sábado, 19 de dezembro de 2009

Rossyr Berny (Navegando ao Sabor das Ondas)

Pintura por computador de Celito Medeiros
EM QUE MARES E EM QUE MARGENS?

Sempre que passas
estou isolado na outra margem do rio
Isolado no caminho oposto ao teu

Qualquer modo que uso
para transpor rios calmos
ou mares profundos
não mais te encontro na outra margem

Se passas pelo outro lado da rua
é tanta gente e trânsito entre nós
que só encontro teu perfume

Mesmo apressada
teu olhar em mim repousa,
Ousa, se apossa

Em que margens de que dias
estaremos sós para nós dois
ancorados no mesmo porto?

Em que rios ou mares sem margens
nos aportaremos
para armazenagem e troca de frutos?

NOS TRILHOS DO TREM QUE TANTO TARDA

Dos mil sentidos da vida
o que ouço gritar na madrugada
é o silêncio bocejante de Deus

Os quatro elementos da natureza
sãos trilhos sobre dormentes
onde a sobrevivência agora repousa
desamparada

O planeta dorme nos trilhos dos trens
sem preocupar-se com a advertência:
pare ouça escute afaste-se

II
A noite
mastiga o dia descarrilado
Por isso não amanheceu por aqui

Mas a hora é ativa mundo afora,
onde é língua mortífera e arrasa países
É terremoto na Nicarágua Índia
Deitam o Japão em escombros

III
Aqui nos dormentes dos trilhos
só ouço meu próprio respirar taquicárdico
Rumino celeiros de solidão

IV
E o trem
por que tanto tarda?

SER MENINO

Quando menino era fácil reter nas mãos
o céu tombando em chuvas
ensaiando maremotos nas sarjetas

Quando exausto de peraltices
arrombava represas de barro
e ia construir outras em sono

Era certo que na enxurrada vindoura
soltaria seus sonhos navegando
arquitetados com folhas de sabatinas

Tudo só terminava
quando queria que terminasse
Buscava o poente apagando as estradas
e acendia o luzeiro do céu e das praças

Era tão fácil ser herói quando se era menino
porque não era bélico ser herói
Por certo na enxurrada vindoura
soltaria meus sonhos navegando
sem que generaizinhos-de-ouro ou chumbo
pusessem a pique a esquadra de barquinhos


POETA FORÇA-TAREFA

os dias e as dores dos dias
cobram à exaustão o meu oficio:
vim aos mundos ser poetas
ainda que em passos recentes
tenha sido fungo ou bactéria
árvore lodo água montanha ou gramínea
sou a poeira cósmica do big-bang
manhãs e adormeceres rebentam-me os ouvidos
pulsos e pulsares do peito me anunciam guerreiro
a lutar pela salvação do homem
impuro ou purificado
tenho texto na testa em letra escarlate:
venho às vidas e aos mundos ser poetas

II

é por fúria de justiça que amo o ser humano
poeta de oficio
zelo para que acordes em paz
ao teu digno dia de trabalho e amor
acaso me descuide de tanto zelo
acordarás sem a honra do teu labor
nem a amada no leito a acolher-te
por isso a permanente vigília
o verso e a voz em riste
para iguais conquistas de todos
compartilho do teu largo riso por estares feliz
mas culpo-me acaso a felicidade não te venha

III

guilhotina estas mãos escrevinhadoras
se elas não forem os poemas
que te libertarão da miséria e das desigualdades/'
animal furioso ou homem bom
defendo com adagas de luz
e força-tarefa
a segurança da tua vida de justo

IV

os tempos e as vozes dos tempos
rebentam-me os ouvidos
cobrando os afazeres de meu oficio
o cristo e os cães do peito
gritam gritam para que eu te guarde:
venho às vidas e aos mundos
ser os teus poetas-de-guarda

Extraído de Letras en Movimiento aBrace. Montevideo: Bianchi editores; Edições Pilar, 2006. 63 p. Em cooperación con el Movimiento Cultural aBrace.

CONSTRUTORES DE PRECIPÍCIOS

(seleção)

É um canto patético este canto de Rossyr Berny. A sua realidade poética e existencial esplende pela fraturas e interrupções sucessivas, por um permanente processo de coagulação verbal e sintática. Em Rossyr Berny o expediente quase remoto ganha uma força nova e até agressiva”. (LÊDO IVO, da Academia Brasileira de Letras)

PORTO IMPROVÁVEL

Perdido de ti
sou metade de mim

Em meio a oceanos revoltos
minúsculo barco
o melhor porto que busco
é o milagre do teu abraço

Isso se deixares rastros
aos meus digitais, faro, olhos
Te buscam enlouquecidos

Isso se deixares indícios
nos faróis céus cios
madrugadas indormidas

Isso se nos ventos de tua passagem
deixares resquícios na paisagem

Talvez te denuncie algum flagrante
de meu nome em tua lembrança
E a saudade te surpreenda em pranto

Perdido de ti
sou pedaço de mim

Serei inteiro contigo inteira
quando teu peito reabrir-se ao meu
no porto fantasma do teu retomo

DESMEMÓRIA

Se demorares um pouco mais
talvez me encontre fera
louco
Apenas pó

Descobrirás
que na primeira crise por tua ausência
comecei a gritar
grunhir
mugir
berrar

Lobo a acuar estrelas
mijei postes
escarvei
pastei

Elegi estrebarias para meu sono
e carniças para meu sustento

A última crise por tua ausência
trouxe o sossego dos desmemoriados

LUZ TORTA

A luz vem torta
apagando a frouxa penumbra

Vem cega
pelas mãos dos caminhos descalços

Quebrada
desce escadas
Tropeça em correntes
de sobressaltados fantasmas

A luz vem tonta
Desenhada pelos aposentos
afoga-se nas rugas do cariado casario

Dos poros humanos
a luz nasce morta

Vem tonta
a trôpega energia
Filha dos olhos vazados do cotidiano
--------
Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/rossyrberny/
http://www.antoniomiranda.com.br

Nenhum comentário: