terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Samuel Costa (Toda floresta tem o seu rei)

 Todos os animais sabiam que a princesa Louçã era a rainha da Amazônia, que tinha poderes místicos e era muito forte. Todos gostavam dela por sua bondade e por ela não fazer exceção a nenhum bichinho.

Mas os bichos da floresta amazônica queriam um rei. E foram falar com a princesa sobre isso. Os animais chegaram a uma conclusão: deveriam fazer um concurso para escolher um rei. Todos iriam participar da mesa de júri, dos menores, como a rã, aos maiores, como a onça pintada. Todos iriam participar, mas quem iria dar a decisão final era a princesa Louçã.

E abriram-se as vagas para se candidatar. O primeiro a chegar e se candidatar foi a onça-pintada, como todos esperavam  logo depois chegou o gavião real, depois o jacaré-açu, depois o lobo guará, e logo, para surpresa de todos, um beija-flor chamado Lírio se candidatou. Todos acharam graça do beija-flor: ... “ele é tão pequeno!”  todos acharam que ele iria morrer nas provas, que iriam durar sete dias.

A princesa disse: - Amanhã, assim que amanhecer, quero todos os candidatos aqui. E todos foram embora.   

A onça disse: - Eu só não como esse beija-flor por que ele não dá para nada, aliás, só vai me dar mais forme. 

E o jacaré disse: - Eu também acho... O que um animalzinho desses quer?   Vencer-nos? Ha, ha, ha...   logo nós que estamos no topo da cadeia alimentar da floresta!   

O gavião real disse: - Ele é um louco mesmo.

  No outro dia eles chegaram bem cedo, estavam numa só panelinha, só o beija-flor estava de fora. As provas começaram, era para ver quem tinha mais agilidade  quem venceu foi o gavião e o beija-flor,  quem ficou em último foi o jacaré, porque ele se cansou muito rápido. Depois, foi visto quem caçava mais  quem venceu foi a onça e quem perdeu foi o beija-flor. E assim acabou o primeiro dia de provas.

No segundo dia de provas, elas foram mais leves, os candidatos tinham que falar os nomes das plantas e as fusões de cada animal na cadeia alimentar quem mais se destacou foi o beija-flor de novo, ele mostrou que não tinha força, mas tinha sabedoria. E a onça ficou com muita raiva do beija-flor. O gavião real foi um dos que mais se destacou. E assim acabou o segundo dia de provas.

Os outros pássaros que estavam no júri morriam de inveja: o uirapuru que era o imperador da música da floresta e o seu vice, o sabiá, estavam com raiva do Lírio, e até o imperador da arquitetura amazônica, também ficou surpreso com a coragem do Lírio.            

O terceiro dia de prova foi diferente, os candidatos tinham que falar de seus antepassados, lembrar-se da sua família o máximo que pudessem. E assim terminou o terceiro dia de provas. E o lobo guará e o beija-flor foram os que mais se destacaram.

No quarto dia de provas eles tiveram que escolher um lugar da mata e achar melhor solução para amenizar os caçadores. E assim acabou mais um dia de prova.    

A onça e o jacaré, e o gavião e o lobo, chegaram a uma conclusão: deveriam matar o beija-flor, pois perceberam como ele estava se destacando. Então convidaram o beija-flor para tomar um chá na casa da onça.

Quando a família de Lírio soube que ele foi convidado, eles o aconselharam a não ir, mas Lírio teimou e foi.

Quando ele lá chegou o trataram bem, mas como a onça sabia que ele era muito rápido colocaram pouco açúcar na mesa com a intenção de que este acabasse logo antes que Lírio se servisse. Iriam manda-lo pegar o açúcar dentro do açucareiro e aí, ele seria capturado. E foi o que aconteceu, Lírio foi capturado e a onça o engoliu. Porém, ele era tão pequeno que ela não o mastigou e o engoliu direto.

Foi o quinto dia de provas. Perceberam que o beija-flor não tinha ido participar, mas ninguém desconfiava, eles tinham que ir tratar de negócios na Amazônia Internacional além da fronteira, conversar com os imperadores que cuidavam de cada parte, e foram transportados pela magia da princesa Louçã.

E o sexto dia de provas começou, e a rainha disse:

- Eu já sei quem vai ser o novo rei da floresta, mas vou deixar terminar os dias de provas.

Eles tinham que verificar as nascentes do Rio Amazonas e o nível das chuvas.

E o sétimo dia de prova começava. Era o grande dia, o dia da escolha, e as provas começavam com a palavra da rainha Louçã, que começou dizendo:

- O meu escolhido não está à vista de todos, ele está dentro da barriga da onça pintada, eu o deixei com vida, mas inconsciente. 

No mesmo momento o beija-flor acorda e começa a se mexer dentro da barriga da onça, e de repente o beija-flor sai pela boca da mesma. O beija-flor foi tão aplaudido que de norte a sul, de leste a oeste, escutava-se aclamá-lo como o novo rei da maior floresta do mundo. Então um animalzinho   lhe disse:

- Beija-flor, agora que você é rei, não mate a onça.  

- Sim, não é com violência que vou reinar - retrucou o beija-flor.

