sábado, 9 de maio de 2020

Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma.

Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas.

Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio naquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo,

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio.
Gruta da Santa

A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nível das margens, como as de um outro rio qualquer.

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão.

A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões,

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé!

(Tribuna de Itararé— 24/01/90)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 262


Carolina Ramos (O Momento Supremo)


No momento supremo, a mulher se agiganta!
É mãe! quer num palácio ou mísera choupana,
humílima ou rainha... e pecadora ou santa,
é mãe! - quase divina e mais que nunca, humana!

Um lamento de dor aflora-lhe à garganta!
O sofrimento a abate! O medo a desengana!
Mas aquela que é mãe, a si mesma suplanta,
quando a vida de um filho a exige soberana!

O olhar materno fulge e que ternura exprime
quando a mulher abraça à vez primeira, ansiosa,
o seu fruto de amor! O seu botão de rosa!

E, a coroar-lhe a beleza, a lágrima a engrandece:
- puro orvalho a abençoar, no beijo mais sublime,
a roseira feliz, que entre espinhos floresce!

Fontes:
Poema enviado pela poetisa.
Imagem: www.homify.in

Malba Tahan (A Vida Mais Bem Vivida)


Todas as vezes que o Emir Motavakel-Billah dava audiência pública em seu luxuoso divan, acontecia algo de singular, isto é, ocorria um episódio qualquer surpreendente, digno de ser escrito e conservado nos anais do Califado. E isso, afirmavam os funcionários do palácio, sucedia sempre. Era certo, era fatal. Maktub! (1)

Quando o soberano, naquele ano, depois do último dia da Lua de Ramadã (2), marcou a chamada Sessão da Plena Justiça, uma onda de curiosidade agitou os nobres e auxiliares da corte:

— Que iria acontecer? Que novo caso surgiria, de improviso, entre os nômades, cheiques (3) , mercadores e caravaneiros?

E ficaram todos na expectativa: Aguardemos o que está para acontecer — diziam. A vida é uma sucessão de surpresas preparadas pelo Destino. Fugir ao Destino é impossível. Maktub!

Ora, naquele dia, exatamente, tudo correu com natural e decepcionante naturalidade. O Califa, seguindo a rotina enervante, ouviu as queixas (eram sempre as mesmas), atendeu aos solicitantes, socorreu várias pessoas que precisavam de auxílio urgente e determinou que fossem sanados certas irregularidades e abusos do serviço público. Já ia, afinal, o soberano árabe encerrar a sua fecunda e benemérita audiência e proferir o clássico Inch’Allah! (Assim quis Allah) quando o preclaro e prestigioso Welid ben Obeid, o vizir secretário, preveniu-o, respeitoso:

— Deveis, ainda, ó Rei!, ouvir o que deseja aquele desconhecido. Tenho a impressão de que se trata de um simples pescador que vive do outro lado do rio.

E apontou para um homem, de cara chupada, que se achava um pouco afastado, com uma cesta na mão, recostado a uma coluna. Trajava uma modesta abaya azulada.

— Sim, sim — assentiu com veemência o Califa, cofiando a barba. — Vamos ouvi-lo. Ouahyat ennébi! Que pretenderá ele, nesta sessão?

A um sinal do vizir, o solicitante aproximou-se do Rei, proferiu a saudação clássica (salam aleikoum!) e disse, a seguir, com fervoroso respeito:

— Chamo-me Kalil, ou melhor, Kalil Iamam. Sou pescador e venho da aldeia de Suan, onde vivo com minha esposa e três filhos. A minha vinda hoje, a este divan, tem, apenas, um objetivo: moveu-me o desejo de oferecer pequeno e desvalioso presente ao nosso glorioso Emir! (Que Allah vos cubra de benefícios!).

E, depois de proferir tais palavras, o pescador colocou aos pés do Rei a cesta que trouxera com peixes. Mas (coisa curiosa!) a tal cesta não estava cheia. Longe disso. Tinha peixes só até à metade. Ora, sempre que um pescador de Damasco, de Bagdad ou de qualquer outro recanto do Islã, oferece uma cesta de peixes ao Rei, esta cesta deve estar repleta, a transbordar de pescados. Assim determina a velha praxe; assim reza a tradição; assim é que é correto.

Sem se mostrar ofendido com a desatenção do ofertante, o Califa Motavakel-Billah olhou, com simpatia, para a cesta meio vazia; olhou, a seguir, também, com muita simpatia, para o pescador que se achava de pé, em atitude respeitosa, braços cruzados. Os seus trajes eram modestos, mas não se sentia nem desmazelo nem miséria; ostentava, em contraste com a abaya (longa túnica) azulada, um turbante cinzento desbotado, tracejado de pequenos remendos; tinha o rosto escanhoado denegrido pelo Sol; os olhos escuros, cor de tâmara; testa larga; em idade deveria estar rondando a casa dos quarenta e sete ou quarenta e oito anos bem vividos.

Depois de ligeira pausa, o Rei tirou de pequena bolsa (das três que trazia presas ao cinto) e entregou-a ao pescador, dizendo com voz pausada e em tom paternal:

— Acabo de receber de ti, meu bom e atencioso amigo, uma cesta meio cheia; e em troca, para retribuir a essa gentileza, a essa expressiva fineza de tua parte, ofereço-te esta bolsa meio vazia!

O pescador, de relance, percebeu a intenção, o propósito astucioso do Rei; a bolsa continha moedas, mas essas moedas mal atingiam a metade da bolsa.

E o valioso Califa, preocupado em parecer original (a corte estava reunida e assistia à audiência), repetiu com certa ironia, acentuando bem as palavras:

— Estás vendo, ó pescador Iamam!, recebi de ti esta bela cesta meio cheia; e, em troca, ofereço-te esta modesta bolsa meio vazia!

— Por Allah! — volveu o pescador, com um sorriso ladino, quase instantâneo. — Pelos sete méritos do Profeta! (4) Há um engano, ó Emir!, de vossa parte. Eu, sim, que vos ofereci uma cesta meio vazia; e recebo de vossas mãos, em troca, esta valiosa bolsa meio cheia.

E acrescentou com ênfase, vibrando a um súbito calor de emoção:

— A verdade deve ser dita e reconhecida, ó Rei! Aquele que dá, dá sempre a cesta meio vazia; aquele que recebe, recebe, sempre a bolsa meio cheia. Que valem sete ou oito peixes? Uma lembrança... e nada mais. A dádiva, porém, de um Rei generoso e justo não é um simples presente, é um elogio!

Aquelas palavras, proferidas com tanto desembaraço e clareza, pelo pescador do turbante desbotado, surpreendeu o Califa dos árabes. Disse, então, Motavakel, dirigindo-se a seus vizires e secretários, num irreprimível espanto:

— Ualahi na telabi! Estão vendo? Este bom e modesto pescador tem a alma de filósofo! É um verdadeiro filósofo!

Sorriu o pescador e replicou com certa afoiteza:

— Perdão, ó Emir dos Crentes!, é muito natural que um pescador seja filósofo, pois sei de muitos filósofos que são pescadores.

Houve um momento de silêncio no largo divan do Rei. Vizires, cheiques e secretários, homens do estudo e do saber, surpreendiam-se com as réplicas oportunas e judiciosas do modestíssimo pescador de Suan.

— Filósofos pescadores? — estranhou o Califa — Ouallah!

E, voltando-se para o seu digno vizir Welid ben Obeid, que era um sábio, um verdadeiro ulemá, interpelou-o com assombro, incrédulo:

— E tu, ó esclarecido vizir!, que conheces os Livros da Sabedoria, os escritos dos alfaquis, os comentários do Profeta, tira-me desta dúvida: Julgas que esse pescador proferiu a verdade? Há filósofos que são pescadores? Não será isso uma fantasia desatada?

Welid ben Obeid, o sábio (que Allah o tenha entre os eleitos), inclinou-se diante do Rei e assim falou (as suas palavras denunciavam certa emoção):

— A julgar por mim, ó Príncipe dos Crentes!, esse bom e honrado pescador disse a verdade. A pura verdade. Quando me sinto fatigado de ler e de ouvir os filósofos, de analisar, letra a letra, os ensinamentos dos Inspirados, as sentenças dos doutores, os hadis do Profeta, tomo de minha rede, dos meus apetrechos de pesca, e vou, com meu filho mais moço, até o rio fazer um pouco de pescaria. Procuro repouso, para o meu conturbado espírito, tornando-me pescador. A pesca é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por momentos, os problemas torturantes da alma, as inquietações da Dúvida, e ponho-me a pescar. É uma delícia pescar. A vida passa e o pescador, absorto em sua faina, não sente o passar tristonho da vida! Em cada minuto de espera vive, o incansável e paciente pescador, um ano de intensas emoções. A vida mais vivida, ó Rei do Tempo!, não é a vida do filósofo, é a vida do pescador.

