quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Maria Nascimento Santos Carvalho (Trovas de Humor)


"A bruxa anda solta" aqui...
disse o meu genro e correu
quando entendeu que entendi
que a tal da bruxa era eu...
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A coroa quis casar
com um garoto glutão
e agora tem que provar
que entende bem... de fogão…
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Acusando a carestia,
sai quase nua , a vizinha,
e diz que é uma fantasia
boa, barata e fresquinha...
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A donzela em confissão,
diz que é moça inconformada,
porque fez muito arrastão,
mas nunca foi arrastada...
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A guiar num caminhão,
"barbeiro "como ninguém,
entrou mal na contramão,
mas veio o Guarda, e entrou bem!
********** 

A moça perdeu o rumo
quando o namoro esquentou...
E atrás da moita de fumo
quase que a cobra fumou...
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Com cara aportuguesada,
no Cartório: É brasileira?
E a mulher, muito invocada :
- uai moço, eu não: sou mineira!
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Comeu goiaba exultando,
mas quase esvaiu-se em baba,
quando viu se estrebuchando
meio bicho na goiaba...
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Ele ronca e não desperta
e a mulher por previdência,
deixa a porta sempre aberta,
para "casos" de emergência...
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Foi pescar, mas preferiu
Por viagra, na isca, o ZÉ :
- no rio, nunca se viu
tanta manjuba de pé...
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Fungava a sogra com asma
e o genro dela já farto,
gritou: - Socorro! Um fantasma
está rondando o meu quarto...
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Incurso em poligamia,
depois que foi condenado,
disse : - Credo! eu nem sabia
que já tinham me casado !
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Meu vizinho briga à toa,
porque é um sujeito estourado,
mas, vendo a mãe da patroa,
perde logo o rebolado.
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Minha sogra, honrando bem
seu conhecido conceito,
diz que genro sempre tem
abundância... de defeito.
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Mostrando o corpo bem feito,
protestou em altos brados,
sentindo as mãos de um sujeito
testando os seus predicados...
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Na cama é amante perfeito,
já fora de garantia,
porque apresenta um defeito
só dorme, ronca e assobia...
********** 

No documento é solteira,
mas vendo a idade da dona,
diz a patroa encrenqueira:
solteira, não, solteirona...
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O chofer ficou "por conta"
ao ser fechado na rua
por uma perua tonta
que guiava outra perua...
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O doutor ao ancião :
- mulherzinha lhe faz mal ?
- Doutor, se eu não sou anão,
por que não mulher normal ?
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O frango já não esquenta
quando a franga sai da linha...
afinal ele "comenta":
- galinha é sempre galinha...
**********

O Lalau tinha a mania
de assaltar Padre gordão,
porque sonhava algum dia
ser "Operário Padrão"...
********** 

O vizinho tem mania
de não pegar no pesado,
pois, quando chegar seu dia,
quer morrer bem descansado
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Pão-duro, morto-de-fome,
o meu vizinho Gastão
diz a todos que não come
com medo de indigestão ...
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Perto de oitenta e donzela
Ainda pede a Santo Antônio
pra que interceda por ela
nas tentações do Demônio...
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Quando a Sara viu o custo
do tratamento que fez,
foi tão violento o susto
que adoeceu outra vez !
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Quando o peão, no chiqueiro,
tirou a bota do pé,
sentiu no cheiro outro cheiro
misturado ao do chulé !
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Sendo um craque da "pelota",
quis subir pela parede,
ao ver sua "Maricota"
enroscada em outra rede...
********** 

Seu "hobby" era trabalhar,
mas tinha tanta preguiça
que, até pra se espreguiçar
ficava "enchendo linguiça"...
********** 

Tanto a coroa se pinta,
para fingir que é mocinha,
que afoga as rugas na tinta
e engrossa os pés de galinha.
********** 

Tem muitos "anos de estrada",
mas se fingindo inibida,
já foi muito mais testada
do que pista de corrida...
**********

Um gaiato de mau gosto,
vendo um gordo esbaforido,
disse: é suor no teu rosto
ou toicinho derretido! ?
**********

Velava o esposo ainda quente
mas sendo boa, a viuvinha,
convocou seu pretendente
para não chorar sozinha!...
********** 
Fonte: www.marianascimento.net/pages/trovash.htm. acesso em 6.01.2008.

Artur de Azevedo (Contrabando)


A Valentim Magalhães

CAPÍTULO 1

Geraldo casou-se muito novo, em 1871, aos vinte anos, e enviuvou aos trinta. Solteiro, foi um menino turbulento; casado, era um moço alegre: viúvo, tornara-se macambúzio. 

Foi para o pobre rapaz um golpe terrível e esmagador a morte da esposa querida, excelente senhora, bonita e bem educada, mais nova dois anos que o marido. Ele morreria também, se em 1874 não lhes houvesse nascido uma filhinha.

Órfão e sem parentes, Geraldo vive hoje apenas para essa criança, que vai fazer dezessete anos e é linda como os amores. Não a tem consigo, mas no próprio colégio, em que a mandou educar e de onde não a tirou ainda por não ter a quem confiá-la.

Aos domingos almoça e janta com ela, vai pela manhã buscá-la às Laranjeiras, e traz-a para casa em S. Cristóvão, depois de ouvirem ambos a missa das dez na matriz da Glória. À noite, leva-a para o colégio.

Nesses dias, a casa do viúvo - o convento, como lhe chamam os vizinhos – transforma-se; as janelas abrem-se, o piano desperta os ecos adormecidos da sala, e há flores por toda a parte. Depois que a menina sai, a casa readquire o seu aspecto sombrio e monástico.

Nos outros dias Geraldo consola-se da ausência de Margarida - é este o nome dela - esquecendo os olhos na contemplação do seu retrato, uma fotografia recente, emoldurada, que enfeita e alegra a parede da sala, por cima do piano. Infelizmente o viúvo não possui o retrato da morta, mas a filha parece-se tanto com a mãe, que a imagem de uma é bastante para aproximá-lo mentalmente de ambas, e confundi-las no mesmo carinho e na mesma saudade.

Geraldo é funcionário público. Ergue-se muito cedo, toma seu banho frio, lê os jornais e almoça. Depois do almoço vai para a repartição, de onde sai às três horas. Atravessa vagarosamente a rua do Ouvidor, parando defronte das vitrines, sem falar a ninguém, cumprimentando apenas os raros conhecidos que encontra. Às cinco horas está em casa; janta, acende um charuto - fumar é o seu único vício - e vai passar duas horas sentado numa poltrona, contemplando o retrato da filha. Às oito horas recolhe-se ao gabinete e lê até às onze. Deita-se então, e pega imediatamente no sono. Às vezes, vai buscar Margarida, leva-a ao teatro lírico, e acompanha-a ao colégio depois do espetáculo, - mas isso é raro. 

Além dele, há em casa uma cozinheira que dorme fora, e um fâmulo português, o José, homem de confiança, que acumula as funções de criado de quarto, copeiro e jardineiro. Geraldo faz questão do jardim por causa dos domingos:  Margarida gosta de flores.

CAPÍTULO 2

Estamos numa tarde de março de 1891. Geraldo dá um dos seus passeios habituais pela rua do Ouvidor; para defronte da vitrine do Preço Fixo, e sente alguém pousar-lhe a mão nos ombros. Volta-se, e reconhece o Tavares, que fora seu condiscípulo no colégio Marinho, - um grande estroina que se ensaiou sem resultado em três ou quatro profissões diversas, e tem agora muito dinheiro, ganho na rua da Alfândega em transações da Bolsa.

- Oh, Geraldo, andava morto por encontrar-te! Ia escrever-te amanhã...

- Estou às suas ordens.

- És ainda muito urso?

- Sou e serei. Bem sabes que há dez anos, desde que perdi minha mulher, perdi também toda a alegria, é só me comprazo na solidão e no silêncio. Se me encontras na rua do Ouvidor, é porque, depois de azoinado por este bulício, acho ainda mais deliciosa a paz do meu tugúrio.

- Bem, mas vais sacrificar-me um dia, um dia só, desse isolamento com que comprazes: hás de jantar comigo quinta feira.

- Eu?!

- Tu, sim; nesse dia faço quarenta anos, e quero reunir à mesa alguns amigos da minha idade.

- Sabes lá o que dizes, desgraçado! Os meus quarenta iriam ensombrar os seus! Pois queres à tua mesa contemplativo, um urso, como tu mesmo me classificas?

- Faço questão da tua presença!

- Não! não vou! não contes comigo! Há dez anos janto sozinho, ou, quando muito, em companhia de minha filha!

- Há dez anos que não jantas...

- Gosto de ti, sou teu amigo, considero-te muito, mas não terei o menor prazer neste jantar de anos.

- Oh, grande tipo, sê misantropo, mas - que diabo! - não sejas desse modo egoísta! Não se trata do teu prazer mas do meu, entendes tu? Exijo um sacrifício de tua parte, bem sei; mas, como te declaras meu amigo, tens o dever de te submeteres à minha vontade! Vens a contra gosto?... que me importa!... o essencial é que venhas! Quem te mandou ter quarenta anos! Aguenta-te!

CAPÍTULO 3

Na quinta feira aprazada Geraldo saiu da repartição às horas do costume e foi direto para casa. Não se calcula o espanto da cozinheira e do José quando o patrão lhes disse: Janto hoje fora.

O macambúzio foi ao seu quarto, mudou de roupa, lançou um olhar saudoso ao retrato da filha e saiu. Uma hora depois entrava em casa de Tavares, em Botafogo, e caía-lhe a alma aos pés: na sala, sentados aqui e ali, fazendo roda ao dono da casa, estavam quatro sujeitos e cinco mulheres elegantemente vestidas, empoadas, pintadas e cheias de joias e brilhantes.

Geraldo estacou entre os umbrais da porta e teve um movimento retroativo em presença de tantas cocotas; mas o Tavares desprendeu-se dos braços de uma delas, a mais bonita, e foi buscá-lo com um abraço.

- Bravo! Cá está o homem! Agora não falta mais nenhum! Estão reunidos seis amigos de quarenta anos. Nascemos todos em 1851. - Conhecem-se?

Dos quatro sujeitos, Geraldo apenas conhecia um, o Eduardo Távora, doutor em medicina, que fora também seu condiscípulo no colégio Marinho. O Tavares apresentou-lhe os outros: o visconde do Sabugal, opulento banqueiro que há seis anos ainda era moço de padaria, - o doutor Bandeira, advogado, - e o Mora, um rapaz português, muito ativo mas muito pândego que tinha deitado fora duas fortunas, e desfrutava agora a terceira, que era a maior.

Seguiu-se a apresentação das cocotas. O Tavares principiou pela mais bonita: – Mademoiselle Georgina, madame Tavares até amanhã ali pelas onze horas o mais tardar; uma parisiense que nunca pôs os pés em Paris; nasceu e cresceu em Bordeaux, e de lá veio o ano passado, contratada para as Folie-Bergères do beco do Império. Não fala uma palavra de português e não tem medo da febre amarela.

Geraldo cumprimentou mademoiselle Georgina com muito acanhamento.

- Conchita e Mercedes, ambas espanholas de Buenos Aires, como a outra é parisiense de Bordeaux, - duas moscas varejeiras, atraídas pelo mel do Encilhamento dos macaquitos. - A sinhá paulista que deu a volta a todas as cabeças em São Paulo e está conquistando todos os corações na Capital Federal.

- Angelina - chapeau bas! (tiro o chapéu!), - a italiana mais bonita que tem pisado nas terras de Santa Cruz!

E baixinho, ao ouvido de Geraldo:

- É das nossas. Nasceu também antes do golpe de Estado...

O viúvo estava atônito. Ele apertara a mão às cinco mulheres, e cada uma delas lhe impregnara um perfume diverso. Chamou Tavares ao vão de uma janela, e disse-lhe:

- Armaste-me uma cilada. Vou fazer triste figura entre essas tipas. Não sirvo para isto.

- Ora deixa-te de luxos! Que mal podem elas fazer-te?

- Nenhum.

- Mandei buscá-las para enfeitarem a mesa. Faze de conta que são flores...

- Que flores!...

- Elas são cinco e nós somos seis. Sobra um, que és tu. Uma vez que o gênero não te agrada, fica isolado. Tua alma, tua palma.

Às sete horas passaram todos à sala de jantar. Os cavalheiros deram os braços às damas. Geraldo ia sozinho, nesse batalhão de Cythera.

A mesa, uma mesa circular, de doze talheres, resplandecia entre flores e frutos, numa profusão de luzes que se refletiam nos cristais multicores. O Tavares sentou-se entre a francesa e a italiana; o visconde ficou entre esta e Conchita, e junto da Conchita o Mota, e ao pé do Mota o nosso Geraldo que deixou entre si e a Mercedes uma cadeira vazia; junto da Mercedes ficou o doutor Bandeira, tendo à sua direita a sinhá e entre esta e mademoiselle Georgina tomou o lugar o doutor Távora.

O Mota protestou contra a cadeira vazia:

- Isto não está direito: somos seis homens e cinco senhoras!

- Estamos no Paraguai! – exclamou o doutor Távora.

- Um contratempo, obtemperou Tavares, madame Bertin ficou de trazer seis raparigas e só trouxe cinco. Eu pus-a imediatamente a andar, e disse-lhe que não voltasse aqui sem a sexta. Conto que a traga. Se vier, há de sentar-se ali entre o Mota e o Geraldo.

Terminada a sopa, discretamente regada por um delicioso Vinho Madeira seco, abriu-se uma porta e apareceu na porta a figura encarquilhada da tal madame Bertin, uma francesa que brilhou entre o mulherio galante do Rio de Janeiro de 1855 a 1860, e exerce agora a ignóbil profissão de medianeira de amores fáceis.

A entrada da velha foi ruidosamente acolhida com palmas batidas por vinte mãos, que vinte e duas seriam se Geraldo não se abstivesse dessa manifestação.

- Mas que é isto?... a senhora veio só?!... – perguntou o Tavares, arregalando uns olhos furibundos.

- Não; ela está na saleta; é ainda muito acanhada.