A rainha ficou tão admirada com o beija-flor que resolveu lhe dar poderes místicos. E assim a Amazônia foi sendo governada…

Fonte: Sorocult (site desativado). Acesso em 09.01.2016

Professor Garcia (Pantuns) VI

Por definição, o Pantun é um poema de origem Malaia, composto por 4 estrofes de 4 versos cada um, no sistema ABAB. É uma composição poética e musical que faz parte do folclore malaio, no qual o tema mais comum é o amor e surgiu por volta do século XII. Diria que é um tanto quanto desconhecido -e pouco explorado pelos, poetas brasileiros; mas um Pantun bem acabado, torna-se uma composição muito atrativa,

Para se compor um Pantun, escolhe-se, inicialmente, uma boa trova de alguém, podendo ser do próprio autor. A trova escolhida passa a ser a trova tema do Pantun. Dela, surgirão 4 novas estrofes, obedecendo ao sistema ABAB. 

Atenção: tanto da trova tema quanto das novas trovas, o 3° verso é descartado, usando-se apenas o 2o e o 4o versos, e em cada estrofe surgem dois versos novos até o final. Além disso, finaliza-se o 4o verso da última estrofe com o 1o verso da trova tema.

Nem toda trova, por mais bela que seja, pode originar um bom Pantun, é bom ficar atento a esse detalhe. 

PANTUN DO VELHO ABANDONO

Trova tema:
Faminta e desprotegida,
vagando em busca do nada,
ganha o mundo e perde a vida
a criança abandonada.
(Zé Lucas-RN)

Vagando em busca do nada, 
perdida e sem esperança,
a criança abandonada,
mata o sonho de criança!

Perdida e sem esperança,
segue a criança tristonha!...  
Mata o sonho de criança!
Mas é feliz quando sonha!

Segue a criança tristonha,
exposta aos amores vis,
mas é feliz quando sonha,
que um dia será feliz!

Exposta aos amores vis,
mas pela vida iludida,
que um dia será feliz
faminta e desprotegida!
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PANTUN DO AMANHECER

Trova tema:
Da janela, o amanhecer
reluz sopros de esperança...
E a vida, em seu renascer,
lembra um sonho de criança!
(Eva Garcia-RN)

Reluz sopros de esperança
e, o sonho da vida em flor,
lembra um sonho de criança
na primavera do amor.

E, o sonho da vida em flor,
é a força que nos conduz;
na primavera do amor,
é sempre de paz e luz.

É a força que nos conduz,
em busca da eterna paz,
é sempre de paz e luz
e o sonho, ninguém desfaz.

Em busca da eterna paz,
vivo a sonhar e a sofrer;
e o sonho, ninguém desfaz,
da janela, o amanhecer!
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PANTUN DA VOVÓ SERENA

Trova tema:
Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela...
(A. A. de Assis – PR)

A vovó, serena e bela,
é feliz como criança;
entre o novelo e a novela...
Enche a vida de esperança.

E feliz como criança;
hoje, não faz nada à toa,
enche a vida de esperança,
vovó que tudo perdoa.

Hoje, não faz nada à toa,
ante o tempo carrancudo,
vovó que tudo perdoa
faz graça de quase tudo.

Ante o tempo carrancudo,
da infância sente saudade...
faz graça de quase tudo,
curvada ao peso da idade!
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PANTUN DA POBRE MARIA

Trova tema:
Maria é um resto somente
no cais largada ao desdém
quem foi mar de tanta gente
hoje é porto de ninguém!
(Tadeu Hagen – MG)

No cais largada ao desdém
pobre Maria do cais,
hoje é porto de ninguém
na solidão de seus ais.

Pobre Maria do cais,
entre a tristeza e a saudade,
na solidão de seus ais,
distante da flor da idade.

Entre a tristeza e a saudade,
Maria, pobre Maria,
distante da flor da idade,
abraça a vida vazia.

Maria, pobre Maria,
velha, esquecida, indigente,
abraça a vida vazia.
Maria é um resto somente.
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PANTUN DA OGIVA DO AMOR

Trova tema:
Lanço a bomba do meu sonho,
ogiva de paz e amor,
e o cogumelo medonho
ganha formato de flor.
(Cézar Defilippo – MG)

Ogiva de paz e amor
se eu lanço aos céus, todo dia,
ganha formato de flor
entre ogivas de poesia.

Se eu lanço aos céus, todo dia,
conselhos bons aos perversos,
entre ogivas de poesia
eu mostro a paz nos meus versos.

Conselhos bons aos perversos,
não peçam mais, por favor,
eu mostro a paz nos meus versos,
ante os sobejos do amor.

Não peçam mais, por favor,
que eu faça um verso tristonho;
ante os sobejos do amor,
lanço a bomba do meu sonho.

Fonte> Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017. 
Enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Lenda latino-americana : Maria Pamonha)

Certo dia apareceu na porta da casa grande da fazenda uma menina suja e faminta. Nesse dia, deram-lhe de comer e de beber. E no dia seguinte também. E no outro, e no outro, e assim sucessivamente.

Sem que as pessoas da casa se dessem conta, a menina foi ficando, ficando, sempre calada e de canto em canto.

