segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Artur de Azevedo* (Nhô-Nhô)

Outro dândi (janota) não há como o Brochado;
Na rua do Ouvidor é o rei da moda;
Em toda a parte é sempre mencionado,
Elogiado é sempre em qualquer roda.
O melhor alfaiate o veste, e creio
Que de graça o faria:
É o seu melhor anúncio, o melhor meio,
Os melhores engodos
Para atrair a boa freguesia
Dos muitos moços, cada qual picado
Por negra inveja, que pretendem todos
Imitar a elegância do Brochado.

Não tem outro o seu faro
Para a gravata descobrir da seda
De padrão mais inédito ou mais raro;
Não há quem o exceda
Na escolha das bengalas,
Nem na dos alfinetes
Que nas gravatas fúlgidas espeta,
Provocando, nas ruas e nas salas,
As senhoritas e aos pintalegretes (vaidosos),
Uma surpresa múrmura e discreta.

Quando o Brochado põe um chapéu novo,
E vai mostra-lo ao povo,
Parando à porta da confeitaria
Onde, das três às cinco, todo o dia
Há seis anos é visto se não chove,
Produz o fato sensação; promove
Um movimento de atenção tamanho,
Que atrai de curiosos um rebanho
E de basbaques um corrilho ajunta!
E muito rapazola embasbacado
A quanto topa faz esta pergunta:
— Já viste o chapéu novo do Brochado? —

E tudo quanto ele usa
As mesmas parvas atenções desperta:
O sapato, que abusa
Do bico estreito e o polegar aperta;
O colarinho reluzente, o punho,
As chatelaines (correntes), os anéis, e aquele
Insolente monóculo, que um cunho
Lhe dá de quem supõe que o mundo é dele.

Acresce que o Brochado
É um bonito rapaz, que dos quarenta
A passo agigantado
Para a casa caminha, embora minta,
Pois a todos sustenta
Não chegar à dos trinta;
Moreno, alto, aprumado,
O olhar aveludado,

Negro e farto bigode
Que um níquel de tostão esconder pode;
Belos dentes e lábios nacarados
Que (dizem, não afirmo) são pintados.

Mas é um mistério a vida planetária
Desse elegante, que se não emprega
Senão naquela exibição diária
Que em seu redor tantos patos congrega
Na rua do Ouvidor e em toda a parte
Onde haja riso e pândega que farte,
E as duras penas de trabalho afogue.
Ele não é nenhum capitalista,
E não consta que herdasse nem que jogue,
Como, pois, explicar que assim resista
A uma vida tão cara e tão vadia?

E toda a gente ignora
A sua moradia;
Nunca disse a ninguém onde é que mora,
Nem ninguém nunca o visitou!

No entanto,
Leitor amigo, vamos, se quiseres,
Lá do Saco do Alferes
Ao feio bairro, que desprezas tanto,
Procuremos num morro uma casinha
Onde duas mulheres
Cada qual mais mirrada e mais mesquinha,
Noite e dia trabalham, cozinhando,
Engomando, lavando, costurando,

Para pagar o luxo do Brochado.
São irmãs dele. Adoram-no. Contentes,
Não maldizem o fado:
Vivem ambas felizes, sorridentes,
Por verem satisfeito o tal peralta
Por quem se sacrificam e a quem amam!
A elas, coitadinhas, tudo falta,
Mas nada falte ao seu irmão querido,
Ao seu lindo Nhô-nhô, que assim lhe chamam.

Quinquagenárias ambas, afagadas
Nem sempre são pelo patife; às vezes,
Quando as pagas demoram os fregueses,
Pelo irmão com injúrias maltratadas
Choram, mas tudo, tudo lhe perdoam:
Lágrimas secam e palavras voam.

Um ideia somente as mortifica:
Se elas morrem, sozinho o Nhô-nhô fica...
Não aguenta o repuxo...
Mas o Brochado diz-lhes, convencido:
— Nem eu trabalho, nem dispenso o luxo;
Se morrerem vocês, eu me suicido! —
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* Obs. do Blog: Têm livros que Artur tem h e outros não, quando este livro me chegou às mãos eu tinha criado a imagem como escrito em outro (com h).

