A mais brilhante é a princesa e a menos visível o pequeno ladrão.

Fonte:

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 175


Rachel de Queiróz (O Cabeludinho)

     
 A menina de biquíni cor de morango sentou-se na areia e o rapaz de cabeleira e calção estampado disse que, com aquelas pernas compridas desabrochando no corpo, ela parecia uma rosa que nascia de dois talos.

A menina jogou para trás o longo cabelo liso e descolorido e, olhando para ele, bem duro, respondeu que não fazia fé nesses cabeludinhos e estampadinhos de hoje em dia — falavam muito, mas no fim não eram de nada.

Aí o moço se ofendeu muitíssimo, plantou-se em frente dela com as mãos nos quadris e apostrofou. Apostrofou assim:

“— Não, minha flor da areia, estás muito sobre a iludida. Você me vê com este calção não figurativo e esta camisa de estamparia azul-elétrico e a minha cabeleira nouvelle vague, e pensa que pode vir com indireta, Fique sabendo que macho também se enfeita — ou antes — macho é que se enfeita! Se duvida, veja só os pássaros: os machos são coloridos, e as fêmeas são sempre mixinhas. Pavão, tiê, faisão, tudo. E bicho grande também. Quer comparar leão com leoa? Tal qual o faisão com a faisoa. Jacaré com jacaroa. Bem, jacaré não sei direito, falei só por causa da rima.

E tem mais. Aquele rei da França, Luís não sei de quantos — Catorze, era. Calção curto, perna de fora, laço por toda parte, e onde não era laço, era renda. Casaca de cetim, colete de brocado, calção de veludo, chapéu de plumas raras. Peruca — peruca! — de cachos pelos ombros. Sapato de salto alto. E se pintava — sim, sei de fonte limpa que se pintava. Pois, com perdão da palavra, machão era aquele. Amantes, favoritas, marquesas, duquesas. sem falar na coitada da rainha chegava para todas. E filhos, então. Quando morreu teve que deixar um testamento só de filhos naturais, fazendo tudo duque e conde. Com mais de setenta anos ainda casou secretamente — secretamente, veja só! — E o Luís seguinte, bisneto dele — o cara viveu tanto que só sobrou pra sucessor um bisneto —, ainda era pior. Roupa mais sofisticada, salto mais alto — pois foi ele quem botou na moda esse sapato Luís Quinze que ainda hoje em dia vocês usam, minha filha. E esse fez um parque só de garotas. Tinha tanta mulher, mas tanta, que o palácio não chegava, precisava um parque. Sem falar na Madame Pompadour e na Madame Du Barry, que ele aturou até ficarem coroas, mas só por causa do prestígio — que ele gostava mesmo era dos brotinhos do parque.

Você, me vendo assim, não sabe que eu tenho a minha cultura. Pois tenho, Queimei pestanas duas noites na Biblioteca lendo na Enciclopédia toda essa página dos Luís de França, para dar resposta a quem me chateia. E ainda li muita coisa das obras completas do Casanova, que era outro cara que só vivia pra mulher e que se enfeitava mais do que fantasia do Municipal. Basta dizer que se empoava todo, até no cabelo.

Esse pessoalzinho do nosso tempo refuga enfeite, achando que homem pra ser homem só pode andar de cores neutras — por quê? Em que é que uma bonita casaca cor de cereja tirava a virilidade de um Luís ou de um Casanova?

Outra coisa é o cabelo. De vez em quando tenho atrito com algum engraçadinho que diz piada com o meu cabelo. Quando cabelo grande for coisa feia, tem muita gente mal — a começar pelos doze apóstolos, que, além da barba, usavam mas eram cachos. E Hércules, e Júpiter, e o Átila? Parece que ninguém vê as fitas italianas.

Pedro .Alvares Cabral seria algum mariquinhas? Pode olhar na estátua! Lampião, seria outro mariquinhas? Tudo de cabelão pelo ombro! E índio, haverá macho mais macho que índio? E índio americano usa até birote com lacinho e uma peninha em cima.

