quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Contos e Lendas do Mundo (Thor, o Deus do Trovão)

Thor, assim como Odin, O Ancião, chegou ao norte através da imigração, que em tempos remotos tiveram lugar na Ásia e Asgard. Aqui ele teve de lutar com os primeiros habitantes da terra, que por causa de seus esconderijos em montanhas e tocas, bem como de sua estatura gigantesca e ferocidade, eram chamados de Jattar (Gigantes), Trolls e Bergs-boar (moradores das montanhas). Daí vindo todas as tradições sobre gigantes e coisas do gênero.  Aquelas pedras lisas, em forma de cunha, que às vezes são encontrados na terra, são chamadas Thorwiggar, isto é, cunhas de Thor: segundo se conta, por estas terem sido arremessadas por Thor em algum troll. Em muitos lugares onde as pradarias são vizinhas das montanhas, histórias eram contadas de como trolls se enchiam de terror quando trovejava, e como eles, então, transformados em diversas formas, embora a maioria frequentemente como grandes bolas ou novelos, rolavam das montanha, procurando abrigo entre os camponeses, que, bem ciente do perigo, sempre os mandavam de volta com suas foices; e em diversas ocasiões acontecia que o trovão golpeava e estremecia a foice, e assim o trolll com um gemido, voltava para a montanha.

Meteoritos são encontradas em muitos lugares e são monumentos a Thor. Embora nem sempre de grande magnitude, eles são, no entanto, tão pesado que quase nenhum homem pode levantá-los.  Estes, diz-se, Thor usa como brinquedos.  Dos meteoritos em Linneryd em Smaland se diz, que Thor, passando por ali com seu pajem, encontrou com um gigante, e perguntou a ele para onde ele ia. ”Para Valhalla”, respondeu o gigante,” para lutar com Thor, que com seu raio queimou meu gado e casa.”

“É pouco aconselhável para ti, para medir forças com ele,” Thor respondeu, ”porque eu não posso imaginar que tu és o homem o bastante para levantar essa pequena pedra em cima dessa maior.” O gigante indignado, pegou a pedra com toda sua força, mas não foi capaz de tirá-la do chão, pois Thor tinha jogado um encanto sobre ela. O pajem de  Thor, em seguida, fez uma tentativa, e levantou a pedra como se tivesse sido uma luva. O gigante desferiu um golpe em Thor que o deixou de  joelhos, mas Thor com seu martelo revidou e matou o gigante. Ele agora jaz  sob a grande pilha de pedras do lugar.

Thor era adorado na alta Gothland junto com outros deuses. O Thorbagge (Stercorarius scarabseus) era sagrado para ele. Existe uma superstição relativo a este besouro que ainda existe, que tem sido transmitida de pai para filho, que se qualquer um em seu caminho encontrar um thorbagge repousando desamparado em suas costas, e colocá-lo em seus pés, ele expiará sete pecados; isso porque Thor no tempo do paganismo foi considerado como um mediador com uma força sobrenatural, ou o Todo Poderoso. Na introdução do cristianismo, os sacerdotes se esforçaram para aterrorizar as pessoas no culto aos antigos deuses, dizendo a seus adeptos que eles eram maus espíritos pertencentes ao inferno.  E o pobre thorbagge pobres, foi então renomeado como Thordjefvul ou Thordyfvel (o diabo de Thor), nome pelo qual ainda é conhecida na Suécia. Ninguém agora pensa em Thor, quando encontra a criatura indefesa descansando em seus costas, mas o compatriota de boa índole raramente pensa em passá-lo a seus pés, tentando a expiação de seus pecados “.

Que a lembrança e a veneração por Thor eram longamente  retidas na Noruega e em Bohuslän, aparece de muitas tradições. De alguns marujos de Bohuslän, cerca de cem anos desde atrás, é relatado, que, enquanto a serviço de um navio holandês de Amsterdam, caçando baleiras perto da Groenlândia, eles foram afastados de seu curso conhecido, e  observaram por muitas noites luzes de uma fogueira em uma ilha ou na terra, e entre alguns dos marinheiros, estavam homens de Bohuslän, que foram tomados pelo desejo de visitar o local e ver o que as pessoas faziam lá. Assim, tomaram o bote do navio barco e remaram para o local.

Tendo desembarcado e se aproximado do fogo, eles encontraram um velho sentado se aquecendo perto da fogueira, que imediatamente perguntou-lhes de onde eles vieram.

“Da Holanda”, respondeu o homem de Bohuslän.

“Mas de que lugar de lá você veio?” perguntou o velho.

“De Safve em Hisingen” respondeu o marinheiro.

“Tu conheces Thorsby?”

“Sim, também.”

“Sabes onde fica Ulfveberg?”

“Sim, muitas vezes tenho passado por lá, porque há um caminho direto de Gotemburgo para Marstrand através Hisingen para Thorsby.”

“Aquelas grandes pedras e montes de terra ainda estão em seus lugares?”

”Sim, todos, mas uma das pedras que está prestes a cair”

“Conte-me mais” –  disse o velho pagão – “Tu sabe onde o altar de Glosshed está e se ele ainda está são e salvo?”

Ao ouvir do marinheiro que não, o velho disse:

“Faça com que o povo em Thorsby e Thores-bracka não destruam as pedras e os montes sob  Ulfveberg e  acima de tudo mantenham  o altar Glosshed seguro e intacto, e assim terás um bom vento para o local para o qual viajas.”

Tudo isso o marujo prometeu cumprir na sua volta para casa.  Ao perguntar ao velho o seu nome, e por que ele tão ansiosamente perguntava por esses objetos, ele respondeu o marinheiro:

“Meu nome é Thorer Brack, e minha morada é lá, mas agora sou um fugitivo.  No grande monte ao lado de Ulfvesberg minha raça inteira está enterrada, e no altar de Glosshed nós realizamos nossa adoração aos deuses.”

Eles então se separaram do velho e tiveram ventos favoráveis de volta para casa.

O Poço de Thor

Desde a época do paganismo existe um poço em Smaland, na freguesia de Skatelof, que é notável para um deplorável evento. No local onde o poço está agora, uma moça, diz-se, encontrava-se com seu amante, e de depois de suspeitar de sua infidelidade, o assassinou. O deus Thor fez com que o poço cuspisse o sangue de suas águas.

Em consequência da mudança que a religião pagã tinha sofrido na cabeça  das pessoas, o nome do deus Thor foi mudado para “Hehge Thor” (Santo Thor), o festival da Ascensão de Nosso Salvador, foi chamado de “Helig Thor’s-dag”, literalmente Holy Thor‘s-day, Dia Sagrado de Thor, (Quinta-feira Santa), e Skatelofs Kalla foi chamado de ‘Helige Kalle Thor.

Pesquisa em documentos antigos, apontam que uma determinada música  era cantada nas cercanias desse poço, quando a população do país, toda véspera de quinta-feira Santa, reuniam-se ali para jogar e fazer oferendas.

Fonte:
Northern mythology : comprising the principal popular traditions and superstitions of Scandinavia, North Germany, and the Netherlands, compilado por Benjamin Thorpe. Londres, 1851. Disponível em Casa de Cha

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 352

 

Rubem Braga (A Minha Glória Literária)

"Quando a alma vibra, atormentada..."

Tremi de emoção ao ver essas palavras impressas. E lá estava o meu nome, que pela primeira vez eu via em letra de forma. O jornal era O Itapemirim, órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do Colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim, estado do Espírito Santo.

O professor de Português passara uma composição: "A lágrima". Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas sublimes. Ganhei dez, e ainda por cima a composição foi publicada no jornalzinho do colégio. Não era para menos:

Quando a alma vibra atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebatada pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima.

É claro que eu não parava aí. Vêm, depois, outras belezas; eu chamo a lágrima de "traidora inconsciente dos segredos da alma", descubro que ela "amolece os corações mais duros" e também (o que é mais estranho) "endurece os corações mais moles". E acabo com certo exagero dizendo que ela foi "sempre, através da História, a realizadora dos maiores empreendimentos, a salvadora miraculosa de cidades e nações, talismã encantado de vingança e crime, de brandura e perdão".