Uma tarde, os garotos da fazenda perguntaram-lhe como se chamava e ela respondeu com um fiozinho de voz:

- Maria.

E os garotos, às gargalhadas, fecharam-na numa roda e começaram a debochar dela:

- Maria, Maria Pamonha, Maria, Maria Pamonha...

Uma noite de lua cheia, o filho da patroa estava se arrumando para ir a um baile, quando Maria Pamonha apareceu no seu quarto:

- Me leva no baile? - pediu-lhe.

O jovem ficou duro de espanto.

- Quem você pensa que é para ir dançar comigo? – gritou. - Ponha-se no seu lugar! Ou quer levar uma cintada?

Quando o rapaz saiu para o baile, Maria Pamonha foi até o poço que havia no mato, banhou-se e perfumou-se com capim-cheiroso e alfazema. Voltou para casa, pôs um lindo vestido da filha da patroa e prendeu os cabelos.

Quando a jovem apareceu no baile, todos ficaram deslumbrados com a beleza da desconhecida. Os homens brigavam para dançar com ela, e o filho da patroa não tirava os olhos de cima da moça.

- De onde é você? - perguntou-lhe, por fim.

- Ah, eu venho de muito, muito longe. Venho da cidade de cintada - respondeu a garota. 

Mas o rapaz a olhava tão embasbacado que não percebeu nada.

Quando voltou para casa, o jovem não parava de falar para a mãe da beleza daquela garota desconhecida que ele vira no baile. Nos dias que se seguiram, procurou-a por toda a fazenda e pelos povoados vizinhos, mas não conseguiu encontrá-la. E ficou muito triste.

Uma noite sem lua, dez dias depois, o jovem foi convidado para outro baile. Como da primeira vez, Maria Pamonha apareceu no seu quarto e disse-lhe com sua vozinha:

- Me leva no baile?

E o jovem voltou a gritar-lhe:

- Quem você pensa que é, para ir dançar comigo? Ponha-se no seu lugar! Ou quer levar uma espetada?

Logo que o jovem saiu, Maria Pamonha correu para o poço, banhou-se, perfumou-se, pôs outro vestido da filha da patroa e prendeu os cabelos.

De novo, no baile, todos se deslumbraram com a beleza da jovem desconhecida. O filho da patroa aproximou-se dela, suspirando, e perguntou-lhe:

- Diga-me uma coisa, de onde é você?

- Ah, ah, eu venho de muito, muito longe. Venho da cidade de espetada - respondeu a jovem. 
  
Mas ele nem se deu conta do que ela estava querendo lhe dizer, de tão apaixonado que estava.

Ao voltar para casa, não se cansava de elogiar a desconhecida do baile. Nos dias que se seguiram, procurou-a por toda a fazenda e pelos povoados vizinhos, mas não conseguiu encontrá-la. E ficou mais triste ainda.

Uma noite de lua crescente, dez dias depois, o rapaz foi convidado para outro baile. Pela terceira vez, Maria Pamonha apareceu em seu quarto e disse-lhe com aquele fiozinho de voz:

- Me leva no baile?

E pela terceira vez ele gritou:

- Quem você pensa que é para ir dançar comigo? Ponha-se no seu lugar! Ou quer levar uma sapatada?

Outra vez, Maria Pamonha vestiu-se maravilhosamente e apareceu no baile. E outra vez todos ficaram deslumbrados com sua beleza.

O jovem dançou com ela, murmurando-lhe palavras de amor e deu-lhe de presente um anel. Pela terceira vez, ele lhe perguntou:

- Diga-me uma coisa, de onde é você?

- Ah, ah, ah, eu venho de muito, muito longe. Venho da cidade de sapatada.

Mas como o rapaz estava quase louco de paixão, nem se deu conta do que queriam dizer aquelas palavras.

Ao voltar para casa, ele acordou todo mundo para contar como era bela a jovem desconhecida. No dia seguinte, procurou-a por toda a fazenda e pelos povoados vizinhos, sem conseguir encontrá-la.

Tão triste ele ficou, que caiu doente. Não havia remédio que o curasse, nem reza que o fizesse recobrar as forças. Triste, triste, já estava a ponto de morrer.

Então Maria Pamonha pediu à patroa que a deixasse fazer um mingau para o doente. A patroa ficou furiosa.

- Então você acha que meu filho vai querer que você faça o mingau, menina? Ele só gosta do mingau feito por sua mãe.

Mas Maria Pamonha ficou atrás da patroa e tanto insistiu que ela, cansada, acabou deixando.

Maria Pamonha preparou o mingau e, sem que ninguém visse, colocou o anel dentro dele.

Enquanto tomava o mingau, o jovem suspirava:

- Que delícia de mingau, mãe!

De repente, ao encontrar o anel, perguntou surpreso:

- Mãe, quem foi que fez este mingau?

- Foi Maria Pamonha. Mas por que você está me perguntando isso?

E antes mesmo que o jovem pudesse responder, Maria Pamonha apareceu no quarto, com um lindo vestido, limpa, perfumada e com os cabelos presos.

E o rapaz sarou na hora. E casou-se com ela. E foram muito felizes.

Fonte: Ana Rosa Abreu et al. Alfabetização: livro do aluno. Brasília: FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000. Disponível em Domínio Público. 

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Trova ao Vento – 006

 

Mensagem na Garrafa – 63 -

Cora Coralina
(Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Cidade de Goiás/GO, 1889 – 1985, Goiânia/GO

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

Milton S. Souza (Datas entrelaçadas)

Depois que começaram a inventar dias disso e dias daquilo (Até a sogra já tem dia!), passaram a faltar datas no calendário para tantas comemorações. E o negócio foi agrupar várias homenagens num mesmo dia para que nada e nem ninguém deixasse de ser lembrado. Isso está acontecendo, principalmente, com os santos, que precisam dividir um só dia entre três ou quatro nomes sagrados. Mas se eles foram considerados santos em vida, agora que já estão no paraíso nem devem se importar muito com esta divisão. Acontece, porém, que algumas datas que se entrelaçam podem causar dúvidas, problemas e sérios constrangimentos.

Vejam vocês, por exemplo, o 31 de outubro. Todo mundo sabe que esta data importada é festejada como o Dia das Bruxas. Mas pouca gente sabe que ela marca, também, o Dia da Dona de Casa. Será que foi proposital esta dupla homenagem? Sei que os machistas de plantão e aqueles que casaram com algum projeto de bruxa responderão afirmativamente. Mas, para não provocar injustiças, vou examinar, com isenção e muito cuidado, as semelhanças entre as duas partes. Nem vou falar da feiúra, porque isso depende dos olhos de quem olha (E o amor provoca cegueira!!!). Mas ninguém vai poder negar que as bruxas e as donas de casa estão sempre lidando com receitas, panelas e vassouras. E que as bruxas voam e fazem os objetos voarem. Algumas donas de casa, principalmente quando estão com raiva dos coitados dos maridos, conseguem fazer os objetos mais estranhos (e pesados) voarem (e o marido sair voando de perto delas, para não apanhar). Sei que poderia encontrar mais algumas semelhanças. Mas estas que examinei já me deram certeza: existem mesmo muitas razões para festejar estas duas datas no mesmo dia...

Outra data que estaremos festejando em 1º de novembro é o Dia Internacional do Homem. Uma homenagem merecida, pois todas as pessoas inteligentes sabem que o mundo só funciona bem por causa dos homens. Seria exigir demais das mulheres, que não sabem nem fazer um carro funcionar quando acontece qualquer pequena pane, que elas fossem responsáveis pelo funcionamento do mundo. E para a homenagem aos homens ficar mais merecida ainda, vejam vocês o que mais se festeja neste primeiro dia de novembro: o Dia de Todos os Santos. Nem dá para discutir: o entrelaçamento destas duas datas é muito oportuno e bem pensado. Quase todos os homens (salvo aquelas raras exceções desencaminhadas pelas mulheres) são santos em potencial. Nada mais justo e certo do que festejar o Dia Internacional dos Homens juntamente com o Dia de Todos os Santos (e nós, homens, apesar da nossa santidade, não vamos aceitar promessas e nem orações como presentes nesta data tão importante)...

Depois de ressaltar estas duas datas entrelaçadas, uma outra data passa a me preocupar bastante: o 2 de novembro, Dia dos Finados. Não, não tem nenhuma data entrelaçada com este dia fúnebre. A minha preocupação é outra: se a minha esposa ou algumas das mulheres minhas amigas lerem esta crônica machista, poderão pensar que tudo o que está escrito nela é a minha verdadeira opinião (e não apenas uma simples brincadeira). Neste caso, provavelmente, estarei festejando, silenciosa e geladamente, o próximo Dia dos Finados…

Ademar Macedo (Jardim da Poesia)


POESIA PARA O ANO NOVO

Hoje eu pedi para o povo,
em preces e em orações,
muita paz neste Ano Novo,
muito amor nos corações,
e fiz pra Deus uma carta,
pedindo uma mesa farta
para o faminto comer.
Mandei essa carta em nome
daquele que passa fome
e que não sabe escrever!
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FALANDO DE SERTÃO...

Pra retratar o sertão
em sete versos apenas,
mergulho na natureza
busco inspirações serenas
e qual um grande pintor
para a obra ter mais valor,
crio minhas próprias cenas!

Eu vendo uma flor se abrindo
me causa muita emoção,
também vejo encantamento
nos giros de um foguetão;
minha emoção continua
quando a noite eu vejo a lua
iluminando o sertão.

O chiado da porteira,
a debulha de feijão,
uma caçada de peba,
uma noite de São João;
a coalhada na tigela
jumento, cavalo e sela,
são coisas do meu sertão.

O sertão me ensinou mais
a gostar dos cantadores;
do pobre homem do campo,
aprendi sentir as dores;
imitar os passarinhos
e correr pelos caminhos
sentindo o cheiro das flores.

De uma forma doedeira
guardo na imaginação,
as brincadeiras de roda
numa noite de São João;
vivo cheio de saudade
morando aqui na cidade
com saudades do sertão!…
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O SERTÃO É UM POEMA...

Deus na sua magnitude,
fez do sertão um palácio,
deixou escrito um prefácio
na parede do açude;
disse da vicissitude
da flor e do gineceu,
de um concriz que se escondeu
nos garranchos da jurema,
o sertão é um poema
que a natureza escreveu.
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O VÍRUS DA POESIA...

Poesia é a minha paz,
meu mundo, meu universo;
um mar de sabedoria
onde eu vivo submerso;
é minha alimentação,
é meu sustento, é meu pão
feito de rima e de verso...

A partir da madrugada
é esse o meu dia a dia:
já de caneta na mão
recebo uma epifania,
cuja manifestação
é trazer-me inspiração
pra eu fazer minha poesia...

A poesia é minha luz,
é meu santo e meu altar,
feijão puro com farinha
que eu tenho para almoçar;
ela é minha própria vida
é meu lar, minha guarida
meu sol, meu céu e meu mar!

Ao ver poesias aos montes
nascendo em minha vertente,
tive um “derrame” de rimas
nas veias da minha mente
e um maravilhoso “infarto”
eu tive ao fazer o parto
do derradeiro repente!...

Quero então no meu jazigo,
feito em letras garrafais,
aquela minha poesia
que me deu nome e cartaz;
e escrito, seja onde for:
- eis aqui um trovador
que morreu feliz demais!

Quem carrega, como nós,
o vírus da poesia,
tem no sangue uma plaqueta
que se altera todo dia,
aumentando a quantidade
e pondo mais qualidade
nos versos que a gente cria.
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PAISAGENS DO MEU SERTÃO!

Um forró numa latada
numa plena Sexta-feira,
um bebum no meio da feira
topando em toda calçada;
uma velha na almofada
com um birro em cada mão,
prestando muita atenção
naquilo que vai fazendo;
isso é mesmo que está vendo
paisagens do meu sertão.
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SE TIVER QUE CHORAR...

Há sorriso que fere e que magoa
e há pranto que comove e traz alento,
e os que trazem a dor do sofrimento
deixam marcas no rosto da pessoa;
e por mais que este pranto não lhe doa
deixará para sempre uma sequela,
que se faz cicatriz no rosto dela
maculando esta dor que não termina;
se tiver que chorar feche a cortina,
quando for pra sorrir, abra a janela.

Lima Barreto (Dias de roça)

(Carta)

Meu caro amigo. V. me perguntou o que faço nestas paragens que não te mando o manuscrito prometido. A bem dizer, não faço nada; mas, por isso mesmo, ainda não dei começo ao trabalho que tratei contigo fazer.

Imagina tu que estou aqui há bem um mês e ainda não pude ler convenientemente, para convenientemente dar noticia de dois livros. Um é do Mário Sete, autor do formoso Rosas e Espinhos; é um romance que tem andado aqui de mão em mão e não sai de uma delas sem os maiores gabos e sem sugerir aos leitores reflexões sobre os encantos da vida roceira sobre a da cidade. Pois, ainda, como já disse a V., não pude ler o Senhora de Engenho. É este o título do romance de Mário Sete; entretanto, apesar de ser a negação para o gênero, a pedido de "várias famílias", já escrevi uma conferência literária que, pela circunspeção e seriedade, vou pedir ao meu Félix Pacheco que a publique no Jornal do Comércio. Tem ela por tema – "O destino da Literatura". Merece ou não o Jornal do Comércio? Espero que ela será muito apreciada pelos conspícuos acadêmicos Afrânio Peixoto e Hélio Lobo, embora, sem discordarem, tenham ambos dos fins da literatura, ideias muito diferentes das minhas, se é que tenho algumas.

Um outro livro que, para aqui trouxe, a fim de estudá-lo convenientemente, é o de Gastão Cruís Coivara. É um livro de Contos que todos aí conhecem. Quero muito falar , desse livro em que o autor, apesar de médico, abandona o pseudo clássico de Aloísio, escreve como eu ou como o Cardim do Jornal do Comércio, mas se revela um temperamento complexo de pensador-homem de letras.

Mas que diabo V. faz - dirá o amigo - que não escreve ao menos isso? Passeio e converso. Mirassol não é uma paisagem. É muito pobre a esse respeito. Faltam-lhe água e montanha. O horizonte é igual e unido; e as florestas de perobeiras já fugiram para longe do povoado, deixando das derrubadas e das queimadas consequentes, em pé, altos troncos carcomidos e enegrecidos pelo fogo, como para significar o seu protesto e clamar, sem cessar, aos céus de dia e de noite, contra a violência que sofreram. O caboclo passa por eles, e nem os olha, quanto mais os ouve...

Ele marcha para o conto, para o conto de réis. Aqui só se fala em conto de réis; as grandes notas de cem, duzentos e quinhentos mil-réis são comuns. Letras, hipotecas e anticreses são termos e instrumentos de créditos familiares a todos; e até a conta de pares o é.

Sente-se que o "rush" da população para aqui, não só paulista, mas brasileira, com a sua natural mescla de imigrantes de várias proveniências, não tem em grande conta a terra e as suas árvores. Ela corre atrás desse demônio do café que vejo pequenino, de dois e três anos, a crescer sobre as recentes derrubadas, com ar tímido de criança sonsa. Este pequeno de fisionomia verde-chumbo vai ser o diabo...

Constituída assim a povoação do lugar, é um gozo observá-la em todas as camadas. Sem propósito algum, converso com este ou aquele e me edifico. Um curioso tipo de plantador, a não sei que propósito, disse-me um dia destes: 

- Moço: a pior, a mais baixa profissão desta vida é a de advogado; depois, a de soldado; depois, é a de oficial de justiça.

Há aqui intermináveis questões de terras, devido à falsificação de títulos de posse, a que chamam - "grilos". Essas complicações, ao que parece, fazem as delicias dos advogados e são o pesadelo dos agricultores. Dai, a opinião do fazendeiro que ouvi Há coisas dolorosas provocadas por essa história de "grilo" que sociólogos da escola do super-homem já elogiaram no Rio de Janeiro. Deixemos isso para mais tarde... 

É, mais ou menos com isto, meu caro amigo, que me ocupo aqui onde estou. São os meus dias de roça.

À noite, vou ao cinema, coisa que não fazia aí, no Rio; e vou de graça, como representante da imprensa carioca. Evite os protestos...

De V. etc. etc.
Careta, 14-5-1921

Fonte: Lima Barreto. Marginália. Publicado originalmente em postumamente 1953. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Juiz de Fora/MG)


JUIZ DE FORA/MG
Duque  Bicalho e Lindolfo Gomes

Viva a Princesa de Minas,
Viva a bela Juiz de Fora,
Que caminha na vanguarda
Do progresso estrada a fora! 

Os seu filho operosos
Asseguram-lhe o porvir,
Para vê-la grandiosa 
Nunca têm mãos a medir...

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Demos palmas, demos flores
Aos encantos da Princesa!
Ela é rica de primores
Da poesia e da beleza.

É a cidade aclamada,
Do trabalho e da instrução,
É do Cristo abençoada
Sob o sol da religião.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Estante de Livros (“O apartamento de Paris”, de Lucy Foley)


Novo livro de Lucy Foley traz suspense imprevisível ambientado em um prédio chique na capital francesa

Após os best-sellers A última festa e A lista de convidados, Lucy Foley agora apresenta uma trama instigante sobre uma jovem inglesa que vai à França em busca de um recomeço. 

Na história, conhecemos Jess. Ela está sozinha, sem emprego, sem dinheiro e, agora, em busca de um recomeço. Por isso, ela vai para a França. Lá, ela pede ajuda do meio-irmão, Ben. Mas ele não está muito animado em abrigá-la em seu apartamento de Paris. Ainda assim, ela chega na cidade e descobre que o lugar em que o irmão mora não é bem o que ela imaginava. O problema maior é que não há sinal dele, apenas suas chaves e carteira estão na casa.

Assim, Jess começa a seguir os passos deixados pelo irmão, para descobrir o que aconteceu com ele, enquanto outras perguntas vão surgindo. Afinal, os vizinhos de Ben formam um grupo bem eclético, e nem tanto amigável. Ou seja, Jess acaba se envolvendo em uma investigação que também a deixa em situações delicadas. Logo, ela descobre que o futuro do irmão está em jogo e todos os vizinhos são suspeitos.

Lucy Foley divide a narrativa em vários personagens, mas o foco é Jess, que narra suas partes em primeira pessoa. Eventualmente, todos os envolvidos acabam tendo algum destaque, mesmo Ben. Assim, os capítulos são mais curtos, o que dá mais velocidade à leitura. Por isso ela avança rapidamente, num ritmo muito interessante, comum em thriller desse gênero e em livros de Lucy.

Fato é que a autora constrói seu romance de maneira incrível. Cada capítulo é uma surpresa, ela cria uma expectativa diferente a cada um e quando chegamos na sequência do ato anterior, não é nada do que pensamos. Mas ela mexe com o leitor, ela cria essa expectativa de maneira muito inteligente. Então, não é um simples suspense. É uma história que mexe com o psicológico de personagens e leitores.

Como disse, Jess é a protagonista e narra suas partes. Portanto, ela nos revela muito sobre si, seus medos e como é uma pessoa que também tem segredos, assim como os outros personagens. Além disso, as demais personagens parecem sempre saber de algo, ou esconder algo, enquanto o nome do meio-irmão de Jess sempre aparece também em suas versões. E o mais interessante: eles dão a entender que Ben é o vilão, aquele que trouxe o “mal”.

Por isso, Lucy vai jogando pistas, que podem tanto confundir como deixar o leitor mais próximo de uma resposta para o enigma que vai se formando. Ao mesmo tempo, cada vizinho, cada personagem revela um pouco sobre si, sua relação com Ben, e seus próprios segredos. Aos poucos, esse labirinto vai ficando mais claro e, ao mesmo tempo, intrigante. Como se não fosse bem isso que imaginávamos.

Outro ponto importante é a ambientação da história. Isso foi primordial nos primeiros livros e aqui a autora segue na mesma linha narrativa. Esse prédio de apartamentos em que o irmão de Jess vive, na capital francesa, é quase um personagem da história. Afinal, ele mesmo hospeda segredos tão bem quanto as pessoas responsáveis por eles. Há, nisso, um simbolismo muito interessante e bem trabalhado pela autora.

Mas há uma diferença nesse ponto. Isso porque, nos primeiros livros, a autora trouxe locais mais remotos, seja pela localização ou por condições ambientais. Aqui, é no meio de Paris, em um prédio de apartamentos que, pelo que descrevem, tem um ar de suspense, de fato. Mas é o cenário mais “normal” que Lucy traz, também explorando as ruas e outros locais de Paris.

Sem dúvida, esse livro é surpreendente e com uma estrutura complexa. Mas Lucy Foley consegue desenvolver ele com maestria, sem pontas soltas. Tem um ar de suspense muito interessante, de deixar o leitor tenso mesmo. Como um filme, na verdade, o que é muito interessante. E é incrível como a autora brinca com o leitor, esconde coisas nas entrelinhas, pois todos vão se revelando suspeitos de alguma forma, com motivo e oportunidade.

Enfim, é isso. Um romance que vale a pena a leitura, só para trazer aquela adrenalina e nos tirar da ressaca literária.

Fontes: 
Resenha por Douglas Oliveira para a Estação Imaginária, 23.07.2022. https://estacaoimaginaria.com/

Coelho Neto (O amigo urso)

«Quando vemos dois grandes povos travando uma guerra longa e obstinada, é muitas vezes uma má política pensar que podemos continuar a ser um espectador silencioso; porque qualquer um dos dois povos que vencer primeiro empreenderá novas guerras, e uma nação de soldados lutará contra povos que são apenas cidadãos»
MONTESQUIEU.

Mestre urso, senhor de toda a parte da montanha que olhava para o norte, fez constar aos seus vizinhos do sul que resolvera e jurara, à fé inquebrantável de urso, não permitir que pisassem a montanha, senão como hóspedes, quaisquer animais de outras regiões, ainda que lhe fosse preciso, para manter a independência daquelas altitudes, deixar a última felpa nas garras do estrangeiro, porque entendia que Deus criara aquela eminência maravilhosa para os animais que nela haviam nascido.

Logo que foi conhecida a resolução do urso poderoso reuniram-se todos os animais da vizinhança e, em festa estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor do norte, que ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.

Pouco tempo depois um dos animais, cuja toca (que tinha a forma perfeita de um tonel e por tal lhe chamavam — a cuba) fora descoberta por um caçador do ultramar que a cercara convenientemente para garantir-lhe a posse e manter em obediência o morador, resolveu revoltar-se contra as contínuas vexações e pôs-se a roer o cercado pondo abaixo o tapigo (tapume). Veio, porém, o caçador e o animal, posto que fraco, não mostrou arrecear-se do inimigo e esperou-o de frente, com audácia tão grande que mais parecia loucura.

Lutavam os dois quando o urso, que espiava de longe, lambendo as patas, notou que o cansaço e as muitas feridas, pelas quais escorria o sangue de ambos, ia-os enfraquecendo; sorriu, então, e levantou-se descendo vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o animal brigavam com desespero.

Ficou à espreita e, em dado momento, levou sorrateiramente para o lugar do combate uma malga (tigela) de leite e lá a deixou, recolhendo a pata.

Sucedeu o que era de esperar: o caçador, que não dera pelo urso e muito menos pela sua trama, no furor da peleja, deu com o pé na malga e lá se foi o leite.

Levantou-se a fera aos urros protestando contra a afronta. O caçador quis ainda provar-lhe que não vira a malga, escondida, como estava, entre as ervas do campo, mas o urso a nada atendeu e, vendo o adversário arquejante, vermelho de sangue, com as roupas em frangalhos, achou a ocasião excelente para cair-lhe em cima e, assim pensando, logo executou.

O caçador, que era brioso, apesar de reconhecer a grande superioridade do antagonista inopinado, não desertou a liça; travaram-se. Mas que podia fazer o desgraçado, já esgotado e consumido por um longo combater, contra aquele que vinha, fresco e bem nutrido, dos alcantis da montanha. Foi subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso logo espichou o corpo a pretexto de descansar um bocado.

Os animais vizinhos alvoroçaram-se de alegria vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, só o da cuba não via com bons olhos aquele corpanzil imenso estirado ali, logo à entrada da sua moradia, tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar, primeiro para agradecer-lhe o socorro, depois para pedir que lhe deixasse livre o terreno.

Ouviu o urso a reclamação lambendo vagarosamente as patas, ao fim disse:

«Amigo, se eu aqui não viesse, tu ainda estarias a lutar com o caçador. Para livrar-te dele sacrifiquei uma malga de leite e tu não levas em conta o meu prejuízo. Queres que me vá embora e se o caçador tornar? Então, deixa-me ficar por aqui, e dá-me alguma coisa, porque estou com fome». 

E dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba, como senhor na varanda da sua casa. Entraram, porém, os vizinhos a murmurar contra aquela ocupação :

«Afinal, que lucrava o animal? Passar de um senhor a outro; isso pouco valia e, se o urso não se intrometesse na luta, talvez que o animal já se houvesse libertado do caçador que o mantinha sob o seu domínio, não porque dele o tirasse proventos, que só despesas lhe dava, mas por amor próprio e hábito».

O urso não andava bem e, crescendo as murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes, porém, de partir, chamou o animal e disse-lhe :

«Eu parto, volto à minha montanha, mas fico de lá com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não quero histórias com vizinhos nem negócios sem o meu consentimento. O mundo está cheio de perfídias e tu és ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descansa». 

E foi-se.

Lá trepou à montanha e, deitado, tem os olhos no animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que o gato deixa em liberdade, mas que lhe sente o peso bruto das patas e os ferrões das presas se vai a entrar no buraco ou se se aproxima de alguma fresta.

Um dia o guanaco, que vivia em litígio com o tapir por causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas finanças desbaratadas, quando avistou mestre urso no alto da montanha. O guanaco, que não é covarde, mas que é prudente, desconfiou daquela visita e pôs-se em guarda ; o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um aceno da pata, pedindo que chegasse à fala, porque tinha a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O guanaco foi indo, vagaroso e matreiro, e, na ponta havia um abismo fundo na montanha, deixou-se ficar á margem, pedindo ao urso que falasse. E o urso disse :

— Amigo guanaco, eu sei que andas muito preocupado com essa questão de terras que o teimoso tapir insiste em afirmar que são dele. Não sei se são, sei que tens os olhos nelas porque te convém e como eu simpatizo contigo, que és um excelente guanaco, venho dar-te um conselho. Tu não podes entrar em contenda com o tapir que, apesar de andar magro, é ainda animal de força ; há um meio, porém, e magnífico, de arranjarmos isso. Os meus ursinhos são muito expansivos, nem há no mundo animais tão expansivos como eles e, como a borracha é também expansiva, eles andam com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de expansão, eu organizo uma companhia que arrendará as ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e habitadas pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico à espera. É natural que o tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos ; não te importes — eu estou lá em cima para o que der e vier. Se a coisa for adiante — o que não é provável, porque eu conheço o tapir : aquilo é só parola e guincho — descerei dos meus alcandores e procurarei acalmar a questão, mostrando que os meus ursos empataram grossos cabedais na empresa e que não os podem perder. Demos que o tapir se enfune e queira reagir — contra um guanaco um tapir é um tapir, mas que é um tapir quando lhe surge pela frente um urso ? Pensa e resolve, mas não digas que falaste comigo. Torno para o cimo da montanha e lá fico às tuas ordens. Adeus, respeitos à senhora.

E bambo, lá se foi mestre urso sorrindo, muito contente com a sua ideia. Mestre guanaco desceu para os seus campos pensando na proposta generosa ao vizinho quando, detendo-se à margem de uma fonte clara, ouviu uma voz que o chamava :

— Guanaco amigo.

Guanaco levantou a cabeça e deu com um grande e alteroso condor pousado no píncaro de um penedo.

— Que queres de mim, irmão condor ?

— Ouvi toda a conversa que tiveste com o vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho: Não te fies no urso. O que ele te propôs, a título de benefício, é uma traição e não queiras servir de porta à ganância insaciável desse animal que, por muito jurar, já nos não merece confiança. O que ele quer é meter uma cunha nos domínios que nos pertencem para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los. Juntos poderemos resistir à sua ambição desmedida e ai de nós, porém, se ele conseguir colocar em nossas terras um só urso! No dia seguinte os campos que percorres, os alcantis, em que tenho o meu ninho, serão covas de feras e nós não teremos terras, nem águas, tudo será do urso que lá tem cativo, preso por uma corrente à sua penha, o animal que ele pretendeu libertar das mãos do caçador. Se o tapir não tem razão vamos chamá-lo à razão, mas com calma e estou certo de que virá; não queiras porém que, mais tarde, quando a montanha despejar sobre os nossos vales e campos a avalanche ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor que franqueou as terras livres ao invasor insaciável. Diz o urso que a montanha é dos montanheses... Acautela-te, guanaco! palavras de urso não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fábula do leão. Hoje será a companhia estabelecida nas terras litigiosas, amanhã serão os teus terrenos, depois os meus, depois os dos nossos irmãos e ele ficará senhor da montanha e nós seremos escravos vis dentro da pátria que pretende trair. Eu falo como condor: vejo longe. Lá da altura passeio os olhares pela terra e sei o que nela se faz. Se queres o cativeiro deixa entrar o urso.

Ouviu o guanaco e ficou a pensar mirando-se na corrente e mirava-se quando do alto o urso, que espreitava, rugiu :

— Então, guanaco amigo ? Vai ou não vai?

E o condor, que levantava o voo, bradou do espaço :

— Olha o truste do território! Olha o truste da montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda à cunha da perfídia. Cuidado!

Foi-se e o urso, lambendo as patas, ficou a olhar o guanaco, que pensava.

— Então, amigo guanaco ?

— Espera um instante, amigo urso.

Fonte: Coelho Neto. A bico de penna: fantasias, contos e perfis. Porto/Portugal: Livraria Chardron, 1925. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.