quinta-feira, 11 de maio de 2023

Vasco de Castro Lima (Fixação Definitiva da Forma do Soneto)

Coube a Fra Guittone d'Arezzo (1230-1294) a fixação categórica da forma do soneto. Não alterou profundamente a estrutura do poema inventado na corte de Frederico II. Todavia, é inegável, foi ele quem, por assim dizer, confirmou, com pequenos retoques, a sua validade, a solidez de sua constituição histórica, a sua genuína legalidade.

A disposição das estrofes, e também das rimas, variara por alguns anos; mas 'Guittone, embora respeitando, a princípio, o critério biestrófico (uma oitava e um sexteto), estabeleceu a estruturação definitiva do soneto: a "forma tetrapartida", dois quartetos e dois tercetos, contendo, ao todo, quatro rimas (duas, com distribuição modificada, nos quartetos; e duas, diferentes delas, nos tercetos).

Esta configuração, dita oficial, foi seguida pelos seus discípulos e coevos; e é, ainda hoje, aceita e acatada como a forma que se poderia classificar de "ideal":
ABBA ABBA CDC DCD

Guittone, veja-se, deixou que os tercetos (a parte mais obre) continuassem com as rimas alternadas (cruzadas). E, quanto aos quartetos, decidiu, inovando, que as rimas passassem a ser emparelhadas (abraçadas) no interior, e abertas nas extremidades. No seu entender, quebraria, com isso, a corrente de 14 rimas, todas alternadas.

Capacitadas fontes (entre as quais a "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura" — Editorial VERBO, de Lisboa; a "Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana" — Espasa Calpe S.A. Madrid, etc.) afirmam que foi Guittone d'Arezzo o primeiro a usar este esquema rimático. Descendo a detalhes, Guittone chamou a atenção dos poetas para a pausa que deve haver entre as quadras e os tercetos; a independência, embora pouco acentuada, que convém existir entre as próprias quadras; e a supressão da "cauda", ou "estrambote", excrescência que considerou desnecessária, conquanto já estilizada, então, por alguns poetas da escola siciliana.

Julgava ele que, assim, poderia fazer da primeira parte (os dois quartetos) uma espécie de introdução à ideia que se desdobraria, inteira, na segunda parte (os dois tercetos). Supõem muitos que, com essa estratégia, com esse ardil, o soneto passou a exercer uma função semelhante à dos epigramas dos antigos.

Guittone, ao plantar essa árvore encantada, antecipou, também, que o soneto se comporia melhor com versos decassílabos de rimas graves, argumento praticamente decisivo para lhe atribuir a origem italiana. É bom lembrar que a língua francesa não se ajusta a essa particularidade. Não foi por motivo outro que os franceses inventaram o verso alexandrino (dodecassílabo), mais adequado à natureza do seu idioma. Até por fundamento etimológico, o vocábulo soneto, tanto nas línguas neolatinas, corno célticas, provém do ítalo sonetto, estando no mesmo caso quartetto e terzetto.

Guittone desempenhou, portanto, um papel importantíssimo na cristalização da estrutura do soneto. Pôs em prática o ideal de perfeição da escola siciliana.

Com o correr do tempo, a rigidez na ordem das rimas deixou de ser uma obrigatoriedade, embora jamais fosse abolido o dever de se utilizar o mínimo de quatro e o máximo de cinco rimas, em todo o poema. Fora disso, tudo pode, até, ser poesia, mas não é o soneto clássico.

Os quartetos, normalmente, podem ser armados com:

ABBA ABBA
ABAB ABAB
ABBA BAAB
ABAB BABA

Quanto aos tercetos, que se movimentam com relativa liberdade, comportam muitas variações, como:

CDC DCD
CCD EED
CDE CDE
CCD EDE
CDE DCE
CCD DEE
CDD DCC
CDE EDC
CDE DEC
CDD CEE
CDC EDE etc.

Ao ser criado, era, apenas, uma canção de amor. Mas, como acontece em qualquer atividade recém-vinda ao mundo, as primitivas manifestações do soneto foram, também, deturpadas. Logo no início, sua aplicação desviou-se um tanto das belas-artes. Por pouco tempo, felizmente.

Primeiro, como lembra Klabund, "os güelfos e gibelinos dele se serviram, a fim de fazerem suas polêmicas em versos". Güelfos e gibelinos eram nomes que provinham de famílias alemãs rivais. Em 1215, travaram-se contendas fratricidas, do mesmo tipo, entre duas grandes famílias florentinas. Os guelfos apelaram para o ex-rei da Germânia, Otto, que havia sido destronado por Frederico I e os gibelinos para o próprio Frederico II — dividindo, assim, a nobreza de Florença e de outras cidades da Itália. Os partidários do papado se declararam guelfos. Lutas aguerridas desuniram a Itália e ensanguentaram as povoações. Os guelfos levaram vantagem em Florença, Milão, Bolonha, Ferrara, Pádua e Mântua. Os gibelinos, em Cremona, Modena, Rimini, Pavia, Siena, Lucca e Pisa. Os vencidos eventuais de cada partido eram massacrados, ou então exilados, como foi o caso de Guido Guinizelli e de Dante (guelfos).

Essas guerras civis só chegaram ao término após a transferência do papado para Avignon, na França. Haviam começado no século XII, cessando as hostilidades somente no fim do século XV, em 1494.

Também foi, o soneto, segundo a Enciclopédia Mirador Internacional, "recheado com todas as invenções provençais, muitas coincidentes com os conceitos dos poetas eróticos romanos (e, portanto, dos epigramistas gregos)".

Como, porém, teria de acontecer, o soneto, retornando à finalidade lírica para a qual foi criado, começou a se espalhar por todos os países, fazendo carreira.

Contra as artificialidades acima referidas, surgiu a reação de Guido Guinizelli (1240-1276), criando a Escola do "Dolce Stil Nuovo".

De acordo com a mesma fonte (Enc. Mirador), "nessa escola se desenvolveu a concepção platônica do amor, transfigurando-se a dama num ser superior e angélico; nada há de pecaminoso ou torpe no amor; as comparações do poeta são tiradas da natureza; combinam-se a devoção e a visão filosófica".

Seguiram-no Guido Cavalcanti (1255-1300), seu discípulo, e Dante Alighieri (1265-1321).

Guido Cavalcanti, nobre no sangue e na poesia, dispensava ao soneto carinhos enternecedores. Dante e Guido foram contemporâneos, amigos e participantes da nova escola. E Dante considerava tanto o valor literário de Guido, que lhe dedicou seu livro de estreia, a "Vita Nuova".

Na opinião idônea do historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), "Dante não precisaria ter escrito a "Comédia" para ser o primeiro poeta dos tempos modernos; bastariam, para isso, os sonetos (e a prosa com que os explica) da "Vita Nuova". Dante foi o primeiro a ver sua própria alma; o espírito humano dera um forte passo no conhecimento de sua própria vida secreta".

Ambos, Guido e Dante, praticamente, viram o soneto nascer. Então, esse poema, vagindo e, depois, mal engatinhando, já era grande, e maior, muito maior, viria a ser, pouquíssimos anos depois, com Petrarca.

São, ainda, palavras de Burckhardt, sobre a força do seu destino, promissor e radioso, já naquela época: "O soneto deve ser tomado como uma inefável bênção para a poesia italiana. A nitidez e a beleza de sua estrutura, o convite que fazia para elevar o pensamento na segunda parte, que se move mais rapidamente, a facilidade com a qual podia ser decorado, fizeram-no apreciado mesmo pelos maiores mestres. O soneto forçava a uma concentração de sentimentos, de modo tal que se tornou para a literatura italiana um condensador de pensamentos e emoções, como não havia na literatura de qualquer outro povo moderno".

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987. Disponível no Secular Soneto. Acesso em 11 maio 2023.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 08

 

João do Rio (Penélope)

Ora, precisamente, naquela tarde, tendo deixado o seu automóvel no canto da Avenida, a generala Alda Guimarães subia a rua do Ouvidor a pé, para a prova dos vestidos de meio luto no grande costureiro da moda.

Ia, como sempre, impenetrável. Alda Guimarães, que extraordinária mulher! Quando o marido morrera seis meses antes, ela já tinha uma legenda de honestidade heroica. O general, seu padrinho de batismo, e seu esposo, casara aos sessenta anos quando ela tinha vinte. Em vez de ciumento era paternal; em vez de fechá-la, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho da sua glória. E, apesar dos maldizentes dizerem Alda quase virgem, nunca ninguém ousou lhe atribuir sequer um flirt. Alda não amava o marido como o Romeu; mas respeitava-o. Assim, morto o marido e ela rica, bela, esplêndida, séria - o entusiasmo em torno da sua carne e da sua fortuna, foi grande. Rapazes das melhores famílias, aos quais nunca dera atenção, propunham-se para amantes e para maridos; maridos das suas amigas faziam questão de consolá-la. Se não se fechasse, teria a impressão de que a punham em leilão.

Alda Guimarães fechara-se no seu palacete de S. Clemente. A sociedade causava-lhe ainda mais horror sem a companhia do seu velho esposo. Certo não agia de tal modo por hipocrisia, e sim porque nunca amara, porque lhe parecia impossível o desejo e ainda mais o prazer. À sua camarada, a sra. Lúcia de Villaflor, cujos amantes eram inumeráveis, ela confessava:

- Que hei de fazer, se não sinto simpatia por ninguém?

- Mas, minha querida, uma senhora bonita e rica, sem um homem!

- Irei viajar com a Leônia, ao acabar o luto.

Estava convencida da própria invulnerabilidade. E ria, ao pensar naqueles homens todos da sua roda que tanto a irritavam com propostas indecorosamente idiotas. Ainda o melhor da coleção fora o general, bom, sem pretensões.

Era esse o estado de alma e de corpo de Alda Guimarães, ao subir a rua do Ouvidor, caminho do costureiro, quando viu num mostrador de modista uma curiosa e linda série de véus. Parou; deu-lhe vontade de comprar alguns; entrou. Como as vendedoras estivessem ocupadas, notou que vinha do fundo, servi-la, um rapaz, quase menino. Era moreno, forte, com dois grandes olhos molhados e um cabelo tão lindo que só o S. Sebastião de Guido Reni teria igual.

A sua ousadia era misturada de timidez. Ela sentiu o coração bater, um grande calor subir-lhe ao rosto. Reparou-lhe nas mãos. Eram grandes, másculas. Deviam ser quentes... Essa opinião atravessou-lhe o cérebro cristalizando a ideia de que seria bom tocá-las. Foi instantâneo. Encostou-se ao balcão para não cometer a tolice. Mas se retinha o ímpeto, olhava mais o rosto do adolescente, e via uma boca rasgada, vermelha, primaveral. Ele não se apercebia do efeito produzido. O seu esforço era para vender bem.

– Veja vossência estas voilletes...

Tinha uma voz quente, igual, envolvente, jovem.

- Não, decididamente não escolho hoje. Voltarei.

Saiu. Quase a correr. Pareceu-lhe que se operara nos objetos, nas coisas, nas pessoas uma transformação. Tudo esplendia, tudo ria, tudo era suave e alegre. No costureiro escolheu mais três vestidos, depois das provas. Depois na rua lembrou-se de tomar chá e resolveu logo o contrário. Passou pela casa dos véus, olhou sem querer e não viu senão as vendedoras. Tomou o automóvel. Os seus pulsos batiam e as extremidades estavam geladas, as extremidades dos seus lindos dedos. Em casa, foi-lhe impossível jantar. Quis ler. Suspirou, incapaz de atenção. Dentro dos seus olhos, enchendo-lhe os sentidos estava a figura morena e forte, com os cabelos em cachos e as mãos que deviam ser quentes. Deitou-se. Revolveu o leito. Que solidão! Que imensa solidão! Nem a si mesma ousava confessar a impressão instantânea...

No dia seguinte, porém, como acordasse fatigada da agitada insônia, as palavras que dormiam no seu lábio ansiosas soaram a contragosto.

Seria uma simples incidência do desejo esparso na cidade, aproveitando o momento de abandono de sua alma, o momento em que estava menos preparada a resistir? Mas resistir a quê? O rapaz era um simples empregado de casa de modas, que não lhe dera nenhuma atenção especial. Nem podia. Nem devia. Nem ela consentiria. O desagradável é que ele não existia socialmente, não tinha um nome, um título, uma família ao menos. Nunca por consequência poderia pensar em fazer-lhe a corte. Loucura! Ela, generala, ela que se recusara às tentações dos leões dos salões, ela que afastara propostas de homens admirados, ela invulnerável tendo no cérebro a hipótese não de um flirt mas de qualquer coisa de mais positivo com um pobre pequeno. E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem, tão jovem! Não era possível que outras mulheres ainda não tivessem reparado naquela juventude. Com certeza, pobre, já teria tido amantes ordinárias, dessas mulheres que estragam os rapazes e que são livres, inteiramente livres... Talvez mesmo, num estabelecimento onde entram tantas mulheres elegantes, alguma grande cocotte. Mas não! Ele não parecia contaminado. Ele era novo em folha. Coitado.

Uma languidez, entremeada de agitações, reteve-a nos aposentos até a hora do almoço. Desceu. Almoçou como quem tem medo de perder o comboio. Sentou-se ao piano. A música pareceu-lhe o muro imponderável do isolamento em que vivia. Não pôde mais. Subiu. Vestiu-se com requintes e imensas bondades para Leônia, mandou preparar o automóvel, seguiu para a cidade achando urgente escolher os modelos dos novos vestidos. Quando o automóvel parou, foi como se de repente tivesse de decidir da vida. Tinha um enorme peso nos ombros, arfava, tremia, e as vozes chegavam-lhe aos ouvidos como aumentadas por um tubo acústico. Sentia a vertigem e não sabia bem por quê. Andou assim pela rua. Parou diante da montra, ergueu os olhos para ver através dos vidros o interior do estabelecimento. As vendedoras moviam-se servindo as freguesas. Lá ao fundo o rapaz estava a despachar uma cliente. Tinha outro fato. Estava de claro. O esplendor da sua mocidade era maior.

Entrou, sem hesitar; foi direto a ele.

- Pode mostrar-me os véus de ontem?

Ele fez um rápido esforço para recordar-se.

- Ah! Perfeitamente. Um momento, minha senhora...

E ela ficou, humilhada, com o temor de que alguém da loja fosse desconfiar. Passara uma tarde inteira, uma noite inteira, a manhã toda a pensar naquele ente, ela que bastaria acenar para ter vários secretários de legação, e ele não se lembrava dela - vulgar, vulgaríssimo, talvez nos braços de outra criatura. Mas ele vinha solicito, comercial, querendo mostrar-se negociante, com o orgulho infantil de vender bem.

- Nem lembrei que vossência esteve cá ontem. São tantos os fregueses!

Essa ingenuidade deu a ela um pouco de ousadia:

- Que memória!

- Mas logo lembrei. Até estive a mostrar-lhe umas voilettes.

E sorria. Ela então pôs-se a ver os véus de que não tinha aliás necessidade. Ele abria caixas e caixas. Sobre o vidro do balcão jaziam rendas, gazes, tecidos aéreos de todas as cores. Ela, inconscientemente, estabelecera a confusão fatigosa como um estrategista, para tocar uma daquelas mãos que deviam ser quentes e macias. No momento propício, vinha-lhe um frio e não ousava. Para não o desagradar, apartava mais um véu, e continuava. Sofregamente as suas lindas mãos contraíam-se de jaspe sobre o multicor das gazes. O seu colo arfava. Sentia a boca seca, não podia quase falar. Que iria acontecer se conseguisse? Ele compreenderia? Ele falaria cheio de vaidade com a aventura enorme? Ele não recusaria. E depois? E depois?

- Veja a senhora este que é o mais fino.

Ele curvara-se, segurando o véu com as duas mãos. Ela pendeu para a frente de modo a sentir-lhe a respiração. Cheirava a flor murcha. O seu respirar era um arfar de olores. Alda, com um indizível prazer que a percorria toda. estendeu ambas as mãos. Os seus dedos como por acaso roçaram pelas mãos do rapaz. Não se enganara! Elas tinham um morno calor suave ao gelo dos seus dedos.

- Perdão! – disse ele largando o véu.

Ela olhou-o com toda a súbita paixão do instinto, sem forças. Ele ainda não compreendia, tão longe da possibilidade que a sua juventude não tremia. Mas o olhar continuou, continuou carregado de desejo e de súplica, pesado de coisas loucas e deliciosas. Ele sorriu meio indeciso. Ela suspirava forte. olhando-o. Um risco de malícia ingênua clareou-lhe a boca vermelha. Ela estendeu o véu, sem dele despregar o olhar que sorria. Os olhos dele como quiseram adivinhar. Uma onda de sangue encheu-lhe o rosto.

- Minha senhora...

- Como se chama?

- Ferreira. Manoel Ferreira. Onde devo mandar os véus?

No cérebro de Alda Guimarães uma luta entre o receio e o desejo retinha sua resposta.

Com violência e em seu desvario dizia-lhe todos os pavores do preconceito. Com maior força os sentidos inebriados arrastavam-na. Manoel! Um nome bom, macio. E aquelas mãos, aquele hálito, aquela saúde esplendorosa, aquele cabelo... Que fazer? Que fazer? Dar a direção da sua casa? Nunca se comprometeria até aquele ponto. Ia dizer alguma coisa e disse:

- Por que não os leva o senhor mesmo?

Depois da pergunta, o sentimento de pudor foi tanto, que não percebeu o rapaz, tão atônito quanto ela, baixando a voz, murmurando:

- Só quando fechar a loja! É longe?

Foi preciso que ele repetisse a pergunta. Como despedaçada ela indicou o palacete, saiu sem o olhar, trêmula, palpitante, com a face afogueada e os lábios secos. Chegou assim até o automóvel, teve que cumprimentar o secretário da Bélgica, solteiro; recebeu já instalada a saudação longa do velho Lloyd Balfour da embaixada americana, e quando mandou tocar, sucedera-lhe à atordoação um nervosismo de se explicar a si mesma, de se desculpar, de salvar-se do instante alucinado. 

Ela que jamais tivera uma aventura, ela que não pecara por não sentir necessidade alguma, ela honesta que compreendia o outro sexo pelas profissões: um diplomata é um diplomata, um general é um general, um jardineiro é um jardineiro vendo de súbito num pequeno caixeiro de modas um homem! Como podia se ter dado esse horror delicioso? Era preciso afastar as suspeitas dos criados. Lamentáveis, aliás. Porque livre não era livre, e temia preconceitos quando todas deviam fazer coisas idênticas. 

Para se desculpar encontrava na memória as intrigas e as calúnias do seu mundo contra várias senhoras bem recebidas: o escândalo de Sofia Marques com o motorista, o divórcio de Adalgisa Gomensoro por causa de um rapaz que ninguém conhecia, mil histórias outras. Depois, ninguém saberia se ela realmente realizasse. A essa hipótese, um tremor a sacudia. Podia ser um mariola que a difamasse e que até explorasse. Mas tratava-se de um quase menino. Ele não podia ter mais de dezoito anos. E tinha a face ingênua no envolvente e rápido vigor, acrescido de manhãs passadas ao ar livre - porque necessariamente com aqueles ombros, aquela cinta estreita, aquelas mãos, Manoel havia de remar. E as palavras objetivaram-lhe na mente a criatura inteira. Que vergonha! Como seria bom acariciá-lo, beijar-lhe a cabeleira negra, os olhos molhados de luxúria ingênua, apertar-lhe os braços e adormecê-lo de encontro ao peito...

Desse confuso pensar surgiu-lhe a ideia de estabelecer um plano capaz de evitar todas as suspeitas, apesar de não ter nenhum projeto, nem mesmo o de mandar entrar o rapaz. Saltou assim no palacete, pálida, resoluta como um estrategista, espiando nos olhos dos criados a possível desconfiança, subiu aos aposentos acompanhada de Leônia, Leônia a sua defesa! Mas acabava de enfiar um roupão, quando Leônia indagou:

- A senhora não sai mais hoje?

- Por quê?

- Porque se não sair e não receber nenhuma das suas amigas, eu pediria para sair esta noite. É o meu dia de passeio e iria ao teatro.

