quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Machado de Assis (O Lapso)


E vieram todos os oficiais... e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa súplica na tua presença.
                                               JEREM. XLII, 1, 2.

Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos, e outras muitas coisas, que o recomendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.

No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções, vereador da câmara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguém a tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição afirma que este nosso concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço: e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.

Mas então...? La vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do beco das Cancelas (a procissão descia a rua do Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.

— Que é que me pode acontecer? dizia um deles. Se brigar comigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode continuar assim.

— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importância dos outros? E as minhas cabeleiras?

Este era um cabeleireiro da rua da Vala defronte da Sé, que vendera ao Thomé Gonçalves dez cabeleiras, em cinco anos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passara inteiramente; eles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabeleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um sinal para cair em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniência de meter na conjuração o Mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só a ele devia o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. Nisso estavam, quando por traz deles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das varas do pálio.

— Que tem isso? interrompeu o médico; ninguém lhes diz que está doente dos braços, nem das pernas...

— Do coração? do estômago?

— Nem coração, nem estômago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negócios altamente especulativos, que não podia dizer ali, na rua, nem sabia mesmo se eles chegariam a entende-lo. Se eu tiver de pentear uma cabeleira ou talhar um calção — acrescentou para os não afligir, — é provável que não alcance as regras dos seus ofícios tão luteis, tão necessários ao Estado... Eh! eh! eh!

Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embasbacados. O cabeleireiro foi o primeiro que falou, dizendo que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no proposto de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguém por eles, reflexionou o cabeleireiro, não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fel-a sua cosendo-lhe este babado: — Pague e cure-se.

Não foi dessa opinião o Mata-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propôs que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idôneo. Convidaram então outros credores a um conciliábulo, no domingo próximo, em casa de uma D. Aninha, para as bandas do Rócio, a pretexto de um batizado. A precaução era discreta, para não fazer supor ao intendente da policia que se tratava de alguma tenebrosa maquinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a iluminação publica só veio a principiar com o vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliábulo um rasgo pitoresco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta— e não eram todos.

A teoria de Chá. Lama acerca da divisão do gênero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliábulo do Rócio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com efeito, o ar abatido ou aflito daqueles homens, o desespero de alguns, a preocupação de todos, estavam de antemão provando que a teoria do fino ensaísta é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas, — a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado,— a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, “the open, trusting, generous manners of the other”. Assim que, naquela mesma hora, o Thomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e galinhas que comprara fiado; ao passo que os credores estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarelo, algum meio de reaver o dinheiro perdido.

Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espíritos. Uns inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidários deste parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os servos do medo e da esperança. O cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que moléstia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Mata-sapateiro:— “Sr. compadre, nós não entendemos desses negócios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem coisas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.” Venceu este parecer; elegeram o sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliábulo dissolveu-se na patuscada. Terpsícore bracejou e perneou diante deles as suas graças jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta que os roía. “Eheu! Fugazes...” Nem mesmo a dor é constante.

No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os três credores, entre sete e oito horas da manha. “Entrem, entrem...” E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela boca fora, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico veio em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de véspera, no morro de Santo Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é anterior à ciência. Convidou os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras devolutas; a quarta era a dele; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objetos de toda a casta.

Foi o Mata-sapateiro quem expôs a questão; era dos três o que reunia maior cópia de talentos diplomáticos. Começou dizendo que o engenho do Sr. doutor ia salvar da miséria uma porção de famílias, e não seria a primeira nem a última grande obra de um médico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sábio de quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o Sr. doutor atribuía os atrasos daquele cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dívidas, se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de tantas famílias...

— Há uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da memória; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando ali foi o prior do Carmo, dizendo que ia «pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era “pagar”; acrescentou que, alguns dias antes, um boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvi-la da boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia em várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem doente.

— Mas então, aventurou o Mata, pálido, o nosso dinheiro está completamente perdido...

— A moléstia não é incurável, disse o médico

— Ah!

— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dois grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, à noite estendia a mão para arrancar as estrelas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sair pelas janelas mais altas das casas, como se estivesse ao rés do chão...

— Santo Deus! – exclamaram os três credores.

— É o que lhes digo, continuou placidamente o médico. Quanto á dama catalã, a princípio confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermógenes, e, no tempo em que comecei a trata-la com um clérigo. Em três meses ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.

Realmente, era uma droga miraculosa. Os três credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o médico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações com ele; não podia ir oferecer-lhe os seus préstimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o médico, nem os credores podiam toma-la a si. 

Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabeleireiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e apetitosa, convidarem o Dr. Jeremias à cura; talvez o interesse... Mas o ilustre Mata via o perigo de um tal propósito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angústia; tudo parecia perdido. O médico rolava entre os dedos a caixa de rapé, esperando que eles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Mata, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido o médico, e tornou às lágrimas das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não eram senão uns tristes oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabeleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim, senhor; os calos de suas mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate, seu amigo, que ali estava presente, e que entisicava, ás noites, à luz de uma candeia, zas-que-darás, puxando a agulha...

Magnânimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos úmidos de lágrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a ciência ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era também e principalmente do próprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que ele tinha tanta culpa como o doido que pratica uma iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapapés infindos e grandes louvores aos insígnes merecimentos do médico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obséquio que eles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialíssimas. E, na rua quando ele já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a ciência, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! Tão naturais!

Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não desejando outra coisa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por ata-lo de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a ideia de “pagar”, como as ideias correlatas de “credor”, “dívida”, “saldo”, e outras tinham-se-lhe apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que mais prontamente veio ao bico da pena. Thomé Gonçalves tinha o abismo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o buraco.

Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retempera-lo, começou a aplicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura operava-se de dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração da ideia de pagar, com todas as noções correlatas — era a parte confiada á droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um certo credor — era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O médico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado naquele ano de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro, o segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.

Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bênçãos com que eles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece coisa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gonçalves, asmado de tantas dívidas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela acumulação.

— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.

— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.

Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o próprio Dr. Jeremias, pelos honorários daquele serviço relevantes. Mas, ai dele! A modéstia atou-lhe a língua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou três, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era fácil; bastava insinuar-lhe a dívida pelo método usado em relação à dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe metia à cara, entrou a rarear as visitas; mas o Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a cear, a falar de coisas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a dívida, não chegariam a fazê-lo, porque a supunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas fórmulas da sabedoria popular: — Matheus, primeiro os teus; — A boa justiça começa por casa; — Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé Gonçalves, no dia em que falecera, tinha um só credor no mundo:— o Dr. Jeremias.

Este, nos fins do século, chegara à canonização.

— “Adeus, grande homem!” dizia-lhe o Mata, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:

— Grande homem, mas pobre diabo.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. 1884. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 1883. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Varal de Trovas n. 577

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 76

Tenho visto e ouvido pessoas falando que fulano ou sicrano são muito inteligentes, são acima da média, têm muita capacidade. Sempre vi diferente. Porque, ao que se sabe, nascemos todos iguais. 

Entonces, o que nos faz diferentes, sendo iguais? O que nos faz diferentes é a nossa cabeça: alguns são sossegados, alguns são ativos, espertos, curiosos. A curiosidade e a busca constante nos fazem enxergar mais longe, os olhos de lince atiçam pensares na busca de conhecimentos. 

Imaginemos o que se terá feito no final do mês, ou do ano, se usarmos uma hora a mais por dia buscando algo importante - uma arrumação em casa, a leitura de um livro, a semeadura da horta, o projeto que temos há tempo na cachola. 

A vida será sempre esse cadinho de viveres diferenciados, onde nascemos pequeninos e ao longo do tempo alguns seguem pequenos, outros crescem, e muitos vão às alturas em saberes e conhecimentos. 

O humanismo vestido de humildade cochicha que buscar alteridade não significa deixar de olhar para baixo, para as origens, para as ações. Seremos sempre iguais na espécie, diferentes no modo de viver, o que dá a vantagem de uns perante os outros. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 3


Alegrias coleciono
neste meu tardio amor.
É na colheita do outono
que os frutos têm mais sabor.
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As correntes de lembranças
me prendem mais ao passado
que o velho par de alianças
num estojo abandonado.
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A seu filho, desde cedo,
ministre a boa lição:
em vez de armas de brinquedo,
ponha um livro em sua mão!
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Desfias os teus queixumes
feito contas de um rosário.
Ladainhas de ciúmes
que me levam ao calvário!
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Eu não persigo a vitória
em relevantes proezas,
mas persigo, sim, a glória
de vencer minhas fraquezas.
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Lembranças de amor desfeito...
Silêncio em horas tardias,
pois tua ausência, em meu leito,
dorme onde outrora dormias.
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Meu coração se comove
por te sentir ao meu lado
quando a saudade se move
entre as sombras do passado.
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Meu diário! Em tuas folhas,
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
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Meu leito, espaço restrito,
quando abriga teu calor,
se transforma em infinito
na explosão do nosso amor.
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Meus desenganos de amor
na poesia buscam fim:
eu não choro a minha dor...
meus versos choram por mim!
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Navegando nesta vida,
meus anseios não domino,
pois minha barca é impelida
pelos remos do Destino!
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No imenso teatro da vida,
temos de ser bons atores,
porque a dureza da lida
não favorece amadores.
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Nos dissabores da sorte
— não importa o que vier —
a mulher deve ser forte,
sem deixar de ser mulher.
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O Sol, sendo astro galante,
quando a noite se anuncia,
em reverência elegante,
declina, encerrando o dia.
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Pela trilha da saudade,
teu perfume veio a mim
para evocar, sem piedade,
um sonho que teve fim.
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Percebo, com desconforto,
que ainda sou teu vassalo:
nosso passado está morto,
mas não consigo enterrá-lo!
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Perder-te?! Nesse receio,
eu me anulei junto a ti
e, ao viver destino alheio,
a mim mesma me perdi!
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Quando a lembrança faz rondas
ao meu mar de fantasia,
chegas na esteira das ondas
desta saudade vadia...
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Quem dera os povos da Terra,
num esforço pertinaz,
em vez de bolsões de guerra,
tecessem ninhos de paz!
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Se até mesmo com empenho,
tentarem nos separar,
esse receio não tenho;
somos um só... não um par!
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Sem oásis, retirante,
na aridez do teu sertão,
única sombra flagrante
é tua sombra no chão!
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Seu condão de luz prateada,
com a magia que encerra,
faz da Lua a boa fada
que vela o sono da Terra.
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Sou navegante do rio
que tem por fonte a paixão
e deságua, sem desvio,
na foz do teu coração!
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Teu perfume estreita o cerco...
Eu me rendo aos teus abraços.
Que me importa se eu me perco,
quando me encontro em teus braços?
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Um velho colchão de palha...
teus braços... meu cobertor;
não há fortuna que valha
a fortuna deste amor!

Fonte:
Enviado pela trovadora.
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.