Não, o homem está na fibra e não na roupa ou no cabelo. E eu me esqueci de falar no Sansão! Você não viu no filme? Cortaram o cabelo dele, acabou-se o homem. Ah, eu vou aos meus cineminhas. Até o Brucutu não ia ao barbeiro. Nem Tarzã.

Eu não sou reservista de primeira porque tenho deficiência visual. Mas se sentasse praça no Exército, era com cabelinho e tudo e queria ver quem era capaz de botar minha cabeleira à cadete. Mostrava para eles o retrato do Caxias até de suíças. Cabeça pelada não é próprio de homem: ao contrário, é próprio só de preso e de doido.

Cada tempo tem seu tipo. Nós agora somos assim — cabeludinhos coloridos, diferentes. Deixa eu te atracar e você vai ver se debaixo desta camisa estampada não palpita um coração de marmanjo, movido a sangue de noventa octanas e com arremesso de cento e vinte cavalos de força.

O Titov não disse que o espaço era azul? Agora tudo é colorido, O homem do futuro há de ser de todas as cores — verde, amarelo, laranja, azul, vermelho. Como as bandeirinhas dos porta-aviões.

O que o homem precisa para vencer é peito. Peito e marra.

E isso — (aí ele expandiu o peito e abriu os braços, contra o sol), — e isso, minha flor da água salgada, isso você encontra aqui!”

E a menina de biquíni parece que não resistia à literatura: sorriu para aqueles braços abertos, levantou-se devagarinho e saiu de mãos dadas com o moço para fazer jacaré. Ou jacaroa.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Francesco Petrarca (Poesia Sem Fronteiras)




“DOCE IRA, DOCE MAL, DOCE BRANDURA”

(Espera que a fama há de compensar
                      o seu atual tormento)

Doce ira, doce mal, doce brandura,
doce afã, doce peso que hei sentido,
doce falar tão docemente ouvido
e que é doce de luz ou de aura pura.

Alma, sofre calada o que tortura,
mitiga o doce afã que te há ofendido
com o doce louvor que hás recebido
por esta que é minha única ventura.

Dia virá que suspirando diga
alguém cheio de inveja: assas sofrera
este por belo amor e seu enredo.

Outros: Ó sorte dura e tão inimiga!
Por que esta doce Dama não nascera
pouco mais tarde, ou eu, pouco mais cedo?

(Tradução de Jamil Almansur Haddad)
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1 "EM VIDA DE LAURA"

(Narra a sua miséria que atribui à Laura )

Paz não tenho, sem ter motivo à guerra:
temo, espero, ardo em fogo, e sou de gelo,
quero subir ao céu e caio em terra,
nada abraço, e o universo ando a conte-lo.

Preso, a prisão não se abre, e não se cerra:
prendem-me o coração, mas sem prendê-lo,
não me dá vida ou morte, Amor, e erra
minha alma sob o enorme pesadelo.

Odeio-me a mim mesmo, alguém amando,
grito, sem boca ter, sem olhos, vejo,
quero morrer, e a morte me apavora.

A dor me apraz, e rio-me, chorando:
não quero a morte, a vida não desejo...
Eis o estado em que estou por vós, Senhora.

(Tradução de Luiz Delfino)
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4 "EM VIDA DE LAURA "

(Longe de Laura, teme nunca mais a ver, duvidando
 de sua morte e da esperança de ainda a ver).

Neste meu dúbio estado, ou choro, ou canto,
temo, espero, suspiro e em branda rima
afogo a minha dor: amor esgrima
contra mim, todo o mal que pode entanto.

Hei de ver outra vez seu rosto santo?
Que deus levou-a a regiões de cima?
Ou ele só à minha vida anima
para que a chore em meu eterno pranto?