Alda Guimarães estarreceu. Era a fatalidade. Iria ficar só com o seu desejo? Jamais! Jamais! Não poderia resistir. Voltou-se para dizer a Leônia que adiasse o teatro. Mas ouviu-se dizer:

- Não; podes ir...

E imediatamente achou que devia responder aquilo mesmo, e imediatamente admirou a calma, a naturalidade com que respondera. Leônia não acreditaria no que poderia estar para acontecer. Assim, desde a resposta, dividiu-se em mente: A Alda picada pela tarântula representava um estado de sub-nconsciência, e Alda calma assistia à representação como no cinematógrafo. Que inteligência! Que lucidez!

- Vou passar a noite lá embaixo, ao piano... Podes sair já.

Preparou-se com cuidado, vestiu um vestido absolutamente de interior tanto no seu mole e flutuante modelado a exteriorizava. Desceu para o jantar. A vida solitária, a tristeza dessa vida como a sentia agora no seu interminável bocejo sem preocupações. Era possível existir assim? Não jantou quase. O copeiro grave passava os pratos, sem que ela os tocasse. Antes da sobremesa ergueu-se. Voltara-lhe a ansiedade como um acesso de febre. Todos os ruídos da rua chegavam-lhe aos ouvidos como chamadas de campainha - as chamadas que anunciariam a presença do pobre pequeno. Afinal não se tratava de nenhum personagem! Era pueril o seu medo.

- Antônio, se vier hoje um menino com uma encomenda de véus, manda-o entrar. Quero vê-los à noite antes de os comprar.

- Sim, minha senhora.

- Ah! Não estou para ninguém.

Foi para a pequena saleta íntima, onde havia dois enormes divãs. A saleta, mobiliada com muito gosto, era como certos salões de França, depois das relações com o Grão-Turco - meio francesa meio otomana. E dava para a galeria de entrada. Recostou-se, fechou os olhos. Todo o seu ser enchia de imagem e do desejo da imagem que a desnorteara. O coração batia-lhe de modo que sentia nas artérias do pescoço o seu desordenado bater. Agora, posto que não tivesse definido o futuro, só a assaltava um receio: viria ele? No imenso silêncio, o receio era quase angústia. Era capaz de não vir! Timidez decerto. Talvez, porém não tivesse agradado. Podia ser... O ridículo de desejar e ser repelida... 

Pela primeira vez reparou de fato numa pêndula (relógio de pêndulo) de Boule que o falecido general comprara em Paris num leilão do Hotel Druot. A pêndula tinha um mostrador tranquilo e desanimado. Dizem que o tempo é breve. Não viram o tempo que leva um ponteiro a andar cinco minutos! Quanto pensamos e realizamos e queremos e arfamos na terra para o desconhecido enquanto um relógio pesponta, à toa, cinco longos, intermináveis minutos! Se ele chegasse, se ele não chegasse! O ruído do relógio parecia compor essa alternativa, falar a gangorra do seu pensamento, enquanto a sua carne era como que aos poucos aquecida por um aflitivo desejo de consolo.

De repente houve um breve retinir de campainha. Alda Guimarães teve um sobressalto como se a tivessem tocado na nuca com uma ponta de gelo. Tomou de um livro, abriu-o. Como os criados são lentos em abrir as portas! Era a eternidade positivamente. A campainha fez-se ouvir de novo, ainda mais breve e tímida. Um enternecimento pelo que aquela rápida vibração exprimia fê-la sorrir. O criado passou enfim, devagar, como compete a um criado de casa importante. Ela ouviu um rumor indistinto. O criado tornou a aparecer:

- É o rapaz com os véus. Mando entrar?

- Dê mais luz. Mande.

Fechou os olhos, de pé. Um turbilhão parecia arrastá-la. Quando os abriu, à porta da saleta, respeitoso, com um grande embrulho, estava o adolescente. Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos S. Sebastião em que os sensualistas do renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores. O criado, ao lado, estava firme. Alda Guimarães fez um esforço:

- Trouxe a encomenda?

- Sim, minha senhora.

- Quero vê-los antes, à luz. Pode ir, Antônio.

- Vossência permite? gaguejou o rapaz.

- Entre. Pode desfazer o embrulho nesse divã.

Com um motivo profissional para mascarar o seu enleio andou até o divã num passo que era leve e forte, curvou-se numa curva de estatuária, sem esforço, macio e vigoroso. Talvez tivesse ainda dúvidas, juventude enrodilhada na inexperiência e assustada com aquele luxo que tornava inacessível a mulher ao lado.

Alda Guimarães sentou-se no divã, admirando-o. Como era diverso dos indivíduos que conhecera, rapazes e homens na sua sociedade - que vinca tanto as criaturas na mesma dobra!

- Vossência desculpe eu ter demorado um pouco.

Ela reparava agora no pêssego maduro que era o seu pescoço. Uma desorientada vontade de mordê-lo obrigou-a a indagar:

- Por que não mandou outro?

- Vossência disse que eu mesmo trouxesse. O que eu não pensei é que desejasse ver de novo os véus.

Essa ingenuidade trouxe a Alda uma súbita confiança.

- Não tem levado encomendas a outras casas?

- Não, minha senhora. Isso é para empregados de outra categoria, os principiantes...

- Ah! Já tem uma categoria?

- Oh! bem modesta.

- E que idade tem?

- Fiz dezoito.

- Era o que eu pensava.

Houve um enorme silêncio. Ele abria as caixinhas.

- Diga-me, Sr. Manoel, faz esporte?

- Um pouco de remo, ao domingo, para divertir.

- Era o que eu pensava. Mas para divertir? Na sua idade há outros divertimentos.

- É uma questão de gosto.

Graças ao hábito de sociedade, ela não só falava com desembaraço como falava com o tom de quem trata com um inferior. Graças ao seu oficio ele respondia com desembaraço, conservando o tom de respeito para com alguém socialmente superior. O instinto aproximava-os para a maior das igualdades. Ele indagava sem o saber com a desconfiança maliciosa: "Onde vai ela chegar?" Ela pensava, com o desejo palpitante: "De que modo resolver tudo isso?" Se ela estivesse diante de um cavalheiro da mesma roda a ânsia do imprevisto não existiria, já teria passado à declaração caso consentisse. Se ele estivesse diante de qualquer mulher não indagaria nada. Fatais estados d'alma que se dão sempre quando incide o desejo em seres de diferente situação social. E tão terríveis que o mais desvairado amor não faz esquecer nem a uma superioridade nem a outro grau abaixo. Assim ele poderia arruiná-la, difamá-la, espancá-la até. Nunca esqueceria a preferência e se não fosse muito bom, estaria perdido, cheio de ambições. Assim ela poderia sofrer, amar, perder-se. Mas seria sempre a criatura que dava a preferência...

Nenhum dos dois pensou exatamente isso. Ficaram na pergunta que é a resolução do problema imediato nesse gênero de choques, ele não ousando, ela não querendo ousar para não parecer mal. Mas as mulheres, mesmo as mais honestas como Alda Guimarães, são fortes quando desejam.

Alda Guimarães ergueu-se, tomou um dos véus na ponta dos dedos, agitou-o.

- Como é lindo, à luz!

Ele sorriu.

- Vossência acha?

- E você? Veja!

Agora tomava dos véus - um, dois, cinco - verdes, brancos, cor-de-morango, negros. Eram como amputações de asas de uma ornitologia nigromática em torno dela. As suas mãos cada vez passavam mais perto do rosto de Manoel, cujo sorriso ia se esteriotipando numa fixidez angustiosa. De repente ela voltou-se. As mãos dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela. Ela escorregou no divã bem junto, a cabeça erguida para ele. Manoel ficou sem coragem de avançar nem de recuar.

- Mas, minha senhora...

Os olhos dela, a boca que ela tinha formosa não podiam mais, revelavam demais - porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simoun de desejo, que lhe fazia bater os dentes, e a sua voz rouca indagar, enquanto passava a vista pelas portas:

- Não vem gente?

Alda não soube que gesto fez. Ele curvou-se, a sua boca magnífica sorveu-lhe a dela como se sedenta chupasse um fruto cheio de sumo. Ela tremeu na mesma febre passando-lhe os braços no pescoço. Então ele despejou-a no divã em súbita fúria. Um imenso, delicioso, doloroso acorde de prazer - o prazer que nenhum dos dois sonhara, sacudiu as almofadas do divã. Sem pensamentos, sem outro fim, alheios ao orbe inteiro, no frenesi de atingir ao bem supremo, atingiram o sumo gozo brevíssimo que é a felicidade única da terra.

E foi com infinita amargura que os pretendentes souberam da partida da incorruptível e formosa Alda Guimarães, oito dias depois de a verem na Avenida, em meio luto da viuvez.

Ia num péssimo vapor francês, só com Leônia e radiante. Ninguém, porém, poderia desconfiar que entre os outros passageiros, havia o amor...

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Contos, in https://pt.wikisource.org/wiki/Pen%C3%A9lope

Caldeirão Poético LXII


Delson Tarlé
(Rio de Janeiro)

RESUMO

Imenso mar de amor. Flutuo, em febre,
sobre ti. Temerário, me condeno
ao vendaval do teu corpo moreno,
em que talvez a minha nau se quebre.

Agora, ilha de paz. Sou ave, lebre,
nimbo e céu. Se teu beijo tem veneno,
tem hálito de flor... O olhar sereno
entra em mim como o luar por um casebre.

És raio, és onda, és fúria, és vendaval,
e és voo, és flor, és luar, és paz sentida,
o que minha alma espera e o corpo quer.

Alma tão pura e carne tão sensual!
Céu e Terra, Alma e Corpo, Sonho e Vida
vêm resumir-se em ti, porque és mulher.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Elton Carvalho
(Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994)

LAVRADOR

Nem bem surgiu o rubro da alvorada,
nem bem a noite se aquietou no monte,
já vai o lavrador levando a enxada
e se perde nos longes do horizonte.

E, após uma exaustiva caminhada,
antes mesmo, sequer, que o sol desponte,
rega a terra querida e abençoada
o suor que lhe escorre pela fronte!

Os que tratam da terra todo o dia
e fazem do trabalho uma alegria
têm a chama divina dos heróis.

Há centelhas de luz nos seus destinos:
lavradores são deuses pequeninos
que, da terra e do nada, criam sóis!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Elza Capanema Leitão
(Rio de Janeiro/RJ)

FASCINAÇÃO

Esculpi, com ternura, a musa inspiradora,
querendo dar meu sangue à pedra dura e fria...
Manejando o buril — ardente e inovadora,
de repente, aos meus pés, Apolo ressurgia!

Uma fascinação nasceu — devastadora,
e, enamorada, eu quis, num passe de magia,
dar vida ao seu perfil de estátua sonhadora,
na luta de um artista, amante, em euforia.

Nas formas divinais, loucamente, procuro
uma prova de amor — o que a minha alma anseia,
neste abismo total —, um desejo inseguro!

Porém, inutilmente, a estátua olha distante,
sem perceber a dor e a lágrima que alteia
esta fascinação estranha e apaixonante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Flamínio Caldas
(Campos dos Goytacazes/RJ, 1886 – 1907)

CANÇÃO DA AGONIA

Quando o sangue parar em minhas veias
e cair sobre mim o véu da morte,
tu, que quebraste todas as cadeias
por nosso amor, sê corajosa e forte!

Possam meus olhos, no final transporte,
Ver-te os olhos enxutos. Rindo, creias,
eu cumprirei contente a minha sorte,
aliviado das lágrimas alheias...

Na hora extrema, não quero ver tristeza...
Fale a voz da alegria em cada canto,
nade na luz do sol a natureza!

Que venha, então, a deusa amortecida!...
Mas não chores, que foi todo de pranto
o caminho que fiz por esta vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Idália Krau
(Rio de Janeiro/RJ, 1912 – ????)

A MORTE DO POETA

De asas pandas, o pássaro da morte
rondava aquela noite de tristeza...
Implacável e frio, o vento norte
nossa casa açoitava com rudeza.

O corpo de meu pai, outrora forte,
jazia inanimado sobre a mesa...
Cada círio a queimar em seu suporte,
era a lágrima, a dor chorando acesa!

Finda-se a vida, mas, nem tudo finda,
e ao ler seu livro vi que existe ainda
o eterno coração de um grande esteta;

pois, sua alma cantando em cada verso,
é a doce afirmação, para o Universo,
de que é imortal a vida do Poeta...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Jacinto de Campos
(Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ)

AS DUAS PALMEIRAS

Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balouçando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Vasco de Castro Lima (A Estrutura Primitiva do Soneto)

Chegou o momento em que devemos falar sobre a estrutura e os primeiros passos do soneto. 
Além do que, em seguida, apresentamos, não deve existir muita coisa a pesquisar, a analisar. Nosso trabalho lembra, por assim dizer, uma colcha de retalhos, elaborada por uma costureira paciente e caprichosa que fosse, após a confecção de cada peça de roupa, guardando o pedacinho mais bonito, para depois unir, num conjunto variegado, os minúsculos retângulos e triângulos de tecido. Retângulos que poderiam ser comparados aos quartetos, e triângulos que recordariam os tercetos de um soneto.

Encontramos, no limiar de nossas pesquisas, algumas divergências em torno da maneira pela qual se conseguiu a formação do soneto. Mas, vimos logo, não foi necessário sairmos à procura de um denominador comum que resultasse de cálculos matemáticos de difícil manejo, uma vez que, lá mesmo, nas torres enluaradas do castelo da escola siciliana, a evidência cristalina se impôs, com naturalidade e precisão. Prevaleceram a conscientização lógica e a coerência de raciocínio que inspiraram aquele, ou aqueles, a quem coube o privilégio de alcançar um ideal tão elevado.

Os poetas da corte de Frederico II conheciam e produziam a canção, melhor dizendo, o "strambotto", ou "canzuna", o feitio de canto lírico popular mais antigo e mais disseminado em toda a Itália. Principalmente na Sicília e em Toscana: Sicília, o seu berço; Toscana, sua terra de adoção. O "strambotto" mais comum era composto de oito hendecassílabos (decassílabos para nós, porque não contamos a sílaba que se segue à décima, a mais forte do verso, em qualquer circunstância).

Tinha rimas alternadas, assim:

AB AB AB AB

Eram, portanto, quatro dísticos, que também podiam ser escritos seguidamente, sem qualquer alteração na ordem das rimas, formando um canto monostrófico:

ABABABAB

Mas, nem tudo eram rosas... Os poetas da corte siciliana, evidentemente mais instruídos que os trovadores populares, achavam-se insatisfeitos com a repetição tediosa do mesmo tipo de poesia musicada. Afinal de contas, era uma canção breve, limitada, fútil, que contava, no mínimo, dois séculos de existência. Tornava-se cansativa e, pior, era um poeminha considerado imperfeito, quase medíocre.

Sentiram-se, então, encorajados para criar algo diferente, mais completo, mais profundo, que pudesse aperfeiçoar a poesia, dando-lhe cores mais fortes, ou uma qualidade literária mais expressiva.
Estabelecidas as premissas (obter uma composição poéiica mais extensa e mais significativa), partiram para a conclusão.

Os poetas cultos aceitavam o "strambotto", que poderia formar a primeira parte do projeto. Faltava a segunda. Não seria o caso de se fazer, simplesmente, a união de dois "strambottos", sicilianos, mesmo empregando, como complemento, digamos, o de seis versos, que também se usava, pois, no fundo, permaneceria o mesmo defeito, isto é, a soma de duas canções populares.

Em consequência, veio a ideia de se adicionar, ao strambotto" de oito versos, alguns outros, de rimas diferentes e também decassílabos, em nível mais alto, visando, para o novo modelo de poema, à conquista de um conjunto, ao mesmo tempo, intenso, altissonante, aparatoso e comovedor. Teria de ser, necessariamente, a fusão da poesia popular com a poesia de arte maior.

O meio de superar a dificuldade viria com a justaposição de uma estância independente da canção em voga.

Assim foi feito, e surgiu a segunda parte, mais requintada, que não era senão o acréscimo de dois tercetos decassílabos. Os tercetos já existiam, não só na Sicília, como no sul e no centro da Itália, com o nome antigo de "mute". Assim, CDC DCD, ou CDCDCD.

Neste último caso, unificados, para a formação, preferida por muitos, de um canto monostrófico de seis versos.

Percebe-se, com isto, o mesmo cuidado de disposição das rimas alternadas, na segunda parte, a exemplo do que acontecia na primeira. A novidade consistia em serem diferentes as rimas das duas partes.

A Enciclopédia Italiana atribui a Giacomo da Lentini a escolha da seguinte forma originária, muito provável, do novo poema:

AB AB AB AB CDC DCD, ou  ABABABAB CDCDCD

Estava inventado o "sonetto", diminutivo italiano de "suono" (som, breve melodia), do latim "sonus".

Naquela indecisão primitiva, surgiram, na época, variações como:

AB AB AB AB CDE CDE
ABABABAB CDECDE

De qualquer modo, entretanto, era sempre obedecida a sua estrutura interna, no que se referia às rimas: na primeira parte (quatro dísticos ou uma oitava) havia apenas duas rimas; e na segunda parte (dois tercetos ou um sexteto) duas e até três rimas.

Mario Praz, crítico e ensaísta literário italiano (Roma, 1896), assim se exprime, muito acertadamente: "O soneto originário tinha um princípio par, o da oitava, na qual se reconhecia uma forma siciliana popular, o "strambotto", seguido por um princípio ímpar, o dos tercetos. A causa dessa variação era que a melodia mudava na segunda parte".

O soneto teve imediata e larga repercussão em todo o país.

Nos primeiros tempos, foram compostos, sob o signo da escola nascente, na Sicília e na Itália centro-meridional, cerca de mil sonetos.

Dentre eles, são atribuídos aos poetas da ilha 27, dos quais 25 teriam sido escritos por Giacomo da Lentini, segundo a Enciclopédia Italiana. Além dos poetas da corte de Palermo, cultivaram, pois, o soneto, naquela época anterior a Dante e Petrarca, inúmeros outros italianos, distinguindo-se o bolonhês Guido Guinizelli, e os toscanos Chiaro Davanzeti, Rustico de Filippo, Cecco Angiolieri, Guido Cavalcanti, Buonaggiunta degli Orbiccíani, Folcacchiero dei Folcacchieri, Dante de Maiano e Guittone d'Arezzo, este o mais famoso de todos.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça IX


É ofício de lavadeira mais do que muita gente lhe parece. Precisa-se de uma grande memória, saber mentir e saber furtar. Não cuidem vossas mercês que é aí qualquer oficiozinho de droga! Não digo que seja um ofício que para o servir dê água pela barba; mas, pelos joelhos, quase sempre. Passei nesta cabeça uma vida de Capote. Só duas ou três vezes por ano tirava a coifa da cabeça e assim mesmo rapei frios de bom lote com a história das madrugadas. A tal era casada com um saloio que de quando em quando lhe dava bons socos, no meio dos quais eu me achava muitas vezes, porque o seu forte era atirar-lhe à cabeça.

A tal lavadeira era muito governada. Havia vinte anos que era casada e tinha casa e nem uma só única vez a tinham visto no Fanqueiro a comprar fazenda branca. Apesar disso andava sempre muito lavada e mais o seu homem. O que é o aninho! Ela lavava muito bem e tinha muita freguesia. E então o modo com que ela tinha repartido a roupa dos fregueses! Sempre lhe ficava uma ou duas cargas dela lavada, em casa, para se ir servindo. E assim dava volta por todos e todos se serviam. Mas ela não era de tudo, era de algumas coisas como lençóis, camisas, anáguas, ceroulas, meias, lenços de assoar, de pescoço, alguma saia, alguma coberta, toalhas, panos, guardanapos,  & cia., e assim começava o ano e fechava o ano.