Jaqueline Machado (Vislumbrando belezas no caos)

Será possível vislumbrar beleza na dor? No horror de se encontrar entre a vida e a morte? Por mais estranho que pareça, os resgates do terremoto na Turquia e na Síria, mostram que sim: pode existir beleza no horror. A vida, em suas manifestações amorosas, tem revelado a grande mãe protetora que é, nos inúmeros resgates de pessoas que ficaram soterradas após a tragédia. Algumas suportaram mais de 200 horas de espera, sem saber se seriam salvas ou se tudo acabaria ali, em meio a tijolos quebrados, poeira e desolação.

Mas, por certo, os resgates mais emocionantes foram os das crianças. Um bebê recém nascido foi encontrado. Em meio a um clima de morte, uma criança nasce. É o amor da vida se sobrepondo a tudo e a todos.

Outra criança saiu dos escombros, sorrindo... Um anjo lindo expressando a importância da fé e da esperança. 

Sei que muitas pessoas partiram para o outro lado da vida, mas estão com suas missões cumpridas, em direção a outros caminhos. Bem mais bonitos do que este em que vivemos.

Esse episódio também nos convida a refletir sobre os terremotos, maremotos e vendavais, que ocorrem no campo da nossa emoção. Dia desses, uma pessoa disse ter se envergonhado de estar chorando por motivos particulares, e que seu problema era pequeno comparado às tragédias televisionadas. É que às vezes, os medos, as incertezas, devastam nossas mentes, e soterrados, choramos sozinhos, destruídos, sem a certeza de que será possível sobreviver a tanta dor.

Não há tragédias piores ou melhores, sofrimento cada um tem o seu, e só quem sente sabe o quanto dói. E ninguém precisa se culpar por isso. Somos humanos, e isso por si só explica tudo.

Mas independente das tragédias, o amor sempre prevalece. Portanto, não percamos a fé, e por mais que os problemas queiram nos manter soterrados nos destroços das angústias e dos fantasmas da imaginação, acreditemos, ninguém está sozinho, de algum lugar alguém corre ao nosso encontro, pronto a nos resgatar. E quando isso acontecer, não vamos ficar lamentando o ocorrido, aproveitemos para renascer e sair dos escombros, alegres como fez o menino que depois de dias e dias de sofrimento, saiu da escuridão sorrindo ao ver outra vez a luz do dia sorrir para ele.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Quase incidentes similares)


Paixão

Quando quatro olhos se abraçam num mesmo calor de emoções.
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Criatividade que deu certo

O Capeta não podendo estar em todos os lugares ao mesmo tempo, criou, na hora da raiva, o diabo e lhe colocou, nas mãos, um tridente, no lugar de um trenó.
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Na dúvida?

Acredite piamente em qualquer lorota, contanto que seja inescrupulosamente transformada, depois, numa boa mentira
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O agora e o depois

O adolescente busca a felicidade no agora; o velho, na vida depois da morte.
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Eterna luta

Não existem criaturas prontas para o amor. Existem corações vazios na eterna busca da sua outra metade para pulsarem, depois, na mesma emoção, do “a dois”.
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Simplesmente

Acreditar em milagre é o que o faz  acontecer na vida de cada um de nós.
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Imbecil

É a criatura que atira no peito da mulher amada e acerta, em cheio, o próprio coração  que deixou a descoberto.
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Morte súbita

Mais cedo, ou mais tarde, a pobre linguiça acabará castigada dançando dantescamente na boca cheia de dentes do dono do cachorro.
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Vitória constante

Os que buscam incansavelmente o amanhã, são os que jamais se entregarão, vencidos, ao fracasso 
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Setenta vezes sete

Perdoe seus Inimigos, sempre, mas não esqueça de mandá-los para o inferno, em seguida.
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Trabalho dobrado
 
Crianças pequenas batem carinhosamente no ventre da mãe. Já, as grandes, arrancam os últimos fios de cabelo.
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No meio do caminho

A passagem do tempo não incomoda. O que tira o sono das pessoas é dar de cara com a velhice, parada, espreitando, sorrateira, no meio do caminho.
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A face oculta

A felicidade tem duas caras: a que desconhecemos e a que nunca  conseguiremos ver frente a frente.
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Todo cuidado é pouco

Nunca olhe para trás, a não ser que você saiba exatamente onde tropeçar logo adiante, para não cair de cara estatelada no chão.
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Sempre dá certo

Não pergunte a uma mulher, a  idade que ela tem. Esconda a sua.
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Observação astuta

Em terra de cego, quem tem olhos enxerga pelos demais.
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Fim de papo

Quem tem boca, fala o que quer. Quem não tem, não engole sapos.
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Além-vida

Arregale bem os olhos antes de morrer. Você não conseguirá manter as pálpebras abertas depois.
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Por antecipação

Antes que alguém faça você de besta seja, desde agora, uma assumida.
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Sem saída

Parei de correr atrás de você, no exato momento em que a sua presença se fez maior e me invadiu a alma inteira.
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Pergunta vã

Ei,  cadê você que fazia parte do meu presente... e, no instante seguinte, deixou um vazio enorme em meu coração solitário e inconsequente?!
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Fuga inútil

Fujo de mim como um louco, mas logo adiante encontro você. E me prendo em nós como alma sem norte. E me rendo  sabendo, de antemão, que solitário, outra vez permanecerei nos braços da morte e à mercê da solidão. Que me deixará jogado como sempre,  à má sorte.
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Nudez total

Me despi completamente de você. Fiquei nu de nós mas no meu corpo permaneceu uma cicatriz profunda. Neste momento, uma dor imensa me embarga a voz. Enquanto isto, o coração bate descompassado de tanto sofrer mergulhado em uma solidão simplesmente atroz.
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Comparação

Um coração apaixonado é como uma melodia suave que encanta e inebria a alma combalida.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 20

 

Paulo Vinheiro (A Volta que Virá)

Hoje, rebuscando papéis, jornais e afins, um pouco da minha história e de meus lixos, encontrei lembranças que nada me diziam e outras que até muito.