O eloquente Welid ben Obeid, mestre entre os mestres, aclarou, com solene exaltação:

— Posso, pois, assegurar-vos, ó Emir!, que esse pescador disse a mais pura verdade. Há, realmente, pelos quatro cantos do mundo, filósofos que são pescadores. Volveu, então, o Califa:

— As tuas palavras, meu caro vizir, são como brincos preciosos de ouro puro para os meus ouvidos. Admito, agora, que esse pescador tenha dito a verdade. Aceito que um filósofo possa ser pescador. Sim, aceito e acredito. O que me parece estranho e inaceitável é que um pescador seja filósofo!

— Peço humildemente perdão, ó Emir! — acudiu por sua vez o pescador, com certa desenvoltura — Mas nada há, nem pode haver, de estranho no fato de um pescador ser filósofo. Muitas e muitas vezes, quando me sinto cansado de pescar, o corpo dolorido pela faina, largo a minha pesada rede, as minhas linhas, a caixa com iscas, e vou até à Mesquita Otman ouvir as lições dos ulemás que ensinam Filosofia e debatem os graves problemas do Ser e do Não-Ser. Procuro repousar para a fadiga do meu corpo, tornando-me filósofo. A Filosofia é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por um momento, os problemas e tropeços de minha vida de pobre, e ponho-me a filosofar. É uma delícia filosofar! A vida passa e o filósofo, enlevado em suas abstrações, não sente o passar inexorável da vida. Sinto aqui discordar do sábio analista Welid ben Obeid! A vida mais bem vivida, mais sentida, é a meu ver, não a vida serena do pescador, mas a vida intensa do filósofo!

— Iallah! — exclamou o Califa, esfregando as mãos, num petulante ar de inteligência. — Pela sombra da Caaba! É realmente curioso o que acabo de ouvir. O filósofo Welid ben Obeid, o sábio, descansa de seus estudos, pescando; o diligente pescador Kalil descansa de sua faina de pescador, estudando os altos problemas filosóficos!

E o Rei dos Árabes, depois de ligeira pausa, rematou com a mais afetuosa simplicidade:

— Já ouvi contar que Jesus, filho de Maria, quando quis escolher os seus primeiros discípulos foi procurá-los, não entre os filósofos, mas sim entre os pescadores. Que Allah, o glorificado, proteja os pescadores e esclareça os filósofos!

Vizires e escribas da corte comentavam:

— Já era de esperar!

No final da audiência real, eis que ocorre o imprevisível: Um pescador humilde e pobre vira filósofo; um filósofo, rico, prestigioso, sábio de renome, grão-vizir do Rei, vira pescador. Maktub! (estava escrito!) Mas, afinal, a semente da dúvida estava lançada entre os sábios e doutores bagdalis:

— Quem tem a vida mais bem vivida? O pobre Iamam, o pescador, ou o rico Welid ben Obeid, o filósofo?

Dizia o douto Sibawaihi, o analista:

— A vida mais bem vivida terá aquele que viver na Paz, no Dever e no Amor, isto é, aquele que viver na Verdade de Deus!

Uassalam!
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Notas:
1 Maktub - Estava escrito. Tinha que acontecer. Admite o fatalismo dos árabes que a nossa vida, com todas as suas peripécias, está escrita no Livro do Destino. Maktub é o particípio passado do verbo Katb, escrever.

2 Ramadã - Período da Quaresma entre os muçulmanos.

3 Cheique - Chefe. Homem de prestígio.

4 Profeta - Refere-se a Maomé, o fundador do Islamismo. Maomé nasceu em 570 e faleceu em 632. É pelos árabes chamado O Profeta.


Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.

Ruth Guimarães (Dona Baratinha)


Dona Baratinha foi varrer a casa e achou um tostão. Na mesma hora, desatou o avental, lavou o rosto, passou pó-de-arroz nas faces, e foi fazer compras. Com o tostão achado comprou móveis, para mobiliar a casa inteira, uma geladeira, um aparelho de televisão, tapetes e cortinas, vestidos e mais vestidos, sapatos caros e enfeites. Comprou joias e espelhos de cristal. Comprou petiscos muito gostosos e fez um sortimento de doces que é coisa de que barata gosta muito. O troco pôs numa caixinha forrada de cetim vermelho, chaveou-a, amarrou um laço de fita nos cabelos e foi muito lampeira para a janela apreciar o movimento e arranjar um casório, uma vez que tinha dote.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Perguntou ela com a voz mais docinha do mundo.

Passou o boi.

- Eu quero – mugiu.

E ela:

- E como é que você muge de noite?

E o boi:

- Assim: buuuuuuuu! – abriu o focinho num berro de doer os ouvidos.

Dona Baratinha correu assustada para dentro. Lá cheirou o frasquinho de sais, e depois bem calma, voltou para a janela. O boi estava esperando a resposta.

- Ah! – Dona Baratinha se abanava toda afobadinha. – Não quero me casar com você, não. Você me assusta.

O boi foi embora, e ela fincou os cotovelos na janela outra vez, esperando que passasse outro moço bonito.

Passou o burro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Ciciou a mocinha casadoura, esfregando de leve uma asa na outra.

O burro deu um zurro de abalar a casa:

- Eu quero.

Mas é assim que você zurra de noite? – perguntou a dona Baratinha, ainda toda trêmula do susto.

- Ah! – o burro deu um risadão. – De noite eu canto com voz muito mais forte. – E deu outro zurro, de arrebentar os tímpanos.

- Deus me livre de casar com você, burro. Você não me deixaria dormir.

O burro foi embora e a dona Baratinha se encostou outra vez romanticamente no peitoril da janela. Ora ajeitava a fita no cabelo, ora suspirava.

Passou o cavalo.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – relinchou o cavalo, mostrando todos os dentes, de satisfação.

- Como é que você faz, de noite?

- Eu, minha flor, cantarei de amor tão fortemente...

- Mas como?

- Assim: inoch! inoch! inoch! inoch! inoch!

- Ai! Chega! – gritou dona Baratinha tampando as mimosas orelhinhas. – Chega! Eu não me caso com cavalo de jeito nenhum. Você não me deixaria dormir direito.

O cavalo foi embora, dona Baratinha ajeitou os cotovelos em cima de uma almofada, prevendo que a espera seria longa.

Passou o cachorro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Falou a moça, muito assanhadinha, vendo-o bonitão, de pelo lustroso, orelhas em pé, passo ligeiro.

- Eu quero. – O cachorro latiu um consentimento rápido.

- Como é que você faz de noite, cachorrinho?

- Depende.

- De quê?

- Se estou alegre é assim: au! au! au!. Se estou triste ou doente, é assim: Uaaaauauuuu! – E o cachorro uivou, de focinho para cima, caprichando nos bemóis.

- Ui! Ai! Aiaiaiai! Não me faça chorar! Você não me serve. Tanto a sua alegria como a sua tristeza me incomodam.

Dona Baratinha suspirou um pouco, pois fazia tanto tempo que estava na janela e ainda não tinha encontrado noivo que servisse.

Passou o gato.

Que belo bichano, de pelagem de seda, cinzento, macio, cara redonda, boquinha cor-de-rosa, bigodes eriçados, orelhas recortadas em triângulo isósceles.

O coração de dona Baratinha palpitava mais apressado quando ela cantou em voz emocionada, desta vez:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – ronronou o gato, no fundo da garganta, numa doçura de voz.

- Você ronrona assim, de noite, gatinho?

- De noite? – O gato fez um floreio com a cauda. – Não. De noite, subo ao telhado. Sou namorado da lua. E deliro miando assim: miaaau! miau! miiiiaaaau!

Dona Baratinha suspirou.

- Que pena! Você não me serve não. Não me deixaria dormir. Que pena!

Passou o bode.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

O bode berrou, muito azuretado:

- Eu quero.

- Quer, coisa nenhuma! – respondeu logo dona Baratinha. – Você é muito sem modos, malcheiroso, barulhento. Com esse berro tremido vai me incomodar de noite.

Passou o galo. De crista e esporão. De barbela vermelha. Asas douradas, rabo empenachado. Bonito de se ver como um mosqueteiro do rei da França.

- Como eu gostaria que esse fosse o meu noivo – pensou dona Baratinha. E com voz muito esperançada:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – cocoricou o galo, riscando o chão com a aguda espora.

- Você canta de noite?

- Se canto! – blasonou ele, e a barbela ficou mais vermelha de orgulho. – Se canto! Começo à meia-noite e vou madrugada afora, cocoricóóóóóóó’!

Dona Baratinha virou a carinha bonita para o outro lado.

- Não serve! Vá andando!

