quarta-feira, 17 de maio de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Graças e milagres)

— LÁ EM CASA, – anunciou o Samuca – vovô botou a mão em cima da cabeça do meu pai e ele virou médico.

— Grande coisa, Samuca, berrou Eduardo. O meu avô botou a mão em cima da cabeça de meu pai e ele virou engenheiro. Hoje constrói prédios, casas, shoppings, supermercados, os cambaus...

—... Como vocês são idiotas. – observou o Maninho – Meu avô Aristóteles botou a mão em cima da cabeça de meu pai e ele virou jornalista. Viaja o mundo inteiro, conhece gente nova, come comidas diferentes, vê os mais diversificados costumes, fala um monte de idiomas...

— Vocês são mesmo uns babacas. – obtemperou “Jorginho da Muleta” - . Meu avô botou a mão em cima da cabeça de meu pai e ele virou pastor. Já comprou duas mansões num bairro nobre aqui de São Paulo, tem fazendas, sítios, chácaras, um barco do tamanho da Lady Laura de Roberto Carlos, e, recente, adquiriu um helicóptero igual ao de Neymar. 

— Quer saber de uma coisa? – Acho vocês todos uns “babacas” – emendou “Lucas Tinhoso”. Meu avô foi mais esperto do que todos os seus parentes juntos. Botou a mão na cabeça de meu pai e ele virou homem casado. Como vocês sabem ele é um excelente pai de família. Tem a sua vida certinha, emprego garantido, e, amanhã, faz uma semana que mudamos para um condomínio de alto padrão em Alphaville. 

Fez pose de gente importante antes de acrescentar:

— Lá moram as filhas de Silvio Santos, o Ratinho tem uma casa, o Carlos Alberto de “A Praça é Nossa” também...  

Nesse momento, a galera, em peso, deu conta da presença de um guri que, cabisbaixo, mirava o chão em silencio:

— E você, Epaminondas, qual o motivo de estar calado feito boi fujão? Perdeu a língua?

— Nada não!

— Como, nada não?... conta aí!...

— Não.

— Pra não ficar por baixo ele está tentando inventar uma desculpa pra nos jogar na cara. 

Samuca se adiantou e fez a sua observação maldosa:

— Vai ver ele não tem avô, nem tio, nem irmão...

— É mesmo! Ele não tem família. – arrematou Maninho caindo numa baita gargalhada – Epaminondas é “desfamiliarizado”.

— E “despaiado”. – acrescentou o “Jorginho da Muleta”

— Que droga é essa, Jorginho? 

— “Despaiado?” – Sem pai, ora bolas!

Epaminondas, contudo, se levantou furioso e colérico. E esbravejou, irado:

— Tenho sim.

— Tem nada...

O guri perdeu a esportiva. Tentou distribuir socos e pontapés em alguns, mas seus esforços redundaram em vão:  

— Tenho... seus idiotas.

— Tem o quê, Epaminondas?

— Tenho avô, tenho mãe, tia e até um primo de vinte e dois anos, campeão de natação cheio de medalhas e pasmem, primo de papai que veio lá do estrangeiro e passou a morar lá em casa...

— E daí?

— Isso mesmo bobão, e daí?

— Então... ele passou a mão em cima da cabeça de meu pai e ele virou corno...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Tertúlia da Saudade 05: Emiliano Perneta

 

Coelho Neto (Frutos maduros)

Todas as manhãs, depois de atentamente examinar as vitualhas (víveres) que entravam para as cozinhas reais, o médico do paço descia ao pomar e, vagaroso, abordoado a um bastão, entre fâmulos (serviçais) que levavam alcofas (cestos de vime), ia de uma a outra árvore, indicando as frutas que deviam ser colhidas. Examinava-as, cheirava-as, apalpava-as e só permitia a colheita das que lhe pareciam bem maduras, tão moles que, ao mais leve toque, logo 
se amalgamassem. Debalde lhe faziam ver que, assim passadas, perdiam toda a beleza e todo o perfume: nem ornavam a mesa, nem convidavam o apetite.

São as que convém ao rei, retrucava o medico.

O encarregado do horto levava-o a ver os pessegueiros carregados de frutos pubecentes (na puberdade), carnudos e corados, cujo aroma rescendia; mostrava-lhe os figos ressumando (vertendo) calda, à volta dos quais era um alegre giro-girar de abelhas; vergava, para que ele os visse de perto, os galhos fartos das laranjeiras e dos limoeiros. Entrando sob as latadas apontava-lhe os cachos piramidais ou, agachando-se nos canteiros, apartava as folhagens expondo os morangos cor de sangue; e o médico sempre a acenar com a cabeça branca: «Que não! Não estavam como convinha. Para que não fizessem mal era necessário mais sol, mais sol e mais orvalho».

E os fâmulos colhiam.

Às vezes, a fruta, de tão madura, esborrachava-se-lhes entre os dedos; outras eram tão chochas (sem suco), tão engrouvinhadas (desgrenhadas) que eles atreviam-se a falar:

— Vede, senhor; reparai. Não é para a mesa de um rei. Dir-se-á que a apanhamos no chão.

— Está como convém, afirmava o velho médico.

E lá ia, sem atentar nas árvores que o atraiam com a beleza e com o aroma dos pomos sazonados.

Uma tarde, sentando-se o rei à mesa e apetecendo-lhe comer figos, pediu-os ao copeiro.

A corbelha (cesto de metal para frutas) em que vieram acamados era de filigrana de ouro, eram, porém, tão feios os berjaçotes (figos de polpa vermelha) que o rei os repeliu de si, com repugnância.

Os pêssegos não lhe agradaram, tampouco as uvas que já se encarquihavam em passas, e tudo mais que da copa lhe traziam em covilhetes (pratinho de louça para doces) preciosos e em condeças (cestas ovais de vime) era devolvido.

Irritou-se o monarca e, atribuindo a culpa ao pomareiro, mandou chamá-lo e, tanto que o viu presente, rompeu em palavras agastadas:

— Para quem guardas tu as boas frutas para que só me mandes as que rejeitam os passarinhos?

— Senhor, a culpa não é minha, senão do médico de V. M. que é quem as escolhe nas árvores. Por mais que eu lhe diga que o fruto deve ser apanhado em tempo — nem tão verde que trave, nem tão maduro que se engelhe, — ele reponta e vai ordenando o que entende. Não me posso insurgir contra quem sabe. Ele é o zelador da saúde preciosa de V. M. e ainda que eu, por muito lidar com frutos, conheça os melhores e saiba quando estão em vez de ser colhidos, calo-me. Frutos não faltam e lindos no pomar, mas que há de responder um pomareiro ao medico d'El-Rei ?

Chamado o médico, que já se havia recolhido à sua quarto, esperou-se longamente que se levantasse e viesse, sempre abordoado, arrastando os passos perros (teimosos) ao longo dos corredores.

Ciente do que se tratava, logo entrincheirou-se na prática, alegando o muito que vira e o muito que aprendera em livros.

— Nada, meu amigo, tornou o rei. Deixemos em paz os livros — todos eles espremidos não chegam a dar duas verdades. Frutos, querem-se de vista e sabor. Nada de figos murchos.

— A prudência, real senhor...

— Conheço-a: é uma senhora que não apaga a lanterna e ainda em pleno dia traze-a acesa porque pode alguma nuvem obscurecer o sol. Dão-na por irmã da sabedoria, essa filha da velhice, no dizer dos velhos. Eu sei. É vezo (costume) servirem aos reis tudo que o Tempo estragou — frutos velhos e homens decrépitos; uns, porque perderam a acidez; outros, porque adquiriram experiência. Assim o que vem à mesa é o repúdio dos passarinhos e o que fala no conselho é a caducidade. Os bons frutos e as inteligências viçosas vegetam no pomar e no mundo até que as gelhas (rugas) os recomendem. Nada, já que os reis são escravos da tradição que, ao menos, os frutos sejam frescos e se o reino não pode crescer com os lanços dos bons espíritos que o paladar do rei não se prive do agradável sabor. Fique cada qual no que entende — o médico, de guarda à saúde e o pomareiro no pomar.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 13

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Entre tua casa e a minha
a estrada não é a mesma:
Vou daqui como cabrito,
volto de lá como lesma.
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Eu subi na laranjeira,
para ver se te enxergava,
cada folha que caía
era um suspiro qu'eu dava...
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Tanta laranja madura,
tanto limão pelo chão,
tanto sangue derramado,
dentro do meu coração!
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Laranjeira ao pé da serra
bota raízes de prata,
querer-te bem não me custa,
mas deixar-te é que me mata.
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As folhas da laranjeira,
de noite parecem prata.
Tomar ardores não custa,
separação é que mata.
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Os passarinhos que cantam
de madrugada com frio,
uns cantam de papo cheio,
outros de papo vazio...
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Beija-flor subiu a serra
para fazer seu testamento.
Não largue os amores velhos
sem saber do fundamento.
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Sabiá canta na mata,
descansa no pau agreste.
Um amor longe do outro
não dorme sono que preste.
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Patativa alegre canta
na palmeira do coqueiro,
eu não canto porque choro
o meu bem-querer primeiro.
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A rolinha canta alegre
os seus felizes amores,
Só eu vivo triste, errante,
curtindo pungentes dores.
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— Ó minha pombinha branca,
gavião quer te comer!
— A poder de pólvora e chumbo,
gavião há de morrer...
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Toda a tarde que Deus dá
pia a triste juriti...
Também não tenho descanso,
me canso pensando em ti.
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0 anum é pássaro preto,
passarinho de verão,
quando canta meia-noite,
Oh que dor de coração!
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Meu passarinho tão manso
das minhas mãos escapou,
para mais penas me dar,
penas nas mãos me deixou.
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Se vires a garça branca
pelos ares ir voando,
dirás que são os meus olhos
que te vão acompanhando.
= = = = = = = = = 

Os galos estão cantando,
e os passarinhos também,
quebram as barras do dia
e aquele ingrato não vem...
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Quando eu era galo novo
comia milho na mão...
Hoje que sou galo velho,
bato com o bico no chão.
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Já fui galo, já cantei,
já fui senhor do poleiro;
mas hoje sou desprezado
que nem cisco no terreiro.
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Senhor Padre, me confesse,
que eu sou filho do pecado.
Eu sou como a sanguessuga,
quando pego, estou pegado!
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A minhoca é bicho feio,
bicho que entrou no chão.
Tu também és muito feio
e entraste em meu coração.
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É bicho nojento o sapo
ou de noite, ou de manhã,
mas eu queria ser sapo
se você fosse uma rã...
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Os peixes nadam no rio,
as aves voam no ar;
Meu coração está preso
nos laços do teu olhar.
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Meu amor é como um rato,
duas vezes um ratinho,
fura aqui, fura acolá,
vai andando o seu caminho...
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Esta noite andei de ronda
como rato de parede.
Procurei, mas não achei,
o punho da tua rede.
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0 tatu me foi à roça,
toda a roça me comeu;
Plante roça quem quiser,
Que tatu quero ser eu.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Nilto Maciel (Cena de Carnaval em Olinda)

Fantasiado de príncipe, o pequeno Maurício bebia goles e mais goles de cachaça. E prometia uma semana de folia. Os amigos também bebiam, riam e davam passos desequilibrados de frevo. Não havia carnaval como o de Olinda. O melhor e mais alegre carnaval do Brasil, do mundo.

A fuzarca tomava conta das ruelas do bairro Ouro Preto. Todos os rádios tocavam frevos. Meninos e meninas brincavam e pulavam junto aos esgotos descobertos. Cachorros latiam e corriam, espantados.

Apareceu um bloco de esfarrapados. E no meio dele se meteu Maurício. Sua majestosa fantasia precisava mostrar a outros curiosos. Aos turistas, aos grã-finos. Aquele povo do Ouro Preto não sabia apreciar beleza. Uns invejosos!

E foram ficando para trás os casebres, as ruas enlameadas, os vira-latas.

Tudo se transformava. Olinda ressurgia em todo seu esplendor. Casarões coloniais, igrejas antigas, lojas e restaurantes modernos. O pequeno Maurício crescia. O carroceiro virava príncipe. E se desgarrava do bloco de esfarrapados, da grei sem rumo.

Ouviu sons de música. Parou. Quis ler o letreiro na parede. Chegou à porta. Homens e mulheres bem vestidos, roupas coloridas, sorrisos escancarados. Toalhas de pano cobriam as mesas. Garçons de branco e preto, circunspectos.

Alguns olhos se voltaram para Maurício. Uns de espanto, outros de desdém. Quem seria aquele homem? Mendigo, palhaço, louco?

— Sou o Príncipe Maurício de Nassau!

Não tardou, escorraçaram-no os garçons. Ali ele não cabia. Fosse para junto dos seus. E o empurraram para a rua.

Enfurecido, o folião esperneava e se dizia príncipe.

E logo chegaram soldados, para impor a paz e levar dali o desordeiro.

— Sou o Príncipe...

— Cala a boca, desgraçado!

E mil cacetadas prostraram para sempre o pequeno Maurício.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Varal de Trovas n. 581

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 83

Preciosidades?
                                 