O Tavares ergueu-se e foi à saleta. Voltou, conduzindo pela mão uma rapariga morena, muito envergonhada, com os olhos postos no chão, e tão nova, tão nova, que certamente não tinha ainda vinte anos.

- Foi o que pude encontrar, ponderou madame Bertin durante a curta ausência do Tavares.

- Passa para a outra cadeira, disse logo o Mota a Geraldo; a pequena deve ficar sentada entre nós dois. Entretenha-se o amigo com ela, porque eu cá estou muito ocupado com a Conchita.

Geraldo obedeceu enfiado, e o Tavares conduziu a recém chegada até a cadeira vazia.

- Quanto à senhora, – disse o Tavares retomando o seu lugar e dirigindo-se a madame Bertin - vá lá para a copa; coma e beba à vontade!

- Sim, aduziu o visconde; aqui não há lugar para mais ninguém... não queremos ser treze à mesa...

- E demais, – acrescentou o Mota, – não podem tomar parte neste jantar pessoas que tenham mais de quarenta anos.

Todos se riram e madame Mertin desapareceu.

Depois dos dois primeiros pratos, acompanhados o primeiro por um rico vinho Sauternes e o segundo por um riquíssimo vinho Pommard, notou Geraldo que cada um dos comensais se ocupava muito particularmente de uma das suas vizinhas.

O Tavares bebia pelo copo de mademoiselle Georgina. O doutor Távora passara o braço em volta da cintura da sinhá. O advogado segredava não sei o que ao ouvido da Mercedes, que revirava languidamente os olhos. O Mota cantarolava um trecho de zarzuela, tamborilando nas costas de Conchita. O visconde, que se queixava do calor, entrelaçava os dedos nos de Angelina. Só Geraldo e a última chegada se conservavam sisudos, como se assistissem a um banquete de muita cerimônia.

- Então que é isso, Geraldo? – vociferou o Tavares. – Não dizes palavra a essa pobre moça?... não lhe fazes a corte? Sê romano em Roma, meu velho! Esquece-te dos teus velhos desgosto! Transforma-te!

Geraldo, efetivamente, começava a sentir a necessidade de transformar-se, para não ser ridículo.

- Como se chama? – perguntou à sua vizinha, num tom de voz brando e carinhoso.

- Laura.

- É filha mesmo daqui?

- Sou de Resende.

- Já não tem pai nem mãe?

- Ânimo, Geraldo! – vociferou o Tavares.

- Tenho mãe; meu pai morreu quando eu era pequenina.

- Vive em companhia de sua mãe?

A moça estranhou a pergunta, e volveu para o seu interlocutor uns olhos muito espantados. Depois caiu em si, refletiu que a curiosidade do outro era uma coisa muito natural, e respondeu:

- Não, senhor.

- Com quem vive então?

- Vivo sozinha. Eu era casada, mas deixei meu marido.

- Por que?

- Porque não gostava dele. Mamãe obrigou-me a casar contra a vontade. Eu gostava de um moço que me tirou do meu marido, me trouxe para o Rio de Janeiro e me abandonou no hotel. Não conheço ninguém nesta terra e se não fosse madame Bertin...

A conversação continuou por algum tempo, nesse terreno simples e inocente; continuaria ainda se o ponche à la romaine que no menu, delicadamente impresso em ventarolas de seda, figurava como o um drinque alcoolico de frutas, não se combinasse com o Madeira, o Sauternes e o Pammard para a transformação de Geraldo. Porque, digamo-lo, o nosso viúvo, como todos os homens melancólicos, gostava de fazer honra aos bons vinhos.

Às nove horas, quando estourou a champanha, todos os convivas, inclusive a bisonha Laura, fumavam magníficos cigarros egípcios, - “dos que fuma o quediva (soberano)”, observava o Tavares, que não perdia ensejo de encarecer o seu regabofe. A sala enchia-se de fumo. O doutor Bandeira e a Mercedes beijavam-se descaradamente. A sinhá, para ficar mais à vontade, pedia ao doutor Távora que lhe desabotoasse o corpinho. O Tavares ia buscar com os lábios as uvas que mademoiselle Georgina prendia entre os dentes, e dizia-lhe umas coisas num francês capaz de fazer tremer de indignação a sombra de Bossuet. O Mota, embriagado, recostava-se no colo da Conchita, que o penteava com os dedos. O visconde, que se pusera em mangas de camisa, abraçava, voluptuosamente a italiana, e gaguejava um brinde “ao nosso Anfitrião”, brinde a que ninguém prestava ouvidos. Geraldo e Laura, de mãos dadas, faziam protestos de não se separarem naquela noite.

CAPÍTULO 4

Às onze horas, quando os convivas se levantaram da mesa, Geraldo, ébrio de vinho e de volúpia, apoiou-se à cadeira para não cair. Foi para a saleta, e Laura acompanhou-o até um divã, onde se sentaram, ambos, de mãos dadas, ele saboreando um havana, ela fumando, por obrigação, desajeitadamente, outro cigarro dos que fuma o quediva (soberano).

O visconde e os doutores desapareceram com as vizinhas respectivas. Só ficaram Geraldo e o Mota, - tão bêbado este, que o Tavares mandou preparar-lhe o quarto de hóspedes. Conchita afetuosa e solícita, ofereceu-se para fazer-lhe companhia durante a noite.

O Tavares aproximou-se de Geraldo, a rir-se:

- Deitaste as manguinhas de fora, hein, meu santarrão?

Geraldo limitou-se a sorrir, lançando uma baforada de fumo.

- Olha, eu quis ser gentil para contigo, – continuou o Tavares; – mandei aparelhar a vitória, para acompanhares a pequena à casa dela... ou à tua...

- À minha, – redarguiu Geraldo; – ela já me disse que ainda não tem casa...

CAPÍTULO 5

Quando a vitória de Tavares se pôs em movimento, conduzindo Laura e Geraldo, este bafejado pelo ar fresco da noite, foi pouco a pouco recuperando a consciência nítida dos seus atos, e medindo toda a extensão dos excessos a que se entregara.

Sinceramente arrependido de ter aceitado o convite do Tavares, comparecendo a um jantar que degenerara em orgia, achava agora um incômodo trambolho a infeliz rapariga que ali ia atirada no fundo daquele carro, com as pálpebras cerradas, ignobilmente vendida à concupiscência. Perdera de súbito aquele desejo que à mesa lhe despertara os sentidos; achava-se paternal junto dessa mulher, e velho demais para ela, que era quase uma criança. E lembrava das histórias que Laura lhe contara durante o jantar: o seu casamento, a sua fuga, a sua desgraça; e o coração enchia-se de piedade e azedume. Tudo aquilo devia ser verdade; ela não tinha ainda o feitio da cocota, era ainda noviça na profissão: não devia saber mentir.

E Geraldo perguntava aos seus botões:

- Que vou eu agora fazer desta pequena?...

Depois, lembrou-se da última vez em que andara de carro. Havia já alguns meses. Foi uma noite em que levara a filha aos Huguenotes e teve que restituí–la ao colégio depois do espetáculo. Como ameaçava chover, tomaram um carro no largo da Carioca. Margarida ia assim, como Laura, atirada para o fundo do carro, com as pálpebras cerradas...

- Valha-me Deus! que vou eu agora fazer desta pequena?...

CAPÍTULO 6

À uma hora, Geraldo apeava-se do carro e batia à porta de casa. Veio abrir o José, que esperava a pé firme, e notou, surpreso, que o patrão viera acompanhado por uma mulher. A princípio supôs fosse a menina, que tivesse ido com o pai ao teatro e uma circunstância qualquer impedisse de voltar para o colégio, - mas qual não foi o seu espanto ao ver que se tratava de um contrabando, o primeiro que entrava naquela casa!

- Pode recolher-se. - disse Geraldo.

O criado sumiu-se, e o patrão abriu a porta da sala, convidando Laura a entrar. Entraram, e ele imediatamente acendeu o gás. A rapariga olhou com curiosidade em volta de si e o retrato de Margarida chamou-lhe logo a atenção.

- Que moça tão bonita e simpática! – exclamou. – Parece uma santa! - Quem é?

- Minha filha.

- Sua filha? Que idade tem?

- Dezessete anos.

- Tem a minha idade.

Geraldo estremeceu.

- Tem também dezessete anos?

- Nasci em 1874.

- Sim... e em que mês?

- Em abril... no dia 27 de abril.

O viúvo empalideceu e ficou a olhar para a rapariga com uma expressão singular. Depois sorriu, pareceu refletir, foi ao seu quarto, abriu um guarda roupa, e tirou do gavetão uma camisa de mulher que ali estava religiosamente guardada havia dez anos. com outras roupas que eram o espólio sagrado da morta.

- Aqui tem uma camisa de dormir. Dispa-se e deite-se.

Laura ficou sozinha no quarto. Ele esperou que ela se despisse e se deitasse, trouxe para a sala as suas roupas úmidas e estendeu-as nas cadeiras para secarem, apanhando o ar que entrava timidamente pelas venezianas. Tornou à alcova. Laura estava deitada. Tinha vestido a camisa. Bocejava. Parecia morta de sono. Geraldo cobriu-a com um lençol, e perguntou-lhe:

- Gosta de dormir com luz?

- Gosto.

Ele acendeu uma lamparina e apagou o gás. Depois, aproximou-se da cama, abaixou-se, beijou a sua hóspede na fronte, e disse-lhe:

- Boa noite, Laura; durma bem.

- Oh!... então o senhor não se deita comigo?...

- Não.

- Por que?

- Porque você nasceu no mesmo dia em que nasceu minha filha.

Ela compreendeu, ficou muito triste e murmurou:

- Boa noite.

Geraldo foi para a sala, despiu-se e deitou-se no canapé. Refletiu que Laura iria talvez fazer mau juízo de sua virilidade, e espalhar por aí que ele não era um homem. Um instante quis erguer-se para justificar-se positivamente... Mas não; separava-os aquela data: 27 de abril de 1874; seria quase um incesto! 

Adormeceu e passou toda a noite no canapé.

Levantou-se pela manhã, foi à alcova, e encontrou Laura acordada. Indicou-lhe a toialete num quarto adjacente, e levou-lhe as roupas que ficaram na sala a secar. Depois, serviu-lhe uma xícara de café com leite e biscoitos. Às oito horas e meia, Laura estava vestida. Geraldo chamou o José e deu-lhe ordem para acompanhá-la até a sua casa. Quando ela ia sair, ele meteu-lhe nas mãos um envelope contendo uma nota de cem mil réis, beijou-a na fronte, e disse-lhe:

- Adeus, minha filha.

E pôs-se à janela, e acompanhou-a com a vista até vê-la dobrar a esquina, com muita pena de não poder tirá-la para sempre daquela vida.

Depois, foi contemplar o retrato de Margarida.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos fora da moda. Publicado originalmente em 1955. Disponível em Domínio Público 

Estante de Livros (“Roque Santeiro ou O Berço do Herói”, de Dias Gomes)


I- Introdução

A peça O berço do herói deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965, mas o Brasil passava pela ditadura militar e, duas horas antes da estréia, a peça foi proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da peça abordar o tema do mito [herói militar], desconstruindo esse mito. Esse era um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em 1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e a viúva Porcina. É interessante esclarecer que o livro O berço do herói tem o formato de uma peça teatral.

II- Tempo

A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e Roque retorna à Asa Branca quinze anos depois do final da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual ele se referia.

III- Espaço

A cidade de Asa Branca acaba se transformando em uma metonímia do Brasil.

IV- Personagens

CABO ROQUE: Natural de Asa Branca, foi convocado a participar da Segunda Guerra Mundial, contra os nazistas. No meio da guerra, fugiu e se refugiou cerca de 15 anos na Europa. Antes de ir para a guerra, porém, prometeu à Mocinha que voltaria para buscá-la. Anos depois, quando os desertores receberam anistia do governo, voltou para ver Mocinha e encontrou sua estátua na praça e percebeu que tinha se transformado em herói devido a uma confusão. Sua fuga foi interpretada como um ato de coragem e ele foi tido por toda a cidade como herói de guerra morto. Asa Branca enriqueceu às custas desse mito, tornou-se uma cidade do progresso e Porcina, uma empregada que teve um caso rápido com Roque, ganhou status de viúva de herói. Além dela, Chico Malta, Zé das Medalhas e muitos outros exploravam a imagem e, por isso, se interessavam em manter o mito.

PORCINA: é uma mulher de 35 anos, muito vulgar e despudorada. Morava em Salvador, onde era arrumadeira e se envolvia com os soldados que iam ficar na hospedaria em que ela trabalhava. Foi assim que se relacionou por uns dias com Roque. Um dia, conheceu Chico Malta, morador de Asa Branca e se apaixonaram. Chico decidiu levá-la para Asa Branca, mas tinha medo de ter problemas, porque era casado. Para resolver tudo, ambos inventaram a estória de que ela era a viúva do falecido Cabo Roque que morrera lutando na guerra. Assim, ela ficou rica e respeitada na cidade toda.

SINHOZINHO MALTA [CHICO MALTA]: Fazendeiro rico e chefe político de Asa Branca. Corrupto e sem caráter, enriqueceu explorando o mito de Roque Santeiro.

FLORINDO ABELHA: Prefeito de Asa Branca, sem personalidade, é o homem de confiança de Chico Malta, pois depende de seu prestígio e se submete a ele. Tenta ser um administrador moderno, mas não manda em nada.

DONA POMBINHA: mulher do prefeito e mãe de Mocinha. Sua religiosidade se aproxima do fanatismo.

MOCINHA: Filha de Dona Pombinha e Florindo. Foi a primeira namorada de Roque e depois que ele foi para a guerra e espalhou-se a notícia de sua morte, decidiu ser casta. Tem um temperamento marcado pela frustração sexual. Encarna a figura da ‘virgem abandonada’. É desencantada com o amor, porque acha que Roque a traiu, casando-se com Porcina.

PADRE HIPÓLITO: é uma figura contraditória [representa a contradição da Igreja no período militar]. É a única pessoa da cidade que possui uma visão crítica sobre o desenvolvimento desigual da cidade. Combate também as prostitutas da cidade.

ZÉ DAS MEDALHAS: é o mais bem-sucedido de todos os moradores da cidade. Enriqueceu fabricando medalhinhas do herói Roque. Monopoliza esse comércio e quer expandir seus negócios para o exterior.

MATILDE, NINON E ROSELI: Prostitutas da cidade, Matilde é a proprietária do bordel. Querem construir uma boate chamada Sexual, porém são impedidas pelo padre e pelas beatas.

TONINHO JILÓ: representa o povo. É manipulado pelos políticos e figurões da cidade.

GENERAL: representa os militares. Ao ser comunicado por Chico Malta sobre a volta de Cabo Roque, vai à Asa Branca atrás dele e não admite que o exército passe pelo vexame de ter reverenciado um covarde, que fugiu da guerra.

V- Enredo

- 1º ATO

1º quadro A peça tem início com uma batalha. Soldado Roque, que carregava em uma das mãos um fuzil e na outra a bandeira brasileira, foge da trincheira, com medo. Sua fuga é interpretada como um ato corajoso , como se ele tivesse decidido enfrentar o exército inimigo sozinho, e tivesse sido metralhado. Essa morte trágica encoraja os outros soldados, que avançam em massa e derrotam as tropas nazistas na Itália. [Essa é a versão que se espalhou por toda a cidade. Na verdade Roque, fugiu no meio de um bombardeio e não morreu].

2º quadro Toninho Jiló [o povo] inicia esse quadro cantando:

Vamos, minha gente, vamos / melhorar nossa cultura / o ABC de Cabo Roque / A estória que vão ler / se passou lá nas Oropa / e demonstra que na guerra / brasileiro não é sopa / quando entra numa briga / não teme sujar a roupa.

Nessa parte, o autor passa a demonstrar a vida da cidade de Asa Branca. Percebemos que o suposto feito heróico do cabo Roque elevou sua cidade à categoria de berço do herói. O lugar passou a ser visitados por muitas pessoas e ali foi construída uma estátua de Roque. Além disso, faziam festas para comemorar data de nascimento, data de morte, data da primeira comunhão e outras mais, tudo isso para explorar a figura do herói. Foi feito até um filme contando sua história e medalhas eram vendidas por todos os lados.

3º quadro A história praticamente começa nesse quadro, pois Porcina está em casa com seu amante, Chico Malta. Conversavam sobre o lucro que Roque dava àquela cidade, até pensavam em uma maneira de transformá-lo em santo. Malta demonstra preocupação em esconder seu envolvimento com Porcina, pois ele é casado. Ressalta que ela precisa ser vista por todos como a viúva do morto, uma mulher virtuosa. Enquanto conversavam, Matilde, a dona do bordel, bate na porta e Sinhozinho Malta sai pela porta dos fundos. Matilde comenta com Porcina sua vontade de abrir uma boate e entrega dinheiro para Porcina levar à igreja. Matilde convida Porcina a ir no bordel e ela responde: Oxente, eu sou a viúva de Cabo Roque, viúva de um herói. Tenho que manter a dignidade.

4º quadro Zé das Medalhas vai visitar o bordel e leva medalhas de ouro de Roque para as meninas. Nessa quadro, o autor localiza o leitor no estilo de vida dos moradores ilustres da cidade, todos os que viviam em função do mito.

5º quadro É o início da complicação, pois chega na cidade um rapaz de uns trinta e cinco anos, com uma maleta de viagem nas mãos. Surpreso, pára diante da estátua aonde está escrito: 'O povo a seu herói'. Ao cruzar com Matilde na praça, pergunta o que é aquilo e ela explica que é o herói da cidade, que fazia de Asa Branca um lugar importante. Acrescenta ainda que Seu Chico Malta era quem cuidava de tudo. O rapaz decide procurá-lo e vai á casa da viúva Porcina, pois Matilde indica esse lugar.

6º quadro Porcina abre a porta e quando encara o rapaz, grita: Meu Deus!... Não, não pode ser! Tou vendo a alma de um defunto... Como é que eu podia esquecer? Roque... Diante dessa situação, Roque responde: ...Nunca poderia esperar encontrar você, tanto tempo depois, na primeira casa em que eu entro. Como veio parar aqui? Me disseram que aqui mora uma viúva... É a sua patroa?

Na verdade, Roque se dirigiu à casa de Porcina, sem saber que ela era a viúva dele. Eles se conheceram na época em que ele foi convocado para o exército. Porcina era a empregada de uma pousada e eles chegaram a ter um romance rápido.

Roque e Porcina relembram os velhos tempos e Porcina procura omitir muita coisa, com medo da situação. Começa a seduzi-lo e o leva para dentro. Cansado da viagem, Roque acaba dormindo.

7º quadro Sinhozinho Malta chega na casa de Porcina e se espanta com a história. Vai ao quarto dela, onde Roque dorme e verifica que realmente é ele:

MALTA: Espere, também não é assim. Um homem vira estátua, vira fita de cinema, de repente aparece de cueca, de bunda pra cima, na cama da minha amante.

PORCINA: Sou viúva de um homem que nunca morreu e que nunca foi meu marido. Agora o falecido taí. Quero ver como vamos explicar isso a ele. A ele e a todo mundo, porque amanhã a notícia vai correr de boca em boca.

MALTA: Ninguém deve saber. É preciso que ele não saia daqui, que não apareça a ninguém. Até eu decidir o que vamos fazer. Não é só o seu caso. A volta desse rapaz vai criar muitos casos.

Depois dessa conversa, Malta vai embora desesperado e ambos prometem pensar rapidamente em uma solução.

8º quadro Roque acorda cedo, antes de Porcina, e vai passear pela praça onde encontra o padre Hipólito. O padre não o reconhece, mas ele insiste: Não se lembra mais de mim? Fui seu coroinha... seu aluno de catecismo. O padre finge lembrar, mas sai apressado para sua caminhada. Logo em seguida, Porcina vem correndo e pede que ele não saia de casa, para que a cidade não descubra que ele voltou e está vivo. Sem entender nada, Roque pensa que ela se refere ao fato de ele ter abandonado a guerra, pensa que foi tido como desertor. Percebendo isso, Porcina explica que a estátua da cidade era para ele e que, para todos de Asa Branca, ele morreu lutando, dando a vida pela pátria, o primeiro soldado brasileiro que morreu pela democracia. Roque se espanta ao descobrir que é um herói.

Malta chega e Roque conta como fugiu da guerra, no meio de um bombardeio, ficando apenas ferido no ombro. Confessa que foi um covarde e completa: Talvez tenha feito coisas ainda piores pra não morrer. E o que fizeram comigo, em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e de tantas outras palavras?

No meio dessa constatação, percebendo a chegada de alguém, Roque se esconde. É o padre Hipólito que veio buscar o dinheiro que a prostituta Matilde deu à Porcina e aproveita para comentar com Malta o encontro na praça. O padre explica que lembrou quem era depois e que era o Roque. Além disso, afirma que já comentou com o prefeito e com Zé das Medalhas. Logo em seguida, chegam os dois apavorados. Diante da comprovação, procuram o que fazer:

MALTA: Há quinze anos que a cidade vive de uma lenda. Uma lenda que cresceu e ficou maior que ela. Hoje, a lenda e a cidade são a mesma coisa. Na hora em que o povo descobrir que Cabo Roque tá vivo, a lenda tá morta. E com a lenda, a cidade também vai morrer. Tou certo ou tô errado?

Todos chegam à conclusão que se o povo descobrir a verdade, Asa Branca vai acabar e com ela a fonte da riqueza de todos ali. Resolvem então chamar Roque e propor que ele volte à Itália.

ROQUE: [eu vou embora] E todos continuam aqui cultuando a memória do herói. E vivendo à sombra de uma mentira. Já disse que não tenho vocação para mártir. Não acredito nisso, não posso acreditar que um homem seja mais útil morto do que vivo. Do contrário ia ter que acreditar também que todos aqueles infelizes que morreram na guerra foram muito úteis. E que a guerra é uma necessidade porque fabrica heróis em série.

Diante da negação dele, Malta decide ir ao Rio denunciá-lo ao exército.

9º quadro [encenação] todos cantam

À sombra dessa estátua / uma cidade cresceu / cresceu, cresceu, cresceu / à sombra dela cresceu / E agora que fazer / Que a estátua virou / virou, virou, virou / de novo gente virou.

- 2º ATO

10º quadro O autor começa descrevendo a praça, que está toda enfeitada com faixas e cartazes: Bem-vindo Cabo Roque – A cidade recebe com orgulho seu heroico filho. O comentário geral é que Roque sobreviveu á guerra e que está voltando para sua cidade.

No meio dessa confusão Chico Malta volta do Rio com um general e fica surpreso diante da decoração do lugar. Porcina o chama e explica que na ausência dele, todos decidiram contar para a cidade que ele está vivo e inventaram a história de que ele ia chegar com todas as glórias que merece. Malta gosta da ideia, chama o general e explica que Roque é um herói militar e por isso merece as honras do exército. O general entretanto, não aceita ser cúmplice dessa mentira e diz que essa decisão é incompatível com a dignidade militar.

11º quadro Mocinha desconfia que Roque Santeiro já estava em Asa Branca e entra na casa de Porcina escondida. Encontra Roque na sala. A moça o questiona, inconformada porque acha que ele realmente é casado com Porcina. Roque se surpreende com essa informação, mas não tem tempo de se explicar para o seu grande amor, porque Porcina chega e a menina sai correndo. Ele descobre finalmente, porque chamam a mulher de viúva: ela é viúva dele. Porcina conta para Roque essa invenção de Malta para levá-la à Asa Branca sem despertar a desconfiança da mulher do Sinhozinho. Entretanto, se oferece para ser sua mulher de verdade, mas ele não aceita, alegando que é ele quem decide sua vida. Porcina acaba deixando escapar que o general está na cidade e Roque decide fugir para o bordel.

12º quadro As prostitutas o recebem e querem saber o que ele fez durante todos esses anos. O autor se utiliza dessa cena para fazer algumas reflexões sobre a questão do herói militar:

ROQUE: Profissão? Herói! [arrumei essa profissão] Na guerra! Lutei sozinho contra Hitler, Mussulini...Sozinho contra os alemães...Ah, mas é muito dura a profissão de herói. Se eu tivesse morrido, era fácil. Ou se eu tivesse sido herói por acaso, sem querer, como muitos. Mas sou um herói por convicção. Um herói de corpo inteiro.

TODOS: É um mundo estranho esse / em que o amor ao pêlo pode ser / um gesto revolucionário / e provocar a ira dos que nos querem enterrar.

13º quadro Sinhozinho Malta procura Roque na casa de Porcina e ela fala que ele fugiu. Malta começa a pensar em dar um fim nele, crendo que essa é a melhor solução. Para a cidade que espera sua volta devido às faixas espalhadas por todos os lugares, eles falariam que era um louco que se fez passar por Roque. Porcina pede que o deixe fugir, mas Malta acha melhor não.

14º quadro Chico Malta, Florindo e o general procuram o fugitivo e vão ao bordel. Lá, o general passa a questioná-lo e ele confirma ser o Cabo Roque. Isso deixa o militar com raiva, porque Roque era da sua tropa na guerra. Além disso, havia um batalhão do exército que tinha o nome dele. Percebendo que sua vida estava por um fio, o Cabo pergunta se eles querem que ele volte para a Itália, porém, o general responde que não, pois ele pode querer chantagear o exército e a honra militar não pode ficar nas mãos de um canalha.

GENERAL: A verdade é que não tem nenhum sentido ele estar vivo. A morte dele consta da ordem de dia 18 de setembro de 1944 do 6º Regimento de Infantaria. Foi uma morte heróica, apontada como exemplo de bravura do nosso soldado. Atentem bem os senhores o que significa: há um batalhão com o nome dele. Isso é definitivo. Para o exército ele está morto e deve continuar morto.

ROQUE: Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu Regimento é eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem...Sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. E vocês ficam aí cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não se pode ter. Caráter, coragem, dignidade... não vêem que tudo isso é absurdo?

Malta deixa os dois discutindo e sobe para conversar com Matilde e promete patrocinar sua boate se ela der uma bebida envenenada a Roque. A proposta é aceita e todos decidem ir embora. Roque fica sem entender nada, mas fica bebendo com as meninas do bordel. Começa a sentir seu corpo cambalear e cai. Isso coincide com a chegada das beatas à porta do bordel para protestarem contra a abertura da boate, jogando pedras lá dentro.

15º quadro Essa cena tem início com o corpo de Roque estendido no bordel, com um lençol acima e velas em volta. Matilde explica que uma das pedras jogadas pelas beatas atingiu a cabeça dele e isso foi fatal. Pouca gente fica sabendo do ocorrido, pois nem sabiam da presença de Roque lá dentro.

PORCINA: Desde que ele chegou que eu senti que alguma coisa ruim ia acontecer

MALTA: A ele ou a todos nós. É nisso que a gente deve pensar. A uma cidade inteira

FLORINDO: Não seria um crime muito maior matar uma cidade? Em compensação, teremos uma estrada

MALTA: Uma estrada asfaltada para chegar na capital em duas horas.

PORCINA: Que bom. Vou a Salvador toda semana.

MALTA: E ninguém constrói uma estrada dessas sem sacrificar muitas vidas. É a paga do progresso.

A culpa do homicídio recai sobre o padre e as beatas, principalmente Mocinha que se sente culpada por também ter jogado pedras. Devido a isso, o padre é obrigado a aceitar a boate na cidade. Malta propõe abafarem o caso, alegando que se ele pudesse escolher, preferiria ter morrido na guerra.

16º quadro As prostitutas conseguem abrir a Boate Sexus. Na abertura o prefeito discursa:

FLORINDO: Declaro inaugurada esta casa que é, em seu gênero, uma das melhores do país, quiçá da América do Sul. Quero declarar também que isso não seria possível sem o espírito empreendedor de dona Matilde... que tanto tem colaborado com o nosso plano de turismo. Plano que, se Deus quiser, há de fazer de Asa Branca uma cidade digna de Cabo Roque, aquele que morreu lutando pela democracia e pela civilização cristã.

A peça termina com uma fala de Malta:

MALTA [canta]: Assim, senhoras e senhores / foi salva a nossa cidade / Com pequenos sacrifícios / de nossa dignidade / com ligeiros arranhões / em nossa castidade / e algumas hesitações / entre Deus e o Demônio / conseguimos preservar / todo o nosso patrimônio.

VI- COMENTÁRIOS

Linguagem: A linguagem do livro é muito coloquial e simples. Dias Gomes inclui em seu texto palavras do linguajar popular, utilizando até mesmo palavra chulas. Além disso, há em diversos fragmentos ressonâncias das cantigas populares do Brasil.

Personagens: As personagens, em grande parte, são caricaturas de tipos que articulavam o poder em nosso país.

Os militares são vistos, através do general, como autoritários. Além disso, queriam manter o que estabeleciam como verdade, mesmo que isso não fosse verdade. A morte de Roque era tida como verdade, então precisava ser, ou seja, Roque vivo precisava morrer para que a palavra do exército não fosse desmoralizada, custasse isso qualquer o preço.

A Igreja por sua vez, tem dois ângulos no livro. Tem um lado crítico, que rejeita omito progresso, que esconde falsos valores, mas também manipula beatas. Dias Gomes deixa bem clara sua opinião: no período da ditadura foi omissa e muitas vezes conivente com os abusos. Sua preocupação era em manter a falsa moral e não a verdade.

Os políticos como Florindo, o prefeito, demonstram que, segundo Dias Gomes, o poder político não estava com quem tinha sido eleito pelo povo, mas sim com aqueles que detinham o poder econômico, como o Sinhozinho Malta. Malta é também o retrato do que ocorre nas cidades do interior do Brasil, onde os poderosos amedrontam e dominam o povo.

Por outro lado, o capitalismo selvagem é analisado através de quem explora a ingenuidade do povo, vendendo medalhas de um falso herói, como é o caso de Zé das Medalhas. Diante de tudo isso, o povo [representado no livro por Toninho Jiló] nunca conhece a verdade e acaba sempre sendo levado por aquilo que os poderosos querem que ele acredite.

Herói: Dias Gomes questiona um conceito muito interessante do herói. No lugar de simplesmente desconstruir essa figura, apresentando o anti-herói, o autor procura demonstrar como o herói é construído.

Seu livro trata da necessidade do brasileiro de criar figuras maravilhosas. Para isso, expõe a carência das pessoas ao crerem em alguém que é o ser humano ‘ideal’, dotado de virtudes que não temos. A partir disso, aqueles que são mais espertos passam a explorar essa imagem e o mito se consolida. Depois de consolidado, entretanto, aqueles que o criaram acabam perdendo o controle sobre ele e ele passa a ter uma importância que ultrapassa até o bom senso. O mito é também incorporado ao progresso.

Roque precisava morrer, porque ele era um ‘herói’ e essa imagem é mais importante do que a realidade. A personalidade verdadeira do Cabo Roque é totalmente diferente da do herói Roque. O primeiro é um covarde, egoísta e o segundo é cheio de virtudes, como a coragem e o nacionalismo. O que complica tudo isso é o fato dele ser um herói militar, de quem se espera bravura. Ele ter fugido da guerra acaba com a idealização em torno das Forças Armadas.

História Real X História Ideal

Temos no livro dois enfoques da história: a real – Roque foi um covarde e fugiu da guerra – e a ideal – Roque foi um herói e deu a vida pelo país.

Desconstrução da guerra

Se os heróis são necessários para o povo, a guerra também é, porque fabrica heróis em série. O autor procura desconstruir isso e demonstra que o povo não precisa de heróis e que a guerra, ao contrário da visão idealizada que se faz dela, é uma destruição.

Fonte: Estudo da Professora Maria Laura Muller da Fonseca e Silva, disponível no site Algo Sobre. http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/roque-santeiro-ou-o-berco-do-heroi.html, acesso em 2.02.2008.

Aparecido Raimundo de Souza (A Assiduidade de um Maluco Devoto)

TODOS OS DIAS, IMPRETERIVELMENTE, Anastácio repetia aquela cena patética. Escrevia um bilhetinho e subia até o topo do pau-de-sebo. Bastava se levantar da mesa das refeições, lá ia ele, apressado, para o centro do pátio onde outros internos se amontoavam para o descanso do almoço. A única coisa que o vesano não seguia à risca, o horário. Às vezes, postergava para depois das onze e meia, às vezes passava das doze. Todavia, sempre após encher a barriga com a sobremesa que serviam e o café requentado, punha em ação a sua árdua tarefa. Só isto quebrava a rotina. No mais, o ato de levar à termo, com tanta e tamanha veemência a sua esquisitice de subir ao cume da vara enrijada, não falhava, jamais.

Era assim, há exatamente e precisos seis anos de internamento naquele sanatório. No geral, somava, com ele, setenta pacientes. Todos em completo estado de abandono, além da insanidade que os colocava num planeta à parte e sem volta. Em meio aos debilóides estava Dirceu, um jovem chegado há dois anos, que pouco se comunicava com seus pares. Gostava de sondar, registrar e conferir. Passava o dia perdido em pensamentos, perscrutando o ambiente. Quando não, vigiando um funcionário aqui ou ali, aculá uma das enfermeiras que atendia na emergência. O mundo, ao redor simplesmente não existia. Aliás, para ninguém em particular. Sempre que Anastácio se propunha a empreender a sua jornada, Dirceu o seguia, prudentemente, de longe, e o engraçado, se disfarçando de todas as formas para não ser visto ou pego de calças curtas. Numa delas, por exemplo, se camuflou de Tiazinha. Só o pegaram, quando sentou o chicotinho num dos médicos de plantão que o agarrara no banheiro feminino.

E por que Dirceu fazia isso? Pela curiosidade. No meio do pátio, que fronteava com a sede da administração e do ambulatório, havia um mastro de cocanha maior que os normais desses encontrados nas festas de São João e Páscoa. Extremamente liso e comprido, a peça passava dos quinze metros de altura. O bicho se elevava, empertigado, soberbo, como se fosse um varapau. Em épocas de festas, os funcionários se reuniam com alguns familiares, colocavam uma prenda no ápice, geralmente uma boa quantia em dinheiro, depois besuntavam com graxa e a hora que o responsável pela prova gritava “pode subir”, a galera fazia o diabo para agarrar o prêmio.  Exatamente nessa haste carrancuda e altareza, que o Anastácio, impreterivelmente trepava, com todas as forças que o mantinham vivo e em contexturada postura. Esse longo acessório, por rejeição e desmazelo, linha paralela, purgava em orfandade. Os funcionários deixaram de promover as algazarras dos regozijos costumeiros somavam bons carnavais.