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

João da Câmara (A outra)

Era em fins de agosto, à hora do meio dia.

Havia um instante, que, na torre pequenina da igreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarelas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.

Hora do descanso. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram-se à casa para jantar e sossegar um pedaço, durante a sesta.

Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgazinha de sombra, as galinhas dormitavam; os pássaros nos salgueirais, que sombreavam o ribeiro, tinham emudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pátios, com os varais aprumados, pareciam, como em um espreguiçamento, dispor-se para o sono.

O sol quase a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentíssimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em brasa, e atravessava com eles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de cintilações, como pedacinhos de metal.

Era aquela a hora a que antes costumava recolher à casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quase a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e láparos.

Ainda ele vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente. Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se à soleira, e punha-se à espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flor, com o seu vestido de linho muito engomado.

Os que passavam iam lhe dando as boas tardes.

—Não tarda aí. – diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartucheira vazia.
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Tempos!... Tempos!

Havia quase um mês que a pobre Mariana debalde esperava o marido àquela hora. Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janela e, com as faces incendiadas, o ouvido atento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lágrimas silenciosas. E os que passavam, recolhendo-se às casas, olhavam para ela com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros: — Coitadinha!
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O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passara! Para aquilo tinha casado, para mal decorrido um ano, um ano pouco mais, ali se ver sozinha, chorando o marido que lhe fugira! Porque assim fora rebelde aos conselhos do pai? Bem lhe o tinha ele pregado no próprio dia em que dera por aqueles amores!

O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, à porta da rua, viera busca-la por um braço, arrastara-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas: — Senhora!

E ela começara a chorar e logo ele, terníssimo e aflito, a enchera de beijos. 

Ainda não pensara naquilo...! Pois tão nova ainda, havia de assim deixa-lo? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador!

Recordara-lhe a morte da mãe que a deixara com três anos entregue a ele, o que ele sofrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.

Era à noite, noite muito serena, cheia de murmúrios misteriosos, que se elevavam dos campos numa grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das águas do ribeiro e o rodar das azenhas (moinhos movidos por água). A janela estava aberta e lá de fora vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.

Junto da porta crescia uma roseira, que metera para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos.

O mestre-escola aproximou-se da janela e esteve por algum tempo respirando aquele ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações.

Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabelo farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte. O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento lânguido, vergando a um suspiro da noite.

O mestre-escola tomou uma respiração profunda e fez um movimento de ombros resignado.

—É preciso casar-te, não há remédio.

Como por miúdos se lembrava de toda a cena que tivera com o pai e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra ele que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma após a outra, todas as raparigas da aldeia.

Que mal empregadas lágrimas ela chorara, até que afinal o pai consentira no casamento!

Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os três comentado aquela história!
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Um dia o mestre-escola fora pelo Prior e outros convidados para uma caçada a que iria também o José Miguel.

Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe à porta.

— Pronto, sr. Eustáquio? Olhe que o Prior, há mais de um quarto de hora que está à sua espera no adro!

—Lá vou! Lá vou! – gritou de dentro o Eustáquio.

E apareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o boné de pala verde, que usava havia dez anos.

— Adeus! – disse ao José Miguel com mau modo.

— Sr. Eustáquio...! – respondeu este, cumprimentando-o, entre irônico e atarantado. E, erguendo os olhos, entreviu na única janela do primeiro andar, atrás das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lágrimas.

— Vamos! – disse o Eustáquio, pondo-se a caminho e olhando de revés para o outro.

— “Deixa estar, grande patife!” – ia pensando o José Miguel. Ainda hoje me hás de pagar!

Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciência. Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustáquio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a igreja era no fim da aldeia e no sopé de um monte predileto das perdizes.

Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.

—Entra, cão!

Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saúde. O velho caçador fez um movimento de mau gênio. Então o José Miguel, colocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsivamente as asas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cair a prumo, como coisas inertes.

— Que é lá isso? – perguntou o Eustáquio.

— O sr. não vê? – disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. – São duas perdizes.

E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustáquio o não ouvisse:

—E dois bigodes. Ele que os vá contando.

E contou-os, e não foram poucos.

Felizmente o Eustáquio não era de reservas. O rapaz entusiasmou-o.

— Bravo! – dizia ele ao fim da tarde, com o olhinho a luzir, o que era também de umas beijocas a mais na borracha do Prior. E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no ombro:

— Sabes que tens quase uma riqueza nessa espingarda?
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Com que saudades a Mariana recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da boca do pai um elogio ao namorado!

— Mas isto não obsta. Não quero! – teimava ainda o Eustáquio. Aquilo é um cabeça no ar. – Um dia deixa-te e ficas pior do que viúva!

Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?

O José Miguel acirrara-se com aquela resistência e, em vez de abandonar a rapariga, como fizera às outras, cada vez se mostrava mais assíduo junto da filha do mestre-escola.

A Mariana definhava-se, que era um dó vê-la.

O Eustáquio, bem contra vontade, não teve outro remédio, consentiu.
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O bom tempo tem asas.

Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se daqueles primeiros meses de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do Valente, que voltava da caça.

Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janela, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o lugar dela e o dele, um defronte ao outro, o cangirão (vaso com asa para vinho) cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fruta, que perfumavam a casa.

Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pátio, para onde logo saía a correr, enterrando o focinho na panela cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição.

O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aqueles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, de olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um belo ah! de satisfação.

— Vamos a isto mulher, vamos a isto! – dizia aproximando da mesa a grande cadeira de pau santo.

E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas. Enquanto ia comendo, vinham as histórias do dia. Ela pouco podia adiantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo. Ele então contava façanhas do Valente, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambuzado, sentado a um canto, de olhos semi-cerrados, esperava com paciência o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa. Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.

Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquele calor andavam levadas da breca! O que ele andara por aqueles matos!

A mulher, sentada defronte dele, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os lábios vermelhos, com duas covinhas aos cantos.

Pois as perdizes andavam assim como ele dizia, e estava a rede ali tão cheia!

— Mas vê lá se outro consegue o mesmo. - dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que daquilo e destas não há outro que as tenha na aldeia.

E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.

— São de ferro!

O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com eles à sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.

Caçador velho, muito conhecedor daqueles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava atencioso.

Isto não obstava a que, saindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.

— Ora anda lá, meu velho. – resmungava muito alegre. – Apanha lá mais este, para a conta.
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Agora o José Miguel continuava a sair todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Às vezes, nem recolhia, e ela, coitadinha, levava as noites a chorar. Quando o marido saía, punha-se à janela e via-o desaparecer por detrás da igreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na clareira do pinheiral. O Valente seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a estranhar o dono. Desapareciam depois entre os pinheiros e ela já não podia cá debaixo tornar a avista-los. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu.

Ela então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsivamente.
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Nesse dia, pela uma hora, o Eustáquio entrou na casa da filha.

— O teu homem?

— Foi para a caça. - respondeu a Mariana, sentando-se no leito e às pressas limpando as lágrimas.

O mestre-escola trazia o boné de pala verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.

— Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incomodar. Deita-te, filha, que eu vou procura– lo.

A Mariana quis retê-lo, estranhando-lhe os modos.

— Talvez o não encontre. Sabe Deus onde ele para!

—Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! – respondeu o Eustáquio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?

— Ó meu pai!... – disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços.

— Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não tem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ela é?

A Mariana disse que não com a cabeça.

Mas não havia de saber!...

—A Maria da Escusa, aquela cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!

E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.

A Mariana, cheia de susto, sem forças para seguir o pai, sem forças para gritar, deixou-se cair no leito, desmaiada quase, sem ânimo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo.
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Assim esteve por muito tempo. Despertaram-na afinal uns latidos alegres, tão conhecidos dela. Sentou-se no leito. Os latidos aproximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pátio.

Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pai e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam às gargalhadas. A Mariana correu, muito chorosa, até a porta, e, muito excitada, caiu soluçando nos braços do marido.

— O que é isso? O que é isso? – perguntava o Eustáquio, também com um nó na garganta. – Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar.

— Então, mulher, então? Que tens tu? – dizia o José Miguel muito comovido.

Passada meia hora, arranjado o jantar às pressas, sentaram-se todos à mesa. A curiosidade, que nem um dito, uma alusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Mariana. Que se haveria passado?

Mas, quase ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber à saúde da filha, pegou no copo de água; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro desse pela distração, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.

— Não é só na caça que se apanham bigodes, sr. Eustáquio.

— Não, não. - respondeu o velho. – E tu que o sabes de hoje...!

O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malícia apagara a tristeza, levantou-se da mesa e veio beija-la muito.

— Coitada da Mariana!

— Então ela... enganou-te?

— Porque falas nisso? Que te importa? Que me importa?

A curiosidade da Mariana ainda não estava satisfeita.

— Com quem?... Dize... Dize... Com quem?

Então o mestre-escola, muito corado — era talvez da pinga? Entendeu dever deixa-los a sós, e saiu a rir, com um arzinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos.

Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público. Atualizado para o português brasileiro por J. Feldman

domingo, 5 de novembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 18


 

Mensagem na Garrafa – 25 -


Ialmar Pio Schneider
Porto Alegre/RS

NOTURNO

A noite é longa e muito mais se estenderá…
Tem paciência,
Diz-me a consciência.
Mas um soluço me corta o fôlego.
Espero o sol como a criança
Fica na esperança
De receber um presente
Do Papai-Noel.

Oh! Como vai distante
O sonho não realizado,
A incerteza do amanhã.

A noite é longa e muito mais se
estenderá…
Sinto a solidão,
Não há perdão.
Oh! Poema caótico,
Confuso poema,

Vive o momento de ansiedade sem alivio,
É teu destino turvo continuar.

A noite é longa e muito mais se estenderá…
Obstinadamente recebo emanações de luz

Na escuridão.
Quero ser alguém liberto das catástrofes,
Vencer o “Medo à Liberdade”.
Enfrentar meu castigo,
Fugir do perigo.

A noite é longa e muito mais se estenderá…
Lamentar o que?
Eu preciso de você
Nestas horas incoerentes
Que se arrastam devagar.
Aqui junto de mim,
Aguardando amanhecer o dia,
Cheio de alegria
Para uma vida nova;
Enfim, rejuvenescer
E ser capaz de ser audaz, e ser jovial.

A noite é longa e muito mais se estenderá…

Imagem: Criação JFeldman com Microsoft Bing

Sílvio Romero (A moura torta)

(Folclore do Pernambuco)

Uma vez havia um pai que tinha três filhos, e, não tendo outra coisa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando eles quiseram sair de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recomendado que não abrissem as frutas senão em lugar onde houvesse água. 

O mais velho dos moços quando foi ver  o que dava a sua sina, estando ainda perto da casa, não se conteve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita dizendo: “Dai-me água, ou dai-me leite.” 

O rapaz não achava nem uma coisa nem outra, a moça caiu para trás e morreu.

O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu também a sua melancia, e saiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu água ou leite, e o rapaz não achando nem uma coisa nem outra, ela caiu para traz e morreu.

Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma fonte. No abri-la pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: “Quero água ou leite.” 

O moço foi à fonte, trouxe água e ela bebeu a se fartar. Mas a moça estava nua, e então o rapaz disse a ela que subisse num pé de árvore que havia ali perto da fonte, enquanto ele ia buscar a roupa para ela. A moça subiu e se escondeu nas ramagens. 

Veio uma moura torta buscar água, e, vendo na água o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu e pôs-se a dizer:

“Que desaforo! Pois eu, sendo uma moça tão bonita, andar carregando água!... ”

Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa sem água e nem pote, levou um repelão muito forte, e a senhora mandou-a buscar água outra vez; mas na fonte fez o mesmo, e quebrou o outro pote. Terceira vez fez o mesmo, e a moça não se podendo conter deu uma gargalhada.

