segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Humberto de Campos (Convenientes do ciúme)

Com a sua perspicácia de mulher inteligentíssima e original, Ninon de Lenclos recomendava aos maridos que não se mostrassem ciumentos sem um motivo claro, seguro, evidente, para a manifestação de tal sentimento. 

"Não é com suspeitas - afirmava ela, - não é com suspeitas que se fortalece a fidelidade da mulher". E acrescentava, experiente: "Uma injúria tal, longe de a prender, enfraquece-a, familiarizando-a com sentimentos cuja só ideia devia parecer-lhe um crime. Acreditar na sua inconstância, faz com que ela se acostume a encará-la como possível, a aproximar-se mais dela. Isso só pode contribuir para que a mulher acredite ser a fidelidade um mérito, quando somente devia ser um dever."

Essas observações endereçadas a todos os maridos injustificadamente ciumentos, faziam parte, já, do meu cabedal de experiência, fornecida por um incidente que, há meses, profundamente me impressionou.

Senhora de uma formosura incomum, D. Colete abandonou o marido, arrastada pela violência do coração. Esse gesto, que poderia tê-la conduzido à miséria, à lama, à vergonha, levou-a, pelo contrário, ao esplendor e à felicidade. 

O jovem capitalista que a recebera nos braços na sua queda, era considerado, e merecidamente, o homem mais rico da capital. E era a fortuna e o coração desse homem generoso, nobre, cavalheiresco, que ela via a seus pés, derretidos numa chuva de ouro, como aquela com que Júpiter fecundou, na torre de Argos, a desditosa mãe de Perseu.

Robusto, moço e riquíssimo, o ilustre capitalista não tinha motivos para temer um competidor. O seu orgulho, a consciência da sua própria situação econômica, deviam conservá-lo muito alto, acima de quaisquer temores. O coração que lhe batia no peito era, porém, medroso, covarde, infantil, e foi dominado por essa fraqueza que ele chegou, uma vez, a confessar o seu susto, dizendo à mulher amada, com o rosto nas mãos:

- Tu não imaginas, Colete, o que tem sido a minha vida, depois que vivemos juntos. Eu tenho por ti uma paixão desesperada. A minha fortuna, a minha vida, o meu destino estão nas tuas mãos. Dou-te, como tens visto, o que desejas, e dar-te-ia mais, se me pedisses. A minha felicidade é, entretanto, perturbada por um temor permanente: temor de que me deixes, susto de que me abandones, receio de que te apaixones por outro, deixando a minha companhia!

A essas palavras, tão sinceras, arrancadas do coração, a rapariga franziu a testa modelar, coroada de cabelos dourados, como quem acaba de ouvir uma novidade surpreendente. Com os cotovelos de mármore fincados na mesa de jantar, e com o rostinho de boneca, muito claro e muito lindo, pousado nas mãos de seda a sua fisionomia denunciava uma grave preocupação. 

De repente, a testa se lhe vincou ainda mais, e uma pergunta aflorou, franca, ingênua, encantadora de naturalidade, na sua boquinha vermelha:

- Há, então, no Rio, outro homem mais rico do que tu?

E, intrigada, de si para si:

- “Quem será?”

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Sílvio Romero (O Papagaio do Limo Verde)

(Folclore do Sergipe)
= = = = = = = = = 

Uma vez havia, num lugar retirado duma cidade, uma velha que tinha três filhas: uma de um só olho, outra de dois, e outra de três. Perto da casa da velha havia uma outra casa, onde morava uma moça muito bonita. Por esta moça enamorou-se o príncipe real do reino do Limo Verde, que a visitava todas as noites, e lhe estava dando muitas riquezas. 

A velha vizinha começou a desconfiar daquelas riquezas e, uma ou outra, ia à casa da moça para ver se pilhava alguma coisa, e nada. . .

Uma vez sua filha mais velha, que tinha três olhos, lhe disse: “Minha mãe, me deixe ir passar a noite na casa da vizinha que eu descubro o segredo.” 

A velha concordou, e a moça dos três olhos foi. Chegando lá disfarçou: “Ó vizinha, há muito tempo que não lhe vejo; vim hoje passar a noite com você.” 

— “Pois não, vizinha, a casa está às ordens!”, respondeu a bela namorada. 

Quando foi a hora de irem dormir, a dona da casa deu à sua companheira, em lugar de chá, uma dormideira. A moça dos três olhos ferrou no sono como uma pedra; roncou toda a noite e não viu nada.

O príncipe real do Limo Verde veio, como de costume, encantado num grande e lindo papagaio; foi chegando e batendo com as asas na janela do quarto; a namorada abriu-a, e ele foi dizendo: “Dai-me sangue, dai-me leite, ou dai-me água!”

A moça apresentou-lhe um banho numa grande bacia; o papagaio caiu dentro da água a se arrufar e bater com as asas; cada pingo d’água que lhe caía das penas era um diamante, e assim é que a moça ia ficando cada vez mais rica. O papagaio, no banho, desencantou-se num lindo príncipe, que passou a noite com a sua namorada. De madrugadinha tornou a virar em papagaio, bateu asas e foi-se embora. 

A mulher dos três olhos não viu nada; voltou para casa e disse à mãe que tudo eram boatos falsos, e que na casa da vizinha não havia novidade.

Daí a tempos a irmã de dois olhos se ofereceu para ir passar também uma noite na casa da vizinha; foi e chupou da dormideira, pegou no sono, e veio o papagaio, e ela nada viu. Voltou para casa sem descobrir o segredo. 

Passados alguns dias, a moça de um só olho se ofereceu à mãe, dizendo: “Agora, minha mãe, minhas irmãs já foram, e eu quero também ir descobrir o segredo.” 

As irmãs caçoaram muito dela: “Quando nós, que temos mais olhos do que tu, não vimos nada, quanto mais tu, que tens um só!. . . ” 

Enfim a velha consentiu, e a sua filha de um só olho foi. Chegando lá, fez muita festa à rica vizinha, e, quando foi a hora da ceia, fingiu que bebia a dormideira, e derramou-a no seio. Deitou-se e fingiu que estava dormindo.

Na alta noite chegou o grande e bonito papagaio, batendo com as asas na janela; a dona da casa abriu, e ele se desencantou num moço muito formoso, e, como das outras vezes, dentro da bacia do banho ficou muito ouro e muitos brilhantes que a namorada guardou. 

A sujeitinha de um olho só via tudo caladinha. No outro dia bem cedinho largou-se para casa e contou tudo à mãe. No dia seguinte a velha foi quem veio passar a noite na casa da moça. Quando entrou no quarto de dormir disfarçou e colocou umas navalhas bem afiadas na janela por onde tinha de entrar o papagaio. Ele, quando veio, se cortou todo nas navalhas e disse para a namorada: “Ah, Maria ingrata! Nunca mais me verás; só se mandares fazer uma roupa toda de bronze e andares até ela se acabar. . . ” Bateu asas, e voou. 

A moça, que não esperava por aquilo, ficou muito desgostosa, e logo compreendeu a razão das visitas daquela gente na sua casa. Mandou fazer uma roupa toda de bronze, e com chapéu, sapatos e bastão também de bronze, e largou-se pelo mundo a procurar o reino do Limo Verde. Depois de muito andar, sem ninguém lhe dar notícia, foi ter à casa do pai da Lua.

Lá chegando disse a que ia. O pai da Lua a recebeu muito bem, lhe disse que só sua filha lhe poderia dar notícia de tal terra, que ele não sabia; mas que ela, quando vinha para casa, era muito aborrecida e zangada com todos, que portanto a peregrina se escondesse bem escondida. Assim foi. 

Quando ela chegou, veio muito enjoada, dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

O pai a enganou, dizendo: “Não, minha filha, aqui não  veio ninguém, foi um frango que eu matei para nós cearmos.”

A Lua tomou banho e se desencantou numa princesa muito formosa e foi para a mesa cear. Aí o pai disse: “Minha filha, se aqui viesse uma peregrina indagar por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse a sua história. A Lua lhe respondeu que andara muitas terras; mas que daquela nunca tinha ouvido nem falar; mas o Sol havia de saber. A moça se despediu, e, na saída, a Lua lhe deu de presente uma almofadinha de fazer rendas toda de ouro, com os bilros de ouro, alfinetes de ouro e etc., tudo de ouro. A moça seguiu. 

Depois de muito andar, e estando já com os vestidos de bronze quase acabados, chegou à casa da mãe do Sol. Entrou e disse ao que ia. A mãe do Sol a tratou muito bem; disse que não sabia onde era aquela terra; mas seu filho havia de saber, porque andava muito; o que tinha era que quando vinha para casa era muito zangado, queimando tudo, e que ela se escondesse bem.

Assim foi. Quando o Sol veio, foi aquele quenturão de acabar tudo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!” 

A mãe o enganou dizendo que tinha sido uma galinha que tinha preparado para o jantar. O Sol tomou seu banho e se desencantou num belo príncipe. Na mesa a mãe lhe disse: “Meu filho, se aqui viesse uma peregrina, perguntando por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Sol lhe respondeu que nunca tinha ouvido falar em semelhante terra, que só o Vento Grande poderia saber dela, porque andava mais do que ele. 

A moça se despediu, e, na saída, o Sol lhe deu uma galinha de ouro, com uma ninhada de pintos todos de ouro, e vivos e andando. A moça seguiu viagem e foi ter, depois de muito trabalho, à casa do pai do Vento Grande. 

Lá chegando disse ao que ia, e o velho pai do Vento Grande respondeu que não sabia; mas que seu filho havia de saber, o que tinha era que, quando vinha, era como doido, botando tudo abaixo, e que a moça se amarrasse bem num esteio da casa. 

Assim ela fez. O Vento Grande quando veio chegando era aquele zoadão, que fazia medo, botando muros e telhados abaixo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

— “Não é nada, meu filho, foi um capão para nossa ceia.” 

Assim o velho foi enganando até que ele tomou o banho e se desencantou num moço muito belo. Na mesa o pai lhe disse: “Se aqui viesse uma peregrina, tu o que fazias ?” 

— “Mandava entrar e tratava bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Vento Grande respondeu: “Oxente! Ainda agora passei por lá; é perto. Monte-se amanhã na minha cacunda, e, onde avistar um pé de árvore muito grande e copudo na frente de um palácio muito rico, agarre-se nos galhos, deixe-me passar que é aí.” 

No dia seguinte, quando o Vento Grande partiu, a moça montou-lhe na cacunda e seguiram. Depois de muito voar por muitas terras e reinos, avistou o pé de árvore na frente dum grande palácio; o Vento logo de longe foi dizendo: “É ali; agarre-se nos galhos, senão eu a levo para o fim do mundo.” 

Assim a moça fez; agarrou-se num galho da árvore, e o Vento seguiu. Ela desceu e pôs-se em baixo da árvore, imaginando um meio de entrar no palácio para ver o príncipe, ou ter notícias dele. Daqui a pouco chegaram três rolinhas e se puseram a conversar nos galhos da árvore. Disse uma delas: “Manas, não sabem? O príncipe real do Limo Verde está muito mal; talvez não escape.” Disse outra: “E o que será bom para ele?” Respondeu a terceira: “Ali não há mais remédio; as feridas que ele recebeu na guerra são três e não saram; só se pegarem a nós três, nos tirarem os coraçõezinhos, torrarem e moerem, e deitarem o pó nas feridas.” 

A moça ouviu toda a conversa das rolas; armou um laço e pegou todas três; matou-as, tirou os corações, torrou-os e fez um pozinho e guardou. 

Lá no reino tinha-se espalhado a notícia de que o príncipe estava à morte de umas feridas recebidas numas guerras. Não achando um meio de entrar no palácio, a peregrina tirou para fora a almofada de ouro, e se pôs a fazer renda. Veio passando uma criada do palácio, viu e foi dizer à rainha, mãe do príncipe: “Não sabe, rainha, minha senhora, ali fora está uma peregrina com uma almofada de ouro, com birros de ouro, fazendo renda também de ouro, coisa mais linda que dar-se pode. Só vosmecê possuindo. . . ”

A rainha mandou a criada perguntar à peregrina quanto queria pela almofada. A moça respondeu: “Para ela não é nada; basta me deixar dormir uma noite no quarto do príncipe que está doente.” 

A criada foi dar a resposta; mas a rainha ficou muito insultada e não quis. Mas a criada lhe disse: “O que tem, rainha minha senhora? O príncipe meu senhor está tão mal que nem conhece mais ninguém; que mal faz que aquela tola durma lá no quarto no chão?” 

A rainha concordou; foi a almofada de ouro para palácio, e a peregrina dormiu no quarto do doente. Logo nesta primeira noite ela lavou bem as feridas que o príncipe tinha no peito, e botou nelas o pó dos corações das rolinhas; mas o príncipe ainda não deu por de si, e não a conheceu. 

No dia seguinte a moça foi outra vez para debaixo da árvore, e puxou para fora a galinha de ouro com os pintinhos, que se puseram a andar. A criada veio passando e viu.

Correu logo para palácio e disse: “Ó rainha minha senhora, a peregrina está com uma galinha de ouro com uma ninhada de pintos, tudo vivinho e andando. . . Que coisa bonita! Só rainha, minha senhora, possuindo. . . ” 

A rainha mandou propor negócio. A moça disse que não era nada; bastava deixar ela dormir mais duas noites no quarto do príncipe. A rainha não queria; mas a criada arranjou tudo e a moça foi dormir no quarto do príncipe, e deu a galinha e os pintos de ouro. 

Na segunda noite que ela dormiu em palácio, a moça continuou o tratamento, e aí o príncipe foi melhorando e já a ia conhecendo. Na terceira noite acabou o curativo e o príncipe ficou bom. Depois que ficou de todo com saúde, saiu do quarto e apresentou à rainha e ao rei a peregrina como sua noiva, e assim se desmanchou o casamento que já lhe tinham arranjado com uma princesa vizinha. 

Houve muita festa na cidade e no palácio. . . E eu (isto diz por sua conta o narrador popular) trouxe de lá uma panelinha de doce para lhe dar (referindo-se à pessoa a quem contou a história), mas a lama era tanta que ali na ladeira dos Quiabos escorreguei e caí e lá foi-se o doce.

Entrou por uma porta,
Saiu por um pé de pato;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte quatro.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Aparecido Raimundo de Souza (Completamente desproporcionados)

ESTOU TENDO um caso com a Arno. Arno não é uma moça qualquer. É diferente. Linda, bonita, magrinha como gosto, esperta, elétrica, despachada... quando está ligada no que precisa ser feito, parece chegar aos píncaros dos 220 volts. Não estou falando de uma dondoca metida à besta. Faço referência à Arno, a Enceradeira de mamãe. Ela não sabe ainda da minha paixão avassaladora. Coisa antiga, desde o abençoado dia em que papai a trouxe aqui para morar embaixo do mesmo teto. Tudo começou numa tarde de sábado, quando Ambrosina, a nossa empregada, depois de escravizar a pobrezinha, fazendo com que trabalhasse duro, lustrando os assoalhos da sala e dos três quartos, lhe deu uma folguinha arrastando a infeliz para o banheiro de serviço colado à cozinha. Achei que chegara a hora de atacar. Não perdi tempo. Parti para o abraço: 

— Nossa, “migo”. Estou exausta! – balbuciou a prestimosa assim que me viu se encostando à sua beira.

— Dá pra perceber... - respondi sem pensar em coisa melhor a ser dita. 

— Ambrosina quer me ver morta e enterrada. Olhe para meu estado. Estou me sentindo um bagaço.

Procurei ser franco o melhor que pude: 

— Sinto pena de você.

Arno me cravou uns olhos compridos expressando profunda infelicidade: 

— Você?

— Sim! Não posso?

Arno armou alguma coisa para dizer. No último instante resolveu engolir o que pretendia me jogar em meio ao rosto. Talvez achasse que me deixaria nervoso ou mais abestalhado do que aparentava. Ponderou e mediu as palavras antes de voltar ao diálogo:

— Pode, claro que pode. Mas vocês, humanos, não têm sentimentos em relação a nós.  Somos máquinas, não comemos, não bebemos...

Fez uma pausa breve e concluiu, a tez agora tomada por um pranto silencioso:

— As nossas patroas fazem a gente de escravos. Trabalhamos pior que burros de carga.  No final das contas... Meu Deus do céu.

— Ei, não fale assim! Sei que dá um duro danado. Não é de hoje estou de olho comprido em você.

— De olho comprido? Como assim?

— Estou de butuca... quero dizer, meio que “vidrado”, ora bolas.

— Desenhe...

— Não saberia desenhar...

— Pois então fale.

— É que eu... deixa pra lá.

— Fale.  Seja o que for, vá em frente.

— Arno, me apaixonei por você.

A enceradeira de mamãe, ou melhor, a Arno caiu numa estrondosa gargalhada. Quando se cansou, voltou a me fitar, desdenhosa:

— Quer dizer que temos aqui um gurizinho apaixonado?

— Me leve a sério. Por favor!

— Espera que eu acredite?

— Pergunte ao seu Rossi, o Escovão...

— O que o senhor Rossi, meu amigo Escovão tem a ver com isto?

— Ele sabe de tudo.

— Tudo?

— Me abri com ele. Para quem mais?

— E por que ele?

— Porque é um senhorzinho em idade bem avançada. Sabe melhor que ninguém destas coisas.

— OK. Vamos supor que eu acredite.

— Deveria. Falo a verdade. 

— O que foi que disse exatamente a ele?

— Que me fascinei por você. 

— E ele?

— Achou normal, na minha idade. A certa altura me confidenciou que em anos passados, quando ainda moço, caiu de quatro por uma branquela linda e simpática que atendia pelo nome de Frigidaire. Era uma Geladeira.

— E ele ficou com ela?

— Não.

— Por...?

— Frigidaire se desvairou por um sujeitinho esquisito. Um tal de Britânia. Segundo ele, um Liquidificador metido a besta. Final das contas, a criatura sumiu do pedaço e ninguém mais soube dar noticias de seu paradeiro.

— E você acha normal um ser humano se alucinar por um eletrodoméstico? 

— Sim. Acho. Afinal de contas, cá entre nós, você é um pedaço de caminho desconhecido que todo homem em estado de insanidade gostaria de percorrer. Uma princesa bonita, séria, honesta, recatada, tem um porte majestoso, dá conta do recado sem reclamar... e sua tomada quando ligada no interruptor...

— Que mais?

— Quando não está trabalhando fica quietinha no seu canto. Não se mistura. É atenciosa, simples, e me parece...

— Continue...

—  Me parece ter um agastamento muito grande no peito. Uma coisa que machuca você e lhe deixa, às vezes, para baixo.

— Quanto a isto é verdade. Acertou na mosca.

— Então. Deixa eu me aproximar de você. Prometo que não irei decepcionar o seu coraçãozinho. 

Arno se extravasou num sorriso debilitado:

— Todos dizem a mesma coisa.

— Todos? Agora sou eu quem pede. Desenhe.

— Faz anos me apaixonei por um Limpador de Vidros. Estávamos indo de vento em popa.

— E certo dia ele não correspondeu?

— Não, meu lindo. O infeliz se embasbacou por uma Tábua de passar roupas. Belo dia foi limpar as janelas do quarto dela, meio que afoito, se descuidou... acabou despencando do oitavo andar e babau. Desde então, me tranquei dentro de mim mesma.

— Se abra para mim... todinha... 

— Promete me amar de verdade?

— Com todas as forças de meu ser.

A coisa criou raízes. Ambrosina me flagrou por diversas vezes fazendo estripulias com a Arno em meu quarto. Contou para meus pais. Num primeiro momento, meus velhos não levaram fé. Concluíram que a empregada tinha alguma birra comigo, pelo fato de estar lhe dando umas “cantadas” às escondidas. Um belo dia, papai chegou mais cedo do trabalho e me surpreendeu tomando banho agarradinho com a Arno. Uma semana depois foi a vez de mamãe me pilhar de calças curtas.  Ainda assim, as nossas cenas românticas duraram uns seis meses. Por derradeiro, a coisa degringolou. Os autores dos meus dias, chegaram à conclusão que eu havia perdido o juízo. De fato, enlouqueci. Acabei internado como maluco numa espécie de “hospital-sanatório-psiquiátrico” para doentes mentais. Seis anos se passaram, desde que me jogaram aqui. O pai e a mãe que se danem. Careço urgentemente ver, não só isto, reatar os carinhos e afagos com a minha doce Arno. Ou pirarei o cabeção.             

Fonte> Texto enviado pelo autor 

domingo, 19 de novembro de 2023

Trova ao Vento – 005

 

Mensagem na Garrafa – 39 –


Ady Xavier de Moraes
Rio Verde/PR

MULHER

És bela, não porque se fez bela,
mas porque tens no íntimo
o brilho de uma estrela
que durante o dia se esconde
e, durante a noite, no infinito,
mostra tua face que resplandece.

És linda, não porque se fez linda,
mas porque a natureza preparou
para nascer e brilhar.
Tu não precisas de arranjos,
porque uma flor já nasce
com toda a beleza, tenra
e perfumada.

És perfeita, não porque te fez perfeita,
mas porque a vida deu-te de tudo.
A simplicidade de um anjo.
A inocência de uma criança.
O carisma de uma rainha
quando sorri…
sorri com os olhos,
com os lábios, com o coração.

Mostras com muita esperança,
a vontade de vencer na vida
e não sabe da virtude que tens,
por isso, és linda, és bela,
como a flor do meu jardim.

Eduardo Affonso (A indesejada)

As coisas têm, como nós, uma roupa de ficar em casa, uma de ir à missa. Têm modos de quem come se servindo da panela, na cozinha, e modos de quem segura o garfo com o polegar e o indicador e não põe os cotovelos na mesa, na sala de jantar.

Por isso existem o favor e o obséquio, o beijo e o ósculo, o azar e a desdita (e o revés, a desventura, o infortúnio – o azar tem um closet inteiro).

Vejam a morte. É uma palavra áspera, ríspida, sem muita cerimônia, em trajes que não permitem entrever se tem peitoral ou seios, se tem cintura e quadris. É sem vaidade, e serve para qualquer vivente, bicho ou planta. Os preços podem estar pela hora da morte, muita coisa é questão de vida ou morte, ficamos pensando na morte da bezerra.

A morte é trivial. A morte é o fim, e ponto. E o que é o óbito? O óbito é a morte sem mortalha, é a morte em traje de gala.

Óbito vem do latim “obire”:  ir (“ire”) na frente, se afastando (“ob”).  É apenas partir antes.

A morte dói; o óbito vem com anestesia. Por isso, nas estatísticas da pandemia se prefere falar no número de óbitos, não em mortos, cadáveres, finados, defuntos.

O que também não seria problema: cadáver é, literalmente, “caído”. Defunto é o que cumpriu o que tinha que ser cumprido, pagou o que devia ser pago, completou seu tempo de vida. Finado é o que finou-se.

Além da morte e do óbito, temos ainda o falecimento. Falecer é, além de uma das palavras mais lindas do idioma, uma das mais falaciosas: falecer é enganar, fingir, ser infiel, não cumprir o trato.  Falecer, falsidade, falta e falácia têm a mesma origem (“fallere”). De onde também veio o desfalecimento, o desmaio – que, como o sono e o orgasmo, são pequenas mortes.

Por tudo isso, optamos pelo óbito, que não tem as mãos calejadas da morte, prefere o jaleco branco ao manto preto, o bisturi à foice. A morte é o fim; o óbito, uma ultrapassagem, uma precedência. Falecimento é um eufemismo (ninguém falece de covid, de acidente de trânsito, de bala perdida).

Mesmo sem saber etimologia, o sepultamento nos comove menos que o enterro. Enterrar é cobrir de terra; sepultar é apenas fazer desaparecer.  Por isso cremamos (reduzimos a cinzas), em vez de queimar os nossos mortos: cremar e queimar são a mesma coisa, mas sabemos a dor das queimaduras, desconhecemos a da cremação.

A morte é uma fatalidade. E fatalidade é uma sentença divina. Fatal é o que causa a morte (o óbito, o falecimento, o passamento, a ida para o mundo dos pés juntos, o abotoamento do paletó, o batimento das botas, a partida desta pra melhor, o envergamento do pijama de madeira, o embarque na derradeira viagem, a passagem para outro plano, o esticamento das canelas, a degustação de capim pela raiz, a transformação em purpurina).  Portanto, esqueça aquela história de “vítimas fatais”. A menos que a vítima tenha matado alguém, a vítima é apenas a vítima: fatal é a doença, o acidente.

E a vida. Porque a vida, sim, é fatal.

Fonte: https://tianeysa.wordpress.com/2020/04/28/a-indesejada/. 28 de abril de 2020.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 19 –


SEM CORPO, SEM ROSTO SEM CASTA

A minha língua é lusa, índia e africana...
A minha pele é negra, branca e é morena,
Minha estatura é grande, média ou pequena,
Porém meu sangue é vermelho e não me engana.

O meu cabelo é crespo, liso e ondulado...
E minha lágrima é salgada e cristalina,
O meu amor repousa na minha retina,
Mas quando acorda, desperta quem mora ao lado.

Sou brasileiro, do arco íris, tenho as cores,
As minhas dores são melhores ou piores
Que tantas outras, convivo com meus suores
e quando posso, reinvento meus amores.

A minha alma não tem corpo, roupa ou casta,
amar me basta, só preciso de um irmão
que pulse dentro do meu próprio coração,
pois minha dor, ao ver o amor, sempre se afasta.

Quem me estima, não compara, não precisa,
meu riso avisa toda vez que esse alguém vem,
e é esse amor sem casta ou cor que faz o bem,
que me convém, pois meu amor nunca agoniza.

Minha etnia é filha de todo mundo,
basta um segundo do melhor do meu irmão,
Para que eu veja, nele, o mesmo cidadão,
que faz, do irmão, o amor fraterno mais profundo.

Por isso, amigo, somos todos tão iguais,
que os ideais que tu possuis são como os meus
e se apelamos, ao sofrermos, por um Deus,
o nosso Deus é quem nos dá a mesma paz.
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SERES QUE AMAM

Que não se exijam - do homem ou da mulher -
Comportamentos similares ou distintos...
Há quem prefira degustar os vinhos tintos
Outros, que bebem o que a ocasião requer.

Que não se julgue, pela própria experiência,
O amor a dois... cada casal se ama a seu modo.
Quando eu estudo o meu amor, sempre me podo.
Por isso evito ver o amor como ciência.

Quem filosofa sobre o amor, sem "ter" amado
...ou "ser" amado... expressa apenas sofrimentos.
Em cada afeto existem novos sentimentos.
Cada casal tem seu jeitinho apaixonado.

Cada parede protege quem se liberta
No seu espaço de criar um universo
Sentimental... quando um casal está imerso
No ato de amar, jamais existe alma deserta.

Que não se julgue nem se ensine a ser feliz,
Quem é feliz com o amor que escolheu,
Ninguém ministra aquilo que nunca aprendeu
E só quem ama é sempre eterno aprendiz.

Há Capitús e há Bentinhos... e o Escobar?
E Madalena? ... que dizeis... vós, fariseus?
Que sois capazes de julgar o próprio Deus,
Apedrejando quem se ocupa com amar?

Tirai os olhos de vossas vãs fechaduras
E procurai amar sem falsos testemunhos,
Socando teclas como quem faz dos seus punhos
O autoflagelo de quem sofre e se tortura!

Seres que amam ou se amaram de verdade
Têm na saudade ou no momento da paixão,
A intimidade que abençoa um coração,
Quando a razão deixa o amor em liberdade!
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TESTAMENTO

Chegou o tempo inevitável da lembrança
...de repensarmos o que foi a nossa vida.
Se a mesma dor bate no amor, ele revida
com um sorriso necessário... de criança.

Doces memórias nos impelem a passados
...dourados... livres... onde os voos da inocência
ignoravam os arroubos da ciência
e preocupavam-se em criar sonhos alados.

Como brincávamos!!! ...tudo era tão bonito
movido apenas pela nossa ingenuidade
e hoje, imersos na leveza da saudade,
reinventamos nosso amor mais... infinito.

Na previsão de um infarto fulminante
ou de um mal súbito iminente e sem aviso,
nosso sorriso idiota e... tão preciso
ainda teima em enfeitar o nosso instante.

Nós insistimos em criar nossas gravuras
mais pueris... mais inocentes... caricatas,
que apenas contam histórias que nem têm datas,
mas apresentam seus momentos... de ternuras.

São versos... esse é o derradeiro patamar
mais expressivo... são os túneis de memórias,
para que alguém, ao estudar nossas histórias
entenda, ao menos, nosso tempo de sonhar.

As forças faltam, nossos corpos cambaleiam,
Mas nossas mãos ainda insistem: digitamos
Ou escrevemos e, assim, reeditamos
O que sonhamos, esperando que nos leiam.

Que tolos somos! Quem se importa com vivências?
...nossa aparência é um retrato desfocado
De um novo tempo que despreza o passado
Abominando nossas vãs experiências.

