sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 14

 

Contos e Lendas do Paraná - 13 (Curitiba: assombrações)


A LOIRA FANTASMA

Prestem atenção na história que vou contar...
Pois, este conto é de arrepiar!
É uma lenda famosa dos anos setenta...
E que até hoje faz sucesso e arrebenta!

Lurdes era uma loira muito bonita,
Que morava na cidade de Curitiba!
Certa noite, ao sair muito tarde...
Ela resolveu pegar um táxi sem alarde...

Mas, o taxista era um psicopata tarado,
Que estava muito perturbado!
Então, ele levou a loira para o matagal...
Estuprou e matou a pobre com todo o seu mal!

Mas, o que ele não sabia...
É que a loira pertencia...
A uma seita de magia!

Por isto, o espírito da loira ainda rondava...
A cidade como uma escrava!
Um mês se passou e o mesmo taxista...
Ainda trabalhava na estrada e na pista!

Ele estava trabalhando numa noite de chuva e de frio,
Que a todos causa um tremendo arrepio!
Então, uma mulher com capa preta e escura...
Pediu para que o táxi parasse de uma forma dura!

O táxi parou e a mulher entrou no carro com o rosto coberto...
No meio daquele caminho deserto...
Pedindo para o motorista seguir em direção ao Cemitério Municipal...
Com uma voz misteriosa e nada normal!

Chegando na rua nebulosa do cemitério...
A mulher disse ao motorista com todo o mistério:
“– Pode me deixar aqui, minha morada é um túmulo decente...
Mas, você gostaria que fosse diferente... “

O motorista então, falou:
“– Não estou entendendo nada...
Pare de brincadeira , pois já é madrugada!”
Então, a moça tirou o seu escuro véu,

Que mostrou o seu rosto de um jeito cruel!
A loira assim, falou:
“– Sou a mulher que você matou com loucura,
Que, agora, deseja colocar seu corpo numa sepultura! “

O motorista reconhecendo o fantasma...
Teve um ataque de asma...
E morreu asfixiado...
No seu carro, todo congelado!

Mas, o fantasma da loira continuou assustando vários taxistas...
Porém, sua alma nunca deixou rastros e nem pistas.
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O FANTASMA DA GRÁVIDA DA PRAÇA DA UCRÂNIA

Por favor, não se surpreenda...
Contarei mais uma lenda:
Em Curitiba, toda a sexta-feira...
Havia uma tradicional feira,

Na praça da Ucrânia...
Toda espontânea!
Mas, num inverno de gelar...
Bem numa noite sem luar...

Uma grávida passeava com o seu marido,
Fiel, amado e querido,
Pela feira da Praça da Ucrânia...
Numa sexta-feira espontânea!

Então, esta grávida bela...
Numa barraquinha cor de canela...
Pediu um sanduíche com mortadela!

Enquanto ela esperava o lanche ansiosamente...
Aconteceu algo que embaralhou a mente...
Das pessoas no local:
Um motoqueiro mau...

Desceu da moto e começou a disparar...
Tiros, bravamente, pelo ar!
Mas, ao ver o marido da grávida,
Que já estava toda pálida...

Este motoqueiro tentou acertar vários tiros sem paz...
Naquele pobre, assustado e indefeso rapaz!
Mas, alguns tiros atingiram a gestante...
De um jeito nada elegante!

Então, levaram a grávida para o hospital...
Porém, aconteceu algo mau:
A grávida faleceu...
No meio do breu!

Então, a partir daquele dia...
Começou a ocorrer algo com toda a agonia:
Toda a sexta-feira espontânea...
Bem na praça da Ucrânia...
Uma grávida...
Misteriosa e pálida...
Começou a aparecer de um jeito ruim,
Pedindo para alguém, bem assim:

– Sou uma gestante...
Faminta e nada brilhante!
Porque numa noite nada singela...
Eu tive uma morte nada bela...

E nem tive o meu último pedido...
Socorrido e atendido,
Que era comer um sanduíche de mortadela...
Numa barraca cor de canela!

Mas, como eu sei que você não é ruim:
Você poderia pagar um sanduíche para mim?
Dizem que toda a sexta-feira, de um jeito dolorido...
Ela aparece na Praça da Ucrânia e faz este mesmo pedido.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Marcos Rey (Celebridades instantâneas)


Talk shows servem até para vender  espanador giratório a pilha

Hoje em dia quem aparece num talk show dá uma pisada no hall da fama. Sai da sombra do anonimato. É como se o próprio Deus acendesse um spotlight. Aproveite, chegou a sua vez de brilhar!

Houve época em que nem escrevendo Os sertões se alcançava de pronto a celebridade. Carlos Drummond de Andrade, pouco chegado à autopromoção, apenas se tornou conhecido – não lido – pelo público já nos finais oitenta anos. Lima Barreto, o romancista de Clara dos Anjos, só passou a ser mencionado com maior frequência para eliminar a confusão que se fazia entre seu nome e o do cineasta Lima Barreto. Van Gogh, mesmo decepando a orelha para presentear uma namoradinha, ato romântico e original, permaneceu na obscuridade até o fim da vida e sem vender um único quadro.

As portas do sucesso atualmente são mais acessíveis. Podem ser transpostas em minutos. Chamam-se talk shows ou, em linguagem bárbara, programas de entrevistas na televisão. Segundo acabo de ler, chegam a vinte, apresentados em quase todas as emissoras, diariamente e nos mais diversos horários. É um gênero de espetáculo de baixo custo porque os entrevistados, doidos para aparecer no vídeo, naturalmente não cobram nada. Pelo contrário, muitos até pagariam.

Quem tem necessidade urgente de se promover, lançar produtos ou aparecer na telinha para provar que ainda não morreu – estou vivo e atuante, gente! – visita infalivelmente todos os programas do naipe. Nada mais eficiente para ser reconhecido na rua e em toda parte. Gente que nunca viu o entrevistado o cumprimenta com um largo olá. Os mais ousados arriscam: “O senhor estava ótimo ontem no Jô”.

Eu também tenho talento, preciso apenas de uma oportunidade para me destacar. É o sonho de muitos. E onde aparecer, para milhões e ao mesmo tempo, senão na televisão? Figurar nos talk shows é o único jeito de ficar conhecido instantaneamente e poder vender o seu peixe. Foi o que declarou o dono de um restaurante de frutos do mar...

Para os desconhecidos, conseguir ser programado num talk depende de relacionamento e boa dose de paciência. Uns esperam meses. Para os já conhecidos, mais preocupados em manter certa popularidade, é até relativamente fácil. O difícil é fazer cara convincente de que está no programa de seu querido entrevistador, preferido entre todos. E morrendo de saudade. Este, por seu turno, tem de fazer a cara certa de que se trata de uma entrevista exclusiva, única, fingindo ignorar que o convidado já compareceu no mínimo a três emissoras na mesma semana. Ontem mesmo esteve no programa do seu concorrente, aquele fofoqueiro, aquele vaidosão, aquele...

Quando o entrevistado, mesmo ignorado pela mídia, cai no agrado do auditório, o referido peixe está vendido. Lembro o espevitado autor de um espanador giratório a pilha, de duvidosa utilidade. O público adorou à primeira vista o curioso inventor: foi no seu papo solto, riu o quanto pôde. E aplaudiu frenético. Soube-se que vendeu milhares de espanadores giratórios, encalhados há anos.

Uma entrevista bem-sucedida resolve. O homem que promovia o reconstituinte leite de jacaré foi até bisado. Há também os que não querem vender nada, interessados somente na divulgação da imagem, na satisfação do ego. O conceito de muita gente dá saltos andinos após um cara a cara com Marília Gabriela ou um tapa no microfone do Jô.
Torno a lembrar Van Gogh, em vida o mais joão-ninguém dos gênios, o durango e biruta que pintava telas que hoje valem dezenas de milhões de dólares. Théo, o mano e protetor, após a dramática amputação, para salvar Vincent certamente recorreria aos programas de entrevistas, a última chance de sucesso artístico e equilíbrio mental.

Antes de exibir seus girassóis, talvez perguntassem ao pintor:

– Não querendo interromper e já interrompendo, o que você fez com a sua orelha?

Ou aprovassem:

– Sem orelha você fica uma gracinha, Van.

Ou se arrepiassem a ponto de não fazer a entrevista:

– Nossas estrelas comerciais entram agora e depois a gente volta.

Fonte:
Marcos Rey. Crônicas para jovens. Global, 2015. Edição digital.

Henriette Effenberger (Trovas Temáticas)

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SAUDADE
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Para falar de saudade
sempre se vai precisar
ter um pouquinho de idade
e coisas para lembrar...

Saudade de nossa infância,
saudade de tempos idos...
Saudade pela distância
dos nossos entes queridos.

Saudade de gargalhadas,
saudades da adolescência,
das noites enluaradas,
plenas de efervescência...

Saudade não é lembrança,
saudade não é sofrer.
Lembrança sem esperança,
isso ela pode até ser.…

A campa tão nua e fria
do morto desconhecido
recebeu a cortesia
de um ipê todo florido.

A saudade, envelhecida,
virou apenas lembrança
não dói mais como ferida,
pois já perdeu a esperança…

Na quietude da noite
onde até o silêncio dorme,
a saudade, qual açoite,
retalha o sonho disforme.

Nos meus momentos de insônia,
minha saudade acalanto
e ela, sem cerimônia,
repousa sobre meu pranto.

Pra espantar felicidade,
a maldade tanto fez
que se vestiu de saudade
pra machucar outra vez.

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DESTINO
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A vida que tenho agora
é apenas resultado
de escolhas de outrora,
de opções do passado...

Dizem que eu tive sorte,
que o destino me sorriu,
ao escolher o meu norte
todo caminho se abriu.

O que chamam de destino,
boa, má sorte ou maré
eu apenas denomino
fruto de trabalho e fé.

Sei que fiz o meu destino,
palmo a palmo, linha a linha,
nada veio repentino
nem tive fada madrinha...

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PAZ
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A paz nem sempre é perfeita,
esconde-se em descaminhos,
entre dores, fica à espreita,
como rosa entre os espinhos.

Paz: muitas vezes usada
para gerar tanta guerra,
palavra tão desgastada,
não a vemos cá na Terra.

Pedir paz é tão vulgar,
lugar comum, um clichê;
melhor mesmo é desejar
que a paz habite em você...

Viver na Paz do Senhor,
nos dizia a tia Sila,
só mesmo com muito amor
e com fé que não vacila.

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ESTAÇÕES DO ANO
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Bom seria cada dia
viver como a primavera,
trazendo luz e alegria,
pois o verão nos espera..

Na primavera me aninho,
sou colibri, beija-flor,
sou menina-passarinho
buscando por teu amor...

Gosto de verão “caliente”,
sol daqueles de rachar,
que aquece a alma da gente
e nos convida a amar.

Verão agora é assim
chove, chove, sem parar.
Essa água não tem fim,
parece o céu a chorar...

Às vezes penso que o outono
por vir depois do verão
é uma estação de sono,
de invernos que chegarão...

O  verão com sol brilhando
e um azul no céu sem fim;
no fundo está preparando
o outono que existe em mim...

Não gosto de tempo frio
nem daquele céu cinzento.
O inverno, eu avalio,
é um velho rabugento...
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Henriette Effenberger nasceu em Bragança Paulista-SP. Romancista, contista, memorialista, poeta, escreve também literatura infantil. Publicou, em 2002, em coautoria com Maria Dulce N. K. Louro, seu romance de estreia, A Ilha dos Anjos. Outros livros publicados: A aventuras do Superagora (infantil); SSAAM – 80 anos de acordes em harmonia; Aeroclube de Bragança Paulista – uma trajetória nas asas do tempo; Liga do Pico, Futebol e Pinga e Sindicato do Comércio de Bragança Paulista – 70 anos; Linhas tortas, em 2008, composto por contos premiados em concursos literários nacionais e internacionais, com apresentação de Ignácio Loyola Brandão, e Vida de Sabiá – o que sabiam os sabiás além de assobiar, vencedor do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil, editado em 2009, pela Fundação Cultural de Belo Horizonte. Em 2017, organizou a coletânea de contos: Horas partidas e a coletânea de contos e crônicas do Movimento Mulherio das Letras.

Machado de Assis (Vidros quebrados)


— Homem, cá para mim isto de casamentos são coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...

— Um casamento bom - emendou um dos interlocutores.

— Bom ou mau - insistiu o orador - Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...

Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo.

— Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio, desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dois anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinquenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro...

— Com a mãe?

— Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito, dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpas. Imaginem como fiquei! Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva, fazer uma estardalhaço, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi à Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...

Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite, porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu para a filha:

— Cabeça de vento! peste! Isto são coisas que se façam? Foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!

A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...

Três dias depois, Cecília foi convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.

Quando soube disto não fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes.

Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dois meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das coisas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraquejou: declarou que, ainda que o céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.

Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu procedimento.

— Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...

— Mas se ela não queria?

— Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?

— Muito bonita.

— Tanto melhor.

Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês. Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a Corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço.

Eu é que não me pude ter, corri a ver Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me respondeu ela.

— Tinha feito as pazes com a mãe?

— Qual! Ia casar com o filho viúvo do desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra talhada no céu?

— Mas as lágrimas, os vidros quebrados?...

— Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.

— É boa! Vamos à espadilha.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos. Publicado originalmente na Gazeta Literária, 15 out 1883.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 14

 

Caldeirão Poético LIV


Cláudio de Cápua
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

MOCIDADE


Lindo tempo o do sonho e da vontade!
Sem palavra, sequer, que bem o exprima,
o pensamento a erguer-se bem acima
da montanha da vida em claridade!

Tempo feliz da nossa mocidade
que a luz do amor e da ilusão sublima,
quando tudo nos prende e nos anima
ao fio e à teia da felicidade!

Não há quem não conheça, e, conhecendo,
não dê tudo de si para que nunca
deste tempo de paz vá se esquecendo.

Mágoas? Feliz de quem puder vencê-las,
e ver que a mão de alguém seus passos junca
de pérolas, de rosas e de estrelas!
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Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

O LUAR DE MINHA TERRA


Neste luar de minha terra vejo
matizes de saudade pelo espaço,
na evocação do meu primeiro beijo,
na timidez do meu primeiro abraço.

Este luar desperta meu desejo
e volto à juventude; e, passo a passo,
eis-me à beira do cais, no rumorejo
de um passado feliz que eu mesmo traço.

À tua espera, minha grande ausente,
pelo facho de luz que vem da serra,
vejo que surges como antigamente.

E, quando surges, neste mesmo cais,
revivem no luar de minha terra
noites distantes que não voltam mais.
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Colombina
(Adelaide Schloenbach Blumenschein)
São Paulo/SP, 1882 – 1963

ESSE AMOR...


Há um abismo entre nós. E apesar dessa falta
de ventura e de paz, nosso amor continua...
Cada dia é maior, é mais forte e mais alta
e imperiosa a paixão que em nosso sangue estua.

Longe de ti, meu ser emocionado exalta
em rimas de ouro e sol — cada carícia tua!
E em meu verso, integral, canta, fulge, ressalta
o infinito de amor que o teu nome insinua...

Não me podes amar como eu quisera. É certo.
Mas não existem leis, nem certidões, nem peias,
quando os teus olhos beijo e as tuas mãos aperto.

Tardas... Mas, quando vens, eu sinto que me queres,
que pela minha voz, pelo meu beijo anseias,
e sou a mais feliz de todas as mulheres!
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Elton Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994

LAVRADOR

Nem bem surgiu o rubro da alvorada,
nem bem a noite se aquietou no monte,
já vai o lavrador levando a enxada
e se perde nos longes do horizonte.

E, após uma exaustiva caminhada,
antes mesmo, sequer, que o sol desponte,
rega a terra querida e abençoada
o suor que lhe escorre pela fronte!

Os que tratam da terra todo o dia
e fazem do trabalho uma alegria
têm a chama divina dos heróis.

Há centelhas de luz nos seus destinos:
lavradores são deuses pequeninos
que, da terra e do nada, criam sóis!
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Jacinto de Campos
Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ

AS DUAS PALMEIRAS


Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balouçando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Mia Couto (O amante do comandante)


Vou contar vos o que se passou há muito tempo no sítio que antepassou este nosso lugarzito. Certa uma vez chegou à nossa aldeia um barco carregado de marinheiros portugueses. O navio não se afeiçoou à praia. Ficou ao largo, escondido nesse longe onde nascem os cacimbos. Os visitantes ficaram lá fechados, sabe se lá que fazendo. Até que, dias passados, do grande barco saiu uma pequena canoa que se aproximou da costa. Nela vinham três portugueses, enroupados e barbalhudos. Com eles havia a mais um preto, como nós. Não era da nossa gente mas falava nossa língua. Esse tipo escuro desceu e acenou um chamamento:

— Quero falar com as humanas pessoas daqui — disse ele.

E deu a seguinte mensagem: que o comandante do navio carecia de um homem urgente e imediato. Que serviço esse homem deveria executar? Serviço de amor, respondeu o tal preto que acompanhava os brancos.

— De amor?

– Sim, de amor carnudo, quer dizer, trabalho de rasga panos, espreme corpo, afaga suspiro. O povo tentou endireitar entendimento: que esse comandante necessitava era de mulher, dessas bastante cheias de polpa e sumo.

— Não, ele precisa é um homem.

— Um homem?

— Sim, um homem. Preferência, um que fale uma porçãozita de português.

— Mas, desculpa: um homem?

Porém, a delegação visitante já rumava de volta ao barco. Ficou se nessa dúvida: seria lapso do tradutor? Entregava se um masculino ou uma feminina? O caso era de séria maka. Das duas: ou era lapso do língua e mandassem um homem masculino isso seria motivo de castigo por parte dos portugueses ou, se o intérprete falara direito e então mandassem uma mulher polpuda, esperar se ia igual zanga. Não se queria ofensa com os brancos. E reuniram se os mais velhos, a acertar verbo com intenção. No final se consensou: o pedido tinha o sexo certo.

— Pediram macho, entregamos macho.

Haveria, sim, que lhe dar o devido e inadiável andamento. Não se queria desobediência com os tugas.

— Mas mandamos qual homem?

Os aldeões perguntavam-se. Até que um dos mais velhos opinou:

— Já sei, mandamos Josinda.

Mas sendo ela fêmea, já parideira e tudo...

Mulher, sim, mas tão pouco feminina que, às primeiras vistas, passava por homem. Sendo que estranha, masculosa e grosseira. Não fosse ela ter tido filhos nem se daria por ela ser, realmente, fêmea.

O mais velho autor da proposta sustentou a ideia. Josinda vinha mesmo a calhar, dourando sobre azul: ela era meio termo, carne e peixe, ambivolátil. Ainda por mais, ela falava a língua dos brancos.

— Nós mandamos Josinda com outro nome, raspamos os cabelos, vestimos lhe de homem. Pelos sins, pelos nãos.

Saiu um miúdo a correr com mandato de comparecimento da mulher quase homem. Encontrou a moça sereiando pelas praias, à procura do príncipe viúvo.

— Josinda, venha nas pressas: estás ser precisada com os brancos.

— Espera que vou puxar lustro nos meus panos.

— Nada disso, você vem assim mesmo, dessa forma.

— Mas assim com roupas de meu pai, pareço mesmo ele.

— Por isso mesmo. A propósito, você vai dizer que se chama Jezequiel.

— Jezequiel? Porquê Jezequiel, nome de macho tão feio?

— Os portugueses gostam muito desse nome.

Josinda se apresentou aos mais velhos. Eles ordenaram muito conselho, tudo em segredo, boca na orelha. Lhe sugeriram o fingimento dos modos, engrossar de maneiras. Por fim, ela se aprontou e se dirigiu ao barquinho dos portugueses. Falou com o marinheiro que vinha buscar a encomenda:

— Lhe gosto de ver nessa farda, luzidinha, o senhor soldado.

— Sou alferes.

— Desculpa, pensava que fosse militar. Me enganei, quem não se engana? O único que não tropeça é o pássaro que avoa no céu.

E lá foram, engolidos pela noite. Os velhos ficaram toda a noite acordados, receosos das novidades. De madrugada, entre o cacimbo, se vislumbrou o barco dos soldados.

— Então, como foi?

Josinda estava de pé dentro do barco, embrulhada nos panos, só os olhos espreitavam. Mas esses mesmos olhos se repletavam de água: a mulher chorava, coisa que nunca lhe fora vista na vida. E assim, em pranto, ela se afundou silenciosa na escuridão. Os velhos, assustados, se despediram dos portugueses, sublinhando nos respeitos.

Mais tarde, se fez a delegação junto à porta de Josinda. A curiosidade fervia: o que teria feito chorar a mulher? Bateram. Mas ela obstinou um silêncio.