A moura torta, espantada, olhou para cima e disse: “Ah! E você, minha netinha!... Deixe eu lhe catar um piolho.” 

E foi logo trepando pela árvore arriba, e foi catar a cabeça da moça. Fincou-lhe um alfinete, e a moça virou numa pombinha e voou! A moura torta então ficou no lugar dela. 

O moço, quando chegou, achou aquela mudança tamanha e estranhou; mas a moura torta lhe disse: “O que quer? Foi o sol que me queimou!... Você custou tanto a vir me buscar!”

Partiram para o palácio, aonde se casou. A pombinha então costumava voar por perto do palácio, e se punha no jardim a dizer: “Jardineiro, jardineiro, como vai o rei, meu senhor, com a sua moura torta?” E fugia. 

Até que o jardineiro contou ao rei, que, meio desconfiado, mandou armar um laço de diamante para prendê-la, mas a pombinha não caiu. Mandou armar um de ouro, e nada; um de prata, e nada; afinal um de visco, e ela caiu. 

Foram levá-la que muito a apreciou. Passados tempos, a moura torta fingiu-se pejada e pôs matos abaixo para comer a pombinha. No dia em que deviam botá-la na panela, o rei, com pena, se pôs a catá-la, e encontrou-lhe aquele carocinho na cabecinha, e pensando ser uma pulga, foi puxando e saiu o alfinete e pulou lá aquela moça linda como os amores.

O rei conheceu a sua bela princesa. Casaram-se, e a moura torta morreu amarrada nos rabos de dois burros bravos, lascada pelo meio.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras) – 2

A lanterna enferrujada
Se reinventa.
Criou asas...
Vida brotando
Brilho nos olhos
Luz que se espalha
Quando o pássaro canta.
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A lua e o amor
Jamais hão de ser
"Assunto amanhecido"
Pois à beira do caminho
Sempre há de ter
Um coração disponível.
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Aninhada
entre as molduras de sol,
aos poucos
a cidade inquieta
vai diminuindo o ritmo.
Nos tons sonolentos
e saudosos da quase noite,
meu peito pulsa ao teu,
desfazendo o cansaço
numa deliciosa taça de vinho.
= = = = = = = = = 

Ante a ausência do sol
Eu girassol,
Me aqueço com teus carinhos.
= = = = = = = = = 

Ao juntar das mãos
O pavio da fé se acende
E o que era cinza
Torna-se verde
Brota a esperança
Ao tocar dos joelhos
No chão.
= = = = = = = = =

À tarde
Desacelera o meu peito
Que de tão satisfeito
Receptivo se abre
Em contemplação.
As nuvens ganham asas
Com brilhos emprestados
Encerram o cortejo do sol.
No ar
Espalha-se o hálito do Criador...
A alma respira tão calma.
Sorvo o momento que me basta,
Enquanto o vento suave
Balança a cortina da noite
Despertando o ballet
Dos pássaros no céu.
= = = = = = = = = 

Ausência...
Baila um perfume
Ao vento.
Quando a saudade bate,
Eu apanho.
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Cansadas de voos incertos
Desmancham-se as nuvens
Como penugens
Ao bater de asas de passarinho.
Caem sem paraquedas
Mas bem de mansinho
Feito flocos de neve
Que de tão leves
Me fazem um carinho
Pousando em meu colarinho.
Saudade distante
Procurando um ninho
No meu olhar
Volta a ter cor.
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Com primor
A primavera pinta a sua alma
Na fachada.
E no perfume das cores
Embriago meu olhar.
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Nos teus beijos
Busco luares escondidos
No céu da tua boca
Ares de hortelã.
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Plantei sonhos
em teu peito
e em paz espero
pelo florescer.
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Quebrando o silêncio
da tempestade
que só doía em mim,
a lua soprou as nuvens
num sorriso
que parecia não ter fim.
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 Sem pressa de partir,
A tarde confunde
Seus caminhos com os da noite.
Luz e sombra
A capa do tempo
Fica borrada de vinho.
Da alma do artista
Escorre a aquarela
Tingindo o céu de mansinho.
Ante a sinfonia de cores,
A Torre acostumada
A ser farol noturno
Se cala contemplativa
Em profundo mergulho.
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Fonte: Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021. Enviado pelo poeta.