Para piorar seu desuso, cada administração que chegava, mudava as regras. Por circunstâncias outras, apesar das intempéries, o madeiro continuava duro e resistente, sendo mantido no mesmo lugar e ali se mantinha a mercê dos extremos climáticos. Antes de subir, Anastácio colocava o tal do papelzinho no qual havia escrito preso aos dentes. Empregando, então, um esforço sobrenatural, ia subindo, galgando centímetro após centímetro, até chegar onde desejava. Às vezes falhava e escorregava, precisando começar de novo, do zero. Mas não desistia. Era obstinado, inflexível e contumaz.  Assim, depois de várias tentativas, conseguia, finalmente, galgar o limite máximo. Uma vez lá, se apressava a espetar sobre um prego, o papelote que levava preso à boca.

Havia um amontoado deles, anteriormente encravado, porém, Anastácio sempre dava um jeitinho e conseguia afixar um a mais. Em seguida, descia escorregando, satisfeito, se flabelava com as mãos em leque e então se trancava em seu cubículo. Todo santo dia, portanto, chovesse ou fizesse sol, ia o Anastácio, pau acima, depositar o minguado de papel, no qual escrevia alguma coisa que só ele saberia explicar. Isso intrigava deveras ao Dirceu, que não perdia as subidas diárias da criatura. O que, afinal, Anastácio grafava de tão importante, que não podia haver um dia, sem que não interrompesse, por nada nesta vida, aquele ritual impróprio de precisar depositar o bilhetinho nos cafundórios das alturas? Seria algum pedido endereçado à Deus? Não! Naquele lugar ninguém falava de religião. Nenhum pastor, padre, ou qualquer representante de uma dessas denominações que visitam presídios e casas de repouso apareciam para dar o ar da graça.

Desde que passara a observar o Anastácio, Dirceu fizera questão de anotar. Remia seus desatinos naquele fim de mundo, exatos dois anos.  Dois anos.  A setecentos e poucos dias sondava cotidianamente, na sua luta, para depois do almoço, ver o cidadão escrever alguma coisa num papel sujo, empalmar com cuidado e subir até o cimo do bastão e, uma vez em nível superior, cravar o bilhetinho e empreender o caminho de volta. Dias, um após outro que martelavam a sua cabeça. O que aquela criatura escrevia? Por que deixar esses papeizinhos no longínquo do inalcançável?               

Belo final de lanche da tarde, por volta das três e meia, Dirceu se encheu de razão. Seria agora (no entender dele,  “hoje”), ou nunca. Desvendaria esse dúbio suspeito, custasse o que custasse. Sua vida inclusive, se necessário. Com esse pensamento aflorando à abelhudice, ainda que envolto pela loucura, esperou a oportunidade certa. E ela chegou mais rápido do que esperava. Aproveitou a ocasião em que um dos doentes da ala dos “trancados” precisou ser levado para o hospital distante do sanatório, uns duzentos quilômetros. Declinava uma sexta-feira conveniente à sua investida e aos propósitos pretendidos. Com essa emergência às portas, o doente alterado, encadeado numa camisa de força, todos os demais internados permaneceram em seus respectivos espaços. Enfim, livre o Dirceu, para tomar, no grito, o pau-de-sebo e pôr um fim definitivo naquele excentricismo do Anastácio. Esgueirando por aqui e ali, espiou o colega de infortúnio e flagelo.

Anastácio havia acabado de descer fazia pouco, e se achava enfurnado em seu pequeno cômodo. De resto, tudo em paz. Os enfermeiros (após a saída do paranoico paramentado no instrumento de tortura) faziam um lanche, riam e conversavam animadamente. Os demais insanos e mentecaptos seguiam em suas órbitas de demências à espera de um possível milagre. Dirceu não perdeu tempo. Alcançou o pátio sem ser perturbado. O pau-de-sebo, senhoril e monumental parecia desafiá-lo em seu intento.

Pôs se em guarda. Empreendeu a árdua tarefa de galgar a compridez do alcantil. Não seria tarefa fácil. Mesmo o Anastácio, acostumado, às vezes subia um bom naco e, no minuto seguinte, despencava. Com ele não haveria de ser diferente. Nesse primeiro dia, tentou diversas vezes. Em vão. No segundo, igualmente os esforços redundaram em fiasco total. Uma semana, nada. Quinze dias, idem. Engraçado, que Anastácio, sem saber dessa façanha, continuava escrevendo os bilhetinhos e os colocando no lugar costumeiro. Quase trinta dias de infrutíferos ensaios. Finalmente o abelhudo alcançou o cocuruto do pódio. Deu graças. Chorou de alegria e contentamento. A ponto de, quase a botar as mãos nos bilhetes, degringolar, se rebentando no chão de terra batida. Ganhou uma série considerada de arranhões, todavia, não entregou os pontos. O pior passara.

Nesse tempo todo de subidas e escorregadelas, patinadas e saracoteios, Dirceu pegara o macete, de como se elevar, e, claro, se sustentar sem propender a se estabacar. Se por azar rolasse desajeitado, poderia acrescentar a seu infortúnio à presença de uma sisuda cadeira de rodas. Nem pensar. Ufa! Poria fim a sua alcovitação dia seguinte. Deu certo. E como foi? Esperou pacientemente o Anastácio colocar mais um papelzinho. Pelas suas contas, desde que passara a observa-lo, beiraria o mesmo número de meses desde que optara a ser um ousado beleguim.

Na oportunidade seguinte, por sinal, caído num sábado ensolarado, seu sucesso se fez pleno. Subiu, subiu, havia aprendido a controlar a respiração, as posições certas para não perder terreno. Eis que a sua neurastenia quase às raias de uma birra insolente misturada com angústia e exasperação, lhe agraciou com o mito acautelado. Sem perder um segundo, Dirceu alcançou o prego que sustinha os bilhetinhos. Arrancou os que lhe foram possíveis. Entabulou o processo de descida, lenta e gradativa, as minúsculas cédulas presas entre os dedos. Em terra firme, tratou de correr para seu quadrado. No silêncio do emparedamento, longe de olhares abelhudos e metediços, passou a ler as mensagens.

Três palavras, apenas três palavras, numa letra desgraçadamente infeliz se juntaram ao seu espanto quase abissal. Desatou a chorar como criança que perdeu um brinquedo de estimação. Em todas as tirinhas de papel a frase lacônica e concisa, como um mantra sem eira nem beira. “FIM DO PAU”. Não contente em chorar, arrancou alguns tufos de cabelos. Bateu com a cabeça na parede. “Fim do pau!”. Estólido ignaro e bronco esse Anastácio dos infernos. O que significavam, ou o que sinalizavam essa três palavras, afinal?!” 

Aferrado nesse caótico sarapantado, Dirceu entrou em um estado de agonia como ha tempos não lhe abatia sobre os costados.  Garrou a gritar. Em meio a esses berros espalhafatosos, os enfermeiros pularam de suas cadeiras e chegaram arrombando a porta de seu cubículo (que ele havia algaraviado por dentro) e o levaram direto para a enfermaria.  Aquietou-se o infeliz com um sossega leão que lhe aplicaram. Até agora ninguém do hospício soube dizer com precisão o que, de fato levou o doidivanas do Dirceu a tomar aquela decisão de se autoflagelar. “Fim do pau”. Explicado e devendado o mistério,  fim do texto também.             

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Texto enviado pelo autor.