sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) - Capítulo 20: Reflexões

Quando Enila era criança, Vó Gorda sonhou que a menina poderia sofrer um acidente caso montasse cavalos. Por isso nunca montou. Ela não acreditava em previsões, menos ainda em previsões trágicas. Mas para não deixar seus pais preocupados, não montava. Só que naquele dia ela estava especialmente feliz. A data do casamento se aproximava, e na companhia do noivo, vindo de uma longa viagem junto de seu irmão, Bruno, ambos militares, se distraiu das preocupações que os pais tinham sobre a tal previsão, e montou. Primeiro, junto de Júlio, depois, sozinha. 

 Estou adorando – disse ela.

 Não te empolgues. Não estás acostumada – disse o noivo. 

 Vou treinar. E me assemelhar a uma amazona. Tu vais ver.

 O almoço está pronto – gritou Vó Gorda, da janela. 

– Mas, guria, desce desse animal, agora - ordenou. 

Enila obedeceu. E sorridente beijou seu amado. 

 Filha, não tem que ficar montando cavalos. Sossega.

 Calma, mãe, está tudo bem.

 Deixa a guria fazer algumas vontades – pediu o irmão com seu jeito despreocupado. 

 É, está tudo bem. Vamos almoçar em paz – disse o senhor Fiore.  

Vó Gorda recolheu em si, zangada. 

 Estou muito feliz. Hoje, Júlio me levou para ver a nossa futura casa. É tão bonita – disse Enila.

 Eu e seu pai passaremos lá mais tarde, minha filha.

 Ah, não deixem de ir... Já tem um jardim colorido e perfumado, pronto, e à nossa espera. 

Enila e Júlio passaram o resto do dia juntos, falando sobre o presente e sobre como seria viver futuramente num lar cheio de crianças.

 Eu quero ter cinco filhos. Quer dizer, três filhas e dois filhos homens – disse o noivo.

 É muito. Teremos um casal. – retrucou a prenda. 

 Enila, meu amor, quanto mais filhos, melhor. Imagina que coisa linda poder viver numa casa cheia de crianças brincando, correndo de um lado a outro.

 E também brigando, chorando, caindo, nos enchendo de sustos.

 Não sejas pessimista. 

As horas foram passando. O sol se despedindo, dando lugar à dona lua, a senhora entendedora guardiã de todos os mistérios da vida. 

No aconchego de sua cama, no calor macio dos cobertores, Enila abriu a Bíblia num trecho que a fez refletir: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações.” Tiago 1.2 

“Não passo por grandes provações... Minha vida é boa: comparo a um campo plano, reto, de gramado verde intenso, bom para sentar junto de quem amo e fazer piquenique. Não preciso escalar montanhas para superar as dificuldades do dia a dia, tampouco preciso lutar para realizar sonhos. A vida é muito generosa comigo. Minha vida é um pampa de céu aberto, aonde as bênçãos fizeram morada. Apesar de tudo, não sou mimada. Meus pais souberam me educar muito bem, e acho que não é errado pensar que possuo uma boa alma. 

No entanto, por vezes, fico a desejar passar por alguns percalços, me deparar com as contrariedades da existência. Não seria mais interessante viver entre os altos e baixos da vida? Penso no caso de Isadora, aliás, nos muitos casos que ela tem a resolver. A vida está sempre a testá-la. Ela sofre, mas veja só que paradoxo curioso: por vezes, ela parece mais plena do que o resto da humanidade. 

Não estou a invejá-la. A admiro com sinceridade. Ela é a irmã que meus pais não puderam me dar. Tenho mesmo muita sorte. Mas Isadora me deixa curiosa...

Talvez seja uma questão de capacidade. Não sei se eu teria talento para sobreviver a questões trágicas toda hora. Melhor parar de pensar. Quem sabe quando eu acordar o dia me traga algumas respostas para essas minhas repentinas e intrigantes perguntas....
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continua...

Fonte: Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 38

 

Mensagem na garrafa – 19 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

William Shakespeare
Stratford-upon-Avon/Inglaterra (1564 – 1616)

Corra atrás dos Sonhos

Persiga um sonho, 
mas não deixe ele viver sozinho.
Descubra-se todos os dias, 
deixe-se levar pelas vontades, 
mas não enlouqueça por elas.
Procure, sempre procure o fim de uma história, 
seja ela qual for.
Dê um sorriso para quem esqueceu como se faz isso.

Acelere seus pensamentos, 
mas não permita que eles te consumam.
Olhe para o lado, alguém precisa de você.
Abasteça seu coração de fé, não a perca nunca.
Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os.

Procure os seus caminhos, 
mas não magoe ninguém nessa procura.
Arrependa-se, volte atrás, peça perdão!
Não se acostume com o que não o faz feliz, 
revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças,
mas não deixe que ele se afogue nelas.

Hans Christian Andersen (A ave dos cânticos do povo)


Inverno. A camada de neve que recobre a terra parece uma capa de mármore, talhado da rocha. O ar é límpido e claro, o vento, afiado como uma espada de aço batido. As árvores erguem-se, cobertas de corais brancos, como amendoeiras em flor. A atmosfera é leve e fresca como nos cimos dos Alpes.

À luz da aurora boreal, a noite é magnífica, no esplendor de estrelas sem conta.

Vem as tempestades. As nuvens levantam-se no céu, sacodem-se e deixam cair plumas de cisne. Os flocos de neve turbilhonam, cobrem desfiladeiros e casas, campos abertos e ruas fechadas. Mas nós estamos sentados na sala aquecida, ao pé da estufa cheia de brasas, contando histórias dos tempos antigos. Ouçamos uma lenda:

Erguia-se à beira-mar um túmulo pré-histórico. À meia-noite achava-se sentado sobre as pedras o espírito do herói ali sepultado, e que fora outrora um rei. Luzia-lhe na fronte o diadema de ouro, enquanto o vento lhe agitava os cabelos. Estava todo revestido de ferro e aço. A cabeça pendia-lhe, pesarosa, sobre o peito; e o espírito suspirou, como se mágoa profunda o abatesse: dir-se-ia uma alma penada.

Aproxima-se um navio; a marujada lança âncora e desembarca. Vem entre os marujos um poeta, que se acerca do espírito do rei, indagando:

-  Por que estás triste? Que é que te aflige assim?

E o defunto respondeu:

- É que ninguém contou os meus feitos. Estão todos mortos, esquecidos. Nenhum canto os transmite a outras terras, nem os grava no coração dos homens. por isso não encontro paz nem descanso.

E o espectro falou de suas obras, de suas façanhas, conhecidas dos seus contemporâneos, que não tinham celebrado, pois que não havia entre eles um só poeta.

Então o bardo tangeu as cordas da lira e cantou; cantou o valor juvenil do herói, a força do homem, a grandeza das sua boas ações. E, ao ouvi-lo, o rosto do morto resplandecia, como a orla da nuvem à luz do luar. Alegre e feliz ergueu-se o vulto, rodeado de raios e de  auras, e sumiu-se, como a aurora boreal. Só se via agora o túmulo coberto de grama verde, cujas pedras não tinham letra alguma. Mas sobre ele esvoaçava aos últimos acordes da lira, e como se desta vez tivesse saído, uma avezinha, um passarinho encantador; tinha a voz sonora do tordo, a voz animada do coração humano, o próprio som da pátria, tal como o ouve a ave de arribação. E o passarinho voou sobre montanhas, os vales, os campos e bosques: Era o ave dos cânticos do povo que nunca morre. E nós ouvimos o seu canto. Ouvimo-lo agora na sala, enquanto lá fora as abelhas brancas caem em exames e a tempestade se abate sobre as coisas. A ave não canta somente a nênia do herói - canta também cantos de amor, meigos e suaves, e cantos ardentes, cantos numerosos, da lealdade que impera no  Norte. Canta contos de fadas, em palavras e sons, adágios e máximas rimadas, que, dispostas como runas sob a língua do finado, o constrangem a falar.

E é assim, que o cântico do povo fica sabendo tudo da sua terra natal.

Nos velhos tempos pagãos, na era dos "vikings", a voz da ave ficou morando na harpa do bardo.

Nos dias dos castelos dos cavalheiros, no tempo em que a balança da Justiça se erguia do punho fechado do forte, na era em que a razão repousava na força, naqueles tempos em que um camponês não tinha mais valor que um cão - onde iria a ave do cântico do povo encontrar abrigo e proteção? Nem a rudeza nem a estupidez se preocupavam com ela.

Mas no mirante do castelo feudal, a castelã, sentada diante do pergaminho, anotava velhas recordações e lendas e cantigas antigas: a velhinha do bosque e o mascate que anda vagando pelo mundo vão visitá-la, e contam-lhe essas lendas e essas cantigas- e eis que a ave voa por sobre a sua cabeça, batendo as asas, gorjeando e cantando, a ave que nunca morre, que não morrerá enquanto houver na terra uma colina onde possa pousar: a ave dos cânticos do povo.

Agora chega até nós o seu canto. Lá fora tudo são trevas e cai neve. Ela nos insinua as runas debaixo da língua. Conhecemos a nossa terra natal. Deus fala conosco na nossa língua materna - na voz da ave dos cânticos do povo . Ressurgem as velhas recordações; avivam-se as cores desmaiadas; a lenda e o canto instilam uma bebida abençoada, que eleva a alma e enobrece os pensamentos a tal ponto que a noite se transforma em uma festa - uma festa de Natal.

Turbilhonam os flocos de neve; estala o raio; impera a tormenta, pois dela é o poder: ela nos domina - e contudo não é Deus, não é Nosso Senhor.

Inverno. O vento corta como uma espada de aço batido. Turbilhonam os flocos de neve. Parece que está nevando há dias, há semanas; a neve se acumula sobre a grande cidade, numa montanha imensa, como um pesadelo na noite  hibernal. Tudo o que há na terra está oculto: desapareceu tudo, exceto a cruz dourada da igreja, símbolo da fé. A  cruz ergue-se acima do túmulo de neve, brilhando no ar azul, à clara luz do sol.

E sobre a cidade sepultada voam as aves do céu; voam as aves, grandes e pequenas, gorjeando, chilreando, piando, cada uma com a voz que Deus lhe deu.

Vem em primeiro lugar o bando de pardais, piando ao menor incidente que apareça na rua e na travessa, no ninho ou na casa; eles sabem histórias de todas as peças das casa, e dizem:

- Piu, piu, piu! Conhecemos a cidade sepultada! Piu, piu! Tudo que ali vive tem voz: Piu, piu, piu!

As negras gralhas  e os corvos negros voam sobre a neve branca:

- Grasn! grasn! grasn!

Eles queriam dizer: Sepultura, sepultura! Mas a língua não ajudava ; e então grasnavam.

Lá embaixo talvez ainda se arranje alguma coisa para o papo - e é isso o que serve, afinal, segundo a opinião da maioria dos que lá vivem. E é uma opinião respeitável, a  da gente grave! Grav! grav! grav!

É isso; não podiam dizer o que pretendiam, porque a língua não ajudava.

Vem os cisnes bravos, com as asas a zunir, e cantam coisas magníficas, coisas grandiosas, que ainda um dia hão de brotar dos pensamentos e dos corações humanos lá embaixo, na cidade que descansa, sob a camada de neve.

Lá não há morte; lá reina a vida. E nós a ouvimos, nos sons que retinem como o órgão da igreja, que nos comovem como as melodias de colina dos silfos, como os hinos de Ossiam; como o bater ruidoso das asas das valquírias. Que harmonia! Ela fala ao nosso coração, elava-nos as ideias- é a ave dos cânticos do povo que estamos ouvindo....

Nesse instante vem do céu um bafejo quente. os montes de neve enchem-se de fendas, por onde penetra a luz do sol. Vem a primavera, vem as aves, novas gerações de aves, com as mesmas vozes da Pátria.

Escuta a história do ano:

O poder da nevasca, o pesadelo da noite hibernal- tudo se transforma, tudo se eleva, ao esplêndido gorjeio da ave dos cânticos do povo, da ave que jamais há de morrer!
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NOTA:
Bardo: Um bardo, ou aedo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, lendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados. Era simultaneamente músico e poeta e, mais tarde, seria designado de trovador. É a principal raiz da música tradicional irlandesa. O bardo usava frequentemente um alaúde para tocar suas melodias e músicas, que contavam na maioria das vezes uma história triste.

Fonte:
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837. Disponível em domínio público

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXII

  
 TRILHA SONORA
 
MOTE:
Do cair da noite à aurora,
a chuva, em suave rumor,
fez toda a trilha sonora
das nossas cenas de amor.
Almerinda Liporage 
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
DO CAIR DA NOITE À AURORA,
uma linda melodia
eternizou nosso agora
pincelado de poesia!
 
Caindo, assim, displicente,
A CHUVA, EM SUAVE RUMOR,
uniu muito mais a gente,
uniu no mesmo calor!
 
Incessante, noite afora,
a chuva, com emoção
FEZ TODA A TRILHA SONORA
da nossa grande paixão!
 
Ao som da chuva caindo
amamos com mais ardor,
lembrando, sempre sorrindo,
DAS NOSSAS CENAS DE AMOR.
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NOSSAS SOMBRAS
 
MOTE:
No fim da tarde, alongadas
e unidas pelo carinho,
nossas sombras de mãos dadas,
enchem de luz o caminho!
Aloísio Alves da Costa  
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
NO FIM DA TARDE, ALONGADAS
pelo sol que vai se pôr,
as sombras apaixonadas
são o retrato do amor!
 
As vejo quase sorrindo
E UNIDAS PELO CARINHO,
nossas sombras, que vão indo
devagar...devagarzinho...
 
Parece um conto de fadas
essa cena tão bonita,
NOSSAS SOMBRAS DE MÃOS DADAS,
numa ternura infinita!
 
Esse amor... e essa ternura,
com a maciez do arminho,
nos dando imensa ventura,
ENCHEM DE LUZ O CAMINHO!
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   MADRUGADAS INSONES
 
MOTE:
Ao ver-te em roupas ousadas,
que os pensamentos devassam,
passo, insone, as madrugadas,
e as madrugadas não passam!...
Edmar Japiassu Maia  
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:  
AO VER-TE EM ROUPAS OUSADAS,
o meu ser todo se excita
e as tuas formas marcadas
dão uma visão bonita!
 
São grandes as sensações
QUE OS PENSAMENTOS DEVASSAM,
e imensas as emoções
que os sonhos, então, abraçam!
 
As visões enfeitiçadas
me tornam um prisioneiro,
PASSO, INSONE, AS MADRUGADAS,
imaginando teu cheiro!
 
Sigo contigo sonhando,
e os meus sonhos se entrelaçam...
As horas vão se alongando
E AS MADRUGADAS NÃO PASSAM!…
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   GRITOS E SILÊNCIOS
 
MOTE:
 Nestas angústias que oprimem,
que levam à dor e ao pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!
Luiz Otávio  
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

GLOSA:
NESTAS ANGÚSTIAS QUE OPRIMEM,
sempre existem dissonâncias...
difícil fazer que rimem
as realizações e as ânsias!
 
Nessas grandes nostalgias
QUE LEVAM À DOR E AO PRANTO,
anoitecem nossos dias,
tristes, sem um acalanto!
 
Há prantos que não redimem,
soam inúteis e frios...
HÁ GRITOS QUE NADA EXPRIMEM,
são gritos falsos, vazios!
 
Mas ouvimos, certamente,
sem saber porque, no entanto,
numa voz forte e crescente,
SILÊNCIOS QUE DIZEM TANTO!
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   VIVE!
 
MOTE:
Vive o agora em demasia,
que a vida, no seu afã,
não dá qualquer garantia
de estar contigo amanhã!
Sérgio Bernardo  
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
VIVE O AGORA EM DEMASIA,
faze tudo o que sonhaste,
esbanja a tua alegria,
dá mais luz para o contraste!
 
Procura no teu caminho,
QUE A VIDA, NO SEU AFÃ,
pode até  esconder  carinho
daquela tua alma irmã!
 
Vive sempre com euforia.
Sendo uma incógnita, a vida
NÃO DÁ QUALQUER GARANTIA
que ela possa ser vencida!
 
Tenta sempre ser feliz,
te apega ao teu talismã,
pois a vida nada diz
DE ESTAR CONTIGO AMANHÃ!

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Setembro de 2003.

Graciliano Ramos (Uma canoa furada)

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. 

— Já me disseram isso, murmurou  Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

— Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome.

Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas.

Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. 

— “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

— “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” 

Fiquei embuchado, com uma resposta  atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um Deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados. 

— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” 

E o desgraçado respondeu: 

“Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.” 

— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado. 

— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” 

A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo. 

— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” 

Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? 

A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: 

— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” 

Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público.

Dicas de Escrita (Como Escrever um Roteiro) – 5, final

Criação JFeldman com
Microsoft Bing
REVISANDO O ROTEIRO

1
Tire uma ou duas semanas de folga quando terminar de escrever. 

Você já vai ter passado tempo demais trabalhando no seu roteiro. Salve o arquivo e tire algumas semaninhas para pensar em outra coisa. Assim, quando você voltar ao texto para editá-lo, será como se você o estivesse lendo pela primeira vez.

Comece a trabalhar em outro roteiro nesse meio tempo se tiver alguma outra ideia que queira desenvolver.

2
Releia o roteiro e tome nota das partes que não estiverem fazendo sentido. 

Abra o roteiro e leia-o do começo ao fim. Fique atento a partes confusas ou em que os personagens façam coisas que não ajudem a história a avançar. Tome nota desses pedaços à mão para se lembrar bem deles mais tarde.

Experimente ler o roteiro em voz alta, como se estivesse atuando. Diga as falas do jeito que você acha que elas devem ser ditas. Assim, você conseguirá ver mais facilmente quais trechos e diálogos não estão bons.

Dicas: Imprima o roteiro, se puder, para fazer suas anotações diretamente nas folhas.

3
Mostre o roteiro para alguém em quem você confie. 

Peça para a sua mãe, o seu pai ou um amigo dar uma lida no seu roteiro e dizer que acha. Explique exatamente o tipo de retorno que você quer para que eles saibam no que prestar atenção. Quando eles terminarem de ler, pergunte se acharam que alguma parte da trama não está fazendo sentido.

4
Reescreva o roteiro várias vezes até ficar satisfeito. 

Comece editando a história e os personagens para resolver os problemas maiores. A cada releitura, vá tornando as suas edições mais específicas, arrumando desde os diálogos e as sequências mais confusas até os errinhos de gramática e digitação.

Abra um documento novo para cada versão do roteiro. Assim, você poderá copiar e colar partes boas do arquivo antigo no novo.

Não fique procurando pelo em ovo. Do contrário, você nunca vai conseguir terminar o seu roteiro.

Dicas
– Não existem regras fixas a respeito de como escrever um roteiro. Caso ache que a sua história deva ser contada de outra forma, experimente!
– Leia os roteiros dos seus filmes preferidos para ver como eles são escritos. Basta fazer uma busca rápida para encontrar vários roteiros em PDF na internet.
– Leia livros como Manual de roteiro de Syd Field, ou Manual de roteiro: ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV de Leandro Saraiva e Newton Cannito, para buscar inspiração e aprender mais a respeito de como formatar as suas histórias.
– As peças de teatro e os documentários têm roteiros um pouco diferentes dos usados para filmes e seriados de ficção.

Referências
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-1-story-concept-ab6d5a25fc27
↑https://www.scriptmag.com/5-tips-choosing-writing-genres-free-download
↑https://thescriptlab.com/features/screenwriting-101/2982-how-to-create-a-convincing-setting-in-your-screenplay/
↑https://www.well-storied.com/blog/the-four-main-types-of-epic-antagonists
↑https://www.scriptreaderpro.com/how-to-write-a-screenplay-2/
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-6-outline-697aedb321ef
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-6-outline-697aedb321ef
↑http://www.elementsofcinema.com/screenwriting/three-act-structure/
↑https://screenwriting.io/what-does-a-screenplay-title-page-look-like/7

Fonte: https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Roteiro

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Versejando 125

 

Mensagem na garrafa – 18 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Olavo Bilac
Rio de Janeiro (1865 - 1918)

O SONHO

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa…

Contos e Lendas da África (O rei e a árvore Ju Ju)

Criação JFeldman com Microsoft Bing
por Elphinstone Dayrell

Udo Ubok Udom foi um rei famoso que viveu em Itam, uma ilha onde não havia rios. Ele e sua esposa banhavam-se em uma nascente que havia logo atrás de sua casa.

O rei tinha uma filha a quem amava muito e cobria de cuidados. Quando cresceu, a princesa tornou-se uma linda mulher. Udo Ubok Udom teve de se ausentar por uns tempos e por dois anos não usou sua fonte. Quando voltou e foi se banhar, viu que uma árvore Ju Ju havia crescido e espalhado seus galhos por todo o lugar, impossibilitando o acesso à nascente. Então ordenou que cinquenta homens cortassem a árvore com machados. 

Quando os criados começaram, viram que os golpes de machado não produziam efeito algum, pois tão logo abriam um corte no tronco, ele voltava a se fechar. Tentaram inutilmente durante um dia inteiro. À noite foram comunicar ao rei seu fracasso em derrubar a árvore. Udo Ubok Udom ficou muito zangado e voltou à fonte na manhã seguinte com seu próprio facão.

Ao ver o rei tentando cortar seus galhos com a lâmina, a árvore Ju Ju lançou uma farpa em seu olho. Sentindo imensa dor, o monarca largou sua faca e correu de volta para casa. Como a dor só piorava, não conseguiu comer nem dormir por três dias.

Mandou chamar seus feiticeiros e pediu que descobrissem o motivo de tanta dor. Quando seus feitiços foram lançados, entenderam que a árvore Ju Ju o havia atacado em retaliação às suas tentativas de banhar-se na fonte e de cortá-la.

Acrescentaram que, para satisfazer e acalmar a Ju Ju, o rei deveria tomar sete cestos de moscas, uma cabra branca, uma galinha branca e um tecido branco e oferecê-los à árvore em sacrifício.

Udo Ubok Udom seguiu essas instruções. Os curandeiros aplicaram pomadas nos olhos do rei, mas a dor só piorava. Os feiticeiros foram dispensados e outros foram chamados. Estes disseram que, embora nada pudessem fazer para aliviar o sofrimento do rei, conheciam alguém capaz de curá-lo. Era um homem-espírito que vivia no além-mundo.

Udo Ubok Udom mandou que o trouxessem até ele. No dia seguinte, o homem-espírito chegou para falar com o rei.

— Se eu curar seu olho, o que ganho em troca? — perguntou o homem espírito.

— Darei metade da minha cidade, incluindo as pessoas que vivem nessa área, além de sete vacas e dinheiro.

O homem-espírito recusou a proposta. O rei, não aguentando mais tanta dor, aumentou a oferta.

— Diga seu preço e eu pagarei.

O homem-espírito disse que o único pagamento que lhe interessava era a princesa. Udo Ubok Udom começou a chorar e mandou-o embora. Preferia morrer a perder sua filha.

Durante a noite a dor piorou ainda mais, alguns súditos suplicaram ao rei para que chamasse o espírito novamente e lhe entregasse a princesa. Se Udo Ubok Udom melhorasse, poderia fazer outra filha, argumentaram, mas nada ganharia se morresse.

O rei então mandou chamar novamente o homem-espírito, que atendeu rapidamente ao chamado. Com grande pesar, o rei lhe concedeu sua filha. 

O espírito entrou na mata e colheu algumas folhas, que triturou e misturou com água. Verteu o líquido no olho do rei, dizendo que pela manhã, quando lavasse o rosto, seus olhos estariam completamente curados.

Udo Ubok Udom tentou convencê-lo a passar a noite, mas o homem-espírito declinou o convite e partiu na mesma noite para o além-mundo, levando a princesa consigo.

Um pouco antes do amanhecer, o rei levantou-se e foi lavar o rosto. Viu que a farpa da árvore Ju Ju, que tanta agonia lhe causara, havia caído de seu olho. Não sentia mais nenhuma dor e enxergava perfeitamente.