Graciela Pucci (Náufrago e Beira-mar)

Ela estava lá, perdida em pensamentos e ausente. Seus olhos navegavam à deriva em um mar que só ela conhecia. A fumaça do cigarro, esquecido entre os dedos, subiu até seu rosto e a fez piscar.

Ela era seu próprio universo.

Parei para olhá-la do outro lado do vidro, sorri para ela, ela sorriu de volta.

Novamente se retraiu.

Entrei no bar, aproximei-me de sua mesa e a cumprimentei. Com um gesto quase imperceptível, convidou-me a sentar. Fixou seu olhar em mim e disse:

-Obrigada por ter vindo, estou te esperando há muito tempo, precisava falar com você.

O mar pelo qual ela navegava tornou-se agitado, agarrou-se à minha orla e derramou a torrente, dizendo:

-Tudo está aqui, dentro de mim, em um lugar escondido ao qual não posso acessar para desenraizá-lo. É fertilizado com o tempo e dá frutos, que por sua vez criam sementes. Estas se reproduzem e crescem. Estou cheia de lembranças que quero esquecer, mas minha alma está desolada, é um buraco infinito de nostalgia e melancolia, um deserto indefeso, produto de uma mentira, que é minha única verdade desde então. Mas hoje, quando vejo você na minha frente, começo a acreditar que existem outras verdades que devo encontrar.

Com um brilho especial nos olhos, moveu sua cadeira, levantou-se e com passo firme e determinado dirigiu-se para a saída.

Eu nunca soube o nome dela, nem ela o meu.

Fomos náufrago e beira-mar.

Eu volto a esse bar com frequência, ela não está lá. Talvez ao retornar ao mar de seus sentimentos ela tenha encontrado seu caminho.

Eu ainda estou procurando o meu…
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Graciela Pucci é criadora da Revista Literarte. 

Eduardo Affonso (Traição)

– Tem certeza que o local é seguro?

– Claro que tenho.

– Discreto?

– Discretíssimo.

– Ninguém vai ver a gente entrar nem sair?

– Não, não vai.

– Tem que ser no sigilo.

– Será.

– Não tem câmera de segurança na rua?

– Não, não tem.

– Pode ser lá, então.

(Meia hora depois)

– Fecha bem as cortinas. Vai que alguém…

– Pronto. Fechei.

– Já fez varredura pra ver se não tem cam ou microfone escondido no teto, na tevê, na jacuze?

– Não leva a mal, mas você está parecendo paranoica…

– Fez ou não fez a varredura?

– Fiz.

– Desliga o celular, então.

– O quê? Você acha que eu… ?

– Eu sou uma pessoa conhecida, Paulo Roberto. Se isso vaza, minha vida está arruinada, minha carreira acabou.

– Ok, desliguei o celular.

– Tira a bateria.

– Tirar a bateria?

– Recebi um zap outro dia dizendo que o celular, mesmo desligado, continua ouvindo tudo, rastreando tudo.

– Olha, isso está ficando muito estranho. Melhor a gente deixar pra lá…

– Não, não. Eu quero muito. Eu preciso tanto! E sei que você não vai sair contando pra todo mundo, espalhando pros seus amigos.

– Pode confiar em mim.

– Posso mesmo? Olha como eu estou tremendo… Ai, meu Deus, meu marido jamais imaginou que eu fosse capaz disso, meus filhos nem sonham, e meus amigos… o que meus amigos iriam dizer?

– Não temos a tarde toda, Ana Lúcia. Vai, você é uma mulher adulta, independente. Tira essa culpa dos ombros, solta essas amarras. Liberte-se desses dogmas que te oprimem, dessa pressão da sociedade. Não tenha medo do que vão pensar. Diz pra mim, vai. Quero ouvir da sua boca…

– Trancou a porta?

– Tranquei.

– Deu duas voltas na chave?

– Dei.

– Apaga a luz.

A luz é apagada.

Na penumbra, Ana Lúcia respira profundamente. Semicerra os olhos. Passa a língua pelos lábios. Engole em seco. Do fundo da garganta, com a voz entrecortada, quase um sussurro, ela confessa:

– Paulo Roberto, eu apoio a Regina Duarte.

Estante de Livros (“As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles)


As Meninas" é um romance da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973. A história se passa durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, e acompanha a vida de três amigas que dividem um quarto em uma pensão em São Paulo.

No livro, três narradoras se alternam, produzindo a polifonia de vozes: Lorena, Lião e Ana Clara. São estudantes universitárias que moram em uma pensão.

A narrativa é conduzida por Lorena, uma jovem introspectiva e solitária, que se refugia em seus próprios pensamentos para escapar da realidade opressiva que a cerca. Ela divide o quarto com a alegre e extrovertida Ana Clara, e com a misteriosa e rebelde Lia.

As três amigas são completamente diferentes entre si, mas encontram conforto e companhia na convivência. Juntas, elas criam um universo próprio, repleto de fantasia e imaginação, que as ajuda a suportar a dura realidade do mundo lá fora.

As três amigas também se envolvem em diversas aventuras, que envolvem desde a descoberta de um mistério na casa em que moram até uma viagem de férias que se revela uma grande decepção. Em meio a tudo isso, elas encontram na amizade e na cumplicidade uma forma de se apoiar e de enfrentar as dificuldades.

Por fim, as protagonistas são confrontadas com escolhas que definirão seus futuros. Lorena precisa decidir se seguirá o caminho que sua família espera dela ou se buscará sua própria independência, enquanto Lia e Ana Clara precisam enfrentar suas próprias limitações e medos para encontrar uma forma de se libertar das amarras que as prendem.

No final, cada uma das três protagonistas enfrenta um desfecho diferente.

Lorena, a estudante de direito introspectiva e sonhadora, decide abandonar seus estudos e sua vida convencional para viver uma experiência de liberdade e aventura. Ela foge de casa e se junta a um grupo de hippies, buscando novas formas de viver e de se relacionar com o mundo.

Lia, a jovem rebelde e misteriosa, enfrenta um final trágico. Ela é assassinada pelo amante mais velho e casado, em um crime que deixa as outras personagens chocadas e abaladas.

Já Ana Clara, a estudante extrovertida e alegre, encontra uma nova forma de viver a vida. Ela deixa a pensão e se muda para o apartamento de um amigo, onde passa a trabalhar em uma galeria de arte e a viver novas experiências. Ela encontra uma forma de superar sua tristeza e de se reinventar, abrindo-se para novos horizontes e possibilidades.

O final do livro oferece uma visão complexa e emocionante da juventude brasileira dos anos 70, mostrando como cada uma das protagonistas enfrenta desafios e escolhas que definirão seu futuro. A obra é marcada por uma sensibilidade poética e por uma reflexão profunda sobre a vida e a liberdade em um contexto de opressão e de luta por direitos.

As Meninas é um romance marcante da literatura brasileira, que oferece uma visão sensível e poética sobre a juventude e a resistência em tempos difíceis. A obra é considerada uma das principais contribuições de Lygia Fagundes Telles para a literatura brasileira.

ANÁLISE DO LIVRO

AÇÃO

A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.

Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.

PERSONAGENS

Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.

Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.

Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.

No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.

Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.

Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.

Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.

Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.

Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.

Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

TEMPO

Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.

Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.

Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.

ESPAÇO

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.

FOCO NARRATIVO

O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.

Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.

O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

Fontes: 
– Análise: Algo sobre. 
– Resumo: site Resumo de Livros. 
- Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing