quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Moacyr Scliar (O ladrão)


Quem descobriu o ladrão na garagem foi o meu irmão mais moço. Veio correndo nos contar, e a princípio não queríamos acreditar, porque embora nossa casa ficasse num bairro distante e fosse meio isolada, era uma quinta-feira à  tarde e nós não podíamos admitir que um ladrão viesse nos  roubar à luz do dia. Em todo caso fomos lá.

Espiamos por uma frincha da porta, e de fato lá estava o  ladrão, um velhinho magro - mas não estava roubando  nada, estava olhando os trastes da garagem (que era mais um  depósito, porque há tempo não tínhamos mais carro). Rindo  baixinho e nos entendendo por sinais nós o trancamos ali.

À noite voltou a mãe. Chegou cansada, como sempre  - desde a morte do pai trabalhava como costureira - e resmungando. Que é que vocês andaram fazendo? - perguntou, desconfiada - vocês estão rindo muito.

Não é nada, mãe,  respondemos, nós os quatro (o mais velho com doze anos).  Não estamos rindo de nada.

Naquela noite não deu para fazer nada com o ladrão,  porque a mãe tinha o sono leve. Mas espiávamos pela janela  do quarto, víamos que a porta da garagem continuava trancada - e aquilo nos animava barbaridade. Mal podíamos esperar que amanhecesse - mas enfim amanheceu, a mãe foi  trabalhar e a casa ficou só para nós.

Corremos para a garagem. Olhamos pela frincha e ali estava o velho ladrão, sentado numa poltrona quebrada, muito desanimado.

Aí, seu ladrão! - gritamos.

Levantou-se, assustado.

Abram, gente - pediu, quase chorando - abram, me deixem sair, eu prometo que não volto mais aqui.

Claro que nós não íamos abrir e dissemos a ele, nós não  vamos abrir.

Me deem um pouco de comida, então - ele  disse - estou com muita fome, faz três dias que não como. 

O que é que tu nos dás em troca, perguntou o meu irmão  mais velho.

Ficou em silêncio um tempo, depois disse: eu faço uma  mágica para vocês. Mágica!

Nos olhamos.

Que mágica, perguntamos.

Ele: eu transformo coisas no que vocês quiserem.

Meu irmão mais velho, que era muito desconfiado, resolveu tirar a limpo aquela história. Enfiou uma varinha pela  frincha e disse: transforma esta varinha num bicho.

Esperem um pouco - disse o velho, numa voz sumida.

Esperamos. Daí a pouco, espremendo-se pela frincha,  apareceu um camundongo.

É meu - gritou o caçula, e se  apossou do ratinho. Rindo do guri, trouxemos uma fatia de  pão para o velho.

Nos dias que se seguiram ele transformou muitas coisas  - tampinhas de garrafa em moedas, um prego em relógio  (velho, não funcionava) - e assim por diante. Mas veio o  dia em que batemos à porta da garagem e ele não respondeu.  Espiávamos pela frincha, não víamos ninguém.

Meu irmão  mais velho - esperem aqui, vocês - abriu a porta com toda  a cautela. Entrou, pôs-se a procurar o ladrão entre os trastes:

- Pneu velho, não é ele... Colchão rasgado, não é ele... 

Enfim, não o achou, e esquecemos a história. Eu, particularmente, fiquei com certas dúvidas: pneu velho, não era ele?

Fonte:
Moacyr Scliar. Histórias da terra trêmula. SP: Vertente, 1977.

Estante de Livros (Os Bruzundangas, de Lima Barreto)


Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.

Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.

Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no “Manda-chuva”; à justiça, “Chicana”. A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da "situação" ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo, todos flertam com a “situação” porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo!  quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a “Guarda do Entusiasmo”, constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados “de povo”, com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.

Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral "conforme se lê no prefácio" de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da “Arte de Furtar”: os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.

No início de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em que há a repetição da consoante “L” (aliteração), recurso chamado no livro de “harmonia imitativa”.

No capítulo “Um Grande Financeiro”, Lima Barreto critica os economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.

“Bruzundangas” é um substantivo feminino que pode significar “palavreado confuso, mistura de coisas imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada”. Neste livro, Lima Barreto fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a imprensa são causticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a construção de sua obra literária.

O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauria a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.

Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor, mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política internacional.

Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a nobreza doutoral e a que ele chama “de palpite”. A primeira é formada pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito, respectivamente.

Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.

Fonte:
Análise por Lucas Gomes, disponível em Passeiweb

Lima Barreto (Os Bruzundangas) I – Um grande financeiro


A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.

O país vivia de expedientes, isto é, de cinquenta em cinquenta anos, descobria-se nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, de modo que os países rivais, mais parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos semelhantes, acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que a grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora, financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo, do seu parlamento.

Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara um deputado que falava, muito em assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e outras coisas cabalísticas da ciência de obter dinheiro para o Estado.

A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da Bruzundanga, andando quase sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para não se esvaziar de todo.

Chamava-se o deputado - Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado, médico, engenheiro ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas todos tratavam-no de doutor.

O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria em matéria de finanças. Não citava Leroy-Beaulieu absolutamente. Os seus autores prediletos eram o russo-polaco Ladislau Poniatwsky, o australiano Gordon O'Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing e, sobretudo, o doutor Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital da Venezuela, que, por ser país sempre em bancarrota, dava grande autoridade ao financista de sua principal universidade.

O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de Gil-Blas de Santillana, em certas ilustrações do romance de Le Sage, com as suas barbas negras, cerradas, longas e sedosas, muito cuidadas e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol; os cabelos, abundantes e de azeviche; os olhos, negros e brilhantes; e não largava a piteira de âmbar, com guarnições de ouro, onde fumegava sempre um charuto caro.

O seu saber em matéria de finanças e economia política determinava a sua constante escolha para relator do orçamento da receita. Era de ver como ele escrevia um substancial prefácio ao seu relatório. Não me recordo de todas as passagens importantes de alguns deles; mas, de certas, e é pena que sejam tão poucas, eu me lembro perfeitamente. Eis aqui algumas.

Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso escreveu o seguinte trecho profundo: "Os governos não devem pedir às populações que dirigem, em matéria de impostos, mais do que elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população é em geral paupérrima e nós não devemos sobrecarregá-la fiscalmente". Não impediu isto que ele propusesse o aumento da taxa sobre o bacalhau da noruega, pretextando haver produtos similares nas costas do país.
 
No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele dizia: "É missão dos governos modernos, em países de fraca iniciativa individual (o nosso o é), fomentar o aparecimento de riquezas novas, no dizer de Gordon O'Neill. A província das Jazidas, segundo um sábio professor francês, é um coração de ouro sob um peito de ferro. O pico de Ytabhira, etc.".

E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para o aproveitamento do ouro e do ferro da província das Jazidas. A Câmara e o Senado ouviram-no e votaram algumas centenas de contos para uma comissão que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da rica província central. A comissão foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas na capital, em lugar semelhante ao Largo da Carioca, e o pico de Ytabhira ficou intacto.

A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez uma viagem à Europa, para estudar o mecanismo financeiro dos países do Velho Mundo. Voltou de lá naturalmente mais sábio; o que, porém, ele trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos elegantes do país, foram fatos, botas, chapéus, bengalas, dernier bateau, como dizem os smarts das colônias francesas da Ásia, da África, da América e da Oceania.

Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou a figurar nas seções mundanas dos jornais, e, vencendo o Senhor Mikel de Longueville, outro deputado da Bruzundanga, foi tido como o parlamentar mais chic do Congresso Nacional.

"A elegância do doutor Mikel de la Tour d'Auvergne é um tanto pesada; tem algo da solidez lusitana quando enrijou os músculos ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor Ben Karpatoso é mais leve, mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício do florete."

Tudo isto foi dito na seção elegante - "De Cócoras" - do Diário Mercantil, jornal da capital, seção redigida por escritor que tinha, em matéria de compor romances, um grande parentesco com aquela raposa das uvas, cuja história La Fontaine contou. "Ils sont trop verts, et bons pour des goujats", disse a raposa quando não pôde atingir as uvas. Lembram-se?

O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal redator da seção - "De Cócoras" - tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores serviços de sua profissão e recompensas conseqüentes.

Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a coisa; mas como tinha certeza de sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada solenidade -- lento, ereto como um soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne

Calmon era daqueles que se satisfazem em ser o segundo em Roma, e que segundo!

Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Karpatoso era casado com uma senhora da roça, muito segura das suas origens nobres; ela pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e pergaminhos não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo se enobrecido.

Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpagonescas de economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e biscoitos, que era obrigado a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia sobre seu subsídio teve a ideia genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim da capital da República da Bruzundanga.

Arranjou uma pessoa de confiança, que pôs à testa do negócio; e ei-lo a vender chá mineiro, alfavaca, "língua-de-vaca", cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba, catinga-de-bode, mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara, cascos de jacarés, corujas empalhadas, caramujos, sapos secos, jabutis, etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos feiticeiros da cidade, e os lucros foram grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas suas finanças, sustentar o seu salão.

Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava de gabar os árduos trabalhos do marido.

Certa vez, em que houvera recepção na casa do famoso deputado, quando ele já se tinha retirado para os aposentos do andar superior, a fim de estudar não sei o que sua mulher ficou na sala de visitas a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo da conversa, observou:

- Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.

Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião, apontou o dedo para o teto e disse sacerdotalmente.

- Ele!

Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:

- Sim: Deus!

- Não! - observou Dona Hengrácia. - Ele, o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda. Ele há de sê-lo em breve.

Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa conjugal, pois o novo presidente da Bruzundanga -- Idle Bhras - não fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.

O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira, a relatar orçamentos com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício, se fechavam com deficits.

Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:

-- Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita. Você tem estudos sobre finanças e não será difícil para você...

A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:

-- Não há dúvidas! Vou arranjar a coisa.

Três dias após, ele tinha as ideias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do dobro, os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa das latrinas, a água, a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as passagens de trens, bondes e barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de qualquer imposto. Calculando tudo, ele obtinha trinta mil contos. Levou a coisa a Idle Bhrás de Grafofone e Cinema, que gabou muito o trabalho de Ben Karpatoso:

- Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele - não sabes? - que foi presidente da Câmara de Guaporé, minha terra. Ele sempre teve ideias semelhantes às tuas, mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre meirinho... Que financeiro!

Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram contra elas.

Um objetou:

- Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.

- Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.

Um outro observou:

- Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.

- Não apoiado. O vestuário deve ser uma coisa majestosa e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão. Toda a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.

Um outro refletiu:

- Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e dentro do país.

- Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da família. Com as passagens caras, diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os adultérios e as seduções sensivelmente hão de ser mais raros.

Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o financeiro, foi arredando uma por uma as objeções que eram feitas ao seu projeto de orçamento da receita.

Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da Fazenda, com o orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de contrabando que teve de estudar, tanto meditou sobre eles, que um dia, telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso contrabando e prendera os infractores, desta forma: "Fuzile todos".

O homem estava louco e morreu pouco depois. A seção elegante de um jornal de lá, o Diário Mercantil - "De Cócoras" - fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não pagou, ao redator dela, nada pelo serviço assombroso que prestara às letras do país.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Continua…

Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 474

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 15 e 16


A 26a OBRA-PRIMA


Depois de anos de discussão, a Academia de Estocolmo, a Fundação Gulbenkian e o pen Club Internacional, reunidos sob os auspícios da Unesco, obtiveram que esta proclamasse solenemente as 25 obras primas de literatura de todos os séculos e povos, considerando-as patrimônio cultural da humanidade.

O escritor Elpídio Nosferatu não se conformou com esta resolução e empreendeu a batalha para ser excluído da relação o Édipo rei, de Sófocles, alegando ser suscetível de discussão a superioridade do seu autor sobre Ésquilo. No lugar, pleiteava a inclusão do seu romanpoensaio em três dimensões O dodói de Abílio Terciomundista, bem superior a toda a dramaturgia grega. Elpídio era visto simultaneamente na Europa e na América, debatendo com professores e críticos, concedendo entrevistas, expedindo telegramas, promovendo simpósios em favor de sua causa.

As instituições responsáveis pela relação de obras-primas recusaram-se a atendê-lo, mas ele foi incansável, para não dizer implacável, na postulação. Propôs-se a Abílio uma declaração subsidiária, que ele repeliu, declarando sua obra digna de menção honrosa. Pediu audiência ao papa, à Assembleia Geral da onu, aos soberanos reinantes e presidentes de República em exercício.

A ideia de interná-lo deixou de consumar-se, por falta de apoio legal. Abílio formou uma legião de adeptos que clamavam por justiça, e houve encontros armados em torno de sua pessoa. Temendo a erupção de uma guerra literária, a somar-se às outras que flagelam a humanidade, a Unesco declarou sem efeito a relação de obras-mestras, mas ficou na mente do povo a ideia de que o Dodói era, não igual, mas superior a todas as vinte e cinco.
* * * * * * * * * * * * * * * *  * * * * * * * * * * *

A VOLTA DO GUERREIRO

Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos
amores.

Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu dizendo:

— Não quero mais ver guerra diante de mim.

— Eu não sou a guerra, sou o amor, querido — respondeu a mulher,
assustada.

— Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na
luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.

— Então farei carícias lentas e suaves.

— O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme.

— Ficarei quieta, não farei nada.

— Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição.

Separaram-se para sempre.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. SP: Cia. Das Letras. Publicado em 1981.

Guimarães Rosa (Poemas Avulsos)


ALARANJADO


No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ANIL

O voo, quase vertical, da jaçanã fugida
levantou meu olhar,
no dorso esbelto, de zinco polido,
à calota do céu,
liso, congelado em calmaria,
e quase sólido, em cobalto líquido.
Pensei que a ave fosse frechar, de cheio,
para pescar peixinhos escamados de ouro:
as estrelas que mergulharam de madrugada…
E que a água longe se abrisse
nos nove círculos concêntricos
das nove beatitudes…

Mas o pássaro foi breve um grânulo dissolvido,
entre nuvens fugindo como flocos de espuma,
com a paisagem a luzir, no seio de uma bolha,
o sol a se desmanchar, como um sabão redondo,
e o céu todo água, num côncavo de bacia
onde lavam o dia…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

CARANGUEJO

Caranguejo feiíssimo,
monstruoso,
que te arrastas na areia
como a miniatura
de um tanque de guerra…
Gosto de ti, caranguejo,
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal…

Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamaçento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebê de celulóide.

Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo
ou um ídolo asteca…

És forte e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos,
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol…

Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor…
Para as luas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

DESTERRO

Eu ia triste, triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta,
bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta…
Coagulada em preto,
a noite isolou as coisas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ELEGIA

Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez…

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim…
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

LUNÁTICO

Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos…
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando…
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto…
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua…
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

PAISAGEM

No quadrilátero do arrozal,
verde-aquarela,

cortam-se em ângulos retos
canais azuis de água polida.

No ar de alumínio,
as libélulas verdes vão espetando
jóias faiscantes, broches de jade,
duplas cruzetas, lindos brinquedos,
nos alfinetes de sol.

Pairam suspensas, em vôo de caça,
horizontal,
e jogam, a golpes de tela metálica
das asas nervadas, reflexos de raios,
que hipnotizam as muriçocas tontas…

A libelinha pousa na ponta
do estilete de uma haste verde,
que faz arco (pronto!…)
e a leva direta à boca,
aberta e visguenta, de um sapo cinzento…

– Glu!… Muitas bolhas na escuma…
E as outras aeroplanam, assestando
para o submersível,
os grandes olhos redondos,
com quarenta mil lentes facetadas…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

VERDE

Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo…

Fonte:
João Guimarães Rosa. Magma. RJ: Nova Fronteira, 1997.

Marcelo Spalding (Ideia acordou sem acento)


Hoje acordei sem idéia. Tudo bem, ideia acordou sem acento. E esqueceram de avisar o Word, que acentuou ideia sem eu pedir! Bem, não vai ser fácil, mas esta será minha primeira crônica sob a égide da nova reforma ortográfica. Não vai ser nem um pouco fácil, afinal nunca passei por uma reforma antes, desde que aprendi a ler e escrever ideia tem acento... Mas seria bem mais difícil se eu fosse português. Ah, de facto seria.

Primeiro, é preciso lembrar que a intenção da reforma é mais política e econômica do que linguística. Embora não elimine de todo as diferenças ortográficas nem pretenda interferir nas culturais, a reforma ortográfica unifica a ortografia oficial do português, única língua importante com duas ortografias oficiais distintas, e por este motivo tem sido chamado de Acordo e não de Reforma. Não deixa de ser reforma, é claro. Mas com olhos mais voltados aos contratos internacionais que, quando redigidos em português, precisavam de duas versões, ao mercado de livros, que se via obrigado a fazer edição especial para além-mar, ou ao continente africano e suas potencialidades político-econômicas do que às reformas que cotidianamente se faz na língua.

Por exemplo: para para pensar. Agora não tem mais acento no "pára", então fica assim mesmo: para para pensar. Talvez essa falta de acento nos faça tropeçar na frase, e aí eu escreveria, como falo, "para pra pensar" e não "para para pensar", o que pode acarretar que daqui a uns cinquenta anos a preposição para vire definitivamente pra, a fim de diferenciar-se do outro para. Mas agora, pelo menos, qualquer texto em norma culta escrito em Porto, Lisboa, Luanda, Maputo ou Rio de Janeiro terá essa forma: para para pensar.

Claro que a reforma, ou acordo, traz consigo enorme polêmica. Para alguns a mudança é desnecessária, dispendiosa, coisa de partido de esquerda quando chega ao poder. Para outros, é tímida demais, deveria começar eliminando os hífens e, quem sabe, depois os acentos todos. Particularmente acho que o grande problema é que a mudança nos faz perceber como o tempo está passando e como precisamos mudar, nos atualizar. Mudar não só o acento da ideia como também as próprias ideias...

Porque mudar o dicionário é como mudar a posição solar, a divisão dos países, a cor da bandeira: desde que nascemos ideia é idéia e, de uma hora para outra, não é mais. E por que não é mais? Pelo mesmo motivo que um dia fora. Esse tipo de mudança numa instituição forte como a ortografia nos faz perceber, portanto, como também nossa língua é fruto de construções, construções que com o tempo se perdem e por isso passamos a tomar as palavras por códigos arbitrários. Mas observe, por exemplo, a palavra discar: daqui a cinco gerações continuarão usando discar com o sentido de telefonar, mas poucos lembrarão que, um dia, os telefones tinham um disco e para se falar com alguém era preciso discar... Outra palavra, para ficar nas afetadas pela reforma: mandachuva. Não tem mais hífen, porque ninguém mais lembra porque se uniu, um dia, "manda" e "chuva" para designar alguém mandão. Ninguém lembra, nem eu, mas alguma razão há de existir.

No frigir dos ovos, tenha a palavra "linguística" trema ou não as pessoas continuarão tendo dificuldades para lidar com as regras de acentuação ou com a confusa conjugação dos nossos verbos, palavras em inglês e, agora, em chinês continuarão tomando conta dos dicionários e homogeneizando as línguas e culturas como um todo e, pior ainda, as pessoas continuarão escrevendo pouco, muito pouco. Com ou sem acento, com ou sem hífen.

Para nós, que saímos da escola quando Plutão ainda era um planeta, evidentemente que adaptar-se à mudança será uma epopeia: teremos de desautomatizar a colocação dos acentos e do trema, comprar dicionários novos, mudar o corretor ortográfico do computador. Ou não, porque assim como nos anos setenta uma parcela da população manteve-se conservadora e insistindo no porto ou no cafézinho, é possível que muitos se neguem a adquirir novos hábitos e insistam a escrever como aprenderam na escola.

Mas no final das contas, fique tranquilo, tudo continuará como antes. As assembleias europeias continuarão protecionistas, confusas e poderosas. As mulheres seguirão nuas em pelo nas esquinas das cidades. Grupos antissemitas continuarão existindo, e também grupos antirreligiosos. A Coreia do Norte continuará antipática à Coreia do Sul. Delinquentes continuarão fazendo sequestros relâmpagos. Voos heroicos continuarão matando inocentes sob o aplauso de uma plateia patética diante da televisão. Pseudointelectuais continuarão dizendo que leem poetas neossimbolista, romances neorrealistas. E eu continuarei não gostando de pera, nem de geleia, nem de tramoia, nem de feiura.

Fonte:
Site do Autor

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 31) Acuado


TODA NOITE, A MESMA HORA, o telefone fixo toca na calmaria  serena da sala vazia. Miresola corre a atender sabendo, de antemão, o que acontecerá assim que tirar o auscultador do fone:

— Alô...?... Alô...?... Alô...?

Do outro lado da linha, nada:

—...

— Alô...?

—...

Miresola insiste, mas ninguém dá sinais de vida. Segue a mudez enervante e pasmacenta de sempre:

— Alô...?

O rapaz ouve nitidamente a respiração descompassada de quem está do outro lado. Escuta os dedos da criatura tamborilando no aparelho, mas voz, que é bom...

— Ora, vamos. Quem é você?  Diga seu nome!  Sua idade? O que quer? Porque me liga todas as noites no mesmo horário?

—...

- Fale! Se abra! Acaso se esconde de alguém?

—...

— Tem medo de quê?

—...

Miresola persevera, prolonga e se empenha ao máximo. Batalha na sua obstinação. Tenta de todas as formas puxar assunto:

— Olha! Não vou te machucar, nem morder. Ainda que pudesse chegar até você viajando pelos fios...

Nenhuma resposta. O emperramento em dizer algo esclarecedor se agiganta:

—...

— Converse comigo... Revele alguma coisa sobre você. Sonhos? O que gostaria de fazer? Ler, ouvir música, sair, ir ao cinema? Frequenta barzinhos? Amigos? Pratica algum tipo de esporte? Acaso você mora aqui no meu prédio? Já nos vimos no elevador?

—...

Sem mais nem menos, um clique interrompe a ligação. Fica no ar, além das reticências de respostas às perguntas formuladas, a taciturnidade do telefone. A afrasia da noite alta como que magicamente se quadruplifica lá fora.
                                        ***

Tem sido assim, meses a fio. Miresola não sabe mais o que fazer. Ou como agir. Sente que, de certa forma, se tornou refém daquela situação caótica e esquisita que não sabe explicar. Se sente como um idiota. Toda noite à mesma hora o telefone tilinta e ele, segue a conversar com alguém que não sabe quem é. Se pelo menos a pessoa ligasse para seu celular, ele identificaria o número de onde viera provinda a ligação e retornaria. Qual o quê!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 8


O BICHO


Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

* * * * * * * * * * * * * * * *  

O IMPOSSÍVEL CARINHO

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O INÚTIL LUAR

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
- É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
- "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O MENINO DOENTE

O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- “Dodói, vai-te embora!
“Deixa o meu filhinho,
“Dorme... dorme... meu..

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- “Dorme, meu amor.
“Dorme, meu benzinho...”

E o menino dorme.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O RIO

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

Lima Barreto (Clara dos Anjos)


Nota do blog:

“Clara dos Anjos” tem como tema central o racismo e o lugar ocupado pelas mulheres naquela época, principalmente as pobres e negras. Lima Barreto denuncia o racismo, a pobreza, a fome, miséria, a desigualdade social, as injustiças, o analfabetismo e o preconceito com características presentes em seus personagens.

= = = = = = = = = = =

A Andrade Murici

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmente como outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangos e acompanhamentos para modinhas.

Aprendera a "artinha" musical na terra de seu nascimento, nos arredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não saíra daí.

Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito à aposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguira aquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo. Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha no local de seu nascimento e adquirir aquela casinha de subúrbio, por preço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o resto pagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava de plena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a um terço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadinho que era a cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque, etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado.

A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os lados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia até uma grande chácara de outros tempos com aquela casa característica de velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada de azulejos até â metade do pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvores que, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.

Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as "bíblias". Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora, enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles, porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo, querem dinheiro. Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloquência bíblica que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, os quais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.

Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado da chácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. As cerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticos divinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias, adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura com um certo ar de acampamento militar.

Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto, muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp. Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de sua existência. Se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!

Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia, ainda menos. Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso. Na tez, a filha puxava o pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura, ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava a média, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que não acontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha, a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia de vapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.

Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por ela grandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de "seu" Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela. Não que a venda de "seu" Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoas que lá faziam "ponto" eram de todo o respeito. O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem comportado. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, não possuindo — é preciso saber — nenhuma.

Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons, desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quando saía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecer bebericando ou lendo os jornais do senhora Nascimento. Silencioso quase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem o tratava por mister.

Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, que se tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as coisas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvas e abundantes.

Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramente poeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, se ainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dez volumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia uma conversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabia bem quem ele era; chamava-o muito simplesmente — o poeta.

Um outro frequentador da venda era o velho Valentim, um português dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvado para diante, devido ao hábito contraído no seu ofício de chacareiro que já devia exercer há mais de quarenta. Contava 'casos" e anedotas de sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do mais saboroso pitoresco.

Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, em alguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavam em casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.

Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo do tamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e ai, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e empedraçadas, deixavam-se ficar até à hora do "ajantarado" que a mulher e a filha preparavam. Só depois deste é que as cantorias começavam. Certo dia, um dos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença para trazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz de sua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas. Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenas denunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão.

A sua entrada foi um sucesso. Todas as moças das mais diferentes cores que, ai, a pobreza harmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, no Vaticano, causaria tanta emoção. Afirmavam umas para as outras:

— É ele! É ele, sim!

Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e, entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galante do cantor de modinhas. Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olhar guloso que deitou para os seios empinados de Clara.

O baile começou com a música de um “terno" de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.

Num intervalo Joaquim convidou:

— Por que não canta, "seu" Júlio?

— Estou sem voz, respondeu ele.

Até ali, ele tinha tomado parte no "remo"; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris de Clarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz, animou-se a fazê-lo também:

— Por que não canta, "seu" Júlio? Dizem que o senhor canta tão bem...

Esse — "tão bem" — foi alongado maciamente. O cantador acudiu logo:

— Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...

Concertou a "pastinha" com as duas mãos, enquanto Clara dizia:

— Cante! Vá!

— Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.

Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:

— Amor e sonho.

E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha, para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor, sibilando os "ss", carregando os "rr" das metáforas horrendas de que estava cheia a cantoria. A coisa  era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e
só Clarinha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou...

Dias depois, vindo à janela por acaso — era de tarde – sem grande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na coisa, tanto assim que disse candidamente à mãe:

— Mamãe, sabe quem passou aí?

— Quem?

— "Seu" Júlio.

— Que Júlio?

— Aquele que cantou nos "anos" de papai.

A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca com o Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal, acompanhadas de copinhos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardou que se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famoso modinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor de trovas.

Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos os quatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidas de bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-se pela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seios, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram só olhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes, quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo; depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas, para, afinal, vir a fatídica carta.

Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz da vela, medrosa e palpitante. A carta era a coisa mais fantástica, no que diz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha, porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, era original. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem de Clara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma coisa de novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabia bem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai; as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia de ser toda a vida assim como um cão sem dono... Os pais viriam a morrer e ela não podia ficar pelo mundo desamparada... Uma dúvida lhe veio: ele era branco; ela, mulata... Mas que tinha isso?

Tinham-se visto tantos casos... Lembrou-se de alguns... Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios estouravam de virgindade e de ansiedade de amar... Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costa tomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãe desconfiou e perguntou à filha:

— Você está namorando "seu" Júlio, Clarinha?

— Eu, mamãe! Nem penso nisso...

— Está, sim! Então não vejo?

A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara, logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança, uma carta ao modinheiro, relatando o fato.

Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família era bem superior à sua namorada. O seu pai tinha um emprego regular na prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério, ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capaz de admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulher não tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos e hábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e "novidades" da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão intima de ser grande coisa, de uma grande família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.

Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo da família; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes, Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam de nenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelos seus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa. Pequeno-burgueses, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situação do pai e a terem frequentado escolas de certa importância, elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir. Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-se dizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficando talvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, como não podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga paupérrima.

Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficiente para ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, a sua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas, recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica, sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seus olhos o ato sexual.

Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa de defloramento e seduções de menores. O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de rogos, de choro, de apelo - para a pureza de sangue da família, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasse influenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha de dezesseis anos, a quem o Júlio "tinha feito mal".

Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto à estreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração que agasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso, deixou-o por aí, à toa, pelo mundo... O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não se viam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara onde tinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústria e o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.

Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas; e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava, vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo do vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros bairros do Rio de Janeiro.

A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes de contas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dos seus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-o nos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, sem dizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo, por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:

"Queridinha confesso-te que ontem quando recebi a tua carta minha mãe viu e fiquei tão louco que confessei tudo a mamãe que lhe amava muito e fazia por você as maiores violências, ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te que preze bem o meu sofrimento. Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha.

Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido.
O teu Júlio".


Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seu namorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução era insuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda por cima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade critica que pudesse ter. A carta produziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos, esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados - tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amor por ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhas do violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela do quarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanha quase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.

Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambos não havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma coisa de estranho no ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele.

Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...

O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer a miúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez.

A mãe, porém, com auxilio de certas intimidades próprias de mãe para filha, desconfiou e pô-la em confissão. Clara não pôde esconder, disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadas diante do irremediável... A filha teve uma ideia:

— Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe?

A velha meditou e aceitou o alvitre:

— Vai!

Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.

— Mas o que é que você quer que eu faça?

— Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.

— Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele não amarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga! Ora já se viu! Vá!

Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior? Por quê? Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todas as moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.

Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:

— Mamãe, eu não sou nada nesta vida.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 473

 


Carlos Eduardo Novaes (Volta às aulas)


(Um retorno cada vez mais caro)


Juvenal Ouriço olhou o cartaz da porta: ”Escolinha A Toca da Raposa”. Entrou, sentou-se e alisando seus vastos bigodes ficou aguardando diminuir o movimento da secretaria. Quando a última mãe de aluno retirou-se, Juvenal levantou-se e dirigiu-se à secretária:

- Por obséquio, eu desejava fazer uma matrícula.

- Pois não - disse a moça, apanhando uma ficha de matrícula - como é o nome de seu filho?

- Não. Não é para o meu filho.

- Não? Pra quem é então? Seu sobrinho?

- Não senhora. É pra mim mesmo.

- O senhor? Mas aqui nós só temos maternal, jardim, alfabetização, essas coisas. É uma escolinha de primeiro grau.

- Eu sei - respondeu Juvenal muito sério - eu vim me matricular no jardim de infância.

Meio assustada a moça perguntou se Juvenal tinha o certificado de transferência de outra escola. Como Juvenal dissesse que sua última transferência em escola primária foi em 1948, a professora afirmou que seria preciso fazer um teste ”para saber em qual jardim colocá-lo”. Distraída, preenchendo  a ficha indagou: ”Tem mais de seis anos?”

- Seis anos o quê? - perguntou Juvenal. - De casado? De formado?

A professora apressou-se em dizer que a pergunta era mera formalidade porque ”de acordo com a lei, se o senhor tiver mais de seis anos de idade já poderá ser alfabetizado”.

Juvenal declarou que não estava interessado em ser alfabetizado. Ficou decidido então que iria para o terceiro grau do jardim de infância. A moça pediu-lhe os documentos: certificado de nascimento, atestado de vacina antivariólica, atestado audiométrico e três retratos três por quatro.

- Retrato recente? - perguntou Juvenal - ou de quando eu tinha cinco anos?

A professora informou o preço da anuidade, deu o modelo do uniforme e forneceu a relação do material escolar.

Juvenal leu com atenção a longa lista e observou:

- Esse material aqui é até pro dia do vestibular?

- Não, senhor.  É só para esse ano. O senhor vai querer ônibus?

- Não, obrigado - respondeu Juvenal - eu tenho carro.

Juvenal saiu e enquanto se dirigia ao banco para levantar um empréstimo que lhe permitisse fazer as compras que a escola pedia, pensou que se John Kennedy fosse vivo certamente  diria que ”o preço da educação é o eterno endividamento”.

Na papelaria, depois de brigar mais do que no dia em que foi atrás dos ingressos para o desfile das escolas de samba, Juvenal finalmente conseguiu comprar tudo. Na saída, porém, não aguentou com o peso do embrulho. Teve que chamar um carregador, desses que trabalham no Galeão, mas que no período que antecede a volta às aulas fazem bico na porta de papelarias. Já na casa de uniformes, Juvenal só teve dificuldades em arranjar uma calça curta e um avental  para seu tamanho. Ao seu lado, uma senhora pedia o uniforme da escola Gruta do Leão.

- A   senhora -  perguntou  o vendedor  -  quer completo?

- É sim - disse ela - completo, com camisa, calça, gravata, meias e os sapatos. Quanto é?

- Quatrocentos cruzeiros.

- Quatrocentos cruzeiros? - gritou ela, remexendo o dinheiro na bolsa.

- Então me dá só as meias.

- Tudo um absurdo - exclamou ela - o custo de vida está pela hora da morte.

- É verdade - completou Juvenal - e o custo das aulas está pela hora do recreio.

No primeiro dia de aula lá estava Juvenal Ouriço no fim da fila (era o mais alto da turma) entrando na sala de avental e merendeira. Assustou-se um pouco com o tamanho das mesas e cadeiras: a sala, como toda sala de jardim, mais parecia um quarto de bonecas. Seus coleguinhas foram se sentando e Juvenal permaneceu de pé à procura de um lugar.

– “Tia Lúcia”, disse, ”será que não tem uma cadeira um pouquinho  maior para mim?”

Tia Lúcia respondeu que na sala não havia privilégios e mandou Juvenal sentar-se junto com Fabinho, Beto e Mariana para a aula de pintura. Muito educado Juvenal puxou a cadeirinha, pediu licença e arrumou-se como pôde. Mal sentou-se Mariana correu e se agarrou na saia de tia Lúcia.

- Estou com medo, titia - disse - ele parece o Lobo Mau com aquelas pernas cabeludas e aqueles pés enormes.

- Não tenha medo - procurou acalmá-la tia Lúcia - ele é seu coleguinha.

Mariana, porém, não quis voltar e tia Lúcia foi obrigada a deslocar Rodrigo para a mesa de Juvenal que ficou formada  só por garotos:

- É melhor assim - ponderou Juvenal já inteiramente desinibido - assim a gente pode falar palavrão à vontade. Que é que nós vamos fazer?

- Agora é a aula de pintura - disse Fabinho.

- Ora Fabinho deixa essa aula pra lá - disse Juvenal puxando um baralho do bolso e embaralhando-o - vamos jogar alguma coisa. Que é que vocês sabem jogar?

- Burro em pé.

- Não. Burro em pé também é demais. Que tal um pôquer?

Depois veio a hora da rodinha científica. Tia Lúcia ficava no meio da sala contando histórias e os garotos se punham à vontade para ouvi-la.

- Tia Lúcia - pediu a palavra Juvenal - qual é a história que a senhora vai contar hoje?

- A da Branca de Neve.

- Não. Pelo amor de Deus, a da Branca de Neve não - gritou Fabinho, que é um garoto muito inteligente - já está muito manjada.

- É sim, está muito manjada - completou Juvenal solidário ao coleguinha. - Não dá pra contar uma historinha  da Cassandra Rios?

Tia Lúcia ficou ruborizada com a sugestão de Juvenal. Resolveu deixar a rodinha para mais tarde e iniciar a aula de música. Botou um disco na vitrolinha e enquanto procurava  outros, agachada de costas para a sala, sentiu alguém bater-lhe no ombro:

- Vamos dançar, tia Lúcia?

Era Juvenal.

Tia Lúcia já estava perdendo a paciência. Ralhou com Juvenal e disse que se ele continuasse se comportando mal iria falar com a orientadora pedagógica para chamar seus pais à escola. Juvenal abaixou a cabeça e prometeu se comportar  direitinho. E realmente não deu mais uma palavra.

Na hora da merenda, inclusive, enquanto os outros alunos tomavam seu café com leite, pão e manteiga, refrigerante, doce, biscoito, Juvenal recolheu-se a um canto e sem perturbar ninguém, traçou o maior galeto regado a uma cervejinha.

Juvenal passou o resto do dia tendo uma conduta exemplar.  Terminadas as aulas despediu-se dos coleguinhas e quando ia saindo, tia Lúcia interceptou-o:

– Você não pode sair sozinho.

- E por que não?

- Os alunos do jardim só podem sair com um responsável.

- Mas eu já sou responsável. Não preciso de outro.

- Claro que precisa. É do regulamento. Para evitar o rapto.

- E a senhora acha que alguém vai querer me apanhar no meio da rua?

- É evidente que vai - disse tia Lúcia observando seu uniforme, o avental e a merendeira - principalmente o Pinei.

Juvenal sentou-se emburrado no degrau da escada e indagou:

– E, agora, como é que eu saio?

Tia Lúcia sugeriu que ele chamasse a mãe.

– Minha mãe está muito velhinha.

Então chame a sua mulher.

– Minha mulher está trabalhando. A empregada serve?

Servia. Então, ligou para casa:

- Alô Maria? Aqui é o doutor Ouriço. Eu quero que você dê um pulinho aqui na escola para me buscar. Como? As crianças? Não interessa as crianças, isto é uma ordem, Maria: venha me buscar! - E bateu o telefone.

Aguardando a chegada da empregada junto com Juvenal,  tia Lúcia não conseguiu esconder sua curiosidade e perguntou:

–  O que o senhor está fazendo aqui na escola? O senhor já não sabe de tudo isso?

- Sei, mas meus filhos não sabem.

- E o senhor tem filhos?

- Tenho, cinco, pequenos.

- E por que não os coloca na escola?

- Porque eu teria que abrir falência.  Achei que seria melhor assim: ao invés de mandá-los, eu venho e à noite quando chego em casa conto pra eles tudo o que aprendi.

- E dá resultado?

- Pode não dar. Mas sai muito mais barato.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. Juvenal Ouriço Repórter. RJ: Nórdica, 1977.

Nilcéia Albuquerque França (Versos Diversos)

DIVERSAS


A Trova é meu grande afã,
e dela não abro mão!
Faz-me fada e até vilã,
muda até o coração!
= = = = = = = = = = =

O dia a dia vai indo,
como a chuva na torrente.
e o Rei Sol já vai sumindo,
surgindo a Lua fulgente!
= = = = = = = = = = =

Naquela tarde risonha,
te conheci, meu amor!
Creio que, comigo, sonhas.
inda sentes meu frescor!
= = = = = = = = = = =

Ser humano é ser mutável.
Um dia é fruto; outro, grão;
Às vezes, admirável;
Outras, só complicação!
= = = = = = = = = = =  

Um menino, mui sapeca,
tentava a raia empinar,
bebendo, numa caneca,
pôs-se o leite a derramar!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

BUSCA

Rumávamos a não sei onde,
Dentro de uma roda viva
Hoje estamos em busca
De algo qu’inda não sabemos!

Refletir, refletir, refletir...
Tentando apanhar um sentido,
Aqui, lá e acolá,
De algo qu’inda não sabemos!?

E buscando, chegamos a Deus, o Infinito
E a descoberta, incerta,
De algo qu’inda não sabemos!?

Aspiramos à serenidade,
À sabedoria, ao Amor
De algo qu’inda não sabemos!
* * * * * * * * * * * * * * * *  
 
 ESPERANÇA

Menina bonita,
alegre e faceira
na rua, saltita,
tu és companheira!

A Terra ilumina
Com sua inocência,
És forte, menina,
Iluminescência!

E nesta vida incerta,
alento nasce pra nós,
o futuro é iminente.

A humanidade desperta,
E escuta a tua voz,
Sendo mais diligente!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O CAVALO

Dentre toda a natureza,
O cavalo é o mais legal;
Grandes olhos, macieza,
servidor sempre leal!

Cargas sempre a carregar,
Olhos grandes, mas tranquilos;
A andar ou a trotear,
Alivia o teu destino!

Seja adulto ou criança,
todos querem cavalgar;
todos tem a esperança,
de, um dia, a vir montar!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O MALABARISTA

Um dia, um malabarista,
Tentava se equilibrar,
pois estava numa pista ...
que se iniciava a inclinar!?!

Na mesa ele se apoiava
Mas, em vão mão se continha.
De escorregar não parava,
Que até levou a vizinha!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O POETA

O Poeta brinca e sonha;
vive só a perscrutar;
ser humano a amar,
Deixa a vida bem risonha!

Poeta muda o bisonho,
pois ele o quer transformar;
e a Beleza desnudar,
e a isto não me oponho!

O Poeta é uma essência,
desvendando mil mistérios,
falando de humanidade!

Revelando as consciências,
eis que surge revertério,
eis a universalidade!

Fonte:
João Israel da Silva Azevedo (org.). Superação: poemas, poesias e crônicas. Esperantinópolis, MA: Clube de Autores, 2020. (e-book)

Nilto Maciel (Anedota Medieval)


As núpcias do arquiduque Filipe e da duquesa Isabel ensejaram dias e dias de festa no castelo. Instituiu-se até uma nova ordem – a do Velocino Dourado. Afinal, o senhor tornava-se mais poderoso. A moça trouxera algumas cidades como dote.

Passada a lua-de-mel, Dom Filipe anunciou a primeira separação. Devia participar de uma cruzada. Nas longínquas terras dos infiéis.

Perdida no imenso castelo, cercada de condes, duques, marqueses, viscondes, barões – Isabel estaria por demais exposta ao pecado. E, na ausência de Filipe, quem a velaria? Quem a defenderia? Quem a vigiaria? Ora, um guarda. Sim, um bom e robusto vigia. Um eunuco.

E Platão se instalou no castelo, para defender, velar e vigiar a duquesa.

Longe do marido, Isabel sofria. Para onde ia, também ia o eunuco.

A beleza da senhora aturdia Platão. Dias e noites a mirá-la. No entanto, ela mal olhava para ele. Além de plebeu, eunuco. A solidão, porém, aproximou um do outro. Conversavam e até riam. Ela fazia perguntas, ele contava episódios de sua vida. Não gostava do próprio nome. Muito menos de filosofia. Se pudesse, se chamava Plutão. Adorava mitologia.

Cada vez mais aturdido, o eunuco não continha palavras para satisfazer a curiosidade de Isabel. Servira no serralho do palácio do sultão Abu Talib, em Constantinopla. Guardava as esposas e concubinas do grão-senhor. Beldades fascinantes. Nenhuma, porém, mais formosa que ela, Isabel.

E descrevia cada centímetro do harém.

De Dom Filipe nem notícias. As batalhas se sucediam nas terras dos mouros e os mensageiros falavam apenas de morte e destruição.

Insensível às dores do mundo, Platão só vivia para adorar Isabel. E morria de paixão. Amor impossível. Verdadeiramente platônico. Ora, ela casada e nobre, e ele um pobre eunuco. Não, jamais poderia possuí-la.

Cada vez mais triste, Platão descuidava-se de vigiar Isabel. Refugiava-se em seu quarto. Chorava, imaginava fugir, esquecer aquele amor absurdo. Matar-se, talvez.

Desesperado, decidiu revelar seus sentimentos à duquesa. Qual, porém, não foi sua surpresa! Ela também o amava.

Longe, muito longe do castelo, os cruzados do arquiduque enfrentavam as cimitarras sarracenas. E matavam e morriam com fé, mas sem amor.

Apaixonados, Platão e Isabel ora riam, ora choravam. Riam porque amavam. Choravam ante a deformidade dele.

Noites e noites se passaram. E mais o amor dos dois se exacerbou. Porém, como consumá-lo?

Platão se rendeu de novo à tristeza. Passava horas e horas trancado em seu quarto, longe de Isabel. Um desgraçado! Melhor morrer.

Teve então um sonho. O Dr. Hipócrates, após complicada cirurgia, tornava-o um homem como outro qualquer.

Embora médico competente, o tal Hipócrates tinha suas fraquezas humanas. Assim, só aceitava um tipo de pagamento pelo seu trabalho: Platão se encarregaria da morte imediata de Filipe. Se a cruzada durasse muito tempo, o eunuco partiria para o oriente. E ele, Hipócrates, desposaria a viúva.

Ora, o cirurgião guardava o segredo de sua técnica. Nenhum outro médico no mundo conseguira ainda realizar, com êxito, aquele tipo de implante.

Platão não aceitou de pronto a proposta. Teria de cometer um homicídio. Além disso, D. Filipe era um nobre. A vingança viria sem detença e cruel. Talvez mesmo antes do crime. Pois guerreiro, cruzado, emérito espadachim.

No entanto, para que viver, se não passava de um eunuco? Melhor selar o acordo com Hipócrates.

E partiu para as terras mouriscas.

Ao regressar, já a notícia da morte de Filipe parecia uma antiguidade. E os guardas não o deixaram transpor o portão. O arquiduque Hipócrates não gostava de cruzadas e nunca se ausentava do castelo. Isabel não carecia de eunucos.

D. Filipe, no entanto, deixara um testamento. O arquiducado passaria às mãos de quem contraísse novas núpcias com a duquesa e mantivesse Platão como “eunuco de Isabel, por toda sua vida”.

Embora caviloso, o médico acatava leis e cumpria contratos. E aceitou conversar com seu comparsa. Se o testamento garantisse a este o direito de vigiar Isabel, só restava a ele, Hipócrates, partir em defesa do cristianismo ameaçado.

E leu e releu as últimas vontades do falecido Filipe XX, o Aspado. Não havia dúvida: Platão não poderia mais exercer vigilância sobre a duquesa. Ora, deixara de ser eunuco.

Assim, porém, não pensava Platão. O testamento dizia claramente que ele seria eunuco (guardião) de Isabel “por toda sua vida”.

Por toda a vida de quem? De Platão ou de Isabel?

No calor da discussão, os dois acabaram sem razão. Enfureceram-se. De ofensas verbais passaram a agressões físicas.

Finda a luta, os corpos jaziam em poças de sangue.

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (“Cinco Minutos”, de José de Alencar)


Cinco Minutos, assim como 'A Viuvinha', foram escritos no início da carreira do autor. Assim como os outros romances caracterizados pelo romantismo ingênuo de Alencar, esses dois não fogem à regra, são feitos aos moldes de folhetim, curtos, quase infantis. Têm como pano de fundo o Rio de Janeiro. Cinco Minutos faz parte da fase urbana do escritor.

Conta a história do casamento do autor com Carlota. No entanto, para o leitor, parece que está escutando uma história que não é para ele, já que Alencar dirige seu texto a uma prima. O leitor aqui é uma terceira pessoa, um 'voyeur' que fica entre José de Alencar e sua prima.

Ao mesmo tempo em que tenta levar o leitor a pensar que tudo é imaginário e faz parte das fantasias do autor, José de Alencar faz questão de narrar fatos verídicos da época, acontecimentos reais que marcaram o Rio de Janeiro no início do século. É tão minucioso nesse aspecto que até narra datas e horários etc.

Atualmente as histórias do autor romântico passam como que quase infantis e ingênuas para o leitor moderno. São narrações em que o amor sempre vence, decisões passionais de amantes, amor e amor e amor. À época, os folhetins eram lidos pelas senhoras burgueses. Exagerando-se um pouco na dose, poderíamos dizer que Alencar lembra remotamente, os livrinhos que embalam os sonhos de moças solteiras, no entanto não se pode deixar de dizer que sua escrita, linguagem, e modo estilístico são de extrema qualidade. Foi Alencar quem se dissociou do modelo português da escrita para definitivamente inaugurar o texto nosso, brasileiro.

Os livros Cinco Minutos e A Viuvinha falam sobre a vida burguesa. Suas personagens são personagens que, no fundo, representam o ideal acabado da vida burguesa, tropicalmente reproduzida na Corte brasileira. Em Cinco Minutos, o narrador-personagem está disponível, da primeira à última página, para satisfazer a todos os caprichos de sua imaginação. Sem compromisso profissional algum, o aspecto financeiro de suas peregrinações atrás de Carlota não chegam jamais a preocupá-lo.

Personagens

Protagonista
: Personagem redonda, também narrador, pois conta a história em 1ª pessoa, não é citado seu nome. A história gira em torno do amor que ele sente por Carlota e a sede que sente em revê-la e estar ao seu lado.

Carlota: Personagem redonda, antagonista no começo, porque ela mesma impede o personagem principal de encontra-la, pois pensa ter uma doença incurável e não quer faze-lo sofrer, mas logo se rende ao amor dele.

Personagens secundárias e planas
: A prima a quem a carta que contém a história é endereçada, a mãe de Carlota, o velho da canoa.

Enredo


Situação inicial:
O protagonista é um homem fútil que não sabe o que é paixão, e vive uma vida rotineira e melancólica. Carlota, menina adoentada de 16 anos, o ama anonimamente, seguindo-o em festas e nas ruas.

Motivo desequilibrador:
A história muda a partir do momento em que ele se atrasa cinco minutos e perde seu ônibus. Ao ter que tomar outro ônibus acaba encontrando Carlota, que não conhece fisicamente ou socialmente, mas que se torna uma obsessão em sua mente.

Clímax:
O momento culminante é quando ela revela sua identidade, sua doença e seu amor por ele, mas logo em seguida o abandona, deixando-o com a escolha de ir a se encontro e presenciar seus últimos dias ou esquece-la e não ver seu sofrimento.

Desfecho final:
A volta do equilíbrio acontece quando ela se cura de sua doença e eles voltam casados da viagem e se estabelecem em “uma linda casa, toda alva e louçã”, que fica fora da cidade e “vivem felizes para sempre”.
 
Espaço
A cidade do Rio de Janeiro, a cidade de Petrópolis, Minas Gerais onde eles se estabelecem no fim, além de vários países da Europa.

Ambiente
Calmo no começo e no fim. Doentio quando ele procura saber a identidade de sua amada e quando ele tenta chegar rápido ao Rio de Janeiro.

Tempo cronológico
A história que é narrada se passa no ano de 1857.

Tempo psicológico
O livro é todo em flashback, pois o narrador conta a história que se passou dois anos atrás. Ele infere no meio da narração suas reflexões sobre a vida, os costumes, suas vaidades e seus conhecimentos sobre as mulheres.

Foco narrativo
O discurso é direto, o narrador em 1ª pessoa dá aos leitores uma visão parcial daquilo que está sendo narrado, a visão dele. Ele conta a história do centro, pois ele é o personagem principal, fazendo uso de vários canais para se comunicar com o leitor, palavras, reflexões, sentimentos, ações, etc…

O livro é na verdade uma carta endereçada a uma prima, citada algumas vezes e usada na tentativa do narrador interagir com o leitor.

Fontes:
Algo Sobre
Cola da Web