Recomposto, deu-se conta de que trocara a filha por um olho sadio. Decretou que o reino todo ficasse de luto por três anos.

Durante os dois anos seguintes, o homem-espírito colocou a princesa em uma casa de engorda (*), onde recebia grande quantidade de comida. Nessa casa havia uma caveira que a aconselhou a não comer, pois a estavam engordando não para o casamento, mas porque queriam devorá-la. A partir daí, a jovem passou a dar à caveira toda comida que recebia, e alimentava-se apenas do calcário do solo.

Ao final do terceiro ano, o homem-espírito convidou alguns amigos para verem a princesa, dizendo que a mataria no dia seguinte e faria um banquete com ela.

Na manhã seguinte, o homem-espírito foi levar comida para a princesa, como de costume. A caveira, no entanto, havia ouvido a conversa da noite passada e contou à princesa sobre o que a aguardava. A jovem deu novamente a comida à sua amiga, que disse:

— Quando o homem-espírito for à floresta com seus amigos para os preparativos do banquete, fuja e volte para sua cidade.

A caveira também deu a ela uma poção fortificante para a viagem. Além disso, explicou as particularidades do caminho. Quando chegasse a uma bifurcação, a princesa deveria jogar um pouco da poção no chão e as duas trilhas se fundiriam em uma só.

Explicou que deveria sair pela porta dos fundos e atravessar toda a floresta para chegar à estrada. Caso encontrasse alguém no caminho, deveria permanecer em silêncio. Se cumprimentasse usando sua voz, saberiam que não fazia parte do mundo espiritual e a matariam. Tampouco deveria se virar caso alguém a chamasse. Deveria seguir sem parar até chegar à casa de seu pai. 

A filha do rei agradeceu à caveira por todos os conselhos e partiu. Encontrou a estrada após cruzar toda a floresta. Correu por ela durante três horas, até chegar à bifurcação. Como instruída, pingou algumas gotas da poção no chão e imediatamente as trilhas se juntaram em uma. Corria sem parar e, embora fosse chamada por várias criaturas, não se virava nem cumprimentava ninguém.

Foi quando o homem-espírito retornou da mata e descobriu a fuga da princesa. Perguntou à caveira sobre seu paradeiro, mas esta lhe respondeu apenas que a jovem havia saído pela porta dos fundos, sem dizer aonde ia. Por ser um homem-espírito, ele logo soube que sua prisioneira partira para sua cidade natal. Correu atrás dela, aos gritos.

Quando a garota ouviu a voz do espírito, também correu o mais rápido que pôde e finalmente chegou à sua casa. Pediu a seu pai que pegasse uma vaca, um porco, uma ovelha, uma cabra, um cachorro, uma galinha e sete ovos. Tudo isso deveria ser cortado em sete pedaços e posto como oferenda na beira da estrada, para que o espírito, ao encontrar tais sacrifícios, desistisse de entrar na cidade. O rei cumpriu seu pedido imediatamente.

Quando o homem-espírito encontrou as oferendas, sentou-se e começou a comer.

Satisfeito, recolheu os restos e voltou para o mundo espiritual. Nunca mais voltou a incomodar a princesa.

Ao ver que não havia mais perigo, o rei bateu seu tambor e declarou que a partir dali, quando alguém morresse e fosse para o mundo espiritual, não poderia mais voltar à terra para curar pessoas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Casa de engorda = era uma cabana onde a noiva ficava por algumas semanas antes de seu casamento. Durante esse período, comia muito para engordar o máximo que pudesse, já que esse era o padrão de beleza para muitos povos africanos.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) LXI


A saudade, não cochila;
por maldade ou por despeito...
Toda tarde pega a fila,
entra e bate no meu peito!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Sê, nesta vida, meu filho,
como a chama da candeia;
que humilde, empresta o seu brilho,
dando brilho à vida alheia!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Se tens um sonho ferido,
esquece essa ingratidão.
Só sente um sonho perdido,
quem perde a luz da razão! 
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Partiste!... E o mundo bisonho,
me pôs na alcova da espera...
Até que volte o meu sonho
que partiu na primavera!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

A massa do pão que come,
pode amargar como fel;
mas no pão que mata a fome,
é mais doce do que mel!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Guardo entre os meus alfarrábios,
o instante do nosso adeus:
No guardanapo, os teus lábios,
no batom dos lábios teus!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Lembrando os risos da aurora
aos ritos das madrugadas...
Do tempo, nos resta agora,
dois velhinhos de mãos dadas!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Em meio a tanta descrença,
tu manténs por teu desprezo...
O fogo da indiferença,
mantendo o ciúme aceso!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Leve tudo!… E, eu não deponho;
peço que do velho arquivo,
só não carregue o meu sonho
porque sem sonho eu não vivo!
= = = = = = = = = = = = = = = = 

Num disfarce sem ter graça,
uma sombra sem cautela.
entra em meu quarto e me abraça
e eu percebo o vulto dela!
= = = = = = = = = 

Quando me sinto sozinho,
sozinho, cantando a esmo,
eu busco a luz de outro ninho,
nessas noites, de mim mesmo!...
= = = = = = = = = 

Ao ver teus olhos criança,
brilhando à luz do sol posto...
Neles, vi sóis de esperança,
e, muitos sóis em teu rosto!
= = = = = = = = = 

Teu adeus, me desconforta;
mas, te vejo ainda tão bela,
pelos buracos da porta,
pelas brechas da janela!
= = = = = = = = = 

A espuma, artesã do mar,
à noite, chega e semeia
versos, à luz do luar,
nas vestes brancas da areia!
= = = = = = = = = 

O orgulhoso, é na verdade,
um cego sem ter visão,
que não percebe a humildade
da luz do sol pelo chão!
= = = = = = = = = 

Essa aparência que existe,
que te orgulha e que te apraz,
é uma ilusão que persiste,
mas, que logo se desfaz!
= = = = = = = = = 

No outono, sê mais disposto
que o tempo, em seu caminhar...
Deixa mais rugas no rosto
e menos sonhos no olhar!...
= = = = = = = = = 

Saudade em mim, nunca finda,
mas, muita gente a despreza;
saudade é a prece mais linda,
que toda tarde se reza!
= = = = = = = = = 

Quando a injustiça amordaça
a inocência na prisão,
a justiça que fracassa,
vira cinzas pelo chão!
= = = = = = = = = 

A lua - lindo troféu
de um poema, suave e leve,
que um poeta, escreveu no céu
com versos da cor de neve!
= = = = = = = = = 

Da infância, bem pobrezinha,
eu me lembro todo dia!...
Lembro do nada, que eu tinha,
mas tinha a paz que eu queria!
= = = = = = = = = 

Criança de vida dura;
pobre, faminta e sem lar...
Quantas lições de ternura
na luz tosca deste olhar!
= = = = = = = = = 

À noite, escuto um barulho,
que me assusta e me dá medo;
é o do mar, quebrando o orgulho
das ondas contra o rochedo!
= = = = = = = = = 

As noites, com seus desvios
e os dias, com seus desvãos...
Vão pondo seus atavios
nos dedos de nossas mãos!
= = = = = = = = = 

 Rompe a aurora!... E, na moldura
dos olhos do sol nascente,
o dia se configura
na luz dos olhos da gente!
= = = = = = = = = 

Se a mágoa que te envenena,
é a mesma que te complica,
esquece a mágoa pequena,
que a grande, também não fica!
= = = = = = = = = 

Ao sopro de um vento brando,
a lua nasce tão calma,
que eu penso, ao vê-la me olhando,
que a lua também tem alma!
= = = = = = = = = 

Se há dúvida, há reticências...
E, o tempo era silêncio e mudo,
em meio a tantas ausências,
põe silêncio em quase tudo!
= = = = = = = = = 

Se a saudade nasce e cresce
em qualquer pranto existente,
saudade é infinita prece
na infinita dor da gente!
= = = = = = = = = 

Se a vida é um profundo abismo,
é nesse abismo profundo,
que eu jogo o meu egoísmo
e abraço os braços do mundo!…

Fontes:
– Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  Enviado pelo trovador.
– Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021. Enviado pelo trovador.