Mas era muito desgraçada. Nunca lhe furtaram camisa velha, sempre era nova. O que a ela lhe sucedia era se a obrigavam a pagar (o que poucas vezes acontecia) sempre a pagava por velha. Era tão governada que, tendo o marido alporcas (intumescência das glândulas do pescoço) e sendo-lhe preciso fios, sabem o que ela fazia? Cortava uma tira ao comprimento das toalhas de mãos, tornava-as a embainhar e daqui tirava fios e ataduras. Também, se não fora a sua agência, era uma pobre de Cristo. O marido ao Domingo sempre trazia camisa de punhos, véstia (casaco curto) e meias lavadas, tudo fino. Graças à mulher que cuidava no seu asseio. Ela amassava em casa e já tinha adquirido os seus três moios de sacos sem fazer maior peso aos seus fregueses porque não tinha senão furtado um a cada um. Parece que lhe crescia a roupa nas mãos. Trazia a roupa aos fregueses, e ficava-lhe roupa. Verdadeiramente, era como diz o ditado: Roupa de franceses. Tinha lenços de assoar que, ainda que ela e o marido viessem a ser os mais ranhosos da sua Freguesia, nunca se haviam de assoar à mão.

Também em algum dia de função alugava o seu camisote a um vizinho que não tinha lavadeira em casa. Numa palavra, era roupa que lhe caía em casa que também lhe não caísse no corpo. E outra coisa que ela tinha! Todos os dias vestia camisa lavada. Função que ela teve boa foi uma cheia que houve na sua terra. Veio abaixo aos fregueses como uma Madalena dizendo que se lhe tinha ido embora muita roupa, que o resto lá estava junta, que a fossem seus donos buscar. Que uma houve freguesa que chorava com ela. Todos lhe perdoaram o perdido. Ganhou na cheia em que muitos perderam mais de cem mil réis. E louvava a Deus por a ter ajudado para dar o dote a uma filha que estava para casar. E dizia, muito satisfeita: — Quando as coisas são para bom fim, tudo vai direito.

Tinha muita felicidade no seu oficio. No fiado, que lhe davam para curar, tinha ela uma advertência que poucos têm: sacava de cada meada um novelinho para a poder curar melhor. E no fim da cura, tinha de dízima as suas duas arrobas de fiado que inculcava a uma das freguesas mais abastadas dizendo que outra, cheia de precisão, a vendia. E desta forma lucrava muito, não furtando quase nada. E tinha a cautela, antes de trazer a teia, de prevenir as freguesas, dizendo-lhes: — Não sei que linhos são estes de agora que quebram tanto.

Nunca enjeitou roupa. Quando era muita e não a podia lavar, deixava-a em casa de um Pasteleiro onde era o seu rendez-vous. E o dono ficava muito contente por lhe ter levado a lavadeira a roupa, quando ela ficava de empate até à volta da dita, que assim mesmo suja muitas vezes servia aonde a deixavam. Tinha tão boa consciência que, perdendo uma vez uma camisa já velha e rota, teimou em pagá-la à dona que, por lhe fazer equidade lhe disse que bastavam seis vinténs! Pois não quis a minha lavadeira. Teimou e deu um cruzado-novo, dizendo: — Ainda que era velha, servia corno nova e então busquemos o meio termo do valor de uma camisa.

Todos lhe louvaram a ação e a verdade. Mas daí a três meses perdeu duas de holanda (tecido de linho) que valiam bem uma moeda cada uma. E deu a mesma razão e o mesmo cruzado-novo, que assim como tinha pago a outra por mais, esta devia ser pelo mesmo pois que era casualidade o ser melhor. E que já agora ficava aquele preço estabelecido a respeito do artigo camisas. Então isto não é igualdade? A respeito de meias, não só as lavava mas também as palmilhava levando por tudo cinco réis. E mais chegou muitas vezes a palmilhar com meias alheias, da terra para Lisboa e de Lisboa para a terra.

Sim, senhores, isto não é graça, é a pura verdade. Por casa nunca usava de sapatos, sempre andava só com meias e dizia ela que lhe saía muito mais barato. Todas as portas do interior da casa tinham lençóis por cortinas. Nunca usou de rodilhas na chaminé, ou guardanapos, ou toalhas. No seu tanto, tratava-se com muita decência. Mas eu, cansado de andar entaipado debaixo de uma coifa, buscava todos os meios de me pôr ao fresco. Até que a sorte me deparou. Foi que um dia que veio à cidade, indo a uma loja de bebidas tomar um copo de café, tirou a carapuça para a qual eu tinha a cautela de passar à espera de qualquer ocasião. Deixei-me ficar em cima da banca donde passei para o tabuleiro dos bolos e, daí, para o armário em que pouco me demorei. Porque metendo o dono da loja, à noite, o lenço do pescoço no dito, passei a ele e no outro dia ao pescoço do tal tratante e no mesmo instante à cabeça, à qual fiz a Carapuça X.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 28: Quando eu partir

 

Lima Barreto (Lourenço, o magnífico)

I

Quem conheceu, antes de 1914, o corretor Lourenço Caruru, hoje não o conhecerá mais. Lembram-se todos que ele ia ali, ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois coquetéis e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não pagar mais. Tinha horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta escola que aprendem com os modestos pilhérias e ditos.

Lourenço Caruru, só no ano de 1917, ganhou líquido oitocentos contos. Nos seus belos tempos dos dois coquetéis por tarde de Colombo, Caruru era um homem morigerado (bem-educado) que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por acaso, uma delas lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a cara-metade lhe aparecesse.

Era homem da família. Depois dos dois coquetéis saía a bongar (buscar) frutas, bombons e quejandos (semelhantes), para levar para os filhos e netos.

Ganhando tanto dinheiro no curto espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado e julgou-se um príncipe magnífico.

A primeira coisa que arranjou foi uma princesa — coisa que não lhe foi difícil nos mercados do Flamengo e do Catete.

Correu a um estofador e disse-lhe:

— Preciso mobiliar um apartamento com gosto. É para uma senhora estrangeira de fino trato. Essa “senhora estrangeira de fino trato” começara modestamente como caixeira de botequim em Estrasburgo, passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí, tentara fazer a “América do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.

O tapeceiro, depois de ouvir o homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o custo do apartamento.

— Vinte contos.

O homenzinho indignou-se:

— Mas, então, o senhor pensa que eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum funcionário público?!

— Meu caro senhor — disse-lhe o negociante —, eu fiz o orçamento médio. Havia nele todo o mobiliário para os quartos de dormir, boudoir (quarto de vestir), sala de visitas etc. etc. Mas se o senhor quer  coisa melhor...

— Por certo! — exclamou o corretor.

— Vou, então, organizar coisa mais requintada.

— Faça e mande a conta. A senhora virá examinar e combinar com o senhor tudo.

Dito e feito: o tapeceiro fez a mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia custar-lhe vinte contos, cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte por cento na transação.

Mas Lourenço não estava satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto da “madama”. Queria quadros, estátuas... arte! De vista, ele conhecia vários rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os julgava capazes de fazerem qualquer trabalho de préstimo.