Quem não as tem.  Algumas das minhas são em forma de letrinhas, que surgem de ideias, pensares, inspirações.  Muitas têm mais de quarenta anos e, de vez em quando, rebuscando os alfarrábios, volto a ler escritos daqueles dias para ver se aprovo o que se passava então na cabecinha do pensador. Relíquias no limbo, guardadinhas, imaculadas.

Quem não terá preciosidades para preservar? Você não tem?  Engana-se  a si mesmo!

Enquanto um ser humano - por menos favorecido material ou espiritualmente - tiver um sopro de vida somado à capacidade sensitiva, alojará no âmago valores exponenciais que farão dos seus dias a razão de ser, de labutar, de viver.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Humberto de Campos (Os colchetes)

Eram cinco horas da tarde, quando, fechado o escritório, o Dr. Godofredo entrou no seu palacete do Flamengo, para levar a mulher a passeio. Enveredando pela casa com a sua liberdade de marido jovem, foi ele encontrar a encantadora senhora de pé, diante do "psyché", recebendo os últimos retoques no seu vestido novo, pronta para sair. Ajoelhada no tapete de pelúcia cor de ouro, a costureira, a boca repleta de alfinetes, pregava aqui, repregava ali, endireitava acolá, ajustando, como o artista ao seu quadro, as últimas curvas, as últimas ondulações da fazenda naquela maravilhosa estátua de carne.

Sentando-se no canapé do quarto de "toilette", o moço olhava, em silêncio, a meticulosidade da costureira, a perfeição do seu trabalho e a paciência do seu modelo, quando, diante daqueles toques e retoques infindáveis, lhe aflorou à boca uma observação:

- Silvia, dizes-me uma coisa?

- Que é? - atendeu a moça, sem voltar-se, com os olhos no espelho.

- Por que é que os vestidos das mulheres, em geral, abotoam para trás?

A costureira riu, cuspindo os alfinetes na mão, estranhando a pergunta; a estátua que ela retocava apressou-se, porém, em explicar-lhe o caso, sorrindo-lhe pelo cristal do "psyché".

- Você, então, não sabe?

E explicou:

- O momento mais glorioso da vida da uma mulher, é aquele em que ela se prepara para sair. Diante do espelho, refletindo-se na lâmina lisonjeira, ela se glorifica a si mesma, olhando-se, mirando-se, namorando-se. Antes de agradar aos outros, ela quer agradar-se a si mesma; e daí as horas que passa diante do espelho, mirando-se, remirando-se, quando lhe seria mais vantajoso estar na rua, no salão, no passeio, recebendo ou fazendo visitas, para ser vista, louvada, admirada.

E depois de uma pausa, forçada por uma recomendação à costureira:

- Com essa paixão por si mesma, pelas suas "toilettes", pelo namoro da sua própria figura, a mulher não poderia admitir, evidentemente, que, ao ir vestir-se, outra mulher se pusesse entre ela e o espelho, para abotoá-la. Seriam momentos de auto-contemplação que ela perderia, e que ela evitou, relegando para trás os botões, os colchetes, os alfinetes, as pressões, e, com eles, a costureira, que deixa de lhes fazer sombra diante do espelho.

Horas depois regressavam os dois do passeio, durante o qual o jovem advogado estivera a meditar sobre a vaidade feminina, refletindo sobre o que lhe dissera a esposa em relação à origem do feitio dos vestidos, quando compreendeu que era mentira tudo quanto ela, à tarde, lhe contara. Foi quando a mulher, preguiçosa e risonha, lhe voltou as costas. pedindo:

- Desabotoa aqui?

A origem daquele costume era, positivamente, aquela. As mulheres puseram os colchetes e pressões dos vestidos para trás, unicamente para os maridos lhes beijarem as espáduas…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 13 –


 A DUAS MÃOS

Quis escrever um poema a duas mãos,
Mas tua mão... num "sem querer" indesculpável...
Roçou a minha, de maneira tão palpável,
Que o inefável nos tornou bem mais que irmãos.

Bastou apenas que o teu verso, após o meu,
Tomasse um rumo passional inusitado,
Que o meu lirismo se tornou tão... desvairado...
Que a estrutura do poema se perdeu.

As nossas bocas rabiscaram o escrito
E o poema que estava tão bonito,
Tornou-se apenas um desenho abstrato

E as duas mãos formaram um rascunho aflito
Do que seria um prenúncio de infinito,
De um doce drama resumido num só ato.
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CORAÇÕES

Uma simples figurinha desenhada
No formato de um modesto coração,
Faz a minha distração emocionada
Mais calada, transformar-se em pulsação.

Se esse coração já vem acompanhado
De um recado cheio de felicidade,
Meu olhar se torna tão inebriado,
Que o meu riso reina em plena liberdade.