Na noite seguinte, viu se aproximar um barco com soldados. O povo, receoso, em cachos, na praia:

— Vem nos matar a todos!

Mas os portugueses não puxaram de violência. Perguntaram por Josinda.

— O nosso comandante precisa outra vez desse Jezequiel.

E uns jovens foram mandados, súbitos, na demanda da desejada mulher. Chegaram a casa dela, explicaram as exigências. Mas Josinda negou, sacudindo a cabeça:

— Digam que não me encontraram.

— Mas os portugueses...

— Deixem-me.

A voz dela era um não, redondo, incontornável. Insistiram, ameaçaram, imploraram. Nada. Os jovens regressaram à praia, de mentira improvisada. Que desde manhã que ninguém punha as vistas no dito e cujo Jezequiel. Os soldados deixaram promessa: um prêmio caso o descobrissem. E a embarcação fez se de regresso ao navio, acabrunhada como um luto.

Na manhã seguinte, vieram dois barcos: os militares desembarcaram e se espalharam a vasculhar casas e matas. As gentes se contraíam, temerosas. Deram com a casa de Josinda mas estava vazia. Não sobrara rastro nem sequer vizinhança dela. Ao fim da tarde, terminaram as buscas e os soldados se remeteram ao grande navio. Ficou um português, encarregado de obter informação sobre esse mencionado amante do comandante. Começou por modos bravios. Que matava, incendiava, violava. Depois, se adoçou em promessa:

— Eu dou dinheiro a quem disser. Dou todo o dinheiro que quiserem.

— Todo!?

— É que vocês nem imaginam como sofre o nosso comandante. Nunca o vimos assim.

Era madrugada quando se viu desembarcar, despenhado e despenteado, o lusitano comandante. Saltou ainda em água, avançou para terra firme, aos berros tresdoidados. Indagava por Jezequiel, rondava em círculos, todo ele fora das órbitas. Depois, tombou em si, debaixo dos próprios ombros, esgotado. Ficou assim, nebulado e rócheo, durante longos momentos. À sua volta, os soldados aguardavam, indecisos. Passou-se um dia inteiro, sem água a ir nem a vir. Até que o militarão deu ordem: eles que regressassem ao barco, levantassem âncora e partissem.

— E o nosso comandante?

— Eu fico.

E ficou. Primeiro, junto às maresias. Depois, partiu pela savana à procura de seu amante de uma noite só. A última coisa que fez ao abandonar a praia foi empunhar um pequeno pauzinho e gatafunhar a areia. Ninguém ali sabia decifrar aqueles desenhos.

Mas um soldado português que ainda regressou à praia admirou-se de ver escrito no chão: Josinda.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 18

 1º. lugar na Categoria Soneto do  11º Concurso da Academia Madureirense de Letras – 2022

Silmar Böhrer (Croniquinha) 62


Nas horas serenas das manhãs surgem as ideias bem-vindas, benditas, benfazejas, com odores e sabores de pão quente vindo do forno em brasa. E as saboreamos, e as degustamos, e as disseminamos. Mas muitas vezes acordo com o monjolo dos pensares batendo e batendo, gastando águas do pensamento - letrinhas e palavras ficam ali no reservatório sem se encontrarem, fazendo aquele redemoinho que leva a nada - - falta adubo, estrume ou inspiração ?

Pois esta alternância de pensar e escrever - ideias opíparas, ideias vazias - faz parte da história da escrita, da história dos saberes, da história da vida. Os condimentos estão sempre à espera do prato principal para darem a este o gostinho do substantivo e do adjetivo ao alimento-texto que o leitor vai degustar.

Mas (sempre o "mas") quantas vezes os temperos sobressaem deixando o prato principal em segundo plano. Que não se perca o básico, que é o objetivo primeiro dos escreveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Giuseppe Paolo Dell'Orso - Feldman (Viagem ao Mundo Fantástico da Babilônia)


Onde? Filme? No Brasil? Onde fica? O que tem de fantástico?

Mas, que você, caro leitor, ficou curioso, com certeza ficou e, apesar de livros como o Guia dos Curiosos ou o Mundo Curioso da Natureza, sempre vem à mente aquilo que nossos pais, os pais deles, os pais dos pais, e assim por diante, diziam: “Meu filho! A curiosidade matou o gato!”.

Fique tranquilo! Após esta leitura, ninguém morrerá, nem de raiva – pelo menos, eu acho.

Nossa história de passa em uma cidade do interior de São Paulo.

Não! Ela não se chama Babilônia!

O nome dela é Piracicaba.

Todo mundo lembra da música “O Rio Piracicaba...” e assim por diante. Se não lembra, não fique chateado, eu também não lembro.

Mas, vamos diminuir a nossa esfera localizacional (“êta” palavra chique, que deixa qualquer um mais perdido do que cego em tiroteio), e vamos para a Rua Boa Morte.

Gente! Os piracicabanos que me perdoem, mas um nome deste é assustador. Eu é que não vou passar nesta rua, sozinho, à meia-noite. Dá o que pensar um nome assim.

Quando você entra na rua deveria haver uma Agencia de Plano Assistencial Boa Morte, com direito a escolha de terreno e advogado para efetuar o testamento. Percorrendo a rua, no meio dela, uma casa funerária e ao final, um cemitério.

- Ô, cumpadi. Pronde ocê vai?

- Prá  Boa Morte.

- Pêsames, finado.

Vamos lá! Pensa um pouco! Um nome destes! Cruz Credo!!!!!

Será que o Bairro se chama Pé na Cova?

Bom! Deixemos estas elocubrações de lado e que sendo boa a morte, resolvi aproveitar a boa vida e fui a um restaurante me fartar no pecado da gula (esta é uma Boa Morte: Comendo bem).

O restaurante chamado Babilônia. Não sei não. Talvez Sodoma e Gomorra casasse mais com o nome da rua. Mas, Babilônia dá um ar de paraíso na Boa Morte.

Entremos neste Éden de delícias, que é comandado pelo César italiano de nome Andrea.

Mas, para não pensarem que eu estou fazendo propaganda do dono que é o Andrea, nascido na Itália (uma duvida fica de repente: Babilônia é colônia italiana?), não vou chama-lo de Andrea, usarei um nome fictício que faz jus aos nomes italianos de seus antepassados. Portanto, Andrea, passa a ser chamado de Toshio Nakama. Portanto, Babilônia é comandada pelo valoroso carcamano Toshio Nakama, que veio da Itália, não recordo bem, mas acho que nas costas de uma tartaruga.

Imagino que seja, pois demorou tantos anos para chegar aqui no Brasil.

Ecco! Tutto bona gente!

Enfim, após a saudação habitual pro-forme: “Ave, Toshio. Os que vão morrer te saúdam”, o banquete estava servido. Uma mesa enorme com iguarias finas dos mais profundos rincões das Itália: feijão, linguiça, palmito, tutu, lazanha. Resumindo, uma salada russa.

Como o leitor pode perceber, nosso amigo Toshio Corleone não discrimina nações.

Mas, o que torna este restaurante fantástico, o que faz viajarmos na Babilônia de nossos sonhos é o molho que é servido por um indivíduo que é uma mistura de Corcunda de Notre Dame com o ator Jean Reno, isto é, é de dar pena, parece uma trombada de dois trem-bala. Este molho, se chama Righetti.

E o bacana de tudo é que quando as pessoas vão lá, vão para comer o Righetti.

- Porque você vai tanto no Babilônia?

- Adoro comer o Righetti.

Vão lá! O Righetti é fantástico!

Concomitantemente (êta palavra linda, e enooooooooooooooorme. Não sei bem o que significa, mas que é bacanona é!), depois que todos comem o Righetti, Toshio Nakama percorre as mesas observando a todos e animando com o seu bom-humor. Afinal por lá tudo é bom. Bom apetite, bom humor, boa morte...ahhhh! A Boa Morte outra vez!

Todos que saem de lá se sentem transportados aos Jardins da Babilônia, um paraíso perdido, ainda mais porque comeram o famoso Righetti.

Finalmente, para não encerrar sem uma boa mensagem a quem suportou esta crônica até agora, não recordo onde li, mas vamos lá:

“O discípulo veio ao mestre Zen, lamentando-se, em plena fossa:

- É curta a vida! É curta a vida!

O mestre Zen, porém aproveitando as mesmas palavras, com variante na pontuação, solucionou:

- É curta a vida, é? Curta a vida!”
------------------------

Observação: O Restaurante Babilônia onde Toshio Nakama me aguarda todos os dias com um machado na mão (não sei porquê), fica na Rua Boa Morte, 1262, em Piracicaba. Não esqueçam de dizer que querem comer o Righetti.

(outubro 2009)

Ruy Barata (Pará Poético)

Foto do poeta do Acervo da Família

ARTE POÉTICA


Ah o ofício,
as contorções da espera,
entre a noite e a madrugada!
O litúrgico olhar abre cortinas,
o anjo adormeceu,
dança arbitrária
a minha barba de duzentos anos.
Quem poderá restituir-me intacto ao mistério
com o perfume de rosa não tocada?
Quem senão tu,
cântaro e fonte,
abrigo,
terra e pátria onde se esconde
a negra cicatriz que o peito ostenta?
Eis porque espero
(entre a noite e a madrugada)
para que salves
ou lances no infortúnio
o litúrgico olhar que em nova busca
apodrece sob o sol do desespero.
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FOI ASSIM

Foi assim,
como um resto de sol no mar,
como os lenços da préamar,
nós chegamos ao fim.

Foi assim,
quando a flor ao luar se deu,
quando o mundo era quase meu,
tu te foste de mim.

“Volta, meu bem”, murmurei.
“Volta, meu bem”, repeti.
“Não há canção nos teus olhos,
nem amanhã nesse adeus!”

Horas, dias, meses se passando
e, nesse passar, uma ilusão guardei:
ver-te novamente na varanda,
a voz sumida e quase em pranto,
a murmurar “meu bem, voltei”.

Hoje essa ilusão se fez em nada
e a te beijar outra mulher eu vi,
Vi no seu olhar envenenado
o mesmo olhar do meu passado
e soube então que te perdi.
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BRAÇOS DE SEDA

Ontem,
quando a morte passou
carregando meu corpo,
não sei se para o céu,
ou qualquer outro porto,
onde houvesse lugar
para um filho de Ogum,
eu vi que havia luz e madrugada
e um solo de canção desesperada,
nos olhos da mulher que não me amou.

Ontem,
quando a morte passou,
lá no bar onde bebo,
e como linda Inês,
posta em sossego,
em seus braços de seda me tomou,
senti que a vida inteira me fluía
e que a triste canção que eu perseguia
jazia na mulher que não me amou.
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ANJO DOS ABISMOS

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho
que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes,
meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei
os limites do eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados
pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir
a Sua presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no limitado céu da poesia.
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HELENA

Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.

De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.

E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa Helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia.


Filemon Martins (Tragédia no Jordão)

Poucas pessoas conhecem e alguns moradores da região não se lembram desta história. Nem sempre com um final feliz, como gostaríamos. Essa é uma delas. Mas o pesquisador deve registrá-las, sob pena de alguns fatos se perderem no tempo.

Não deixar que isso aconteça é a missão de quem escreve.

O rapaz viveu boa parte de sua vida na cidade de Jordão. Não se casou, mas ali trabalhava na lavoura plantando e colhendo milho, feijão, mandioca, além de frutas como mamão, romã, mangas de várias espécies, limão, laranjas, melancia, abóboras e outros legumes.

Com o passar dos anos o José foi acometido por uma doença mental, de tal forma que ele já não suportava conviver na cidade. Não queria mais contato com seres humanos. A família, mais conhecida como os "Bruarcas", então, começou a buscar uma solução para driblar a situação delicada que o destino lhe impôs.

É que a população da pequena cidade quando se referia ao moço, chamavam-no de "Zé doido", o que causava mais constrangimento à família.

Construíram, então, uma casinha na roça, propriedade da família, onde o moço poderia morar e trabalhar na lavoura, sem a importunação de curiosos e pessoas de má índole. Assim, o rapaz foi morar afastado da cidade e do contato com pessoas para ele estranhas. Só alguns familiares o visitavam para levar-lhe comida e limpar a casa, eventualmente.

Mais de trinta anos se passaram e a vida do moço, agora já idoso, continuava naquela rotina. Ele não via, nem conversava com ninguém, a não ser alguns familiares que cuidavam dele dentro do possível. Enquanto isso, a cidadezinha saiu da escuridão total e passou a ter luz elétrica das 19h às 21hl0min no máximo. É que essa luz era gerada por motores elétricos. Aliás, é bom lembrar que todas as cidades da região tinham esse tipo de iluminação. Por volta de 21h5min havia o primeiro sinal.

A luz piscava e os moradores já se preparavam acendendo os candeeiros para iluminar as casas. 21hl0min a luz apagava literalmente e a escuridão nas ruas era total.

Quem saía às ruas depois desse horário, usava obrigatoriamente uma lanterna. Era um festival de luzes indo e vindo pelas ruas e praças da cidade, como se fossem vaga-lumes a iluminar a escuridão da noite, A mais próxima Usina Hidrelétrica era de Paulo Afonso. A Usina Hidrelétrica de Sobradinho foi construída muito tempo depois, quando a região do Sertão foi finalmente contemplada. No mês de junho tradicionalmente de festas no calendário católico, 13 de junho - Santo Antonio, 24- São João e 29 - São Pedro, alguns rapazes decidiram entre si, por brincadeira, trazer o "Zé doido" para rever a cidade e de alguma forma participar dos festejos que se realizavam na cidade.

Assim se fez e o Zé estava extasiado com o crescimento da cidade, quando entrou a noite e as luzes se acenderam, foi aquela aclamação do povo. Enquanto isso, o Zé andava pra lá e pra cá pelas ruas da cidade, e acabou se distanciando do grupo, no momento em que as luzes se apagaram. Sobreveio a escuridão e o Zé perdido, desnorteado, pervagava pelas ruas sem saber para onde ir. Corria e andava de um lado para outro, já adentrando roças, pulando cercas, atravessando pastos e acabou se dirigindo, sem saber, para os lados de uma cacimba com alguma profundidade, anexa à Lagoa, ainda hoje existente, e ao pular mais uma cerca caiu naquela cacimba funda, onde se afogou, sem que ninguém o visse e pudesse salvá-lo. O que era brincadeira tornou-se sério e o Zé ficou desaparecido naquela noite. O corpo só foi encontrado no outro dia, quando o pessoal descobriu rastros e se deslocou para o local da cacimba, onde o corpo estava boiando. Seu sepultamento ocorreu no cemitério local.

Assim terminou a vida do "Zé doido", aqui na terra, por culpa talvez de uma brincadeira que acabou mal, como tantas outras que conhecemos ao longo da vida...

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 03

 

Aparecido Raimundo de Souza (Quando as águas do nosso rio interior viram mar?)

A TERRA É COMO o barro. E o barro é encosta, morro e nuvem e é também céu. Deus é o Soberano Espírito como é amor e amor é algo como Deus: não morre nunca, é eterno, sagrado, reluz e resplandece. Celebra em nosso corpo uma concretude interrelacional que é a alma e o espírito fundidos num só corpo e inseridos harmoniosamente no planeta em que vivemos. O título acima é por demais sugestivo e nos leva a questionarmos a nós mesmos. E mais que isso, a nos fazer pensar: quando as águas do nosso rio interior viram mar? Basta estarmos em paz. Melhor dito, deveríamos todos estar em paz.

A paz nos renova, nos conforta, nos reanima. Faz com que todos vivamos em sintonia meridiana com a Natureza. Cultivar a Natureza é agricultar (1) a graça e hortar (2) a graça é ter a quietude e a mansidão para um trilhar e um caminhar prósperos. Elevar o espírito à patamares nunca visitados nos acarreia (3) para bem longe das intempéries, Por conseguinte, não deveríamos ser prolixos, nem nos deixarmos vencer pelos muitos vícios que nos arrastam para o buraco. O buraco, às vezes é raso. Em outras, nos deixa aprisionados e sem volta. Precisamos acreditar piamente num amanhã melhor. Um porvir que revigora.

O simples acreditar, nos fortifica, nos consola e nos vitaliza por dentro. Sem mencionarmos o fato de que edificados por dentro, tudo se torna menos mal e proveitosamente mais saudável. Abonarmos de coração aberto e com Fé naquilo que está por vir, faz com que todas as coisas sejam possíveis e querençosas (4), aprazentes (5) e alcançáveis, bastando apenas que lutemos com perseverança e afinco, força de vontade irrestrita, e, sobretudo, obstinação incondicional. A teimosia (ou repetindo, a obstinação) e a contumácia, precisam ser esmeradas e literalmente obcecadas. O amor é por excelência, a ponte fixa e indestrutível que nos levará ao sucesso, que nos unirá ao futuro e, via igual, afastará de nossas vidas as horas más e repletas de melancolias.

Não existirá nada rotulado de “ruim” ou de “péssimo” para o nosso corpo, se não quisermos, assim como não criará vida as perniciosidades, se estivermos abertos somente para as “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS”. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” estão ao nosso redor, quase nos atropelando. Carecemos, sem mais delongas, afastar o que nos tira o tino, a rota, a bússola, enfim, tudo que atravanca e que, de alguma forma, direta ou indiretamente nos distancia do foco e nos impede de agarrá-las pelos cabelos. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” precisam, ou melhor, devem ser agarradas pelos cabelos.

Mesma linha, sem nós ou amarras, deveremos abrir agora, nesse momento, todas as portas e escancararmos as janelas do mais profundo da alma para os fluídos renovadores que vêm do espaço, objetivando que eles se acheguem e em nós façam morada. A nossa alma é a morada do Pai Maior. É a segunda Casa do Altíssimo. Para que tal milagre se faça concreto, basta unicamente que saibamos destravar as Entradas do Universo pessoal que está presente em cada um de nós, deixando que eles entrem e se espalhem e não só espalhem, ESPELHEM o que o Criador de todas as coisas nos deu e continua nos ofertando de presente, de grado vivificante, a cada novo amanhecer, sem nada, absolutamente nada, nos pedir em troca.
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Notas de rodapé:
1 – Agricultar – Trabalhar com agricultura. No sentido do texto, cultivar a graça.   
2 – Hortar – Lavrar a terra, preparando o chão para qualquer tipo de plantação
3 – Acarreia – Outro modo de dizer conduzir ou mostrar o caminho a ser seguido.
4 – Querençosas – Tudo aquilo que se torna benévolo, afetivo ou benigno.    
5 – Aprazentes – Coisas agradáveis que deleitam ou satisfazem.


Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 8 -


CINDERELA

"Como o lírio entre os espinhos é minha amada entre as donzela."
(Ct. 2.2)


Há tanto desengano que me intriga,
Que, não poucas vezes, me castiga
Sem nenhuma piedade.
Meu refrigério de consolação
E saber onde está meu coração,
Por quem vale a saudade.

Como posso viver sem esse amor?
Só nele encontro todo meu vigor
E paz na solidão.
És a minha princesa desejada,
Encantos raros de afetuosa fada,
Grande amor e paixão.

Busco-te muito! - Almejo teu olhar,
Que, apaixonado, amor quer encontrar
Pra saciar seus desejos...
Do meu caminho clara luz, vem logo!
Não mais demores! Escuta meu rogo!..
- Terás milhões de beijos.

Beijos de cavalheiro apaixonado,
Beijos ternos de um príncipe encantado
Por sua princesa bela.
A vida é breve! Veloz é o tempo!
Em pensamento, eu sempre te contemplo,
Ó minha Cinderela!
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DÁDIVA DE AMOR
"O perfume das tuas vestes é como o perfume do Líbano."
(Ct 4.11)


Pra você, meu amor, mais este dia...
Que ele seja repleto de poesia...
Da primavera dou-lhe seu sorrir
E dos jardins, canteiros a florir.

Pra você, meu amor, todo perfume...
Da mais brilhante estrela dou-lhe o lume;
Aos seus pés, com carinho, quero por
Tudo o que vá lhe dar muito louvor.

É certo que das flores a fragrância
É menor que o aroma da elegância
De você recendendo, sem cessar,
Enchendo de perfume todo o ar.

O brilho, eu bem sei, do seu olhar
É capaz de uma estrela ofuscar;
Mas o que lhe ofereço, com ardor,
É tão-somente amor e mais amor.
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Lume: Luz, clarão, brilho.
Fragrância: Cheiro suave, perfume, aroma.
Recendendo: Espalhando, emitindo, exalando (forte aroma).

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MEU SER
"o amor é a fortaleza que levanta sobre mim."
(Ct.2A)


Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.

Amo-te como ninguém na vida,
Quero-te tanto, bem mais que ao mundo
Esta semente, n'alma nascida,
Cresceu, cresceu - é o amor profundo.

O amor é imenso e arde em minh'alma,
Mas é, contudo, meu lenitivo;
És o que tenho - minha doce palma -
E isso é o tudo pelo que vivo.

A vida é bela te amando assim,
Na luz do dia, sonho feliz;
Quem dera ter-te bem junto a mim,
Daquele jeito que eu sempre quis.

Em cada hora deste meu tempo,
Nestes minutos do meu viver,
Eu peço às nuvens, imploro ao vento:
Daqui me levem, lá está meu ser!

Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.
= = = = = = = = = = =
Lenitivo: Conforto, alívio, consolação.
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O SUPER -HOMEM
"És toda bela, minha amiga, em ti não há mancha alguma." (Ct. 4.7)

Quisera ter feroz força do leão
E o rugir impetuoso do trovão,
Que apavoram, de vez, a natureza;
Na verdade, eu seria um super-homem,
Que haveria de ter grandioso nome,
Só para proteger-te, com certeza.

Quisera ter a cauda da baleia
E ser o teu escudo, ó sereia,
Que me atrai com o timbre da tua voz;
Dispensaria arpejos de instrumentos,
Teria meus ouvidos bem atentos
Somente pra te ouvir - te ouvir a sós.

Quisera ter do vento a rapidez
E te levar comigo, de uma vez,
Para o mistério espacial estrelado;
Bem longe deste mundo, sem preceito,
Terias vida longa, em novo leito,
E o imenso amor de eterno namorado.

Na galáxia, só feita de quimera,
Contigo, meu amor, eu bem quisera
Criar indescritível paraíso;
Meus olhos, co'a visão do teu fulgor,
Veriam a grandeza deste amor,
Estampada na luz do teu sorriso.
= = = = = = = = = = =
Sereia: Fig- Mulher sedutora.
Timbre: Marca, sina, qualidade de voz.
Arpejos: Modulação prolongada, sucessiva e rápida, dos diversos sons de um compasso num instrumento musical.
Preceito: Regra de proceder, ordem, prescrição.
Quimera: Ilusão, fantasia, ideia sem fundamento.

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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (O Ladrão)

Quem lê os jornais desta capital, tem a impressão de que a arte que mais tem progredido, é, no Rio de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são, realmente, aqui, tão numerosos e frequentes, que se fica supondo, ao examiná-los, que os nossos gatunos são homens inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto da população.

O caso não é, entretanto, este. Os gatunos não progrediram, não acrescentaram uma página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira. O que sucede é coisa diferente: a população ingênua, ou incauta, foi que se tornou mais incauta ou mais ingênua tornando, assim, mais fácil do que outrora, a infração do sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio é, mais ou menos, uma viva demonstração dessa verdade.

Funcionário policial de uma argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de Oliveira era apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não conhecesse. O seu faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia digna de Sherlock Holmes, constituía, pode-se dizer, o melhor elemento de repressão de que, até hoje, dispôs a policia.

Certa noite, porém, ao entrar, de regresso da ronda, na sua própria casa, ouviu Francisco Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria coragem, galgou, três a três, os degraus da escada, até que observou, espantado, que o visitante noturno se havia homiziado no seu quarto de dormir. Ao abrir o compartimento sofreu, no entanto, uma decepção: a única pessoa que ali se achava era D. Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem saber do que se tratava.

O faro policial é, felizmente, uma virtude que se manifesta contragosto, mesmo, de quem a possui. E assim foi que, sem custo, Francisco Ambrósio descobriu, impondo silêncio com o dedo indicador estirado sobre os lábios, que havia um gatuno debaixo da cama.

- O gatuno está ali debaixo! - rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.

E em voz alta, arrancando o revolver do bolso traseiro da calça:

- Quem está aí?

D. Luisinha tremeu, pela sorte do marido.

- Quem está aí? - gritou, de novo, o comissário.

E ia perguntar pela terceira vez. quando a moça, temendo que o ladrão lhe saltasse sobre o esposo, segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a para fora do quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:

- Deixa disso, Francisco. Ele, que não responde, é com certeza, porque não é conhecido...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

domingo, 18 de setembro de 2022

Adega de Versos 91: José Antonio Jacob

 

Nilto Maciel (Lampião à Italiana)

Ruggero Figini descobriu o Brasil em 1974. Desembarcou na Bahia e logo tratou de conhecer o Pelourinho. Porém queria muito mais que acarajé e candomblé. Cobiçava um papel no filme Dona Flor e seus dois maridos. De preferência o de um deles. Procurou Bruno Barreto. Talvez estivesse no Rio de Janeiro. E Sônia Braga? Ninguém sabia dela.

Lembrou-se do tempo das filmagens de I Girasoli. Nunca esperara ser trocado por Mastroianni. Desesperou-se, arquitetou escândalos. Imaginou até uma agressão física a De Sica.

Desde menino Ruggero sonhava nos braços das mais belas mulheres da Itália. Um dia ainda contracenaria com Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Monica Vitti, Virna Lisa. E ainda escolheria o diretor. Fellini com fulana, Visconti com sicrana, Antonioni com beltrana. E alcançaria o Oscar. Mais de um. Seria famoso no mundo inteiro.

No entanto, os anos se passavam, as atrizes envelheciam, e só lhe sobravam pequenas atuações em filmes medíocres.

E por que não se fazer cineasta? Tudo dependia de encontrar um belo roteiro. Logo alcançaria a fama de Rosselini, Pasolini, Bertolucci. Fossem para o inferno Arnaldo Jabor, Bruno Barreto, Cacá Diegues e todo o alfabeto do cinema brasileiro. Sim, iria dirigir um filme monumental: a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Em italiano o título seria Il Lampione.

Restava encontrar o roteirista. E por que não o já velho amigo Airton Acaiaca? Até porque Airton e Virgulino haviam nascido no Ceará. “Não, Ruggero, Lampião não era cearense. Nem Airton. E onde nascera o roteirista? “Dizem que é mineiro, se não for baiano”. O italiano concluiu: “Melhor assim. Filmaremos em Canudos”. E pôs-se a falar de Antonio Conselheiro.

Para Ruggero, o Lampião do roteirista mais parecia um gângster, um Al Capone. E terminaram se desentendendo. O cineasta chamou Airton de incompetente. Não conhecia a História de seu próprio povo. O brasileiro também não se conteve: “Aventureiro, ator fracassado, impostor”.

Dias depois dessa rusga Ruggero Figini regressou a Roma. Não levava nada, a não ser o roteiro de Acaiaca.

Il Lampione alcançou enorme sucesso na Europa. Não teve, no entanto, a direção de Ruggero, que preferira vender o roteiro a um produtor cinematográfico.

Uma fortuna.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLVII

INSÔNIA

 
MOTE:
Na mais estreita amizade,
sem a menor cerimônia,
à noite, tua saudade
vem deitar com minha insônia!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Na mais estreita amizade,
numa amizade tão pura,
unem-se à minha ansiedade
lembranças só de ternura.
 
E a saudade, de repente,
sem a menor cerimônia,
se coloca em minha frente
como conselheira idônea.
 
Revivo, então, na verdade,
velhos dias de alegria...
À noite, tua saudade
vem me fazer companhia...
 
Sentindo-me, assim, amado,
numa beleza-fitônia,
tua saudade, ao meu lado,
vem deitar com minha insônia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

   ... SE MORRESSE A SAUDADE?
 
MOTE:
... E se morresse a saudade?
Fatalmente eu morreria...
Pois, é esta doce maldade
o alimento do meu dia!
Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:

... E se morresse a saudade?
O que seria de mim?
Acho que a fatalidade
seria mesmo o meu fim!
 
Se a saudade fosse embora,
fatalmente eu morreria...
pois com ela, sem demora,
iria junto a alegria!
 
Amo a saudade, é verdade,
ela faz bem a minha alma,
pois, é esta doce maldade
que me faz feliz e acalma!
 
Hoje, são as esperanças
que mantêm esta utopia...
São minhas doces lembranças,
o alimento do meu dia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

   POETA FINGIDOR
 
MOTE:
O poeta é um fingidor
finge tão completatente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

GLOSA:

O poeta é um fingidor
e tem emoções de artista;
nos seus olhos só de amor
há um fingimento altruísta!
 
Se está triste de verdade,
finge tão completamente,
que mostra felicidade,
sem nem mesmo estar contente!
 
Suspira sem sentir dor,
ou chora e a sente gemendo,
que chega a sentir que é dor
aquela  dor que está tendo!
 
Segue, assim, no seu fingir,
num fingir tão inocente
que,  às vezes, chega a sentir
a dor que deveras sente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

   SEGUNDA VOZ
 
MOTE:
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:

A vida pôs, por maldade,
entre nós dois, um adeus...
e nessa triste verdade,
marejam-se  os olhos meus!
 
Eu não consigo aceitar
tanta distância entre nós,
quero e preciso sonhar,
pois nos tornamos dois sós!
 
A nossa realidade
é tão triste, tão sem fim,
que, quando eu canto, é a saudade
que canta dentro de mim!
 
Meu canto é quase um lamento
e é essa saudade atroz,
cantando na voz do vento,
que faz a segunda voz…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

Sammis Reachers (Casemiro, O Profeta)

Impossível coordenar no mesmo período os termos Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro elemento que completa a equação: Profeta. Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro. Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam que tivera esposa, que aparentemente abandonara o coitado.

Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes completavam o arquétipo do eremita: shortões ou calças puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido. Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande, mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.

Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo bem que poderia ser confundido com um elemento antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no agreste do país. Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério que, ao menos para as crianças da época, o envolvia: Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador profundo, e dizia:

– Você não ia entender, garoto...

– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.

– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança. Sabe, eu vejo mundos...

– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.

– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para entender. São mistérios...

Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo. E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu feijão mágico em minhas terras férteis.

Pois bem, as primeiras experiências de mercar reciclagem de todos os moleques do bairro começaram com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos feministas de igualdade laboral, até meninas se apresentavam naquele entreposto para vender ferragens e garrafas!

Recordo de que era comum na época catarmos ferro e latas principalmente. Essas hodiernas embalagens plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E, como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia havia um lixãozinho a céu aberto.

Chegando diante do ferro-velho do Profeta, um ritual se estabelecia: Apanhávamos alguns soquetes bem pesados, feitos de barras de ferro, e nos púnhamos a amassar todas aquelas latas, uma barulheira infernal. Como o produto era pouco, pouquíssimo valorizado, e nossa carestia era grande, recorríamos a um subterfúgio que, acredito, sempre foi e ainda é praticado em todo o grande mundo: Colocar pedras dentro das latas para que, depois de amassadas, seu peso aumentasse. Ah, doce esporte!

Mas tal subterfúgio nem sempre redundava em logro: Se Profeta, apanhando uma das latas a esmo e a balançando, percebesse o engodo, mandava recolher todo o conteúdo que já estava em sua balança e “ir vender em outro lugar”. Era preciso apuro para amassar bem amassadas as latas com pedras, e não colocar pedras em todas, é claro.

Certa feita, a engenhosidade maléfica de Renato teve uma inspiração, um insight criativo, o qual ele comunicou a uns cinco ou seis moleques da rua. Acontece que a casa de Profeta era protegida não por um muro de alvenaria, mas por um emaranhado de chapas de lata, arames e paus entrelaçados. Um quiprocó dos carambas, que lembrava até algumas obras de arte modernas que eu viria a conhecer. Mas, dentre aquele emaranhado muito bem urdido, Renato percebera uma lacuna. Sim, uma chapa de lata que, se corretamente forçada, daria entrada naquele quintal, ainda que fosse pelo menos a uma criança menor que nós.

O que se seguiu foi vergonhoso, mas julgávamos apenas estar empatando o jogo, pois as balanças de Profeta eram algo suspeitas de sempre “roubar para a casa”, ou a banca, outra prática de universal valência...

Toda noite, íamos até aquele ponto da cerca e, forçando silenciosamente a lataria, embutíamos um dos pequenos para dentro – em geral um dos irmãos menores de Renato, Aguinaldo (“Guinaldo”) ou Ricardo (“Cado” ou “Cadim”). Os pequenos safardanas então surrupiavam o que podiam – garrafas e garrafões, pedaços de alumínio que porventura Profeta houvesse esquecido “do lado de fora”, já que os materiais de mais valor eram guardados dentro de casa, e até ímãs. E, no dia seguinte, lá íamos nós... revender as peças para ele mesmo, Profeta.

Lembro que nos regozijávamos com aquilo, acreditando sermos os maiores malandros de todo o orbe terrestre. Dinheiro fácil e justiça, a desejada justiça, feita contra aquelas balanças viciadas em infidelidade!!!!

Mas a alegria durou pouco. O velho, mesmo com todo aquele traquejo de lelé da cabeça ou doidivanas, certo dia nos disparou, na lata:

– Ei, esse ímã aqui não é meu, não?

Antes que pudéssemos negar, o raciocínio daquele misantropo correu rápido como numa visão, e ele imediatamente associou todas as nossas vendas dos dias anteriores a desfalques – agora ele entendia – em sua própria firma.

O resultado: Além de perdermos a carga que fôramos levar naquele dia, ficamos proibidos de ali comerciar por um bom tempo. E o buraco na cerca, ah, o velho encontrou e tapou no mesmo dia!

Com o tempo, o pobre do Profeta foi diminuindo as atividades, e por fim vendeu a parte da frente de seu terreno para um indivíduo que lá construiu sua casa. Ficando ainda mais isolado, pois sua casa agora ficava “escondida” no terreno dos fundos, ali Profeta faleceu, sozinho e misterioso como sozinho e misteriosamente vivera boa parte de sua vida.

Saudades de Profeta, de suas broncas, seu jeito irritadiço, e das muitas risadas que pude dar com aquele simpático, sim, simpático velhinho ranzinza. Velhinho que, além de me ensinar sem querer a exercitar a imaginação, me dera os rudimentos práticos do ofício de catador: saber diferenciar “metal” de cobre, antimônio de “bloco”, ferro de aço e por aí vai...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.