“Então, aquele tipo que vive na porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que preste? Qual!” Nesse meio tempo, desembarca um afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari, cujos méritos os jornais gabam com os mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele ano de 1918, ganhara, num negócio de cereais e praça de navios, cerca de mil contos, compra-lhe o carregamento todo de quadros, ainda encaixotados na alfândega.

O tal pintor da terra dos faraós mosca-se (desaparece) logo; e, quando Lourenço manda desencaixotar os quadros, fica admirado de só encontrar neles, apesar de ser quase uma centena, a reprodução das pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.

“Madama”, que não tinha levado nada na transação, passa-lhe uma grande descompostura e refuga-lhe os quadros. Lourenço os distribui com os amigos, parentes e, até, leva alguns para a casa da família.

Meses depois, os jornais anunciam que o sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor uma grande coleção de mármores artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no armazém de uma casa da avenida Central.

O magnífico Lourenço lê a notícia e a “madama” também. Dias depois, resolvem ir ver os mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício de atravessar tantos mares bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até eles, não só para receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não suportavam outro, como também para adquirirem alguns.

Essa última parte foi logo alvitrada por “madama”, que, a sós, já tinha examinado a exposição. No automóvel de príncipes, vão arrulhando, ele e “madama”. Chegam, “madama” quer este, Lourenço quer aquele; e ambos querem aquele outro.

Resultado: gastam duzentos contos em estátuas.

Lourenço, o Magnífico, sai radiante com a revelação inesperada da sua cultura artística; mas, subitamente, ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e volta-se de repente, para reentrar.

“Madama” assusta-se.

— Que é Lourenço?

— É preciso pôr o meu cartão em cada um daqueles “calungas” (objetos).

II

Quando Lourenço Caruru, o corretor nouveau-riche, deu balanço dos seus lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou gastar o mais que pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas rodas. Vimos como ele gastou duzentos contos em mármores suecos, a que ele, pitorescamente, denominou — “calungas”. Embora fizesse outros gastos tão avultados, a sua fortuna em nada ressentiu deles, pois os ganhos em especulações da “praça” de navios, de compra e venda de cereais, de carnes e, até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram tais que cobriram todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie (restaurante descontraído), para quem montara uma luxuosa moradia.

Verificando tão extraordinários lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia gastar dinheiro. Ele estava na situação daquele sujeito a quem o diabo dera uma carteira, contendo certa avultada quantia que ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda manhã, ela amanhecia cheia. O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto. Jogava, bebia, viajava, galanteava etc. etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas coisas todas, e, numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto todo o dinheiro da carteira.

O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:

— Então? A tua alma é minha... Não soubeste gastar o dinheiro...

— É que... estou doente.

— Qual, doente! Qual nada! — objeta o demônio. — Se o soubesses gastar, terias escapado do inferno por toda a eternidade.

— Como?

— Fazendo o bem.

Naqueles começos do ano de 1919, Lourenço, o Magnífico, estava em situação semelhante. Ele não sabia como gastar a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo do mobiliário da casa;  e fazia as maiores extravagâncias.

“Madama” não tinha também grande força de fantasia. No fundo, ela era uma pequena burguesa, de gostos simples, que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira alto coturno, de Lady Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos cheia de selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice, pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os parentes e fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu dos justos, apesar de tudo.

Ambos sem fantasia, não atinavam como gastar a melgueira (dinheiro acumulado), cujo ganho na algibeira de Caruru representava a morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.

A história de mudança do mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá; eram andorinhas pra lá. A vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama” gostava, porque sempre “refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal, teve medo do ridículo e parou com a coisa.

Lourenço, o Magnífico, muito menos fértil de imaginação fantasista, estava atarantado, mesmo porque, como o tal sujeito da lenda, não sabia fazer o bem.

Os seus princípios de economia e subordinação a um ganho restrito junto ao seu natural visceralmente seco tinham-no feito viver à parte da Caridade. Sempre embirrara com os mendigos:

— É uma vergonha — dizia ele — que, numa cidade como esta, um homem não possa andar, sem que não encontre dez pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O governo não cria asilos?

Há pessoas que têm medo de defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera ojeriza aos pobres e miseráveis. Eram-lhe como espectros...

Não sabia, portanto, como aplicar os seus desmedidos lucros; e tão enleado estava nessa atroz cogitação que até pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele sabia gastar... Mas... teve medo. “Madama” n. 1 era uma fera de ciúmes (ela é quem sabia de quem os tinha); e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não quis levar o propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.

Uma tarde, em que ele chegara ao seu apartamento, antes de “madama”, esta veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais vespertinos. Falou-lhe “madama” com o seu português bordelengo em que ela queria, na ocasião, pôr muita meiguice:

— Sabes, Lourenço, de uma coisa?

— Que é?

— Acabo de vir de uma exposição de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que foi de uma grande casa russa, cujos membros conseguiram salvar do saque dos sanguinários socialistas que tomaram conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino (gênero de tapeçaria francesa do séc. XV); mas não foi deste que eu gostei. O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”. Queres comprá-lo?

— Quanto custa?

— Vinte contos.

— Estás doida, filha! Ainda se fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para se pôr os pés... Nessa não vou eu!...

“Madama” pôs-se de pé e disse com todo desprezo:

— Burro! Selvagem! Sale singe (macaco sujo)! Pois você pensa que é um tapete qualquer? Ora, bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede. Aprenda, macaquito!

— Não sabia — acudiu o corretor humildemente — mas, se é assim, amanhã terá você o tapete.

Não só comprou esse, como mais outros; e a “madama” ganhou dezoito contos de comissão.

III

Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados (I Guerra Mundial) lhe fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador de belas coisas.

Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não contei ainda foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua biblioteca. 

Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurante mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões — meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico” para as suas algibeiras.

Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros do Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa.

Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho da princesa, “madama”, só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da sepultura do lar burguês e honesto. 

Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos almoços.

Havia morrido um manipanso (homem baixo e barrigudo) célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Commercio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.

Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.

— Não sabes, Caruru, que livros raros há na biblioteca do conselheiro Encerrabodes!

— Estrangeiros?

— Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.

— Por quê?

— Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas, triplicatas e mais.

— Então tens verdadeiras preciosidades?

— Tenho.

— Quando é o leilão?

— Amanhã.

— Vou lá — disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha”.

Despediram-se, e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.

No dia seguinte, o corretor lá estava; Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:

— Dois contos de réis.

Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:

— Quem dá mais?

O “Magnífico” berrou:

— Dois contos e quinhentos.

O comparsa do leiloeiro berrou:

— Três contos!

O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável compra.

Dessa forma, comprou muitos outros.

Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:

— O senhor deve ganhar muito dinheiro na advocacia não é?

— Absolutamente não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.

Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.

Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras soporíferas.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente na revista Careta, Rio de Janeiro, ano xiv, n. 663, 5 de março de 1921.