O que importa é que quem lê o que criamos,
Com a mínima ternura... e nos responde...
Não esconde que entende o que amamos

Pois quem sente, com amor, o que que enviamos,
Também sabe que os sonhos repousam onde
Também mora o coração que abençoamos.
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COZENDO O DESENCANTO

Meus olhos tão cansados, molhados com este pranto,
Evocam teus encantos, quando eu estou sozinho...
Procuro acalantos, mas nenhum passarinho
Desperta algum carinho ou traz-me um novo canto.

O amor é um bom vizinho, mas ele me dói tanto,
Que quando me aquebranto, sou pássaro sem ninho,
Partida sem espanto, riacho sem moinho,
Costura em desalinho, cozendo o desencanto.

Tatuado no meu peito, teu jeito insinuante
É como um diamante brilhando a luz do dia...
O amor, por ironia, desfaz-se em meu semblante

E a dor mais relevante inunda o meu olhar,
O amor brinca de amar com a hipocrisia
Vendo a vida vazia... eu volto a prantear.
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QUANDO O AMOR DIZ O QUE PENSA

Só um poeta se desmente quando mente:
Ele mistura, em si mesmo, o ser humano
E enquanto um deles faz da arte um novo plano,
O outro apenas se abstrai, sublimemente.

Ninguém descobre, de verdade, o que ele sente,
Poeta é gente e toda gente se difere,
Por isso, tudo que a razão sempre sugere,
O coração transforma em arte... simplesmente.

A emoção é propulsora do sinta
Um coração, quando ele faz, do raciocínio
Uma mistura que repousa no fascínio

Que o dom produz, quando o poeta sonha... e pinta
na tela plana da razão, a arte intensa,
Que sonho faz, quando o amor diz... o que pensa
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VOO SOLO

Quando ao me leres, ganhas asas e te lanças
com teu voo solo, nos azuis que eu invento,
Teu coração, com emoção, baila no vento
Do meu amor e assim, menina, como danças!

Dou-te os azuis da minha doce consciência
De ser feliz... porém te oferto outras cores
Para que possas construir, com teus amores,
O amor que move a leveza da inocência.

Quando te leio, também sou um passarinho,
Que faz seu ninho no teu doce coração
Para que eu ouça teu amor reger baixinho

A harmonia que repousa nos poetas.
É assim que sinto, com a mais pura emoção,
Teu coração pulsar no meu... bem de mansinho.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

JG de Araújo Jorge (A Lua dos Poetas aos Astronautas)

A lua foi sempre território dos poetas e dos namorados.

Há um aparente paradoxo em nosso tempo: enquanto cientistas, físicos e astronautas devassam os espaços com seus projéteis e se apropriam da lua, os poetas  se  voltam  para  a  terra, lançam   raízes  e  procuram  o homem.  Ainda ontem, pensando nisto, escrevi este poeminha:

TEMPOS

Qualquer dia destes
os homens vão encontrar Deus...

Mas não serão os filósofos,
serão os astronautas...

Os astronautas, esses seres fantásticos, caminhando pelo espaço sideral, fora das cápsulas, como escafandros do céu, em levitação, serão os primeiros habitantes do romântico satélite. E entre eles, se houver mesmo algum poeta, leremos algum dia o  primeiro poema lunático, que a terra  há  de  inspirar...   Mas  a  verdade  é  que, enquanto isto ainda não acontece, a lua continua a musa  em atividade.  Os poetas sempre   foram   tidos  como  homens  que  vivem "no mundo da lua".   E  quando alguém tem um ar de abstração e de sonho, é um poeta.

A lua já foi símbolo de boa, da melhor poesia brasileira de todos os tempos.  Desde a poesia de rua, dos trovadores, dos violeiros, dos seresteiros, até a poesia dos livros, dos grandes literatos.

Quem não se lembra, por exemplo, daqueles versos que acordaram tantas namoradas, enquanto o violão lá fora, pela madrugada, era dedilhado ao luar?

"Lua, manda a tua luz prateada
 despertar a minha amada
 quero matar meus desejos
 sufocá-la com meus beijos. . . "

E os grandes poetas brasileiros, como os de todo o mundo, não ficaram insensíveis à beleza da rainha da noite, ao seu mistério e aos seus encantos.  Mesmo  com os pés no chão, olham para o alto.  E se a lua vai-lhes sendo roubada, restam-lhes as estrelas, aquelas mesmas que Bilac ouvia, recomendando:

"Amai, para entendê-las
pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Eu já a vi simbolizando a própria poesia:

"Tudo é trova, a flor, a onda,
a nuvem que passa ao léu
e a lua, trova redonda,
que a noite canta no céu..."