E assim passaram o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gambá, muitos e muitos bichos, de casa e do mato, nenhum servia, porque iria incomodar o soninho leve de dona Baratinha. Já bem tarde, quando as luzes da cidade se acenderam, passou um camundongo, quietinho, sorrateiro, dando corridinhas e paradinhas. Espiando matreiro para todos os lados. Correndo outra vez, os olhinhos espertos saltando daqui para ali. Dona Baratinha parou a espiar os seus inquietos manejos, divertida com o bichinho, e quase se esquecia de perguntar. Lembrou-se em tempo, quando o camundongo já ia longe:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – guinchou o ratinho, tão baixo que quase não se ouvia.

- O que é, ratinho? Você quer?

- Quero.

- Como é que você faz de noite?

O ratinho guinchou:

- Coin, coin, coin.

- Assim baixinho? – perguntou dona Baratinha, encantada. – Então serve. Você não me acorda com esse barulhinho. Como é o seu nome?

O ratinho empolou bem o peito e falou:

- Dom Ratão.

Deu outra corridinha, para longe, para perto.

Ficaram noivos.

No dia do casamento preparava-se uma festa de arromba. O troco do tostão dava para tudo. Mataram frangos, não sei quantos, leitões, bois, e fizeram doces e mais doces.

- Sabe do que eu mais gosto, Baratinha? – perguntou o noivo, no seu guincho macio.

- Do quê?

- De toucinho cozido no feijão.

E então dona Baratinha deu ordem para que se fizesse uma caldeirada de feijão com torresmo, bem temperado. O perfume da panela, logo pela manhã, recendia pela casa toda. Dom Ratão chegou, eram umas dez horas, muito elegante, de casaca e cartola, luvas brancas, bengala de castão dourado, calças listradas. Parecia um presidente em dia de recepção no palácio. Mas qualquer coisa o inquietava. Farejava, erguendo o focinho fino, dava corridinhas mais do que de costume.

- Está nervoso, querido?

- Estou.

Na hora da saída, desceu na frente dona Baratinha, arrastando a cauda do vestido de cetim, e o comprido véu de tule pela escadaria. O noivo veio a passo, atrás. A noiva já tinha entrado no automóvel, quando dom Ratão fez cara de contrariedade:

- Que maçada!

- Que foi?

- Esqueci o relógio lá em cima.

- Vou mandar alguém buscar.

- Não. Só eu sei onde o deixei. Espere um minuto.

Deu uma corridinha até o meio da escada, voltou, avisou:

- Um minutinho. Eu já venho.

Outra corridinha para cima. E a noiva ficou esperando.

Passou meia hora, dom Ratão não voltou. No relógio da sala soaram as onze. Dom Ratão não voltava. Chegou o meio-dia. Não voltara dom Ratão.

- Fugiu – gemia dona Baratinha inconsolável. – Não gosta mais de mim. Fingiu que ia buscar o relógio e fugiu para não casar. – Subiu novamente a escadaria arrastando o vestido de cauda e o véu. Por muito que fosse o desconsolo, não era caso para se fazer jejum por isso.

- Afinal, não se perdeu grande coisa – comentou uma empregada. É melhor pôr o almoço.

E lá se foram todos para a mesa.

Mas então é que foi uma dor. Ao mexerem o caldeirão de feijão encontraram o coitado do noivo, morto, cozido, misturado com os torresmos. Que horror! Dona Baratinha, depois de clamar que "Dom Ratão, coitado, era tão bom, eu sabia que ele gostava de mim, aconteceu, coitado!, de ir provar um torresmo e cair no caldeirão, podia ter pedido, a gente fazia um pratinho para ele, não quis me desgostar, coitado! tão delicado" – teve um chilique e foi um alvoroço monstro em casa de dona Baratinha, tão bonitinha. pois dom Ratão tinha morrido no caldeirão de feijão cozido, por causa de um pedaço apetitoso de toucinho.

Dona Baratinha pôs o luto, trancou todas as portas, e chorou tanto que lavou a casa com lágrimas. A cozinheira de dona Baratinha pegou o pote e foi buscar água no rio. Encheu a vasilha, mas em vez de ir para casa, começou a se lastimar:

- Como é triste esta vida. Dom Ratão morreu. Dona Baratinha, tão bonitinha, está de luto. E eu, por isso, quebro o pote.

Pam!

Bateu o pote numa pedra e foi-se embora. O rio ouviu tudo aquilo, encolheu-se e resolveu:

- Eu também seco.

Os bois vieram à tarde, nem sombra viram de água.

- Que é isso, rio? Que aconteceu?

- Dom Ratão morreu, cozido na panela de feijão com toucinho. Dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, e eu também sequei.

- Que horror!