Queria o céu estrela radiante;
e Laura, o sol do meu viver, já erra
no céu: que lhe importou seu pobre amante?

E assim vivo em terror, infinda guerra:
não sou quem fui, e vago delirante
sem saber do caminho e estanho à terra.

(Tradução de Luiz Delfino)
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1 "NA MORTE DE LAURA"

(Sofre por ter a morte extinto o sol da beleza
 humana, e por não ter outro consolo senão
 vê-la em sonho ou na imaginação).

Aquele belo rosto esvaecido
e os olhos seus, ó morte, hás empanado:
espírito mais belo, separado
de um corpo mais gentil jamais há sido.

Em que instante este bem foi-me extorquido!
Fui dos acentos de sua voz roubado,
e a grande dor em que caí prostrado
tirou-me a cor à vista, o som ao ouvido.

Mas em sonho ela volta e me consola;
tenho em sua piedade o meu recurso,
dê-me a sua vista, como a um pobre a esmola.

Se eu recontar pudera o meu discurso
que riso então a fronte lhe aureóla
fizera amá-la até de um tigre ou urso.

(Tradução de Luiz Delfino)
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3 "NA MORTE DE LAURA"

(Privado de Laura não mais fará cantos de amor)

Seus olhos que eu cantei ardentemente,
rosto, pés, braços, mãos, já não diviso:
de mim mesmo arrancaram-me, e o juízo,
para os ter, eu fugia à toda gente.

A crespa coma de ouro reluzente,
o lampejar do angélico sorriso
que fazia da terra um paraíso
não tem mais vida agora, é pó somente.

E vivo? E calmo, tudo em torno eu olho?
Não tenho mais a luz que amava tanto
sou como nau lançada em rude escolho.

Morra também meu amoroso canto;
de lágrimas a lira em luto eu molho:
para chorá-la fique só meu pranto.

(Tradução de Luiz Delfino)
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“VÓS QUE OUVISTES AS MINHAS POESIAS”

Vós que ouvistes as minhas poesias,
com que eu nutria outrora o coração
nos juvenis e suspirosos dias,
quando aquele que eu fui tinha ilusão;

se conheceis do amor a reflexão
e o pranto, entre esperanças fugidias,
piedade espero achar, mais que perdão,
para as dores das minhas fantasias.

Agora vejo bem que longamente
em mim falou-se, e ria muita gente,
e de mim mesmo, às vezes, me envergonho.

Amargo fruto que colhi sonhando,
já sei, - me arrependendo e envergonhando –
que a sedução da vida é breve sonho.

(Tradução de Waldemar De Vasconcelos)

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. vol. 3. 1966.

André Kondo (A Ikebana*)




Na sincera rudeza do belo Shintaro, perpetuava-se a virilidade de homem conquistador, não apenas de batalhas, mas, principalmente, de mulheres. Nunca havia sido rejeitado por moça alguma, por mais bela que fosse. Para Shintaro, o mundo era um vasto campo de flores a serem colhidas com apenas um gesto de sua vontade.

O que seria do mundo sem as flores? Em um dia de primavera, quando a brisa beija as pétalas, não estariam o vento e a flor conversando sobre o amor? Se conversavam, Shintaro não escutava. Usava as flores apenas como arma de conquista. Apanhava-as com a mesma destreza que manejava a espada. E foram muitas as flores sacrificadas por amores vãos.

Mesmo nos extensos campos de flores silvestres, sempre há uma que se destaca dentre todas as outras... Shintaro foi arrebatado, ao se deparar com a mais bela flor, superior a todas as outras: Hana.

Era como se todas as flores do mundo tivessem perdido suas fragrâncias, restando apenas o perfume de Hana, Em apaixonado ímpeto, arrancou várias flores, amealhando-as em um grande buquê. Entregou-as à moça, sem dizer palavra, contando apenas com a beleza das pétalas e a sua eloquente presença.

— Seu tolo! O que pensa que está fazendo? — Hana esbravejou.