Sim, eu era um pouco exagerado; hoje não me arriscaria a afirmar tantas coisas. Mas o importante é que minha composição abafara; e tanto que não faltou um colega despeitado que pusesse em dúvida a sua autoria: eu devia ter copiado aquilo de algum almanaque. A suspeita tinha seus motivos: tímido e mal falante, meio emburrado na conversa, eu não parecia capaz de tamanha eloquência. O fato é que a suspeita não me feriu, antes me orgulhou; e a recebi com desdém, sem sequer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia escrever coisas loucas; dispunha secretamente de um imenso estoque de "corações amargurados", "pérolas da amargura" e "talismãs encantados" para embasbacar os incréus; veriam...

Uma semana depois o professor mandou que nós todos escrevêssemos sobre a Bandeira Nacional. Foi então que – dá-lhe Braga! – meti uma bossa que deixou todos maravilhados. Minha composição tinha poucas linhas, mas era nada menos que uma paráfrase do Padre Nosso, que começava assim: "Bandeira nossa, que estais no céu..."

Não me lembro do resto, mas era divino. Ganhei novamente dez, e o professor fez questão de ler, ele mesmo, a minha obrinha para a classe estupefata. Essa composição não foi publicada porque O Itapemirim deixara de sair; mas duas meninas – glória suave! – tiraram cópias, porque acharam uma beleza.

Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: "Amanhecer na fazenda". Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fazenda de meu tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os amanheceres da mesma. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e no fim achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como "consoladora como a esperança" combinava com "ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo, e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro:

"Um burro zurrando escandalosamente".

Foi minha desgraça. O professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia decepcionado, não tinha levado a sério o seu dever e não merecia uma nota maior do que cinco; e para mostrar como era ruim minha composição leu aquele final: "um burro zurrando escandalosamente". Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma gargalhada que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo.

Fonte:
Rubem Braga. Crônicas transcritas. Publicada em 1960.

Nilsa Alves de Melo (Trovas Temáticas) 3


DECRETO

Se, num decreto, eu pudesse
no mundo  a fome sanar;
diria, a Deus, numa prece:
-Sede o primeiro a assinar!
- - - - - -
 

Será por que "não pegou",
aquele decreto escrito?
- Porque, antes, não se escutou
na voz do povo o seu grito!
- - - - - –

DENTES

Conserve o sadio hábito
de os dentes sempre escovar
para ter cheiroso hálito
em qualquer hora e... ao beijar.
- - - - - -

Dentes sadios e fortes,
protetores da saúde,
não dependem só da sorte,
mas de cuidado amiúde.
- - - - - –

Dentista, meu caro amigo,
vou lhe contar um segredo:
- Na broca, vejo um perigo,
e da agulha tenho medo!
- - - - - –

Faça um favor aos seus dentes,
mesmo que ninguém insista:
- De nunca deixar pendentes
as visitas ao dentista.
- - - - - –

Se quiser sofrer bem menos,
da dor de dentes fugir,
não faça asseio de menos,
tenha instruções a seguir
- - - - - -

DOÇURA

Diz uma lenda tão pura,
que um bonequinho viveu
devido a tanta doçura.
que do artesão recebeu!
- - - - - –

Em meio a tanta ansiedade,
muitos andam à procura
de quem tem a caridade
de os acolher com doçura.
- - - - - –

Peço-vos, Deus da doçura,
a posse deste alto dom,
por ela ser a moldura
do coração meigo e bom.
- - - - - –

Quando você está envolvido
pela graça da doçura,
é como se fosse ungido
com essência da mais pura.
- - - - - –

DROGA

A droga é uma falsidade,
dela procure escapar.
Quem a oferece é a maldade
que quer ver você penar.
- - - - - –

Fuja de qualquer convite
da droga, tão enganosa;
a quem lhe oferece, evite,
não caia na sua prosa.
- - - - - –

Vê que a droga é uma armadilha
que te prende e te maltrata;
diz que vai ser maravilha,
depois, aos poucos, te mata.
- - - - - -

FUGA

Ás vezes pensada fuga,
dos caminhos é o melhor,
pois o discutir só ajuda
a mudar para o pior.
- - - - - –

Quando em meio à má contenda,
em ferir ou ser ferido,
busque a fuga, não ofenda.
Grande é quem tiver cedido.
- - - - - –

Uma fuga pode ser
a melhor das decisões.
Serás nobre por querer
paz e amor que divisões.
- - - - - -

GRINALDA

Esta tão grande ternura
da grinalda em brancas flores,
mostra a graça que perdura
na prole dos seus amores.
- - - - - –

Filha querida, a grinalda,
a par da sua beleza,
seja sinal que respalda
sua promessa e inteireza.
- - - - - –

Grinalda de flor tão bela?
- Guardo duas, com unção;
esta, das bodas, e aquela
da primeira comunhão.


Dê um desprezo à humilhação
que parte de gente à toa;
sucesso e satisfação,
essa turma não perdoa!

Essa louca atividade
dará lugar ao labor,
se gente de toda idade
ao tempo desse valor.
- - - - - –

LIBERDADE

Dizem que a morte seria
um voo à felicidade.
Prefiro, com galhardia,
uma vida e a liberdade!
- - - - - –

Liberdade tão falada,
cantada por toda gente,
mas a deixam encerrada,
por puro medo, somente.
- - - - - –

Mesmo escrava, muita gente
dá impressão de ser verdade
que se orgulha da corrente
que preenche a sã liberdade.
- - - - - –

Não precisa alto QI
para ver o cabedal
da liberdade que aqui
se tem: - Na Terra Natal.
- - - - - –

O melhor da liberdade
é saber dizer, sincero,
um sim e um não, de verdade,
sem fugir do bem que eu quero.
- - - - - –

LIÇÃO

Com minha lição primeira
veio tanto amor e afeto,
que foi, direta e certeira,
brilhando no meu intelecto.
- - - - - –

Leve ou difícil lição
vem logo ao entendimento
se passar pela emoção
alegre de um sentimento.
- - - - - -

Lição que ficou é aquela.
que com afeto foi dada
pela mestra santa e bela:
- Nossa mãe, de Deus amada.
- - - - - –

O mundo é uma grande escola
e a vida, mestra exigente;
não seja aluno que enrola,
nem, na lição, displicente.
- - - - - –

LUGAR

Males não verás que tomem
do amor um pouco sequer,
se for "no coração do homem
o lugar de uma mulher".*
(* Rabindranath Tagore)
- - - - - –

O mal que sofreste, esquece.
Lugar terá, na memória
todo o bem, qual rica messe,
nos campos da tua história.

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

André Kondo (A Dança)


- Por favor, me ensine a dançar?

O senhor Ono permaneceu em silêncio, com os olhos mergulhados na sopa de misô. Pedaços de tofu flutuavam como icebergs em um mar em chamas. O vapor subia exalando a alma das algas cozidas.

Após algum tempo, o mestre da dança tomava a tigela em suas mãos. Logo, haveria sabor de oceano entre seus dentes.

— Por favor, me ensine a dançar?

O ser humano é estranho. Pergunta a mesma coisa várias vezes, como se isso fosse capaz de, por si só, gerar uma resposta. Ono não perguntava para a sopa de misô se ela poderia ser sopa de misô. Não perguntava ao vapor se ele poderia fazer o favor de subir às suas narinas, nem para o sabor se ele poderia permanecer em sua boca, após sorver a soja de seu caldo.

— Por favor, me ensine a dançar?

Ono terminou a sopa. Mas as perguntas não cessaram. Já havia se passado um bom tempo, desde que o jovem Takeda se encantou com um espetáculo de dança dirigido pelo senhor Ono. Assistiu a dança sentado na penúltima fileira, trazido ali apenas para agradar uma amiga pela qual se sentia apaixonado desde criança. Mas, ao final do espetáculo, sua carnal paixão se decompôs. A partir dali, seu único amor seria a dança. A dança do senhor Ono.

— Por favor, me ensine a dançar?

Takeda era persistente. Acreditava que na vida e na dança, o mais importante era a persistência. Era preciso repetir centenas de vezes o mesmo passo para compreendê-lo, para só depois ousar dar o seguinte. E repetir o seguinte outras centenas de vezes. Assim, passo a passo, aprenderia a coreografia. E de coreografia em coreografia criaria o seu repertório de vida para os palcos do mundo. Sentiria o mesmo que os dançarinos do espetáculo de butô do senhor Ono sentiam: liberdade.

Takeda sentiu que, ao contrário do que o amor pela amiga na plateia proporcionava, um sentimento de aprisionamento, a dança no palco era um amor que libertava. Havia, claro, uma aparente dependência entre os elementos que dançavam em conjunto, porém, como no sistema solar, há o movimento em torno do Sol — a dança — e o movimento em torno de si — o corpo.