Nosso legado? Um objeto precioso,
algum dinheiro, um imóvel, a mobília,
Um carro novo, algum tesouro... e uma família
Tão dividida, querendo o mais valioso.

Noras e genros, retirando suas capas,
Filhos e netos, disputando, após o choro,
O que deixamos... cada um criando num coro
Traçando planos sórdidos, criando mapas.

É inevitável percebermos nossas lutas
Por um futuro mais feliz e promissor,
Mostrando tudo que ensinamos sobre o amor,
Findar em cenas lamentáveis de disputas.

Melhor seria procurarmos a alegria
Na fantasia e só deixarmos aos parentes,
Nossas histórias infantis e adolescentes,
E alguns romances.... fragmentos de poesia.

Quem sabe, um neto ou um filho mais sensato
E mais sensível compreenda, de verdade,
Que a nossa vida só buscou felicidade
Na liberdade mais feliz de cada fato?

Quem sabe, um deles, nos pesquise mais a fundo,
E estude a história de cada antepassado
E compreenda que a memória é o legado
Mais importante e verdadeiro que há no mundo.

E que os desejos pessoais e as manias
Naturalmente humanas e mais prazerosas
Não sejam teses imbecis, pecaminosos,
Dos que acusam com cruéis hipocrisias!

Que nossas mãos ganhem asas de passarinhos
E haja carinho em nosso último estertor,
Para que alguém encontre o mapa desse amor
Que cultivamos na rudeza do caminho.

Que nos editem... não há outra alternativa
Que imortalize nossos modos de sonhar
E que respeitem nosso jeitinho de amar
Para que nossa liberdade sobreviva.

Fonte: Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Contos do Paraná (“Meu menino”, por Pedro Ramblas Filho)

O ônibus, como sempre naquele horário, comecinho da noite, estava abarrotado de gente. Operários, comerciárias, um que é um sujeito de terno desalinhado e pasta 007, estudantes… todos mudos, cansaço estampado nos rostos. De repente, uma ordem gritada lá na frente por alguém ao lado do motorista acordou os sonolentos e sobressaltou os acordados.

- Encosta que é um assalto! E fica todo mundo quieto, quero ver todo mundo manso!

O cano do revólver, a dois palmos da cabeça do motorista, tremia um pouco. No meio do ônibus, uma senhora ensaiou gritar. Foi calada por novas ordens nervosas:

- Quieta aí!

- Todo mundo calado!

O do revólver tinha dois comparsas, um na porta da frente e outro perto da porta do meio. O motorista encostou devagar no meio da quadra, na frente de dois terrenos baldios, perguntou ao do revólver se lá estava bom. O assaltante respondeu que sim e, sem desviar o revólver da cabeça do motorista, explicou como ia ser; com calma, um por vez em cada porta, os passageiros iam deixar o ônibus; na saída iam deixar bolsas, carteiras, anéis e relógios com "os companheiro"; que não se preocupassem, os documentos todos iam ficar no ônibus; que ninguém chamasse a polícia logo, senão o motorista "dançava"; que ninguém reagisse dentro do ônibus, senão também "dançava". 

O cobrador, nessas alturas já tinha sido limpado.

Devagar, como ordenado, os passageiros começaram a descer, deixando antes com os assaltantes tudo que fora pedido, mais as bijuterias, por via das dúvidas. Uma senhora gorda que chorava baixinho, desesperada que a aliança não saía do dedo, foi empurrada por um dos assaltantes:

- Vamos logo, dona, pode ficar com a aliança.

Por pouco, a gorda não se esborracha no chão.

Já tinha saído quase metade dos passageiros quando o do revólver encarou uma senhora de seus trinta e poucos anos, na fila para deixar a bolsa na porta da frente. Não foi bem uma encarada, mais um olhar de curiosidade. O assaltante insistiu alguns segundos sem tirar os olhos, a senhora era só medo.

O assaltante continuou, mas seu rosto foi se descontraindo, ensaiou um sorriso, os olhos brilharam, e então exclamou;

- Tia Carmen!!

A jovem senhora, apavorada, não conseguiu pronunciar palavra. O assaltante repetiu a exclamação:

- Tia Carmen!! Não lembra de mim? O Luiz, Luizinho, seu aluno lá da Graciliano, lembra?

A senhora olhou com curiosidade o assaltante, aos poucos seu rosto se descontraindo, tomando cor, os olhos ganhando brilho.

- Luizinho! É você mesmo, Luizinho! Mas como você cresceu, meu menino.

Nessas alturas, parara toda movimentação dentro do ônibus, passageiros e demais assaltantes, ainda sem entender bem a situação, pareciam avaliar o crescimento do 'Luizinho". Ele tinha coisa de 1,80 metro de altura, ombros largos, cabelos pretos, aparentava entre vinte e vinte e cinco anos. Pela primeira vez baixou o revólver, passou-o para a mão esquerda, a direita estendeu num respeitoso cumprimento.

A professora perguntou de sua vida, fingiu espanto, ao sabê-lo casado e já com dois filhos. Voltou-se então para os demais passageiros, agora já sorrindo, e fez a apresentação, com orgulho:

- O Luizinho. Meu menino mais inteligente e bonito, minha primeira turma de alfabetização, primeiro ano de professora, na Escola Graciliano Ramos, lá na Fazendinha... já passou tanto tempo, né meu menino?...

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

O nosso português de cada dia (Tudo normal)


"Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual..." Lembra? "Maluco beleza", sucesso inteligente de Raul Seixas. O que é ser normal? O que é uma situação normal?

Vamos ao dicionário: "1. Que é segundo a norma. 2. Habitual, natural".

Pois bem. Na última terça-feira [02/12/97], uma greve de motoristas e cobradores obrigou o prefeito de Sâo Paulo a suspender o rodízio dos carros. No rádio, um repórter disse que, "por decisão do prefeito, os automóveis de placas com final 3 e 4 podem circular normalmente". Normalmente? Ou anormalmente? Se levarmos em conta que a norma é que esses automóveis não circulem numa terça-feira, é mais do que óbvio que sua circulação foi anormal.

O fato é que existem muitas expressões que empregamos quase mecanicamente, às vezes por puro hábito, às vezes por parecerem requintadas. No caso de normalmente, expressão que - confesso — me dá arrepio, parece que as pessoas deram à palavra o sentido de "sem problema" ou algo semelhante: os carros podem circular sem problema.

Uma das expressões empregadas por quem quer ser ou parecer requintado é a ultra-intragável "a nível de", usada para tudo, quase sempre sem nenhum sentido. 

Uma funcionária de uma agência de viagens me disse que "a nível de aéreo, o senhor pode escolher entre...". Depois me disse que "a nível de hotel...". 

Um  médico afirmou que "o jogador sofreu uma contusão a nível de joelho". 

E alguém do Ministério da Agricultura garante que "a nível de feijão, a safra vai bem". Sem comentário.

Nesses casos, a expressão "a nível de" é tão útil quanto água em pó. A mesma inutilidade se vê na praga do "inclusive": "Estive na festa, inclusive vi sua prima". 

O vício é cão arraigado que as pessoas chegam a dizer que "o presidente inclusive incluiu no projeto o fim da estabilidade". 

Não é preciso muito esforço para usar adequadamente essa palavra, que — não custa lembrar — é o contrário de "exclusive": "Todos assinaram, o diretor inclusive".

Para fechar o time das pérolas, a deliciosa "enquanto". Não dá para engolir alguém dizendo "Eu, enquanto mulher, defendo...". Por que "enquanto mulher"? Será que o estado não é duradouro, definitivo? Enquanto indica basicamente ideia de simultaneidade: "Enquanto ele dorme pesado, eu rolo sozinha na esteira", diz a poética "Sem açúcar", de Chico Buarque.

Um outro vício é o de usar "enquanto que"; "O Palmeiras enfrenta o Santos, enquanto que o Atlético enfrenta o Internacional". Não caia nessa. Basta dizer "enquanto". E isso.

Por um dos mistérios que talvez nem a informática saiba explicar, em alguns exemplares da Folha de S.Paulo a última coluna [27/11/97] trazia a palavra "portanto" grafada em duas etapas (por tanto).

Boa ocasião para esclarecer o problema. Ou para não esclarecer nada, já que nem tudo em língua tem justificativa lógica. 

Como explicar que "por isso" é separado e "portanto" é junto? Grava-se a grafia e pronto. "Por isso" e "portanto" tem significado equivalente, mas grafia diferente.

Publicado na Folha de São Paulo em 04/12/97

Fonte: Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

Estante de Livros (“Os contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer)


Os Contos de Canterbury (também chamado Contos da Cantuária), é uma coleção de histórias (duas delas em prosa, e outras vinte e duas em verso) escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde Southwark (Londres) à Catedral de Canterbury para visitar o túmulo de São Thomas Becket. A estrutura geral é inspirada no Decamerão, de Boccaccio.

A coleção de personagens dos Contos da Canterbury é muito rica, com representantes de todas as classes sociais, e os temas são igualmente variados. Os contos são recheados de acontecimentos curiosos, passagens pitorescas, citações clássicas, ensinamentos morais, relacionados à vida e aos costumes do século XIV na Inglaterra. Escrita em inglês médio, a obra foi importante na consolidação deste idioma como língua literária em substituição do francês e do latim, ainda utilizados na época de Chaucer em preferência ao inglês.

Não se sabe ao certo quando foram escritos os Contos da Cantuária, mas menções em outras obras de Chaucer permitem concluir que a maior parte dos contos foi redigida a partir dos últimos anos da década de 1380 até a morte do autor, em 1400. De acordo com o que Chaucer explica no Prólogo Geral da obra, o plano original previa que haveria quatro contos por cada personagem. Chaucer morreu sem conseguir completar esse imenso plano, e assim a obra pode ser considerada inacabada. Além disso há um conto, o do Cozinheiro, que permaneceu sem o final.

Existem atualmente 83 manuscritos medievais dos Contos, com textos mais ou menos completos. Esse grande número de manuscritos é evidência da grande popularidade da obra ao longo do século XV na Inglaterra. Nenhum deles é do punho do próprio Chaucer, mas alguns parecem haver sido copiados por escribas pouco tempo depois da sua morte. Um dos mais importantes é o manuscrito Hengwrt, copiado entre 1400 e 1410 e quase completo, que preserva a linguagem de Chaucer com bastante exatidão. O manuscrito mais famoso, apesar de ter muitas edições que o afastam do original de Chaucer, é o manuscrito Ellesmere, belamente decorado com iluminuras.

A primeira versão impressa dos Contos foi publicada em 1476 por William Caxton em Westminster, seguida de outra em 1483. A obra foi, assim, a primeira grande obra em língua inglesa a ser impressa. Seguiram-se muitas outras edições ao longo dos séculos seguintes.

Os diferentes manuscritos da obra apresentam os contos em diferente ordem, não sendo sabido a ordem pensada por Chaucer. Alguns, porém, apresentam clara relação um com o outro, o que ajuda a estabelecer uma ordem de alguns contos, agrupados em "fragmentos".

Linguagem

Chaucer escreveu em inglês médio, mais especificamente no dialeto londrino, que com o tempo contribuiria para o dialeto adotado como padrão para a burocracia inglesa (o Padrão da Chancelaria - Chancery Standard). A pronúncia na linguagem dos Contos difere em muitos aspectos da pronúncia do inglês atual, o que dificulta a leitura do original pelo leitor moderno. A maior causa destas diferenças é que a chamada Grande Mudança Vocálica não havia ainda ocorrido completamente e, como consequência, muitas das vogais de Chaucer eram pronunciadas de uma maneira mais parecida com o latim, o italiano ou o português do que com inglês moderno. Por exemplo, a palavra "been" (particípio passado do verbo to be) era pronunciada "ben" (/be:/, com um longo "e") ao invés de "bin" (/bi:/, longo "i") como no inglês moderno.

Chaucer era um homem de letras culto e seus escritos demonstram grande conhecimento de obras como a Bíblia e o Romance da Rosa e autores como Ovídio, Dante, Petrarca e Boécio (deste último chegou a traduzir a Consolação da Filosofia ao inglês). Também era grande conhecedor de escritores ingleses contemporâneos, como seu amigo John Gower, e textos morais e religiosos diversos. Há referências a várias destas obras e autores nos Contos de Canterbury.

Em relação à forma narrativa geral, considera-se que a fonte mais importante de Chaucer na composição dos Contos foi o Decamerão, de Bocácio. Esta última obra também apresenta uma coleção de contos narrada por um grupo de pessoas, e vários dos contos do escritor inglês tem um paralelo na obra do italiano. A grande originalidade de Chaucer está no universo dos contos e dos personagens: enquanto no Decamerão os narradores de contos são nobres fugidos da peste negra, na obra de Chaucer encontram-se personagens de todas as classes sociais, desde o povo comum (moleiro, cozinheiro etc), religiosos (monge, prioresa) e nobres (cavaleiro, escudeiro). Cada um destes personagens narra um conto de acordo com sua visão de mundo, evidenciando a grande capacidade narrativa de Chaucer.

Argumento

A obra centra-se num grupo de viajantes que, saindo da pousada Tabard em Southwark (Londres), se dirigem à Catedral de Canterbury, com o objetivo de prestar homenagem ao santuário de São Thomas Becket, um bispo católico assassinado, em 1170, por partidários do rei Henrique II de Inglaterra.

Entre os viajantes está o próprio Chaucer. No Prólogo, o autor descreve em primeira pessoa os peregrinos reunidos na pousada, das mais variadas posições sociais e ofícios. As descrições são muito detalhadas, incluindo a aparência física, defeitos e virtudes de personalidade e dados da biografia. Os personagens incluem um cavaleiro e seu escudeiro, um mercador, monges, um frade mendicante, uma prioresa, um pároco, um vendedor de indulgências, um estudante, alguns profissionais liberais (um médico, um advogado, um jurista), um moleiro, um feitor, um cozinheiro, um marinheiro, um carpinteiro, um tintureiro, um tapeceiro, um marujo, um lavrador e uma viúva de cinco maridos. Assim, quase toda a sociedade medieval está retratada entre os peregrinos.

Ainda na pousada, por sugestão do hoteleiro, os personagens decidem passar o tempo durante a viagem contando histórias. Aquele que contar o melhor conto, na opinião da maioria, ganhará um jantar grátis. A partir desse ponto cada personagem conta um conto, de uma grande variedade temática, de acordo com a posição social de cada um. Muitos dos relatos são precedidos por um pequeno prólogo, e muitos são comentados entre os personagens depois de serem contados.

A variedade dos contos é evidente desde o início. O primeiro conto é o do cavaleiro, que narra uma história heroica típica dos romances de cavalaria da época, em que os valores principais são o amor cortês, a coragem e a honra. Segue-se o relato do moleiro, que conta uma história totalmente diferente, de caráter mundano e erótico e com uma linguagem de baixo calão, sobre como um estudante universitário engana o proprietário de sua casa para dormir com a mulher deste. Os contos que se seguem são de grande variedade, segundo a personalidade e o estrato social do narrador. O conto da Mulher de Bath, em especial, divide-se em duas partes: um prólogo, que cobre boa parte do capítulo e no qual a narradora, de nome Alice, fala de sua história e dos cinco matrimônios que contraiu ao longo da vida; e o conto propriamente, no qual se relata um episódio alegadamente ocorrido na corte do Rei Artur, em que um cavaleiro, após deflorar uma donzela, foi condenado a buscar a resposta de certa pergunta dentro de um ano ou seria condenado à morte.

No final da obra Chaucer incluiu uma retratação, em que desculpa-se a Deus e aos leitores pelo baixo nível moral de alguns contos.

Influência

Diz-se frequentemente que as obras de Chaucer em geral e Os Contos da Canterbury em particular contribuíram para que a língua inglesa se popularizasse como língua literária, uma vez que desde a conquista normanda da Inglaterra até o século XIV as línguas de maior prestígio no país foram o latim e o francês. É verdade, porém, que outros escritores contemporâneos de Chaucer também escreveram em inglês, de maneira que também é possível considerar os Contos como uma parte - importante - da tendência de adoção da língua vernacular como língua literária na Inglaterra de finais do século XIV.

Evidência da importância dada aos Os Contos da Canterbury é a existência de continuadores que adicionaram material à obra inacabada ou criaram contos novos. O Conto do Cozinheiro, deixado inacabado, foi completado por um escriba anônimo. Outra adição é o Conto do Camponês (Plowman's Tale), um conto anônimo do século XV incorporado a alguns manuscritos. Já o anônimo Conto de Beryn (Tale of Beryn), também do século XV, narra a chegada dos peregrinos à Canterbury e as aventuras amorosas do vendedor de indulgências. Um contemporâneo de Chaucer, o escritor John Lydgate, escreveu o Cerco de Tebas (Siege of Thebes, 1420) como um conto adicional dos Contos da Canterbury, incluindo a si mesmo como um dos peregrinos.

Os Contos foram impressos várias vezes a partir de fins do século XV, garantindo assim a influência da obra nas seguintes gerações de escritores ingleses. Um exemplo dessa influência é a peça teatral Os Dois Nobres Parentes, de William Shakespeare e John Fletcher, uma adaptação do Conto do Cavaleiro de Chaucer datada do início do século XVII. A escritora inglesa J. K. Rowling, reconhecida pela sua série Harry Potter, disse ter se inspirados nos contos para criar o livro Contos de Beedle, o Bardo, parte do universo da série.