— Eu... estou...

Shintaro não pôde se explicar. Hana continuou:

— Não se deve colher flores assim! Que egoísmo! Não! Não! Não!

Passada a surpresa inicial, Shintaro tratou de reagrupar sua presença de espírito, para retrucar duramente:

— Você também está colhendo flores, como eu! Por que me recrimina?

— Não! Nunca como você! Veja, tenho em mãos apenas uma única flor, escolhida cuidadosamente em meio a tantas outras.

— Mas você deve ter escolhido a mais bela dentre todas. Não seria isso egoísmo de sua parte também? Privar este campo da mais bela das flores?

— Não apanhei a mais bela das flores. Isso não existe! O que existe é a flor ideal para a ikebana que se pretende realizar. Apenas isso.

— Do que está falando?

— Você nunca compreenderia — disse Hana, com um gesto nunca antes feito por uma mulher a Shintaro, dando-lhe as costas,

Shintaro sentiu-se abandonado no campo, como uma flor colhida e rejeitada logo após ter perdido o perfume. Pela primeira vez, sentiu o que cada uma das mulheres que haviam se apaixonado por ele sentiram. Porém, não se deu por vencido. Como guerreiro que era, tratou de elaborar um plano de batalha. Sabia que o primeiro passo para vencer o oponente era conhecê-lo. Hana era uma mestra de arranjos florais, mestra da arte da ikebana. Por isso, havia se ofendido tanto ao ser apresentada a um punhado de flores mortas entregues brutalmente, sem o mínimo cuidado estético. Persistente, Shintaro decidiu trilhar o kado, o caminho das flores, apenas para conquistar o coração de Hana. Aprendeu que as lendas apontavam os primeiros arranjos florais como obras de santos budistas que, apiedando-se das flores arrancadas pelas tempestades, as resgatavam em vasilhas de água. Procurou um templo budista, onde um mestre o ensinou a sutileza do amor contido em uma única flor. A flor que se dá à pessoa amada, mãe de nossos futuros filhos. A flor que enfeita os altares. A flor que conforta os enfermos no leito. As flores nos funerais... Flores que nos acompanham durante o nascimento, a vida e a morte. No templo, Shintaro aprendeu a respeitar as flores.

Todavia, ainda não estava pronto para conquistar Hana. Aprendeu sobre flores, mas faltava aprender como arranjá-las em arte. Procurou a Casa Ikenobo, em busca de instrução da escola formalista de idealismo clássico. Ali, as pétalas das flores tornavam- se pinturas magistrais, verdadeiras obras de arte paradoxalmente efêmeras em natureza e eternas em essência.

Com o tempo, Shintaro flertou também com a escola naturalista. A natureza por modelo. A cada nova lição, descobria a sutil relação entre as flores e a vida. Apaixonou-se pela matéria. Poderia percorrer os caminhos das centenas de escolas de ikebana, mergulhando em infindáveis estilos da arte das flores, que nunca se cansaria. Aprendeu sobre o principio dominante (o céu), o princípio subordinado (a terra) e o princípio conciliador (o homem). E o principal, aprendeu a ter a sensibilidade para harmonizar tudo isso.

Após algumas primaveras de estudo, estava pronto para colher sua flor. Com esmero, percorreu vastos campos em busca dos elementos perfeitos para o arranjo de ikebana que tinha em mente e coração. Um arranjo que deveria se verter ao amor, com a intensidade e, ao mesmo tempo, a suavidade que este sentimento provoca ao desabrochar no peito.

Deveria haver um perfume de paixão, mas não tão intenso que sufocasse o suave odor do carinho. Das mãos de Shintaro nascia a mais perfeita obra da arte da ikebana. Restava entregá-la. Entregar-se.

Não poderia haver outra reação. Shintaro conquistara a mestra das artes florais! Não havia como refutar o poder daquela peça de ikebana. Perfeita!

No instante em que Shintaro acreditava que finalmente colheria a sua desejada flor, um jovem camponês bateu à porta da escola de ikebana de Hana.

— Eis a mais verdadeira flor que nasceu em minhas terras...

O camponês estendeu uma diminuta flor, desbotada e sem graça, porém, algo havia nela que a tornava a mais verdadeira flor que nascera nas terras daquele homem.

Hana sentiu, imediatamente, a força que emanava daquela minúscula planta. O camponês prosseguiu em sua apaixonada declaração:

— Sempre a acompanhei de longe, quando você visitava o campo em busca de flores. A cada primavera, esperava revê-la. Por isso, para ter a certeza de que você voltaria, passei a semear flores no campo. Por todas as partes. Talvez eu seja um tolo, mas, por passar a semear flores, senti como se fosse pai delas. Assim, não tive coragem de arrancar esta que está em minhas mãos, por isso, cavei à sua volta e a trouxe junto com a terra em suas raízes. Eu a trouxe porque... queria oferecer este presente, símbolo do que eu... sinto por você...

Dizendo isso, talvez por vergonha, talvez por pena da flor, talvez temendo rejeição, talvez, e há tantos "talvez" quando se declara um amor sincero, uma lágrima caiu sobre as pétalas da diminuta flor.

— Que belo arranjo floral! — admirou-se Hana, emocionada ao ver as mãos do camponês como um vaso rosado, abraçando a flor que ostentava, em uma de suas pétalas, uma lágrima que brilhava como o orvalho de um amanhecer.

Naquele instante, apaixonou-se...

— Belo arranjo? — ofendeu-se Shintaro.

— Sim, mais belo do que o seu, pois é sincero. Assim como toda a arte deve ser...

— Mas...

— Shintaro, sua ikebana é bela, por isso conquistou o meu senso estético. Assim como eu, por ser julgada bela por você, conquistou o seu senso de beleza. Porém, sinto que não me ama, não como este homem que me ofereceu muito mais do que flores... Um homem que me entregou a primavera…

Shintaro sorriu. Era verdade. Nunca havia amado Hana. Não a ponto de arrancar suas raízes para se entregar totalmente a ela. Poderia dizer que havia desperdiçado suas primaveras tentando conquistar a formosa perfeição. Mas ele sabia que havia alcançado algo que estava muito além da beleza; a sinceridade das flores.
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Nota:
Ikebana é a arte de montar arranjos de flores, com base em regras e simbolismo preestabelecidos. Ikebana é um termo em japonês que significa flores vivas.

Ikebana, ou kado, geralmente são arranjos florais para serem utilizados como oferta religiosa, para decorar altares, e são montados com flores, folhas, galhos, frutos e plantas secas.

O ikebana teve origem na Índia, onde os religiosos faziam grandes decorações para o altar de Buda, porém foram os japoneses que tornaram a prática conhecida, e estenderam-na até o Ocidente. O ikebana é sempre composto por todos os tipos de plantas, como caules, folhas, flores, ramos, e segundo os japoneses simbolizam o céu, a terra e a humanidade.

O significado principal é de ser uma oferenda, um ato para agradar religiões, mas também é praticado por pessoas de origem nobre. Existem diversos estilos de ikebana, o Brasil possui até uma Associação, onde os praticantes possuem toda uma tradição espiritual, uma concentração para aproveitar e apreciar a natureza.

Os estilos de ikebana são: Ikenobo, que é o mais antigo, e são arranjos com devoção aos deuses, e são decorados com galhos; Sogetsu, que é um dos estilos mais novos, sendo que até mesmo a Rainha Elizabeth II e a Princesa Diana frequentaram escolas para aprender essa técnica; o estilo Ohara, que é uma montagem de galhos e flores quase que empilhados; e o estilo Sanguetsu, que é um estilo de ikebana criado por Mokiti Okada, que tem como noção básica o respeito pela natureza. Este estilo de ikebana se distingue dos outros porque tem como princípio a não modificação dos materiais usados (folhas, flores, galhos), tentando criar um arranjo mais natural e equilibrado possível. Existem cursos e uma academia de ikebana Sanguetsu, que tem como objetivo incutir o respeito pela natureza, o que torna a vida do aprendiz mais alegre e harmoniosa.

Fontes:
– André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.
– O que é Ikebana, disponível em Significados

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 174


Isabel Furini (A Fofoqueira)


Durante três dias, Raquel, a fofoqueira do bairro, observou a vizinha Valéria que morava na casa antiga, na frente da sua. Rua sem saída. Os vizinhos comentavam que Valéria havia enlouquecido. Fazia três anos que perdera o marido e um ano da morte da mãe.  Valéria passou muito tempo de luto e tristeza. Dois meses atrás, havia se aventurado numa viagem turística ao Nordeste, junto com uma prima. Voltou de bom humor, mas nos últimos dias falava sozinha, gesticulava, ria... Teria alguma visita?

Nesta tarde de sábado, Valéria ria muito.

-  Ela enlouqueceu!.. - gritou  Raquel.  - Venha, querido, venha e olhe... O marido relutou um pouco, mas como a esposa continuava: Venha... venha... ele deixou o jornal e levantou-se, com dificuldade, da poltrona onde estava esparramado. Aproximou-se da janela. Olhe lá, olhe, João, parece que está falando com alguém.. mas Valéria está sozinha desde que a mãe morreu. Falarei com ela. Talvez precise de um médico... de um psiquiatra... de terapia...

 Raquel pegou o telefone:  - Olá, Valéria? Você está bem? 

- Feliz com meu noivo nordestino – respondeu rindo Valéria.

Raquel, curiosa, continuou a espiar pela janela. Querido, venha, venha ver... venha, por favor... O marido novamente deixa o jornal de lado e se aproxima a passos vagarosos até a janela.

- Olhe, disse a mulher... Valéria fala e ri... sozinha....

- Sozinha, não! Com seu noivo imaginário, ironiza o marido. Volta a sentar-se na poltrona e pega o jornal.

- Eu vou falar com ela – enfatiza Raquel.

Minutos depois, Raquel aperta com força a campainha.  A porta se abre.

– Este é Armando, meu noivo... - grita Valéria da cozinha.  Só nesse momento Raquel repara no anão de pijama azul, na ponta dos pés, segurando-se na maçaneta da porta. Sorridente, o anão a convida a entrar. Raquel fica paralisada ao lado da porta.

Armando insiste. - Sente-se, vizinha, pode pegar um pedaço de bolo. Eu mesmo fiz...

- Aqui está o chá mate!... – disse contente Valéria. Coloca a chaleira na mesa, agacha-se e abraça o anão. Ele, sempre sorridente, dá um beijão na boca da namorada. Depois sobe na escadinha que está ao lado da mesa e serve um pedaço de bolo para dona Raquel.

Raquel, sem palavras, senta-se na cadeira e pega o pratinho com o bolo, acanhada, não sabe o que dizer. Os três ficam em silêncio.

Raquel, tentando ser agradável pergunta: - É bolo de laranja?

No dia seguinte, Raquel falava com Adelaide, a velhinha do sobradinho amarelo, quando vê passar, Valéria, de mãos dadas com Armando. Os dois, sorridentes, cumprimentam e continuam seu passeio.

Sem poder conter-se, Raquel murmura para Adelaide: - Como ela pode sair com um homem tão pequeno?

A velhinha, muito jocosa, emenda: - Segundo ouvi dizer, Armando é pequeno só de estatura, dona Raquel, só de estatura...

Fonte:

Sylvio Magellano (Poemas Diversos)


CASA DA BOCAINA

Serração desce ao pé da montanha,
cobrindo toda a campina.

Pássaros cantam um trinado fino,
na copa das árvores do pomar,
anunciando a alvorada.

Fogão à lenha acorda a casa da Bocaina.

Pela janela vejo cavalos
andando pelo pasto
******************************* 

COM A BRISA DA MANHÃ

Tiras de luz penetram pelas frestas da neblina,
Como um devaneio a alma se liberta no ar
E passeia com a brisa da manhã.

Um doce aroma de frutos
Vem dos pessegueiros do pomar.
Contemplo o silêncio, a sinfonia,
Do nascer de um novo dia.

Ao lado, hortênsias florescem,
Margaridas amarelas,
Ainda com gotas de orvalho,
Sorriem para mim.

Caminho pelos campos, durante todo o meu dia,
Procurando a analogia entre todas as verdades.
O espaço e o tempo
Aprisionaram minha vontade.

Nada ao redor nota a minha presença.
Nuvens brancas
Dançam um fascinante balé,
No palco infinitamente azul.

coberto de geada.
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O SILÊNCIO QUE VEM DE VOCÊ

Você passou por minha vida
E nada mudou.
No azul do mar espumas brancas batem à praia,
Numa incessante procura.
Na verde relva da mais alta montanha,
Num caminhar sem rumo,
Minha vista se perde na imensidão do nada.
Eu que sonhei tanto
Com aquela obstinada felicidade...
Em meu rosto o toque suave do vento,
Querendo conversar.
O sol brilha na manhã de sua ausência,
Sinto o silêncio que vem de você.
Preciso aprender a viver
Com o que tenho.
Por favor...
Deixe-me esquecê-la.
******************************* 

PARA ALGUÉM QUE NÃO QUIS ME SALVAR

O paredão de pedras eu não consigo escalar,
Minhas mãos feridas não conseguem mais lutar.
Logo outra onda, para águas profundas,
Vai me arremessar.

Em meu desespero suplico tua ajuda.
Segura minha mão com teu braço forte,
Me deixa enlaçar tua cintura,
Leva-me a uma praia segura.
Quero ver o sol brilhar novamente.
Deixa teus cabelos negros
Pousarem na minha fronte,
Aperta-me contra teu seio,
Beija-me profundamente.

Devolve outra vez minha vida,
Por favor, me salva, querida.
******************************* 

PRELÚDIO PARA UM ADEUS

Pela cortina de seda
Da janela do meu quarto,
Uma réstia de sol insuspeito
Invade nosso leito.

Com os cabelos em desalinho,
Toda tua beleza envolta em lençóis de linho.
Quantas madrugadas, nós dois,
E depois...
Correndo junto às ondas da praia.

Existia tanta vida em teu sorriso,
Até o mar indeciso
Não acreditava
Que a "doce ventura" acabava.
Os amantes não mais sorriam,
Não mais voltariam.

O "adeus" diante do mar
E, hesitante, a prece silenciosa:
"Não deixes o tempo apagar,
Pois um dia...
A vida foi tão maravilhosa".
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Sylvio Álvares de Magalhães, Paulista de São José do Barreiro, no Vale do Paraíba, radicou-se em Curitiba. Casado com Ombretta Magalhães, teve dois filhos que nasceram em Londrina, onde residiu por dez anos. Participante da Oficina Permanente de Poesia, em que proferiu várias palestras sobre a poesia romântica brasileira. Suas crônicas literárias foram editadas pela revista do Centro de Letras do Paraná, ao qual pertence. Foi homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba, com os diplomas "Dia da Comunidade Luso Brasileira" (em agosto de 2006) e também "Contribuição à Literatura Paranaense", ambos por indicação do vereador Ângelo Batista. Da mesma CMC, recebeu, em 2011, a Medalha de Mérito Fernando Amaro. Ocupa a cadeira n. 6 da Academia Paranaense de Poesia, tendo por patrono Leôncio Correia.

Fonte:
Lilia Souza (org.). Coletânea: Academia Paranaense de Poesia. Curitiba/PR: APP, 2012.