O amor que sentia pela amiga de infância passou a ser percebido como o movimento da Lua em torno da Terra. O brilho do amor que sentia pela amiga nada mais era do que a ilusão do amor verdadeiro, refletido em seu rosto de mulher. Sendo assim, um falso sentimento.

A dança por sua vez lhe pareceu autêntica. Claro que ela poderia ser uma prisão também, mas era uma prisão mais espaçosa. Imagine um microrganismo encerrado em uma poça de água. Mesmo estando preso, seria o mesmo que estar livre, pois os limites da poça, infinitamente maior do que ele, nunca seriam encontrados. Assim para Takeda se apresentou o universo da dança. Que lhe importava o infinito, se ele nunca encontraria os limites do finito?

— Por favor, me ensine a dançar?

O senhor Ono não respondia.

Takeda perguntou aos demais alunos de Ono como eles haviam obtido consentimento para iniciarem seus estudos na dança com o mestre. Não havia resposta única. Cada um havia conquistado o direito de se apresentar com Ono de maneira distinta. Apenas uma coisa parecia unir todas as aceitações: a sinceridade. Aproxime-se da dança da forma mais natural e ela a aceitará. Poucos foram aceitos. Muitos desistiram.

Para Ono, a dança não apenas merecia a verdade. A dança era a própria verdade. E a verdade existe mesmo que as perguntas não sejam feitas.

Ao final de mais uma aula, Ono dirigiu-se novamente ao restaurante em que costumava tomar sopa de misô. Takeda o aguardava. Um ano já havia se passado desde o primeiro pedido. Porém, naquele dia, Takeda não estava sozinho como das vezes anteriores. Sua antiga amiga de infância o acompanhava. Não era mais apenas sua amiga, era agora a sua namorada. Como isso havia acontecido?

Takeda havia pedido a amiga em namoro, uma única vez. Foi naquela noite em que a levou ao espetáculo de dança do senhor Ono, que ela tanto queria ver. Com a ausência da resposta, envergonhou-se e nunca mais teve coragem de pedi-la novamente. Tentou esquecê-la, convencendo-se a todo custo de que havia encontrado outra paixão: a dança.

No ano que se seguiu, evitou a amiga. Ignorou-a. Concentrou-se apenas no desejo de aprender a dançar e em não permitir uma nova recusa em sua vida. Todavia, a amiga o procurou após um ano. Tímida como sempre fora, com muito custo conseguiu dizer:

— Sim — um sim que ecoou por um longo ano. O sim era a resposta ao pedido de namoro.

— Por que resolveu aceitar agora? — Takeda estava confuso.

— Não respondi naquela noite, porque pensei que já estivesse claro que sempre desejei isso. Sempre achei que desde sempre fomos namorados e que, por isso, a resposta não era necessária. Pensei que você soubesse que o meu sorriso já era o sim a cada dia em que nos víamos.

Takeda compreendeu.

Ono permaneceu em silêncio, com os olhos mergulhados na sopa de misô. Sem dizer uma única palavra, Takeda sentou-se à mesa de Ono. O jovem tomou a tigela, que Ono lhe oferecia em silêncio há tanto tempo, e sorveu vagarosamente o oceano. Ono sorriu.

Desde a primeira vez, Takeda já havia sido aceito pela dança.

Viver é assim.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 351

 

Fernando Sabino (Aflições de um Noivo)


EIS QUE se instalava na porta da cozinha o meu consultório sentimental:

— Doutor, estou precisando de um conselho seu.

Imediatamente me veio à cabeça o conselho de Manuel Bandeira a uma jovem, que lhe perguntou o que ele aconselharia a quem quisesse iniciar-se na literatura: o de não pedir conselhos a ninguém. É o único conselho que sei dar.

Mas o homem, pelo jeito, não parecia estar pensando em iniciar-se na literatura:

— Eu sei que o senhor entende dessas coisas e sempre quis me ajudar.

Eu, entender dessas coisas? Devagar com o andor que o santo é de barro: que coisas? O que estava pintando mesmo era uma facada daquelas fundas, eu que me preparasse. Sempre quis ajudá-lo apenas a arranjar lugar melhor para passar a noite, como faxineiro do prédio onde eu morava. Era aflitivo sabê-lo escondido na garagem como rato: a água com que lavava os carros acabava inundando o cantinho onde ficava a cama dele, os sapatos saíam boiando. Vivia gripado. Por obra de que às vezes vinha a sugestão, diga-se a bem da verdade sempre atendida, de uns trocados para comprar remédio, tomar uma injeção de vitamina C no botequim ali da esquina. Só que agora a conversa era mais enfeitada, a doença mais grave, ia exigir no mínimo um transplante.

— O senhor é homem entendido — insistiu ele: — Pode me dar um adjutório...

A palavra “adjutório” me rendeu: dava um ar de algo vagamente religioso, como se ele me pedisse uma oração qualquer que o livrasse da sua aflição. Fosse o que fosse, agora eu lhe daria o que tivesse no bolso, e ainda o que não tivesse — no que dependesse de mim naquela noite ele tomaria um porre e esvaziaria a alma até o rabo.

Adjutório! E eu, que jamais tivera oportunidade de usar aquela palavra!

Mas o adjutório que ele queria de mim era outro. As coisas de que me julgava entendedor não se compravam com dinheiro e nem encontrariam na bebida a solução.

Limpando a garganta, começou por declinar a sua qualidade de noivo: havia ficado noivo.

— Ah, sim... Noivo — murmurei idiotamente, sacudindo a cabeça.

— E acontece que tem um sujeito lá no prédio onde trabalha minha noiva que está se fazendo de engraçado com ela. O que é que eu faço?

E essa, agora? Propor-lhe que baixasse o braço no tal sujeito, sobre violentar meus princípios de sagrado repúdio à violência, seria uma insensatez: via-se que eu só faria humilhá-lo, era magrinho e mirrado, não aguentava uma gata pelo rabo. Quando muito seria capaz de surrar a própria noiva, partindo da suposição de conivência dela com as graças do outro, desde que tomasse como provocação feminina o fato de ela própria as haver denunciado. Foi, pelo menos, o que ele logo confirmou:

— Toda noite ela vem com essa história: ora é uma piadinha que ele disse, ora é um papo furado pra cima dela. Ontem a coisa engrossou: teve o descaramento de dizer pra minha noiva que me largasse de banda e se mandasse com ele. Como é que eu posso dormir com um troço desses na cabeça, doutor? Tenho que tomar uma atitude, que diabo.

Aconselhei-o como pude: que tomasse uma atitude, sim, mas que tivesse calma, não perdesse a cabeça, para a coisa não dar em desgraça. Quem sabe se pedisse ao outro com jeito, que parasse de chatear? Sem que se humilhasse, hein? Com calma, mas com energia, sendo preciso usasse uma ameaça velada, já de longe, como por exemplo a expressão “de homem para homem”... Hein? Afinal de contas, que diabo, a noiva dele vai ver que estava exagerando, só para fazer ciúme, convinha apurar primeiro, não fosse partindo logo para a ignorância.

— É isso mesmo, doutor, é isso mesmo — ele concordava sério.

Ao fim, para surpresa minha, falou que, pensando bem, o melhor era acabar com aquele noivado logo de uma vez, não ia “dar mesmo em nada”. E para provar que aproveitara bem o adjutório, aproveitou também a ocasião, e, de homem para homem, me pediu cem cruzeiros emprestados.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar! RJ: Record, 1985.

Fabiano Wanderley (Versos Di Versos) 1


A DOR

É uma insuportável sensação,
que só a razão pode entender,
mensurando, a sua extensão,
para dirimir o desprazer.
E, se acaso, chega ao coração,
provarás, de fato, o que é sofrer,
ao sentir uma enorme aflição,
por não suportar o padecer.

E, se for por falta de carinhos,
tal como uma coroa, de espinhos,
ela aumentará teu amargor.
Mas, ante a essa dor, serás um forte
e a enfrentarás até a morte,
por um ideal: Um grande amor!
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A FONTE DA VIDA

Ele é quem me faz um forte
por que me conduz,
é minha trilha, a estrada,
meu sol, a minha luz.

Ele é quem sabe os caminhos
e as pedras que tem.
Quem nos revela os espinhos
e as flores, também.

Ele é a fonte da vida,
do amor, da razão,
é a fé, que hoje habita,
em meu coração.

Suas palavras serenas,
verdades nos traz
e com seus preceitos,
mantemos a paz!
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À MULHER, QUE EU AMO

Queria lhe dizer tudo que sinto,
cada vez, que eu miro, os olhos seus,
dentro dele, todo o seu amor, pressinto,
no momento, em que você, procura os meus...

És ternura, és mulher, és timidez,
meu castigo, meu destino, meu tormento,
na verdade, vives, no meu pensamento,
és a única mulher a quem amei!
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EU E A VIDA

Eu e a vida,
meus devaneios,
sonho menino,
os meus enleios.

Eu e a vida,
quanta lembrança,
vento maroto
de esperança.

Pois, a vida faz
o que o mundo tem,
só a vida é...
Somos ninguém!
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EU, VOCÊ E A LUA

Bem junto ao mar, um crepúsculo do sol,
no infinito azul, raios sobre o mar,
nossos pensamentos, lá vão se aninhar,
é o entardecer, que se faz presente,
tudo envermelhece, de repente.

A noite não tarda a cair,
deixando em nós uma grande sensação,
nossos desejos começam a fluir,
é o amor, é a força, é o coração.

É a magia, é a natureza nua,
estamos sós, ao som, de um leve vento,
é o encanto, é o prazer, que se acentua,
nada, nos importa no momento.

Estamos sós...
Eu, você e a lua!
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O CANTO DO ACAUÃ

Ele tem um canto triste,
que ecoa toda manhã
e a natureza o assiste,
no pé da serra ou na chã.

Com seu canto venturoso
faz a seca recuar;
seu lamento, majestoso,
diz que a chuva vai chegar.

Ele canta, ele persiste,
na copa de um flamboyant,
pois, o seu presságio, existe:
É o canto do Acauã!
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O POTENGI

Tens nascente, tens destino,
és aquoso, uma vertente,
um espelho cristalino,
um filão de água corrente.

És romântico, és divino,
quase estático, aparente,
resoluto, peregrino,
no teu rumo tão silente.

És de fato majestoso,
em teu leito sinuoso,
pelas terras de Poti.

Tens um por do sol flamante,
um luar exuberante,
és o rio Potengi!

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 350

 

Lima Barreto (A Consulta)


O prefeito de polícia estava naquele dia muito atarefado em providenciar a captura do Elefante Branco e, por isso, não pudera dar começo à audiência pública que tinha marcado.

Sua Excelência ainda conferenciava com o diretor das investigações, que lhe mostrava as impressões digitais do imenso paquiderme, impressões obtidas em um casebre abandonado do bairro da Saúde.

Pondo uma imensa lente sobre os desenhos que o diretor lhe apresentava, o prefeito perguntou:

— Doutor, elefante tem dedos?

O sábio diretor titubeou e por fim concordaram, o prefeito e o seu subordinado, que esse animal não possui dedos.

— Resolveram encaminhar as pesquisas para outros pontos e a audiência teve começo.

A primeira pessoa a entrar foi uma senhora. Dizemos senhora, porque em estilo administrativo e comercial todas as mulheres são senhoras. A diferença de tratamento entre elas fica reservado para outras ordens de estilo, entre as quais os daqueles que frequentam os clubes chiques e os bares noturnos.

Tratava-se de Madame Déchue, que foi logo dizendo ao prefeito:

— Vossa Excelência há de saber que ando pior do que o judeu errante.

— Quem é a senhora? — perguntou a poderosa autoridade colocando melhor o pince-nez.

— Eu sou Madame Déchue.

— Ahn!

— Não tenho onde morar.

— A senhora sabe que Lustosa, Garibaldi, Manzini e outros dão essa função à polícia?

— De andar tocando os viventes daqui para ali?

— A senhora é espirituosa.

— Não me creio assim, embora leia com atenção os seus despachos publicados nos jornais.

— Afinal... Nós não estamos aqui a trocar espírito... Que quer a senhora?

— Quero saber onde devo morar.

— Onde não houver famílias. Isto está em Rimato, Salvador Rosa e outros.

— Mas, doutor, em toda a parte há famílias. Já morei no Méier e a polícia fez-me mudar de lá porque era lugar de famílias. Mudei-me para a tal rua, porque não era de famílias... Agora...

— Pode ficar certa de que com isso nada tenho. A polícia só faz mudar; o resto é lá com vocês.

Fonte:
Lima Barreto. Contos.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) VIII


A cada dia que passa,
torna-se coisa bem rara
ver cidadão com a graça
de ter vergonha na cara.
- - - - - -
A fé é luz, luz radiante,
que dissipa a escuridão;
por ela, se vai avante
no trilho da perfeição.
- - - - - –
A paz interior alcança,
com o juízo da razão,
quem, ao invés da vingança,
ao agressor dá o perdão.
- - - - - –
A paz que tenho em minh'alma,
nada tem de algum perjuro;
traz-me da esperança a calma
na busca do bom futuro.
- - - - - -
A saudade que dói tanto
é um amor que em mim ficou,
e que sinto, em meio ao pranto,
por um bem que não voltou.
- - - - - –
Dá-se equilíbrio e vigor,
quando há perfeita equação,
entre uma vida interior
e sua real ação.
- - - - - –
Dê graças por ser capaz
de avivar sua paciência;
- é o bom coquetel de paz,
compreensão, amor e ciência.
- - - - - -
Dos meus tempos de criança
aos nossos dias até,
a presença da esperança
dá-me firmeza na fé.
- - - - - –
Este mundo é mascarado,
cheio de contraste... Pensem:
"Uns vencem sem ter lutado,
outros lutam, mas não vencem".
- - - - - -
Eterno porto seguro
hei de ter sempre comigo;
fidelidade eu te juro,
meu sempre presente amigo.
- - - - - -
Eu vivo ainda o preceito
de honrar pessoas de bem.
Saudade eu tenho no peito
de quem me foi mais Alguém.
- - - - - –
Eu vou sempre caminhando
na seara do meu destino.
Paz e amor vivo plantando,
para ter fruto mais fino.
- - - - - -
Felicidade eu desejo
e a procuro noite e dia;
volvendo ao passado, vejo:
"Fui feliz e não sabia".
- - - - - –
Meu coração de poeta
é feliz e quer o bem;
vê, no amor, a sua meta,
pois só isso lhe convém.
- - - - - –
Minhas rosas e meus cravos,
floridos em meu jardim,
são as vozes dos meus bravos
que falam de amor por mim.
- - - - - -
Não sofre de solidão
o semeador de amizade;
vê no outro sempre um irmão...
e planta fidelidade.
- - - - - –
Naquela estrada sombria,
contemplei linda miragem;
era o sorriso e a alegria
enfeitando a tua imagem.
- - - - - –
Noite clara, lua cheia,
- de doçura e resplendor -
a praia com branca areia
inspiram o trovador.
- - - - - –
No seio desta estação,
seu amor tão puro e terno
criou, com sua paixão,
dias mais quentes no inverno.
- - - - - –
Ó amena chuva de flores,
de lindas rosas vermelhas,
espalhais, por onde fores,
fragrâncias mil em centelhas.
- - - - - -
O bom pai é professor,
todo filho é sempre aluno;
educando-o com amor,
segue o filho o melhor rumo.
- - - - - –
Para meu norte seguir,
tenho por guia a Família,
luz que ilumina o porvir
e mostra segura trilha.
- - - - - –
Prezo aquela gentileza
que não é exterioridade,
e que vê, no irmão, nobreza
da mais alta dignidade.
- - - - - –
Quão profunda realidade
tem a flor que se procura!
Toda flor morre, é verdade,
mas deixa o odor da ternura.
- - - - - -
Quem fala tudo o que quer,
diz além do seu querer.
Prudência, em tudo o que vier,
nos ensina a bem viver.
- - - - - –
Quem, nesta dura vivência,
quiser paz e segurança,
que tenha santa prudência,
e o céu virá por herança.
- - - - - -
Sem parto, jamais há vida,
sem morte, nenhum adeus;
sempre tem uma acolhida
quem tem fé e busca Deus.
- - - - - -
Sonho infindo quero ter
com teologal esperança;
semeio o bem no viver
pela bem-aventurança.
- - - - - -
Uma lágrima furtiva,
que brotou destes teus olhos,
transformou-te em doce diva,
ilusão dos meus escolhos.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Oito

 

À FLOR DA PELE


DUAS AMIGAS CONVERSAM AO TELEFONE.

Amiga 1:
— Chegou aí, amiga, a encomenda que mandei pra você?

Amiga 2:
— Encomenda? Que encomenda?

Amiga 1:
— Uma lembrancinha que enviei pelos correios. Faz uma semana...

Amiga 2:
— Até agora, por aqui, não chegou nada. Tem certeza que não mandou entregar por uma dessas tartarugas IFood?

Amiga 1:
— Engraçadinha. Falo sério. Estranho! Postei com AR. Já era para estar em suas mãos... Verei depois pela Internet, no site da agência, por onde anda o bagulho...

Amiga 2:
— Bagulho? Tudo bem, querida. Não precisava se dar ao trabalho. O que vale é a intenção. O que comprou?

Amiga 1:
— Sabia que perguntaria. Como você é previsível! Não direi. É surpresa!

Amiga 2:
— Fala, sua idiota. Entre nós não deveria existir estes protocolos.

Amiga 1:
— Eu sei. Compreendo. Mas veja só. Não teria graça. Quando chegar às suas mãos, você poderá matar a curiosidade e se deleitar.

Amiga 2:
— Ao menos dê uma pista. É de usar ou de comer?

Amiga 1:
— As duas coisas. Como lhe conheço de velhos carnavais, você amará tanto que, tenho certeza, engolirá até o caroço, digo até a caixa e palitará os dentes com o barbante...

Amiga 2:
— Na mosca. Matei a charada. Claro! Que mais poderia ser? Você me mandou bombons. Sabe como sou tarada por chocolates. Realmente, amiga, neste caso, nem a embalagem escapará ilesa. Sem contar no papel do embrulho...

Amiga 1:
— Espero que não faça como da última vez em que lhe fiz uma afabilidade (coisa de mãe pra filha) e você usou o papel do presente no banheiro. Não direi nem uma palavra. Contudo, lhe asseguro: não é uma simples caixa de bombons.

Amiga 2:
— Que sacanagem! Resolveu me tirar? O que ganha tentando acabar comigo? Quer me matar? Ninguém melhor que você sabe do meu problema. Não posso ficar nervosa ou desassossegar o coração com a curiosidade. Dá uma coceira dos diabos. Lembra da derradeira crise? Cocei tanto, tanto me cocei, que você mesma teve que me levar carregada para o hospital. Ainda tem mentalizada na mente os ferimentos que provoquei por todo o corpo em decorrência de meter as unhas na pele até sangrar?

Amiga 1:
— Como poderia esquecer amiga! Foi horrível. Recordo perfeitamente de tudo. Pela nossa amizade, lhe peço: tenha calma. Respire. Conte até dez. Dissolva os problemas, afrouxe os músculos, adoce a alma.

Amiga 2:
— Como ter calma, como relaxar, ou como adoçar a alma? A propósito: acredita que só de você falar, eu estou me coçando todinha? Dos chifres da cabeça aos sapatos enfiados nos pés. Daqui a pouco arranco os cabelos. Desembucha... O que foi que me mandou? Um bombeiro com a mangueira pronta para espirrar água morna nos traseiros redondinhos da minha ofurô que adquiri da Jacuzzi?

Amiga 1
— Relaxe... Nada de bombeiro. Uau, sua sem vergonha. Você comprou uma Jacuzzi e não me disse nada? Vai ser amiga assim lá nos quintos... E depois tem coragem de me dizer que sou a única companheira para todas as horas... Sei...!

Amiga 2
— Pera ai amiga. Dá um segundo. Ai!... Comprei. E te falei. Você é que não prestou atenção. Ai, ui... Que isso! Estava no outro telefone com seu "namorido". Lembra?

Amiga 1
— O que aconteceu, o que houve? Se você falou, entrou por um ouvido e saiu pelos cotovelos. Meu "namorido" me deu um pé nos fundilhos.

Amiga 2
— A coceira... O inferno da coceira está me atacando. Estou toda empolada... Ui!!! O Gerson terminou com você?

Amiga 1
— Relaxe. Respire fundo. Vá até a cozinha e tome um copo de água com limão. É tiro e queda. Depois pule na sua banheira. O Gerson me trocou por uma de quinze.

Amiga 2
— Vai catar coquinho. Estou calma. "Calmérrima". Eita nós! Que droga! Por uma de quinze? Então ele pegou a sirigaita pra acabar de criar? Meu Deus, que droga...

Amiga 1
— O que desta vez?

Amiga 2
— A portaria resolveu me atazanar as ideias. Alguém interfonando... Aguenta ai. Vou ver quem é. Não saia da linha, não desligue... Credo, amiga. Por uma de quinze? Quem manda você não se cuidar... A ninfeta é linda?

Amiga 1
— Vai logo, vai logo... Igual a você, estou aqui me mordendo toda por dentro pra saber quem está lá embaixo lhe procurando. Será que é o meu presente que chegou? Me cuidar? Mais do que me cuido? Academia, corrida, boa alimentação, tenho até um personal trainer. Um gato, menina, um gato. Quanto a nova musa, cá entre nós, um docinho de coco. O Gerson pra mulher sempre teve gosto apurado.

CINCO MINUTOS DEPOIS:

Amiga 2
— Ai!!! Não consigo me conter... A coceira. Que diabo! Deixarei seu presente para desembrulhar mais tarde. A coceira, amiga, a droga da coceira aumentou demais... Foi a ansiedade... Você me deixou agoniada. Acho que vou... Acho que vou!!! Me fale do seu gato, digo do personal...

Amiga 1
— Vai o quê? Fala, infeliz! Esquece.

Amiga 2
— Estou a procura do álcool. Fala do gato...

Amiga 1
— Álcool para quê? Vai botar fogo nos pecados? Que gato?

Amiga 2
— Ai... Ui... Minha nossa... UF... Seu personal. Você disse que a criatura é um gato.

Amiga 1
— Fala, desembucha, o que houve? Ele é um gato. E que gato! Para que o álcool?

Amiga 2
— CLIC...

Amiga 1
— Alô... Alô... Alôaaaaaa...!!! Filha de uma égua mal agradecida: não é que desligou na minha cara?!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

domingo, 16 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 349

 

Cora Coralina (O Prematuro)


Namoro comprido foi aquele...

Custou a passar a noivado oficial e esse mesmo, por sua vez, se arrastava sem pressa e com muita intimidade. Não se falava em casamento, nem havia disso grandes esperanças, Todo mundo já se habituara com a delonga e só uma ou outra pessoa mais simplória ou mais maliciosa perguntava:

- Quando seriam os doces?...

Não que Clarisse fosse tola. Moça como outras do seu tempo. Vaidosa, bem pintada, decotada, saia justa, cigarrinho no bico, esmalte assanhado nas unhas. Figurinha de garota do "Cruzeiro".

O Dirceu também era do seu tempo, sabido e gozador. Guiava com desembaraço qualquer marca de carro dos amigos e pilotava teco-teco. Tinha bom emprego e boa presença, disfarçando o que lhe ia por dentro, que isso ninguém via,

Era um aproveitador das moças, tolas ou não, filhas de pais complacentes e alérgicos á autoridade. No fim do proveito, dava o fora, com todas as regras do gato sabido. As pequenas ficavam faladas e Seu Dirceu, bem fofo, namorando outras. Nem isso era coisa nova no lugar, Toda cidade conhece desse tipo. Os pais sofrem, e as filhas não se emendam... Muita conversinha, muito comentário, muito diz-que-diz...

Alguma altercação entre marido culpando a mulher e esta deitando culpas àquele. Com a moça ninguém fala nada, com medo de ela beber "Formicida Tatu" misturado com guaraná. Uns vagos "bem que falei..." da mãe, só que a filha responde - "já evém a senhora..." - com gritos histéricos e ataques de nervos

A esse tempo o nosso Dirceu tinha aprontado a patifaria e só pensava em dar o fora de fininho, antes que a bomba estourasse na casa, e o velho, que era de cara feia, viesse por cima dele. Em casos tais, sabia como arranjar saída. Inventou, primeiro, o truque das briguinhas e cancelou os encontros furtivos. Encurtou as horas de noivar e passou a achar que era besteira, quando deixava a sala, ficarem ali no portão, encostadinhos falando de amor.

O termômetro do amor tinha baixado a graduação febril, e a pressão sentimental ameaçava colapso.

Clarisse, muito versada em literatura sexual, compreendeu a manobra e alarmou para a mãe, entre choro e ameaças de suicídio. Esta passou ao marido, numa sábia equação das responsabilidades conjugais. Fez, com jeito, reservas e atenuações — que não falasse nada com a filha, coitada, até queria se matar...

Seu Zeferino achou o caso ruim mesmo, mas (era homem no duro) amargou calado a desfeita. Não disse palavra, não brigou com a mulher, nem quis bate-boca com a filha. Isso tudo não resolveria nada. A saída para o caso seria outra; e voltou sua melhor atenção para o rapaz. Passou a aceitar o futuro genro, dos lados, pelas costas e pela frente e recomendou à filha que "apertasse o noivo". Este compreendeu o cerco e achou que era mesmo a horinha do fora, ainda com as boas cartas do jogo.

Seu Zeferino, que não tinha olho de vidro, passou a cobrir o Dirceu como sombra vigilante. Fez pausa nas caçadas de perdiz, coisa de que mais gostava, e deu férias às traíras do ribeirão - gostava também de pescar de vara. Passou a rastrear caça maior. Muito amável de boca e encontradiço, mas carranca fechada até ali. O pessoal das rodas manjou tudo. A sujeira da casa saltou para a rua, que isso, em cidade pequena, bem se sabe como é. E vieram os comentários. Numa roda, alguém mais brincalhão arriscou a piada:

- Olha que o velho é caçador de espera...

Dirceu levantou os ombros, superior, pagou a Brahma e saiu queimando um cigarro. No dia seguinte, pelas tantas, Seu Zeferino percebeu o futuro genro na agência das aerovias, com jeito de quem queria ser passageiro e, se possível, clandestino. Chegou, entrou, encostou e disse qualquer coisa. O outro respondeu baixo - viagem urgente, sem tempo de avisar. Telegrama de casa com chamado, às pressas...

Seu Zeferino, muito rijo, muito seco, mexeu na aba do paletó. O moço viu um pequeno cabo reluzente, qualquer coisa parecida com um objeto que os homens conhecem muito...

Acovardou-se, Saiu do balcão, desajeitado, e acompanhou o velho, fingindo naturalidade. Foram dali ao Cartório. Tiraram os papéis que o Dirceu pagou com o dinheiro da viagem. Marcou-se o dia do casamento.

Na saída, Seu Zeferino segredou, pedindo fogo para o cigarro.

- Moço, se você trastejá e arreda o pé,,, afastou o paletó com decisão e mostrou, aninhado no cós das calças, um legítimo e expressivo calibre 38.

Tudo, dali por diante, ficou mais fácil. O noivado se arrastou por mais quatro semanas; os papéis foram processados dentro da rotina, e o casamento se fez com convites, presentes, mesa de doce e bolo artístico. A noiva, numa homenagem póstuma, pôs véu e grinalda e ninguém disse "bolacha".

Seis meses depois, nascia um menino macho, muito ao gosto do pai, deslembrado da rasteira feia que tentara passar, e agora, orgulhoso e comovido, com aquele primeiro filho. Na verdade, ninguém recebeu o cartão da cegonha com a criança no bico. Dessa vez a pernalta negou sua cooperação no caso.

Agora, o Dirceu, orgulhoso e emocionado, como pai neófito, participa pessoalmente, aos conhecidos que vai encontrando, sua paternidade radiante,

- Dona Soledade, um criadinho às suas ordens. Forte, gordinho, mas fora de tempo...

- Dona Lindaura… um criado para a servir. Fortezinho, mas fora dos prazos,

~ Dona Janoca, um molequinho para seus mandados. Está na incubadeira… um pré-ma-turo...

Dona Janoca, muito boa, muito simples, muito crente, muito anjo, ficou impressionada com aquelas últimas palavras, novas para a candura de suas oiças ignorantes. Incubadeira… prematuro…

Juntou as mãos. Virgem Santa... o pobrezinho...

Resolveu dar um pulinho à Casa de Saúde São Judas Tadeu e tirar a limpo aquele prematuro. Levou uma lata de talco Johnson e um babeiro, desses que têm bordado "não-me-beije",

Muitos cumprimentos, muitos abraços, perguntinhas discretas e alusões discretíssimas aos trabalhos de um primeiro parto. Louvores ao médico parteiro, louvores às enfermeiras e louvores à lindeza do quarto e coisa tal…

E a criança prematura?…

Era hora do banho do bebê. Um meninão bonito, graúdo, bem servido, com 4 quilos e 200 gramas de peso, esperneava dentro da bacia, seguro pela enfermeira.

- Coitadinho, lamenta Dona Janoca, compungida, tão forte, tão sacudido e tão prematuro...

Fonte:
Cora Coralina. Estórias da casa velha da ponte.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 4


A ÁRVORE E O VENTO

Um vento fino
Rosto de menino
Sorriu de longe pra mim.
De chapéu e terno
Na esquina passa tão terno
E um friozinho na espinha
Comecei a sentir.
Assobio musicado
Me convidou
Pra um bailado
Não pude o charme resistir.
Dancei tão leve
De corpo e alma entregues
Me desfolhei aos seus pés.
Mas ao raiar do dia
Como sombra
O vento por outra esquina
Foi pra casa,
Quem sabe dormir.
Na calçada,
Pétalas e folhas tatuadas
Como provas de um grande amor que vivi.
A chuva fina solidária
Lavou com lágrimas
Os rastros e pegadas
De uma noite que fui feliz.
- - - - - –

A saudade
Brincou de fazer colar de pérolas
No meu rosto.
- - - - - –

Com as rendas
Bordadas pelo tempo
A vida revela os seus segredos.
- - - - - –

Distância

Você ainda ali na esquina
E a saudade já agarrada
Na lembrança.
- - - - - –

Enquanto você não vem
Nas pétalas das rosas
Treino beijos
No solitário travesseiro
Ensaio abraços
Enquanto você não vem...
Aprendo com as árvores
A contar os dias
Enquanto você não vem
Guardo em mim latente
O verbo desabrochar
Enquanto a primavera não vem.
- - - - - –

Escrevia
Toda a dor
E a alegria que sentia
Lágrimas desinchando a alma
Gotas que transbordam o rio.
- - - - - –

Mesclam tuas cores
Às minhas
Almas tão gêmeas
Dançam harmônicas
Num feixe de luz.
- - - - - –

Mínimo fostes
Para que máximo eu pudesse ser
Nome de pai recebestes
Contigo
Tenho muito o que aprender.
- - - - - –

No meu olho d'água
Nasce e transborda
A saudade de ti
Lágrima curta
Que se afoga ligeira
No canto da boca
Que é foz
Do rio silencioso
Mas que sabe ser mar.
- - - - - -

O beijo que não te dei
Ficou na foto
Eternamente ensaiado.
- - - - - –

O tempo
(Des)tempera as palavras.
Tenho escolhido
As mais brandas.
E este novo cardápio
À Minh'alma
Tem feito muito bem.
- - - - - –

Passa o vento
Às folhas cochicham segredos
Quem sabe aventuras
Ou promessas de voo.
Passa o vento
Pobres folhas iludidas
Esquecem que ele é passageiro.
Passa o vento
Os galhos desnudos
Ainda se arrepiam,
Quando passa o vento.
- - - - - –

Pra não espantar os passarinhos,
As palavras se escondem
Entre as dobras das pétalas.
Silenciosa,
Num bater de asas
Voa uma oração.
- - - - - –

Teu toque
Despertou meus sentidos
Desenhou-se
No canto dos lábios
Um sorriso
Um verão brotou em mim.
- - - - - –

Todos os dias
Verte poesia
Das mãos de quem toca uma alma.
- - - - - –

Viajo
Pasmado
Nas linhas das minhas mãos.
Linhas retas
Semirretas
Curvas inquietas
Que se movem mas não se vão.
Linhas...
Pontilhadas ou ilhadas
Que costuram o mapa
Pra chegar ao coração.
Linhas que se cruzam,
Rios que nascem
E desaguam em mim.
Sulcos silenciosos que comigo falam
Verdadeiros caminhos
Que alegres se aninham
Nas palmas das minhas mãos.


Fonte:
Facebook do poeta

Monteiro Lobato (O Rapto)

 



Sou oculista.

Dentre tantas especialidades abertas ao anel de pedra verde, barafustei pela oftalmologia, movido de nobres razões sentimentais. Lutar contra a noite, arrebatar presas à treva: poderá existir profissão mais abençoada? Assim pensei, e jamais me arrependi de o ter pensado. Minha melhor paga nunca foi o dinheiro ganho em troca dos milagres da faca de De Graefe[1], senão o êxtase da triste criatura imersa na escuridão ao ver-se de súbito restituída à luz.

O oculista, fora dos grandes centros, é um animal andejo. Não pode estacionar permanentemente no mesmo ponto, a exemplo dos colegas que curam todas as moléstias conhecidas e quibusdam aliis(algumas outras). Encontra em cada zona um reduzido grupo de clientes, curados os quais, ou desenganados, força é que se abale de freguesia.

Fiz-me andejo. Andei de déu em déu, por ceca e meca, desfazendo cataratas, recompondo nervos ópticos; e se não enriqueci, vale um tesouro o livro da minha carreira clínica, tão cheio o tenho de impressões suculentas de psicologia ou pitoresco.

Estampo cá uma delas: o caso do cego de Rio Manso. Não é caso cômico e não será trágico; duvido, porém, que me apresentem outro mais humano — e de tão grande rigor de lógica.

Rio Manso é viloca que os fados plantaram seis léguas além de Itaguaçu, cidadezinha onde permaneci três meses de consultório aberto. Parti para Rio Manso — lembro-me tão bem! — bifurcado em aspérrimo sendeiro de aluguel, avatar evidente do Rocinante, salvo o trote, que o tinha capaz de desfazer em pandarecos a nobre vestimenta de lata do herói manchego. Meu Sancho era o Geremário, excelente cabrocha a quem extirpei uma catarata e que virou desde aí o meu fidelíssimo escudeiro. Nem eu nem ele conhecíamos o caminho. Não obstante, funcionou Geremário como perfeita bússola, agudíssimo que é o senso de orientação adquirido pela gente da roça no traquejo da vida ao ar livre. A terra é para eles um mapa vivo; e o chão das estradas, um roteiro luminoso. Conhecem a primor a linguagem dos sinais impressos no solo vermelho — sulcos de carros, pegadas de animais, galhos partidos, restos de fogueirinhas — e os leem como nós lemos a letra de forma. Foi assim que o arguto Geremário em certo ponto da viagem murmurou convictamente, com os olhos postos no caminho:

— Estamos chegando!

Olhei em redor e nada vi senão a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias. Nada denunciativo de povoado próximo.

— Como sabe, se nunca viajou destas bandas?

O meu cabrocha sorriu com malícia e explicou:

— A estrada está piorando. Estrada ruim, Câmara Municipal perto...

De fato, o caminho, bom até ali, principiava a esburacar-se. Pus-me a observar a mudança, rápida transição para pior, até que, dobrada uma curva, de chofre avistamos as primeiras casas da vila.

— Não disse? — exclamou jubiloso o pajem. — Câmara Municipal é marca que não nega...

Ri-me por fora, e por dentro admirei a suave ironia daquela agudeza de altos quilates.

Todos os nossos povoados possuem o mesmo aspecto suburbano — a mesma somática, como diria o meu velho professor de patologia, no seu preciosismo de acadêmico.

A estrada principia de repente a margear-se de humildes casebres de sapé e barro, com cercas de bambu atrepadas do melão-de-são-caetano, ou cercas vivas de pinhão-do-paraguai, cactos e outras plantas da zona. Aos poucos os casebres melhoram. Começam a surgir casas de telha, já rebocadas, já caiadas; e vendinhas; e tendas de ferradores; e assim vai em gradação insensível até virar rua, com passeios e espaçados lampiões de querosene.

Também a categoria social dos moradores acompanha tal ascensão. De mendigos, de velhos negros capengas, de sórdidas pretas que se espiolham ao sol — perfeita varredura humana de entristecedor aspecto —, a população passa a jornaleiros, a gente pobre mas arranjadinha, até chegar à “gente limpa”. E como a rua, no crescendo em que vai, desfecha em praça — o largo da matriz, com gramados, coreto de música e casas de comércio —, assim também as “almas” sobem do mendigo roto ao senhor doutor delegado e ao excelentíssimo senhor coronel N. N., chefe da política local, semideus, dono e tutu-marambaia da terra.

Ao entrar em Rio Manso, vencidos os primeiros casebres, chamou-me a atenção um berreiro. Em certa casinhola fechada ia rolo velho, surra ou luta, a avaliar pelos gritos que de lá vinham. Não posso ver dessas coisas sem intervir. Parei à porta e com rompante de autoridade dei com a argola do relho.

— Que é lá isso aí?

O rumor interno cessou, mas ninguém me respondeu. Nisto aproximaram-se alguns vizinhos, de mãos no bolso e ar velhaco.

— Que terra é esta? — gritei. — Mata-se gente dentro das casas e ninguém se move?...

Retrucou-me um deles:

— Se a gente fosse se incomodar cada vez que o Bento Cego desce o guatambu nos filhos...

Bento Cego... O caso interessava-me. Pedi informações.

— É um cego que mora aqui, o Bento. Ele gosta da sua pinguinha. Bebe às vezes demais, vira valente e mete a lenha nos filhos. Tranca a porta e é, como diz o outro, pancada de cego!

Fiquei na mesma e, vendo que o sujeito não me adiantava o expediente, bati de novo na porta com o cabo do relho. Abriu-me dessa feita um rapazinho aí dos seus catorze anos. Interpelei-o. O menino, a coçar-se, olhou para a gente reunida atrás de mim e riu-se.

— Bem se vê que o senhor não é daqui. Papai é assim mesmo. Bebe seus martelinhos e quando esquenta a cabeça o gosto dele é bater. Nós deixa, e até se diverte com isso...

Assombrei-me. Um pai cujo gosto é bater na prole e filhos que se divertem com a surra! Mas como cada roca tem seu fuso e eu não conhecia o uso daquela terra, não pedi mais — toquei para o hotel, vivamente interessado pelo estranho costume daquela família.

Armei tenda em Rio Manso e pus-me a consertar olhos. Entrementes, enfronhei-me na história do Bento Cego. Nascera arranjado, filho dum fiscal da Câmara, e quando casou morava em casa própria, legada pelo pai e sita em rua de procissão. Maus negócios fizeram-no perdê-la e passar à rua mais modesta. Vieram filhos, vieram doenças, macacoas de toda espécie, urucas, e Bento, a decair mais e mais, foi rolando para pior até acabar cego, à beira da cidade, na zona da mendicância. Como e por quê?

Era Bento um triste incapaz. Não prestava para coisa nenhuma. Começasse por onde começasse, seu destino seria sempre aquele, acabar na rua chorando esmolas. Bobo em negócios, tinha, entretanto, fumos de esperto. Piscava o olho a cada transação que fazia, e quando os arregalava via-se logrado, tungado, embrulhado, furtado pelos “passadores de perna”.

Fez-se barganhista, e jamais a barganha lhe deu o menor lucro. Começou pela casa. Barganhou-a por outra, muito inferior, tentado pela “volta”. Em três meses comeu a “volta” e ficou a nenhum em matéria monetária. Mas a tentação da “volta” não o abandonou mais. Iria barganhando e comendo as “voltas”: solução mirífica, pensou ele piscando o olho. E assim fez.

Casão por casa, casa por casinha, casinha por dois carros e quatro juntas de bois, os carros por dois cavalos, os dois cavalos por uma besta de fama que fazia e acontecia e não sei quem dava por ela oitocentos “bagos” — um negocião, sempre um negocião!

A ciganagem espigatória viu nele uma perfeita mina incapaz de resistir ao sésamo “volta”!

E tantas voltas deram no pisca-olho, que Bento se viu por fim com toda a herança paterna reduzida à mula, que não valia nem metade do preço. O freguês dos oitocentos bagos era fantástico e por muito feliz se deu ele de passá-la adiante por duzentos e sessenta mil-réis, mais uma garrucha velha de lambuja.

Os filhos, já taludos por esse tempo, saíram ao pai. Nunca frequentaram escolas, nem queriam saber de trabalho. Não se “sojeitavam”. Pelas vendas, à toa pelas ruas, viraram os piores moleques da terra e transformaram num inferno a casa do Bento. Exigências, brigas diárias, palavrões imundos e uma lambança das mais sórdidas. E como o pai, frouxíssimo de caráter, nunca tivesse ânimo de lhes torcer o pepino, eles acabaram torcendo o pepino ao pai. Tratavam-no como alguém trata cachorro, aos pontapés, e por fim, quando a miséria chegou e faltou um dia feijão à panela, foram às últimas — espancaram-no.

Bento não reagiu. Reagir como, se eram três e ele não chegava a um? Resignou-se. Estimulados por tamanha covardia, entraram os filhos a repetir as doses, a amiudarem-nas, até o meterem para ali, num canto, bode expiatório e armazém de pancadas.

Bento deixou de ser homem. Passou a coisa humana, triste molambo de carne pensante, tímida, apavorada; desprezado de todos, seu consolo único era o álcool, em cujo sopor vivia agora imerso. Tal situação durou até a venda da besta. Aí explodiu. Quando entraram em casa os duzentos e sessenta mil-réis, mais a garrucha, Bento anunciou que ia aplicá-los num excelente negócio. Fartos de excelentes negócios, os filhos opuseram-se. Ele havia que repartir o cobre.

Bento resistiu, retesando as vagas fibras da energia ainda restante em sua alma. Os filhos quebraram-lhe a cara com o cabo da garrucha e fugiram com o dinheiro. Datou daí a cegueira do homem; do espancamento resultou traumatismo do nervo óptico e consequente catarata. Bento passou a mendigo.

Viúvo que era, sem cão em casa, arranjou um cão, um porrete, um negrinho sarambé para guia e iniciou vida nova. Como em Rio Manso não existissem cegos, todos se apiedaram dele. Davam-lhe roupas velhas, chapéus, mantimentos, dinheiro — afora consolações verbais.

Resultou disso que uma relativa abundância veio substituir-se à miséria de até então. Chapéus, possuía-os às dúzias, e de todos os formatos, inclusive cartola! Calças, paletós e coletes, às pilhas. Até fraques e uma formosa sobrecasaca de debrum vieram enriquecer-lhe o guarda-roupa.

Bento dizia:

— Deus dá nozes a quem não tem dentes. Agora que é um corpo só na casa, tanta roupa, até fraque...

Mas os filhos marotos cheiraram de longe a reviravolta da fortuna e bateu-lhes a pacuera do arrependimento. Hoje um, amanhã outro, vieram os três, cabisbaixos e humílimos, implorar perdão ao velho. Que não perdoará um cego, inda mais pai? Bento perdoou-os e readmitiu-os em casa. A esmola sempre farta havia de dar para todos. E deu. Nunca daí por diante faltou feijão à panela, nem roupa ao corpo, nem dinheirinho para o resto, inclusive cachaça e fumo.

Milagre! Aquele homem que de olhos perfeitos jamais conseguira coisa alguma na vida além do desprezo público e da pancada dos filhos recebia agora provas de carinho, gozava certa consideração, fazia-se chefe da casa, respeitado, ouvido — e até temido!

Acostumou-se a mandar e a ser obedecido. E não o fizessem! E não o fizessem depressa! Sua mão, outrora tão frouxa, esmagava agora todas as resistências. Sua vontade encorpou, enrijou, deitou os galhos da veneta. Até da viuvez se remendou o Bento. Surgiu logo uma parenta pobre que lhe escreveu propondo-se a morar com ele e cuidar da casa. Veio a mulher, arrumou-se, deu boa aparência de limpeza e ordem ao tugúrio da lambança e do desmazelo, fazendo coisa fina, que a toda gente causava pasmo. Bento chegou a pensar na aquisição da casinha, e para isso foi apartando cobres.

Mais tarde, novo parente em petição de miséria veio achegar-se à sua sombra — um misantropo que lhe contava lorotas e lia capítulos do Bertoldo e da história de Carlos Magno e os doze pares de França. Bento era fanático de Roldão e nunca admitiu que fosse lida a segunda parte do livro, em que Bernardo Del Carpio vence os doze pares.

— Mentira! Não venceu nada — dizia ele. — Veja se um Bernardo, seja donde diabo for, é lá capaz de aguentar uma só lambada da durindana de Roldão! Venceu coisa nenhuma...

Uma nuvem apenas toldava a paz da família restaurada. Bento bebia, e se errava a dose, sorvendo a mais um martelo que fosse, esquentava a cabeça. Aspectos da vida antiga vinham-lhe então à memória: o caso da besta, a cena da pancadaria, e Bento, com grande furor, apostrofava os filhos criminosos. Em seguida castigava-os. Corria os ferrolhos das portas e, chispando maldições tremendas, deslombava-os à cega.

Os filhos suportavam o tratamento sem a mínima reação. Mereciam-no e, além disso, era tão gostosa aquela vidinha esmolenga...

Foi por essas alturas que cheguei a Rio Manso, e o caso do Bento, que desde o primeiro dia me interessara à curiosidade, interessou-me depois à piedade. Resolvi curá-lo. Examinei-o e vi que cegara em virtude de catarata de origem traumática, sob forma de fácil remoção. A faca de De Graefe punha-o bom em três tempos.

Propus-lhe o tratamento.

— Deus que o abençoe! Que vontade tenho de ver de novo o sol! O sol, as cores, as gentes... Só quem perdeu a vista sabe o que valem os olhos. Esta noite sem fim...

— Terá fim a tua, meu velho. O caso é simples e tenho a certeza de por-te sãozinho como dantes. Apronto-te um quarto em minha casa, donde só sairás curado.

— Deus o ouça! Sempre pensei em procurar curar-me. Mas não havia médico por aqui, era preciso ir longe, viagem cara... Se os “videntes” soubessem o que é a cegueira...

“Videntes”! Ele chamava videntes aos que enxergam...

— Pois está combinado. Amanhã cedo vais ao meu consultório e amanhã mesmo te opero. E verás de novo o sol, as flores, o céu...

A fisionomia do cego irradiava.

— Sabe o que mais desejo ver? — disse revirando nas órbitas os olhos branquicentos. — A cara dos meus filhos. Eram tão maus e são hoje tão bonzinhos...

No dia seguinte, cedo, preparada a ferramenta, fiquei à espera do meu homem.

Oito, nove horas, dez, onze e nada. Bento não aparecia.

— Geremário, já aprontou o quarto do cego?

— Não, senhor.

— Por quê? Não ordenei isso ontem?

Geremário sorriu maliciosamente.

— O homem não vem, seu doutor. Vai ver que não vem. Pois se a sorte dele é ser cego...

Revoltou-me aquele cinismo de opinião e ordenei-lhe com rispidez que cumprisse minhas ordens sem mais filosofias. E inda de vincos na testa saí de rumo à casa do Bento. Encontrei-a fechada. Bati e ninguém me respondeu. Insistia nisso quando à janela do casebre fronteiro assomou a trunfa duma bodarrona em camisa.

— Pode dizer-me que fim levou a gente desta casa? — perguntei-lhe.

— Seu Bento? Seu Bento foi-se embora. Ali pelas dez da noite os filhos “vinheram” com um carro de boi e um recado seu.

— Meu?...

— Seu sim! Que o doutor mandou dizer que fosse já, já, por causa da operação — uma história comprida. Seu Bento trepou no carro, com aquela coruja que mora com ele, mais o leitor de livros, e as roupas, e o cachorro, e o negrinho, e a cacaria inteira. Até uma cartola desta altura levaram! Depois o carro seguiu por esse mundo afora. Os filhos consumiram com ele...

Fiquei parvo, inteiramente desnorteado de ideias.

A boda prosseguiu:

— Mas se ele só presta porque é cego... Se sarasse, toda a família afundava na miséria outra vez...

No meu primeiro ímpeto de dar queixa à polícia disparei para a casa do delegado. A meio caminho, porém, estava arrefecida essa inspiração e, ao chegar à delegacia, gelada de todo. Parei à porta. Vacilei. Em seguida dei de ombros, convencido de que o Geremário tinha razão e tinha razão a boda, e os filhos do cego tinham razão, e todo mundo tem razão. Polícia! A polícia viria romper ineptamente esse maravilhoso equilíbrio das coisas de que resulta a harmonia universal.

Rodei para casa.

Logo ao entrar apareceu-me o Geremário com ar de quem adivinhou tudo.

— Ponha o almoço — ordenei-lhe secamente.

— Sim, senhor. E... posso desarrumar o quarto do cego?

Olhei bem para ele, ainda irritado. Mas a irritação caiu logo. Que culpa tinha o Geremário de conhecer a vida melhor do que eu? Humilhei-me e respondi apenas:

— Desarrume…
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Nota:
(1) Faca de Graefe: instrumento cirúrgico usado nas operações de catarata.

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem. Publicado em 1923.