Remexendo nos meus emails e apagando algumas atenções revi amigos de hoje e de ontem, mas nada traduz sentidos como meus papéis.

Interessante essa teoria da memória tátil. Como podem ficar sabores de há tantos anos, odores de “não me engano”, cores que não desbotam?

Neste meu mundinho que afago, com a ponta de meus dedos, vejo as fotografias e as lembranças de dias que não têm fim.

Reflito: independente da razão comprometida, no que será das gentes que veem o mundo sem sabores, nem as cores, nem odores, nem os papéis que tanto pesam.

Acho que alguns que têm substituído as páginas por imagens plasmadas em telas e eletrônica, por completo, sem chance para certas sensibilidades, podem sofrer e fazer sofrer em seus mundos, tanto interno quanto externo, de um tipo de resfriamento estranho e esquizofrênico.

Tenho, com atenção, analisado o mundo que me circunda. Meu estranhamento se dá não com o que vejo e sim de certas ausências. Nós humanos (ou quase), não nos espantamos mais, isto é, fomos convencidos a esterilizar os sentimentos superiores.

Verdadeiras obras de arte no mundo, em desvão, amontoadas em um canto, fechado, úmido e sombrio. Onde estão os nossos vinis (lps), os nossos Bergman’s, em preto-e-branco, e lindas outras coisas que se desusa… uma a uma. Saudosismo? Não, mas a busca de um lugar no lugar comum.

Volto aos meus papéis que teimam em não desvanecer.

Fecho minha gaveta.

Até breve.

Fonte:
Colaboração do autor. Disponível em http://paulovinheiro.blogspot.com

Celito Medeiros (Poesias Avulsas)


AMORES VÊM E VÃO

Amores, sempre vêm e vão
Uns até ficam, outros não!
Os que partem, nos faltam
Os que ficam, nos fartam!

Alguns amores machucam
Presos em mal entendidos
Lembranças que cutucam
Elos que ficaram perdidos

A dicotomia do ódio e amor
Confundida gera o lamento
Poderia até causar uma dor

Quem não desejar tormento
O coração é um controlador
Abra ou fecha no momento!
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CRIANÇA MULHER MADURA

encanto para eu reviver
ouço ainda esta balada
em todo o amanhecer
você foi a doce amada

um embalo é constante
o belo sorriso de amor
pensamento inebriante
do teu perfume de flor

nesta paz que é dividida
sou pleno na gostosura
és roteiro de minha vida

criança mulher madura
doce abrigo da guarida
é a onda que me segura
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O FOGO E A PAIXÃO

o mágico clamor
de cumplicidade
partilhar o amor
total liberdade

a grande magia
em doce afago
gosto eu trago
como a poesia

neste agrado
fogo e paixão
gosto amargo

toque de mão
mel sagrado
sem solidão
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O POETA É PORRETA

Poesia com liberdade
O pensamento traduz
Muito desta realidade
Que a escrita conduz

Todo poema é uma luz
De um lado um escritor
Na apreciação superior
Pela beleza que seduz

Versos para provocar
Acima de tudo o amor
Sempre é bom poetar

Poeta é um sonhador
Consegue até agradar
Ao mais refinado leitor

Fonte:
Efigênia Coutinho. 1000 Sonetos . Academia Virtual Sala de Poetas e Escritores (AVSPE).

Hergé (As Aventuras de Tintim)


 As Aventuras de Tintim (Les aventures de Tintin, em francês) é o título de uma série de histórias em quadrinhos (banda desenhada, em Portugal) criada pelo autor belga Georges Prosper Remi, mais conhecido como Hergé. Localizadas em um mundo meticulosamente examinado que muito tem em comum com o nosso, As Aventuras de Tintim apresentam vários personagens em cenários distintos. As séries foram as favoritas dos leitores e também dos críticos por mais de 70 anos.

O herói das séries é o personagem epônimo Tintim, um jovem repórter e viajante belga. Ele é auxiliado em suas aventuras desde o começo por seu fiel cão Milu (Milou, em francês). Os dois apareceram pela primeira vez em 10 de janeiro de 1929, no Le Petit Vingtième, um suplemento do jornal Le Vingtième Siècle destinado aos jovens. Mais tarde, o elenco foi expandido com a adição do Capitão Haddock e outros personagens pitorescos.

Esta série de sucesso era publicada em semanários e, ao término de cada história, os quadrinhos eram reunidos em livros (23 no total, em 2008). Ela ganhou uma revista própria de grande tiragem (Le Journal de Tintin) e foi adaptada para versões animadas, para o teatro e para o cinema. As séries são uma das histórias em quadrinhos europeias mais populares do século XX, sendo traduzidas para mais de 50 línguas e tendo mais de 200 milhões de cópias vendidas.

As séries de histórias em quadrinhos são há muito admiradas pelos desenhos claros e expressivos, com o estilo “ligne claire”, típico de Hergé. O autor emprega enredos bem elaborados de gêneros variados: aventuras com elementos de fantasia; mistério; espionagem; e ficção científica. As histórias nas séries de Tintim caracterizam-se tradicionalmente pelo humor em cenas de atividade, o que equivale em álbuns posteriores à sofisticada sátira e comentários político-culturais.

Descrição

Tintim é apresentado como um repórter: Hergé usa tal artifício para apresentar o personagem numa série de aventuras ambientadas em períodos contemporâneos àquele em que ele estava trabalhando (mais notavelmente, a insurreição bolchevique na Rússia e na Segunda Guerra Mundial e a alunissagem). Hergé criou também um mundo de Tintim, que conseguiu reduzir a um simples detalhe, mas reconhecível e com representação realista, um efeito que Hergé foi capaz de alcançar com referência a um bem mantido arquivo de imagens.

Apesar de as Aventuras de Tintim serem padronizadas – apresentando um mistério, que é, então, logicamente resolvido – Hergé encheu-as com o seu próprio senso de humor, e criou personagens de apoio que, embora sejam previsíveis, apresentaram-se com um certo encanto que permitiu ao leitor se engajar com eles. Esta fórmula de uma confortável e bem–humorada previsibilidade é semelhante a da apresentação do elenco na tira Peanuts ou em Three Stooges Hergé também teve um grande entendimento da mecânica dos quadrinhos, especialmente de seu andamento, uma habilidade demonstrada em As Joias de Castafiore, um trabalho que pretende ser envolvido com a tensão de que nada realmente acontece.

Hergé inicialmente improvisou na criação das aventuras de Tintim, exceto como Tintim iria escapar de qualquer situação que aparecia. Somente após a conclusão de Os Charutos do Faraó, Hergé foi incentivado a reformular e a planejar suas histórias. O impulso veio de Zhang Chongren, um estudante chinês que, sabendo que Hergé iria mandar Tintim à China na sua próxima aventura, instou–o a evitar que perpetuassem a visão que europeus tinham da China no momento. Hergé e Zhang trabalharam juntos na série seguinte, O Lótus Azul, que foi citado pelos críticos como a primeira obra-prima de Hergé.

Outras alterações à mecânica de Hergè criar as tiras se deram a partir de influências por parte de acontecimentos externos. A Segunda Guerra Mundial e a invasão da Bélgica pelos exércitos de Hitler determinaram o encerramento do jornal no qual Tintim era republicado. Os trabalhos foram interrompidos em Tintim no País do Ouro Negro, e os já publicados Tintim na América e A Ilha Negra foram proibidas pela censura nazista, que não concordou com sua apresentação da América e da Grã-Bretanha. No entanto, Hergé foi capaz de continuar com As Aventuras Tintim, publicando quatro livros e relançando mais duas aventuras no Le Soir, jornal licenciado pelos alemães.

Durante e após a ocupação alemã, Hergé foi acusado de ser um colaborador, por causa do controle nazista do jornal, sendo detido brevemente após a guerra. Alegou que estava simplesmente realizando um trabalho sob a ocupação, como um canalizador ou carpinteiro. Sua obra desse período, ao contrário do seu trabalho anterior e posterior, é politicamente neutra e resultou nas aventuras histórias clássicas, como O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackham o Terrível, mas a apocalíptica A Estrela Misteriosa reflete o sentimento de Hergé durante esse período político incerto.

A escassez do papel no pós-guerra exigiu mudanças no formato dos livros. Hergé geralmente desenvolvia suas histórias de forma que o tamanho fosse adequado à história, mas agora com o papel de dimensão reduzida, os editores Casterman pediram a Hergé para ele considerar a utilização de menores dimensões e adotar um tamanho estipulado de 62 páginas. Hergé continuou e aumentou sua equipe (os dez primeiros livros foram feitos por ele e sua esposa), surgindo assim os Studios Hergé.

A adoção de cor permitiu que Hergé expandisse o alcance das suas obras. Sua utilização da cor era mais avançada do que a dos quadrinhos norte-americanos da época, com valores que permitiam uma melhor combinação das quatro impressões tons e, consequentemente, uma abordagem cinematográfica em relação à iluminação e sombreamento. Hergé e seu estúdio permitiriam que as imagens enchessem meia página ou, mais simplesmente, mostrassem detalhadamente e acentuassem a cena, usando cores para realçar pontos importantes. Hergé cita este fato, declarando que “Considero minhas histórias como se fossem filmes. Sem narração, sem descrições, a ênfase é dada às imagens.” A vida pessoal de Hergé também afetou a série, com Tintim no Tibete sendo fortemente influenciada pelo seu colapso nervoso. Seus pesadelos, descritos por ele como sendo “todos em branco”, se refletem em paisagens cheias de neve. O enredo tem Tintim patinando em busca de Tchang Chong-Chen, previamente encontrado em O Lótus Azul, e a peça não tem vilões e uma pequena lição de moral, com Hergé até se recusando a se referir ao Homem das Neves do Himalaia como “abominável”.

A conclusão das aventuras de Tintim ficou incompleta. Hergé morreu em 3 de março de 1983 e deixou a 24ª aventura, Tintim e a Alph-Art, inacabada. O enredo viu Tintim embrenhar-se no mundo da arte moderna, e a história é interrompida no momento em que Tintim está aparentemente prestes a ser assassinado para ser transformado em uma estátua de acrílico a ser vendida.

Personagens:

Tintim
Tintim é um jovem repórter que se envolve em casos perigosos e realiza ações heroicas para salvar o dia. Quase todas as aventuras retratam Tintim trabalhando, empenhado em suas investigações jornalísticas. Ele é um jovem de atitudes mais ou menos neutras e é menos pitoresco que o elenco secundário.

Milu
Milu é um cão terrier branco, o companheiro de Tintim. Eles regularmente salvam um ao outro de situações perigosas. Milu frequentemente “fala” com o leitor por meio de seus pensamentos (muitas vezes mostrando um humor um tanto seco), que supostamente não são ouvidos pelos personagens da história.

Como o Capitão Haddock, Milu tem gosto pelo uísque Loch Lomond, e suas ocasionais “bebedeiras” tendem a colocá-lo em problemas, assim como sua intensa aracnofobia. O nome francês “Milou” foi largamente atribuído como uma referência indireta a uma namorada da juventude de Hergé, Marie-Louise Van Cutsem, que tinha o apelido de “Milou”.

Existe outra explicação para as origens dos dois personagens. Foi afirmado que Robert Sexé, um fotógrafo-repórter, cujas proezas eram recordadas na imprensa belga entre a metade e o fim da década de 1920, foi uma inspiração para o personagem Tintim. Sexé tinha notadamente uma aparência similar a de Tintim, e a Fundação Hergé na Bélgica admitiu que não é difícil imaginar como Hergé poderia ter sido influenciado pelas proezas de Sexé. Naquele tempo, Sexé estivera viajando pelo mundo em uma motocicleta feita por Gillet de Herstal.

René Milhoux era um campeão do Grand-Prix e detinha o recorde de motocicleta da época, e, em 1928, enquanto Sexé estava em Herstal falando com Leon Gillet sobre seus projetos futuros, o Sr. Gillet o colocou em contato com seu novo campeão, Milhoux, que acabara de deixar motocicletas prontas para Gillet de Herstal. Os dois rapidamente iniciaram uma amizade, e passavam horas falando sobre motocicletas e viagens; Sexé explicando suas dificuldades e Milhoux oferecendo seu conhecimento sobre mecânica e motocicletas pequenas trabalhando acima de seus limites. Graças a essa união de conhecimento e experiência, Sexé partiria em numerosas viagens por todo o mundo, escrevendo incontáveis relatos jornalísticos. O secretário geral da Fundação Hergé na Bélgica admitiu que não é difícil imaginar como o jovem George Rémi, mais conhecido como Hergé, poderia ter sido inspirado pelas bem publicadas proezas desses dois amigos, Sexé com suas viagens e documentários, e Milhoux com seus triunfantes registros, para criar os personagens de Tintim, o famoso repórter viajante, e seu fiel companheiro Milu.

Capitão Archibald Haddock
Capitão Archibald Haddock, um capitão navegador de origem discutível (pode ser de origem inglesa, francesa ou belga), é o melhor amigo de Tintim, e foi introduzido em O Caranguejo das Tenazes de Ouro. Haddock foi inicialmente descrito como um personagem fraco e alcoólatra, tendo mais tarde, porém, se tornado mais respeitável. Ele evoluiu para se tornar genuinamente heroico e até mesmo da alta sociedade, depois de encontrar um tesouro de seu ancestral Sir Francis Haddock (François de Hadoque em francês), no episódio O Tesouro de Rackham o Terrível. A natureza rude do capitão e seu sarcasmo representam uma contradição ao frequente e improvável heroísmo de Tintim; ele sempre rompe com um comentário seco ou satírico quando o repórter parece demasiado idealista. O Capitão Haddock vive em sua luxuosa mansão chamada Moulinsart.

Haddock usa uma série de pitorescos insultos e maldições para expressar seus sentimentos: “com mil milhões de mil macacos”, “com mil raios e trovões”, “trogloditas”, “cleptomaníaco”, “anacoluto”, “iconoclasta”, mas nada que seja realmente considerado uma grosseria. Haddock é um beberrão, particularmente chegado ao uísque Loch Lomond, e sua embriaguez é frequentemente usada para propósitos cômicos.

Hergé afirmou que o sobrenome de Haddock deriva-se de um “peixe inglês triste que bebe muito”. Haddock permaneceu sem um nome próprio até a última história completa, Tintim e os Tímpanos (1976), quando o nome Archibald foi sugerido.

Personagens secundários

Os personagens secundários de Hergé já foram mencionados como muito mais desenvolvidos que os principais, cada um imbuído de força de temperamento e personalidade que se comparam aos personagens de Charles Dickens. Hergé usava os personagens secundários para criar um mundo realista onde colocar os protagonistas das aventuras. Para mais realismo e continuidade, os personagens voltariam às séries. Foi conjeturado que a ocupação da Bélgica e as restrições impostas a Hergé forçaram-no a focar-se na caracterização para evitar o surgimento de situações políticas incômodas. A maior parte dos personagens secundários foi desenvolvida nesse período.

Dupond e Dupont
São dois detetives desajeitados que, mesmo não tendo nenhum parentesco, parecem ser gêmeos, tendo uma única diferença física: a forma de seus bigodes. Eles muito contribuem no humor da série, devido às suas antístrofes* e incompetência. Os detetives foram, em parte, baseados no pai e no tio de Hergé, gêmeos idênticos.

Trifólio Girassol
O Professor Trifólio Girassol é um cientista quase surdo, que entende e age diante de tudo de maneira equivocada como resultado de sua deficiência auditiva. É um personagem menor mas que aparece regularmente nas aventuras de Tintim. Estreou em O Tesouro de Rackham o Terrível, sendo baseado, parcialmente, em Auguste Piccard.

Bianca Castafiore
Bianca Castafiore é uma cantora de ópera, a quem o capitão Haddock absolutamente despreza. Contudo, ela constantemente aparece de súbito onde quer que eles estivessem, junto com sua criada Irma e o pianista Igor Wagner. Seu nome significa “flor branca e pura”, algo que o Professor Girassol entende quando oferece uma rosa branca à cantora pela qual é secretamente apaixonado em As Jóias de Castafiore. Ela foi baseada nas grandes cantoras de ópera em geral (de acordo com a percepção de Hergé), na tia de Hergé’s, Ninie, e, no pós-guerra, em Maria Callas.

Outros pesonagens secundários: o General Alcazar, um ditador sul-americano; Mohammed Ben Kalish Ezab, um emir, e seu filho Abdallah; Serafim Lampião, um vendedor de seguros; Tchang Chong-Chen, um menino chinês; o Doutor J.W. Müller, um maléfico médico alemão; Nestor, o mordomo; Roberto Rastapopoulos, o responsável pelos crimes; Oliveira da Figueira; o Coronel Sponsz; Piotr Szut; Allan Thompson; além do açougue Sanzot, que é um local recorrente na série.
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* Antístrofe = figura baseada nas diferenças de sentido que resultam da associação das mesmas palavras em um mesmo tipo de construção sintática, invertendo-se-lhes a ordem.
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Críticas

Muito se tem escrito sobre a ideologia da série. A obra é objeto de polêmica, em grande parte graças à contínua reedição das aventuras, que foram concebidas há muitos anos, em um contexto inteiramente diferente. Já se acusou Hergé de propagar em seus álbuns violência, crueldade para com os animais, pontos de vista colonialistas, racistas e até mesmo fascistas; foi acusado também de suposta misoginia, dado que quase não aparecem mulheres na série. Essas acusações se referem apenas a aspectos pontuais da série, não podendo-se dizer que sejam pontos de vista predominantes da série. Nesse sentido, há uma certa “lenda negra” de Tintim, devido ao fato de Hergé ter publicado algumas histórias em um jornal aprovado por nazistas, o Le Soir, durante a ocupação alemã na Bélgica.

Ainda que a Fundação Hergé tenha tomado tais acusações por ingenuidade do autor, e que certos pesquisadores como Harry Thompson afirmem que “Hergé fazia o que lhe dizia o abade Wallez (o diretor do jornal)”, o próprio quadrinista sentia que, visto suas origens sociais, não poderia escapar de preconceitos: “Ao conceber Tintim no Congo e Tintim no País dos Sovietes, estava sustentado por preconceitos do meio burguês no qual vivia. (…) Se tivesse de refazê-los, refazer-los-ia de outro modo, certamente.”

Em Tintim no País dos Sovietes, os bolcheviques são descritos como personagens maléficos. Hergé se inspirou num livro de Joseph Douillet, antigo cônsul da Bélgica na Rússia, Moscou sans voile, que era extremamente crítico ao regime soviético. Hergé inseriu isto no contexto afirmando que para a Bélgica da época, uma nação devota e católica, “tudo o que fosse bolchevique era ateu”. No álbum, os chefes bolcheviques são motivados apenas por interesses pessoais, e Tintim descobre, enterrado, “o tesouro escondido de Lênin e Trotsky”. Mais tarde, Hergé assimilou os defeitos desses primeiros álbuns a “um erro de minha mocidade”. Mas hoje, parte de sua maneira de representar a URSS da época pode ser considerada aceitável. Em 1999, o jornal The Economist publicou que “retrospectivamente, a terra da fome e da tirania desenhada por Hergé estavam estranhamente corretas”.

Tintim no Congo foi acusado de representar os africanos como seres ingênuos e primitivos. Na primeira versão do álbum, em preto-e-branco, vemos Tintim diante de uma lousa dando aula a crianças africanas. “Meus caros amigos”, diz ele, “hoje, vou lhes falar de sua pátria: a Bélgica”. Em 1946, Hergé redesenhou o álbum, transformando esta cena numa aula de matemática. “Sobre o Congo, eu conhecia apenas o que contavam na época: ‘os negros são como grandes crianças, sorte deles estarmos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com estes critérios, no mais puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica”, explicou-se Hergé.

Em 1988, no jornal britânico Mail on Sunday, Sue Buswell resumiu os problemas evidenciados nesse álbum: “lábios grossos e pilhas de animais mortos”, em referência à maneira como foram desenhados os africanos e aos animais que Tintim caça (atividade muito em voga na época em que o álbum foi feito). Todavia, Harry Thompson nota que tal citação pode ter sido tomada “fora de seu contexto”.

Transpondo uma cena de Les Silences du Colonel Bramble, livro de André Maurois, Hergé apresenta Tintim como um caçador, abatendo quinze antílopes, sendo que apenas um já seria o bastante para se alimentar. O grande número de animais mortos ao longo da história levou o editor dinamarquês dos álbuns Tintim a exigir algumas modificações. Hergé teve de substituir uma cena em que Tintim faz um furo no dorso de um rinoceronte para depositar uma dinamite e explodir o animal.

Em 2007, a Comissão pela Igualdade Racial (Commission for Racial Equality), órgão britânico, exigiu que o álbum fosse retirado das prateleiras de livrarias após uma reclamação, afirmando ser “triste saber que haja ainda hoje livreiros que aceitem vender e divulgar Tintim no Congo”. Em 23 de julho de 2007, um estudante congolês fez uma queixa em Bruxelas, capital da Bélgica, na qual considera a obra um insulto para o seu povo. O caso é investigado, mas o Centro para a Igualdade de Oportunidades e Combate ao Racismo (Centre pour l’égalité des chances et la lutte contre le racisme, instituição belga), advertiu que não se tome uma “atitude hiper-politicamente correta”.

Vários dos primeiros álbuns de Tintim foram alterados por Hergé em edições subsequentes, geralmente a pedido das editoras. Em Tintim na América, por exemplo, os traços caricatos dos personagens negros foram redesenhados como sendo brancos ou de etnia indefinida, incitado pelos editores americanos. Em a Estrela Misteriosa, um vilão americano tinha originalmente o sobrenome judeu Blumenstein. Isto era controverso, tanto que o personagem tinha exatamente o aspecto estereotipado de um judeu. Blumenstein foi alterado para Bohlwinkel, sobrenome menos etnicamente específico. Em edições posteriores, o personagem foi novamente alterado, desta vez para sul-americano, de um país ficcional chamado São Rico. Mais tarde, Hergé descobriria que Bohlwinkel também é um sobrenome judeu.

Outro álbum apontado como racista é Perdidos no Mar (também conhecido como Carvão no Porão), de 1958. Ainda que a história seja uma denúncia da escravidão, na qual Tintim e Haddock defendem claramente os mais fracos, um artigo publicado em 1962 na revista Jeune Afrique criticou duramente a representação dos africanos, especialmente a forma de falarem. Hergé rebateu as críticas e, em 1967, reescreveu alguns diálogos.

A ideia do fascismo da série pode estar relacionada à atitude do autor na época da Segunda Guerra e ao seu vínculo inicial com o abade Norbert Wallez, homem de extrema-direita e anticomunista assumido. Vale notar que os álbuns publicados durante a guerra são histórias nas quais não há nenhuma alusão política.

Álbuns como O Cetro de Ottokar, de 1939, desmentem a suposta simpatia de Hergé pelo fascismo. Nessa história, há críticas evidentes à política expansionista de Hitler. “Creio que todos os totalitarismos são nefastos, sejam eles de direita ou de esquerda.” disse o autor.

Hergé jamais negou suas ideias conservadoras. Talvez por esse motivo, Tintim seja a favor da ordem estabelecida, o que não o impede de dar atenção aos menos favorecidos, e, em muitas ocasiões, tomar o partido destes. Ao longo de suas viagens, Tintim demonstra um verdadeiro interesse e respeito pelas culturas não europeias, o que se manifesta também na vontade de Hergé pesquisar meticulosamente para a realização dos álbuns.

Influências

Na sua juventude, Hergé era um grande admirador de Benjamin Rabier, e esta influência manifestou-se, principalmente, numa série de imagens em Tintim no País dos Sovietes, em particular as imagens dos animais, sugeridas por Hergé. René Vincent, o ilustrador art-deco, também influenciou no início das aventuras de Tintim: “A influência pode ser detectada no início dos soviéticos, onde meus desenhos são projetados ao longo de uma linha decorativa, como um ‘S’…”. Hergé admitiu que havia roubado uma parte do trabalho de George McManus, afirmando que estavam “tão divertidos, que utilizei-os, sem escrúpulos!”.

Durante a pesquisa extensiva que realizou para escrever O Lótus Azul, Hergé foi influenciado pelos estilos ilustrativos e xilogravura chineses e japoneses. Isso é especialmente notável na paisagem marítima, que é similar ao trabalhos de Katsushika Hokusai e de Hiroshige.

Hergé também afirmou que Mark Twain foi uma influência, embora sua admiração possa tê-lo levado a desviar-se quando representou os incas como não tendo nenhum conhecimento do eclipse vindouro em O Templo do Sol, um erro atribuído por T.F. Mills como uma tentativa para retratar “incas em pavor aos tempos modernos (Um Ianque na Corte do Rei Artur, de Mark Twain)”.

Selos

A imagem de Tintim foi usada em selos postais em numerosas ocasiões, o primeiro emitido pelo Belgian Post em 1979 para celebrar o dia da filatelia. Esta foi a primeira de uma série de selos com as imagens dos quadrinhos de heróis belgas, sendo o primeiro selo do mundo a ter um herói dos quadrinhos.

Em 1999, a Royal Dutch Post lançou dois selos, em 8 de outubro de 1999, baseados na aventura Rumo à Lua, com os selos vendidos totalmente poucas horas após o seu lançamento. Os correios franceses, em seguida, emitiram um selo de Tintim e Milu em 2001. Para marcar o fim do franco belga, e também para comemorar o aniversário da publicação Tintim no Congo, mais dois selos foram emitidos pelo Belgian Post em 31 de dezembro de 2001. Os selos também foram emitidos no Congo, ao mesmo tempo.

Prêmios

Em 1° de junho de 2006, o Dalai Lama condecorou com o prêmio Luz da Verdade o personagem, juntamente com o arcebispo sul-africano Desmond Tutu. O prêmio foi em reconhecimento ao trabalho de Hergé no livro Tintim no Tibete.

Em 2001, a Fundação Hergé exigiu a retirada da tradução chinesa da obra, que havia sido lançada com o título Tintim no Tibete Chinês. O trabalho foi publicado depois com a tradução correta.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/As_Aventuras_de_Tintim

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 35

 

Machado de Assis (Um Apólogo)


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor com melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Fonte:
Projeto Releituras. Acesso em 3 de fevereiro de 2008. 
Conto disponível em Domínio Público.