Os dois abanaram a cabeçorra, melancólicos e declararam:

- Então nós derrubamos os chifres.

Foram pastar. O campo, quando viu os bois mochos, muito sem graça, pastando, se espantou:

- Que foi isso? Que fizeram vocês dos chifres?

- Você então não soube da grande desgraça?

- Não.

- Pois dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou e nós derrubamos os chifres.

- Que tristeza! Eu também vou secar.

De verdinho que estava, o campo ficou todo amarelado. Bem no meio dele estava um laranjeira e quando ela viu aquilo perguntou:

- Que é isso, campo? O que lhe deu? Está se sentindo mal?

- Não, dona Laranjeira. Eu estava muito bem até. Amarelei foi de desgosto. Não vê que dom Ratão morreu cozido na panela de feijão com toucinho, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres e eu também sequei?

A laranjeira derramou uma lágrima e disse:

- Então, eu derrubo as folhas.

Choveram folhas no chão.

Os passarinhos que moravam nela, quando voltaram do trabalho à tarde, encontraram os ninhos expostos ao vento, ao sol e à chuva, na árvore nua.

- Que foi isso, dona Árvore, o que aconteceu que esta pensão está sem telhado?

- Vocês que andam voando por aí não souberam da desgraça?

- Não, senhora.

- Pois dom Ratão morreu, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os boi derrubaram os chifres, amarelou o campo e eu também derrubei as folhas.

Os passarinhos choraram, choraram.

- Que tristeza! Pois, de dó, nós também derrubaremos as penas.

E lá se foram eles, peladinhos, tremendo de frio, pelo campo, e andando em vez de voar, pois não tinham penas nem as asas.

O céu espiou aquele disparate, lá de cima, e estranhou:

- Ave Maria! Que mundo louco! O que será que deu naqueles passarinhos que perderam até a roupa?

Os passarinhos contaram:

- O senhor não sabe da grande desgraça?

- Não sei.

- Dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres, o campo amarelou, a laranjeira ficou sem folhas, nós também nos depenamos.

- Que calamidade!

O céu se franziu numa carranca medonha. Começou a trovejar e a ventar. E depois urrou, com um vozeirão arrepiante:

- Pois então eu também vou despencar daqui de cima.

E desabou em cima da terra, no meio da tempestade mais horrorosa que já houve.

E foi assim que o mundo, certa vez, se acabou, só porque dom Ratão, que ia se casar com dona Baratinha, tão bonitinha, morreu cozido no feijão.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 261


Aparecido Raimundo de Souza (Microfrases) 2


31
Paixão
Te quero entre braços e abraços.

32
A Bela e a Fera

King Kong se apaixonou por Ann...

33
Gosto não se discute

Entre Matemática  e Biologia, prefiro Português.

34
Questão de gosto

Beiçola, meu cachorro, ama uma cadela.

35
Harmonia

Teu cheiro me embriaga de paixão.

36
Sonhador

O por do sol me encanta.

37
Sintonia

De pegada em pegada, pego você.

38
Melodia

Simplesmente você é minha canção favorita.

39
Definitivo

Seu adeus levou meu sorriso embora

40
Cotidiano

Caminhadas na praia me deixam disposto.

41
Devaneio

A esperança secou as minhas lágrimas.

42
Momento

Amo estar com você. Sou feliz!

43
Fatal

A tristeza deixou minha esperança perdida.

44
Do nada

A velha cadeira de balanço desbalançou.

45
Letal

O machado chegou derrubando várias árvores.

46
Sonho realizado

Feliz, o passarinho fugiu da gaiola.

47
Amor bandido

Ao te ver, caí de quatro.

48
Natureza

Os pássaros não gostam de gaiolas.

49
Dia a dia

Um gole de café me anima.

50
História em quadrinho

O fantasma se casou com Diana.

51
Futurista

Passado não importa. Já o presente!...

52
Avassalador

Teus beijos me embriagam de amor.

53
Parquinho infantil

Sou como uma enorme roda gigante.

54
Abissal

O vento toca suavemente meus cabelos.

55
Em literatura...

Livro bom não lemos. Todavia, devoramos.

56
Gesto natural

Me livrei do cobertor. Sentia calor.

57
Era só o que me faltava

A quarentena me prendeu em casa.

58
Sem dúvida

Descobri: meu medo vem da solidão.

59
Que azar!

Saltei de paraquedas. Ele não abriu.

Fonte:
Frases enviadas pelo autor.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXIX


Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VIII


AMOR MAIOR

O carinho que tenho demonstrado
por tua vida que me inspira verso,
deixa o meu coração encabulado
viver feliz em meio do Universo.

O amor não tem barreiras e é lembrado
pelo desejo de viver imerso
no sonho deste amor equilibrado,
esquecido do mundo tão perverso...

Quero viver a paz que me dispensas
nesta existência de emoções intensas
que o nosso Amor, feliz, já construiu.

E no final da vida bem velhinhos
trocaremos em paz muitos carinhos
que o Amor jamais, na terra, produziu!
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ANTES QUE A NOITE CHEGUE..


Quando o sol se debruça no horizonte
deixando a tarde bela e mais fagueira,
antes que a lua, pelo céu, desponte,
a saudade se achega e faz trincheira.

Ao longe, em tom avermelhado, o monte
transmite uma quietude verdadeira,
trazendo ao coração o som da fonte
que canta, docemente, em corredeira.

Assim, vou recordando os tempos idos,
sonhos fagueiros, lindos e vividos,
que a memória jamais vai esquecer...

E, antes que chegue ao fim essa jornada,
terei, por certo, em minha caminhada
muitos versos de amor para escrever.
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CAMINHOS DO SERTÃO


Eu conheço de perto estes caminhos
onde as águas deslizam pelas grotas,
onde as aves, alegres, fazem ninhos
para depois buscarem novas rotas.

Bons amigos, parceiros e vizinhos,
não há vitórias nem também derrotas.
As árvores acolhem passarinhos
que chegam de paragens tão remotas.

A lembrança me vem ao pensamento,
como era bom viver aquele tempo
em que o sonho embalou o coração.

Eu quisera, de novo, estar desperto
e andar, mais uma vez, de peito aberto
pelos caminhos ínvios do Sertão!
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CONVERSA NO TREM


"Esta vida não faz nenhum sentido,"
dizia o passageiro do meu trem,
"o mundo inteiro, veja, está perdido,
— esperança não há para ninguém."

Assim falava o homem ressentido
das promessas que, feitas por alguém,
sequer foram cumpridas e incontido
ele se lamentava do desdém.

"Mas a vida é assim mesmo," outro dizia,
"a tristeza anda ao lado da alegria
e a calma vem após a tempestade."

Por que, então, meu coração sedento
tem que provar a dor e o sofrimento
para alcançar a tal felicidade?
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CORAÇÃO FELIZ


Meu coração depois de muito tempo
está feliz e vive mais garboso.
O amor, eu creio é um belo sentimento,
quanto mais forte fica, é mais gostoso.

Há doçura no amor, não há lamento,
o mundo é mais bonito e venturoso,
um sonho bom invade o pensamento,
tudo sorri, ficando mais ditoso.

Creio no Amor Maior e já componho
um salmo de ventura e ainda sonho
com um mundo melhor, menos profano.

Por que vou duvidar? Alinha esperança
cresce no peito alegre da criança:
resgatar para o bem o ser humano!
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DESABAFO


Não reclamo da vida turbulenta e triste
que a predestinação me faz levar, talvez,
nem quero levantar a voz ou o dedo em riste
para acusar alguém de tanta insensatez.

A consciência cruel por certo não resiste
fazer o bem, amar, viver com honradez.
É próprio do invejoso que na falta insiste
muito disfarce, engodo, mágoa e morbidez.

O calvário de Cristo nos mostrou o quanto
a Humanidade é mesmo pobre e desprezível,
a ponto de matar um verdadeiro santo...

E desde então as coisas só se complicaram,
o aumento dos Pilatos se tornou visível
e os Judas, com certeza, se multiplicaram!
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INVERNO / PRIMAVERA

O outono já passou, chegou o inverno
trazendo frio e chuva à madrugada.
Meu corpo já não tem teu corpo terno
nem sei se voltarás, minha adorada.

O inverno vai passar e o meu inferno
há de findar ao fim desta invernada.
Vou buscar meu amor feliz, eterno,
quero de volta a paz tão desejada.

Quero sorver o amor que me provocas
teu corpo tão perfeito que me tocas
e com carícias, beijos me seduz...

Mas desejo que chegue a Primavera
e termine, por fim, a minha espera,    ?
quando terei o teu olhar de luz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo poeta.

Rachel de Queiroz (Neves de Antanho)

    

O homem da repartição pediu um retratinho “cinco por sete’’; quem sabe haveria algum que ainda servisse dentro da velha caixa de fotografias, sobras de outros passaportes! Não, não havia. Só um, manchado e tão feio que nem a necessidade obrigaria a gente a usá-lo.

E, enquanto se procura, vão-se olhando os outros retratos, e no fim se percorre, de um em um, todo o resto da coleção.

Quantos defuntos, meu Deus do Céu, a gente carrega dentro do seu corpo: começa com os anjinhos, de seis meses, de um ano e dois vestidos no camisolão do batizado, nuzinhos de todo ou este trajado de anjo, na túnica azul que é ver mesmo uma mortalha; tirando as asas, podia ir direto pro caixãozinho de cetim —— já está até pintado como se usava enterrar anjo naquele tempo. E esta menininha de cinco anos, com os cachos de cabelo batendo nos ombros, também já existiu, não existe mais. Sou eu não, fui eu. Tão morta e desaparecida quanto se estivesse plantada na terra debaixo de um pé de saudade, E a adolescente de treze, e a moça magra de dezoito, toda pensativa para o fotógrafo, vestido escuro e gola branca, numa simplicidade deliberada que ela supunha “ideológica”. E depois a mulher feita de vinte e três anos já sofreu e está sofrendo , e logo a amargura da mulher de vinte e cinco, e a de trinta anos ressuscitada, e a de quarenta engordando, e a de cinquenta francamente envelhecendo, com a possível e tão difícil dignidade, Serão a mesma pessoa, todas elas? — E serei eu todas elas?

O fato é que de uma em uma elas foram emergindo, tomando o lugar da antiga, mas, nem se firmavam direito, iam forçosamente cedendo o lugar à outra, à mais velha; floriam e murchavam e nem ao menos tinham morte condigna, choradas por parentes e amigos. Desapareceram simplesmente. Foram subutilizadas pela mágica do tempo, substituídas sub-repticiamente como peças de máquina que se trocam. Aumentadas, diminuídas, deformadas, descoloridas, consumidas aos pedacinhos. Boneca de massa mole em mão dura de menina.

Ou — ideia ainda mais sinistra — autofagia, canibalismo. Toda a série de meninas, adolescentes, moças e mulheres devoradas, a mais nova pela mais velha, sucessivamente, até que a morte por sua vez devore a derradeira e acaba a história?

Como compensação se dirá que o corpo muda, mas a alma é a mesma. Mas essa é que é a grande interrogação. Será a mesma?

Ninguém pode dizer se essa menina de olhos grandes sentada aos pés de sua linda mãe terá na verdade a mesma alma da senhora avó que equilibra o neto no joelho. Que é que elas têm em comum? Nem amores, nem quereres, nem preferências, nem entusiasmo. De uma em uma, à medida em que passaram, tiveram os seus pecados — mas uma não pode bater no peito pelos erros da outra ou das outras —, cada uma tinha as suas circunstâncias especiais, suas agravantes e dirimentes.

Nem sequer as lembranças são comuns a todas. Porque as poucas lembranças conservadas em comum são conservadas como histórias que ela sabe, mas não que ela sente. Sentia, sentiu, não sente mais. Ah! Lembranças. Diga a gente o que disser, o passado é substância solúvel, se dilui dentro da vida, escorre pelos buracos do tempo — águas passadas, neves de antanho.

Ah, as aflitivas incursões pela dimensão do tempo. A alma do homem devia limitar suas percepções às simples três dimensões. Bastava que lhes fosse permitido apenas o direito de ir e vir dentro do espaço físico ou geográfico.

Mas a jornada pelo tempo. Essa jornada sem parada nem retorno, cujos marcos únicos são lembranças cada vez mais apagadas, já que as outras testemunhas também caminham, também se transformam, Por que dar ao limitado, ao vulnerável, ao transitório homem, um sentido do tempo — quando ele não tem sobre o tempo nenhum comando — apenas sofre o tempo, sem defesa?

O tempo anda em nós, mas nós não andamos nele. O tempo nos gasta como lixa, nos deforma, nos diminui e nos acrescenta — e sempre maldosa, erradamente.

Aqueles olhos de trinta anos atrás, onde estão os teus olhos reluzentes, rapariga? Hoje, nas mesmas órbitas, vogam apenas dois olhos apagados, diminuídos parece que até a cor deles mudou!

E a alma, a alma? Boa ou ruim, onde está a alma de outrora? A paixão, a violência, a esperança, o desafio. A inocente arrogância. Os amores, os desamores, mudou tudo. Nem a paisagem ficou, para servir de referência. A intrusa de agora renega tudo de dantes — seja corpo, alma ou cenário.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.