As  mais  curiosas  e lindas imagens ocorreram aos românticos, parnasianos, simbolistas,  modernos,   líricos  de  todas  as  escolas.  Para Alberto de Oliveira, o hierático parnasiano, o

"luar era um cortinado
 todo lírios na barra, e em cima estrelas".

Catulo, o nosso Catulo, que enriqueceu a poesia com imagens simples, num típico linguajar sertanejo, diz que:

"o céu parecia uma tigela
 cumo  o fundo azu imborcado
 todo ismartado de novo
 adonde a lua tão bela
ia boiando, amarela
cumu uma gema de ovo"

Até o nosso singularíssimo Augusto dos Anjos contribuiria com uma imagem, bem a seu jeito:

"Do observatório em que estou situado
a lua magra, quando a noite cresce
vista, através do vidro azul, parece
um paralelepípedo quebrado."

Está claro que esta não seria a visão dos românticos ou dos simbolistas. Para Cruz e Souza, ela se transfiguraria:

"Ó monja branca dos espaços
parece que abre para mim os braços
fria, de joelhos, trêmula, rezando."

E Alphonsus de Guimarães, das altas montanhas mineiras, como que completaria a estrofe:

"... Parece que se ouve o leve passo
da lua pobre morta que passeia
nos castelos hieráticos do espaço."

Castro Alves havia de associá-la a lembranças de amor. E ei-lo  declamando:

"Entre rendas sutis, surge medrosa
a lua plena, qual moreno seio."

Olegário Mariano, outro amoroso, teria impressões semelhantes:

"Entre as árvores surge a lua
como uma náiade nua
mostrando em suaves coleios
o torso, os braços
os seios."

Seriam  infinitas as   citações.   Antigos  ou  modernos, os poetas de todas as épocas  se  enfeitiçaram pela  beleza  sua  beleza.  Não poucas vezes foi invocada  como testemunha de amor.

Desde o  idílio de Romeu e Julieta, no drama shakespeariano:

"Linda! Por esta lua que tem zelos
por ti, por este límpido luar,
que é menos puro do que teus cabelos
que brilha menos do que teu olhar..."

E a réplica, bem feminina de Julieta:  "Não jures pela lua que é inconstante!"

Certa vez coloquei como epígrafe de meu livro "A Outra Face", este pensamento: 

"O poeta em mim, é como aquela face da lua que ninguém vê, voltada sempre para o infinito."

Não faz sentido mais. Hoje os astronautas e os foguetes teleguiados já fotografaram até a "outra face " da  lua. Nosso  lindo satélite não posa mais de "odalisca", com veuzinho no rosto.

Sinal dos tempos. Aviso de despejo. A lua pertence agora aos seus novos donos. Contentem-se os namorados com o luar, e os poetas, com a saudade.

"Se o cotidiano te parece pobre, não o acuse: acusa-te a ti próprio de não seres bastante poeta para conseguires te apropriar de suas riquezas."

Como quem diz: não desesperes. Colhe o mundo ao teu redor.

Aí estão o homem e suas fronteiras. Aí está, portanto, a poesia.

Rejubila-te, enquanto os foguetes sobem. A poesia sobreviverá ao ano 2000 e a todos os tempos. E por isto justamente: porque está dentro de ti e em tudo que te cerca, é que ela é imortal.

A lua dos verdadeiros poetas é a sua poesia, e esta é um satélite onde só eles podem chegar. Mas cujo luar pertence a todos nós...

Fonte:
JG de Araujo Jorge . No Mundo da Poesia. RJ: Edição do Autor, 1969.

Irmãos Grimm (O Velho Sultão)


Um pastor tinha um cão muito fiel, chamado Sultão, que já estava muito velho, e havia perdido todos os dentes. E um dia, quando o pastor e a sua esposa estavam diante da casa, o pastor disse: "Vou matar o velho Sultão amanhã de manhã, porque ele não tem mais utilidade." Mas a sua esposa falou: "Pelo amor de Deus, deixe a pobre e fiel criatura viver, ele nos serviu durante tantos anos, e nós temos que oferecer a ele um jeito dele viver para o resto dos seus dias." "Mas o que poderemos fazer com ele?" disse o pastor, "ele não tem nem um dente na boca, e os ladrões nem se preocupam com ele mais, com certeza ele nos serviu muito, mas ele fazia isso para ganhar o seu sustento, amanhã será o último dia dele, e isso já está decidido.”

O pobre Sultão, que estava sentado perto deles, ouviu tudo o que o pastor e a sua esposa diziam um para o outro, e ficou muito assustado ao pensar que amanhã seria o seu último dia, então, à noite ele foi até o lobo, que era seu grande amigo, e que morava na floresta, e contou a ele todas as suas preocupações, e como o seu dono pretendia matá-lo na manhã seguinte. 

"Fique tranquilo," disse o lobo, "Eu vou lhe dar alguns bons conselhos. O seu dono, como você sabe, sai todas as manhãs bem cedinho com a esposa e vão para o campo, e eles costumam levar seu filhinho com eles, e o deixam atrás da sebe debaixo da sombra enquanto eles trabalham."

"Então, você deve ficar perto da criança, e fingir que a está vigiando, e eu vou sair da floresta e fugirei com ela, você deve correr atrás de mim o mais rápido que puder, então eu vou deixá-la cair, e você a levará de volta, e eles pensarão que você salvou a criança, e ficarão tão gratos a você que eles vão tomar conta de você enquanto viver." 

O cachorro achou que o plano era muito bom, e tudo ficou combinado. O lobo correu com a criança pelo caminho, o pastor e a sua esposa começaram a gritar, mas o Sultão logo o alcançou, e trouxe o pobrezinho de volta para o seu dono e a sua dona. 

Então, o pastor bateu levemente na sua cabeça, e disse: "O velho Sultão salvou a nossa criança do lobo, e portanto, ele viverá e nós tomaremos conta dele, e daremos muita comida para ele. Mulher, vá até lá em casa, e dê para ele um bom jantar, e deixe que ele durma na minha almofada velha enquanto ele viver." 

E então, desse dia em diante Sultão teve tudo o que sempre desejou.

Pouco depois, o lobo veio e lhe desejou felicidades, e disse: "Agora, meu bom amigo, você não precisa mais ficar contando histórias, apenas vire a cabeça para o outro lado quando eu quiser saborear uma das deliciosas e gordas ovelhas do velho pastor." 

"Não," disse o Sultão, "eu tenho que ser sincero para o meu dono." 

Todavia, o lobo achou que ele estava brincando, e uma noite ele se aproximou de uma deliciosa guloseima. Mas o Sultão tinha contado ao seu dono o que o lobo pretendia fazer, então o dono ficou esperando o lobo atrás da porta do celeiro, e quando o lobo estava distraído procurando uma ovelha bem gorda, ele levou uma porretada bem forte nas costas, que a sua crina ficou toda eriçada.

Então, o lobo ficou muito bravo, e chamou o Sultão de "velho trapaceiro" e jurou que ele se vingaria. Na manhã seguinte, o lobo mandou que o javali desafiasse o Sultão para que viesse até a floresta para resolver o problema. Agora, o Sultão não tinha ninguém para lhe apoiar, com exceção do gato com três pernas do velho pastor, então ele levou o gato consigo, e enquanto o coitadinho ia se lambendo com alguma dificuldade, o gato ia caminhando com a cauda levantada para o ar.

O lobo e o javali foram os primeiros a chegar, e quando eles espiaram os inimigos que estavam chegando, e viram a longa cauda do gato levantada no ar, eles acharam que ele estava carregando uma espada para o Sultão lutar, e cada vez que o gato se lambia, eles achavam que o gato estava pegando pedras para atirar neles, então eles disseram que eles não queriam mais esse tipo de luta, e o javali foi se esconder atrás de um arbusto, e o lobo pulou para cima de uma árvore. Sultão e o gato logo apareceram, e olharam ao redor e ficaram perguntando porque não havia ninguém ali.

O javali, todavia, não havia se escondido totalmente, pois as suas orelhas ficaram para fora do arbusto, e quando ele chacoalhou uma delas por um momento, o gato, vendo que algo estava se movendo, e pensando que fosse um rato, pulou em cima dele, e mordeu e arranhou, de modo que o javali saltou para fora e grunhia, e fugiu, e saiu gritando "Olhe lá em cima da árvore, lá está o culpado." 

Então eles olharam para cima, e viram o lobo sentado no meio dos galhos, e eles o chamaram de "patife covarde", e não permitiram que ele descesse dali até que sentisse muita vergonha de si mesmo, e prometesse voltar a ser amigo do velho Sultão.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. 

Live Análise do Conto “O Mineirinho”, de Clarice Lispector (dia 18 de maio, quinta, 19hs)



Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado

domingo, 14 de maio de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 24

 

Marques de Carvalho (Rio abaixo)


Ao dr. Gaspar Costa

A canoa seguia mansamente, por si só, impelida pela correnteza.

Sentado à proa, fumando num cachimbo de longo taquary (bambu), o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e esguios açaisseiros e as longas folhas das bananeiras dum verde-claro alegre, beijados pelos últimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na popa, debaixo de um toldo de palha de ubim (espécie de palmeira), estava o senhor moço, abanando-se com uma ventarola de penas vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fora, por um dos pequenos postigos laterais. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de língua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visíveis.

O cheiro acre da maresia saturava o toldo. Periquitos gritavam nos matagais da ilha próxima; cantos sonoros de pássaros chegavam até a embarcação, numa suavidade docemente melancólica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois viajantes.

— Que bonita paisagem, Antonio!

— É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias imensamente da viagem.

— Quando chegamos ao sítio?

— Ás 9 horas, isto é, daqui a três ou quatro.

— É pena chegarmos tão cedo!

— Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se num ímpeto de prazer extraordinário.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para eles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada fumaça, para tranquilizar-se.

Os outros, os dois recém-casados, — porque Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias antes, — experimentavam, debaixo do toldo, uma sensação de inefável bem-estar ao verem-se naquele majestoso sossego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente, — com o olhar cheio de carícias, — por haverem podido esquivar-se à vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banais, nulas, pouco interesse lhes davam. Mas agora, — como iriam viver felizes durante aquela quinzena de fuga, na tranquilidade bucólica da roça, sozinhos, passeando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam à hora do jantar, comendo peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas matas do sítio?!....

Sugeridas pelo sopro de sossego que parecia rodea-los no meio do rio, estas ideias levaram-nos a conversar animadamente, risonhamente, sem atentarem a que o sol não mais vibrava os látegos luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canoa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava num movimento descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado à proa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixara um rastro avermelhado no céu, onde agrupavam-se em desordem nuvenzinhas cor de nácar, violetas, azuladas, plúmbeas, cor de pérola. Do lado oposto, levantava-se a noite, num andar manso, matemático, extinguindo pouco e pouco o crepúsculo bruxuleante.

O gorjeio dos pássaros cessara na ilha das Onças, que já tinha ficado atrás, à longa distância; só chegavam à canoa os compassos em andante do canto de um carachué (sabiá) que saudava a noite duma pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.

— Vê aí no meu relógio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

— Seis e trinta e oito, senhor.

— Oh! então saiamos daqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fora.

Luiza soltou uma exclamaçãozinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma sátira de Júlio Cezar, com a sua voz dum timbre argentino como um filete de água morna caindo numa banheira de ouro lavrado:

— Ah! — fez ela.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao ombro do marido, extasiada, em frente ao pitoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo naquele sítio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas duma vegetação opulenta, que esbatia-se em uns tons escuros, quase indecisos, no limite do horizonte. Um sossego de tabernáculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete (quase negro) do céu, onde as estrelas começavam a cintilar como as pedras preciosas de um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem ocupava nesse instante um espaço do firmamento. Ao longe, à direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A água do rio, no fim da vazante, esgueirava-se pelo costado da canoa num murmúrio dolente. Súbito, na solenidade do silêncio, ressoou um grito de ave noturna.

— Acende a lanterna, José, — disse Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois à sua posição habitual na proa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras floridas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi à popa buscar um xale, cobriu-lhe com ele os ombros, aconchegando-lhe muito ao pescoço, amorosamente.

Depois sentou-se ao lado dela. Era profunda a escuridão. Do lugar em que achavam-se, apenas viam na proa um ponto vermelho como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornara invisível na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem naquela solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil coisas que lhes compunham o passado de tão agradáveis recordações. Era para ambos uma inarrável felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripécias do curto namoro, dos longos anos que ele passou a ama-la silenciosamente, das emoções e impaciências do dia do casamento, quando aproximava-se a hora em que o pároco de Sant’Anna teria de uni-los.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, numa excitação dos sentidos. Um movimento instintivo, — inconsciente, talvez; cheio de afeto e volúpia, com certeza, — uniu-lhes os lábios num prolongado beijo de paixão, vibrante como um coro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Pôs-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvagem e cheia de grandiosidade das florestas amazônicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu àquele beijo nascido de duas bocas amantes no silêncio de tão linda noite paraense.

Entretanto, a canoa seguia mansamente, rio abaixo, impelida pela correnteza.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman