domingo, 7 de fevereiro de 2016

Jorge Luis Borges (O labirinto)

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Unha-de-gato)

Ontem, ao entrar numa loja de produtos naturais na cidade onde moro, passou por mim uma menina de ou uns oito, ou nove anos, e disse ao avô:

- Vô, olha aqui! Unha de gato moída! Eles pegam a unha do gato e ralam! - O avô, sem lhe dar muita atenção, falou qualquer coisa como se concordasse e já se afastaram da prateleira.

Vejo que tem sido assim em muitos relacionamentos entre adultos e crianças. A pressa, que era inimiga da perfeição, tem sido inimiga também da comunicação. Amizades ou se desfazem, ou sequer começam, porque há muito trabalho a fazer, muito horário a cumprir, e a vida é que se desfaz sem nem ao menos ter sido vivida. As crianças, que são filhos e filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas, alunos e alunas, então, têm amargado a indiferença dos adultos, que, entre um zap e outro, se esquecem de que o tempo dos pequenos não segue o dos ponteiros do relógio e ignoram compromissos. Não sou criança, mas, muitas vezes, me sinto ignorado também. O tempo dos músicos, dos poetas e de outros artistas é o tempo das crianças. Disso, tenho certeza. E, igual a elas, ainda que fique calado, não diga nada, sinto toda essa indiferença.

Se o avô que vi ontem com aquela menina tivesse parado um pouco de correr, teria lhe explicado que a unha de gato em questão era uma erva, a unha-de-gato, originária da Amazônia, usada para tratar desde asma até câncer. Mas não. Era preciso ir embora, chegar logo ao destino. Mas a qual, se o mais importante era parar um pouco e se abaixar até a altura da criança e lhe explicar qualquer coisa sobre o que ela via? Acho que ele nunca ouviu aqueles versos perfeitos da dupla Palavra Cantada: "Criança não trabalha / Criança dá trabalho". Quem não quiser ter trabalho, que não tenha filhos, porque dão trabalho mesmo. Eu não os tenho, mas ajudei minha mãe a cuidar do irmão caçula. Deu trabalho.

Crianças querem um pouco de atenção e de carinho, tudo o que lhes têm faltado. Não é por acaso que acreditam em uma casa muito engraçada, que não tinha teto, não tinha nada; ou, ainda, na Chácara do Chico Bolacha, onde o que se procura nunca se acha e numa aquarela que, um dia, descolorirá, com unha-de-gato (erva) e unha de gato mesmo, moída, como se fosse ingrediente de um caldeirão mágico de bruxa má; crianças acreditam nisso porque a fantasia que o tempo permite quando nós o permitimos passar devagar é o que as move e o que nos move para a felicidade, que roda, roda, roda, pé, pé, pé, roda, roda, roda, falso adulto bobo é.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.formulaeacao.com.br

Contos Populares do Tibete (A Árvore-Sombrinha)

Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante. Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.

Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1 Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de muitos animais, das mais variadas espécies.

Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham enviado um representante à reunião.

O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta assembleia e disse:

— Boa-noite a todos!

E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.

Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando — olhos desorbitados — a reunião dos animais.

— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?

— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.

Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.

— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e brincando entre as ramagens.

Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.

Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouco:

— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:

— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a estupidez dos humanos.

— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?

O macaco continuou:

— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros. Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um velho macaco.

— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.

O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:

— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.

— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.

Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:

— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.

— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a perna ferida da menina.

Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem sozinhos!

Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha. Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.

— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.

Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.

— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.

O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao leito e tomou a mão da menina entre as suas.

— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.

Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a, com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água. Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.

Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao rio e que a colocasse no fundo:

— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.

O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava, mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado, procedeu tal como aquele homem lhe pedia.

Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para Palden, o pai disse:

— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para pagar-lhe o bem que nos fez.

— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.

O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos. Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde, houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado um milagre.

Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à clareira na qual se erguia a árvore-sombrinha. Quando chegou à árvore, a reunião já havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.

Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.

— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.

Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:

— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria toda a água que necessitasse.

Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava de água tão desesperadamente.

Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco. Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado ao solo. "Será preciso a força de uns cinquenta homens para arrancar este toco — pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.

Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou, pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.

Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.

— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.

— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas questões.

— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.

— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.

A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda. Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que, finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.

Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.

Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"

Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era sábio e muito reverenciado por seu povo.

— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de ajudar a essa gente.

Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.

Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de fazer o que você fez.

Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está pedindo nada para si mesmo.

Palden respondeu:

— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre homem.

Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.

Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então, que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.

Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.

— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.

— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.

— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.

E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões dos animais.

Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".

E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada dos animais.

Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.

Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.

— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para escutar a nossa reunião!

E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto, que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.

As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E, quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.
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Notas
1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".
2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como "pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira, no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos geleiros".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (A morte da cigarra)

Eu, que vendo como compro as imagens que ou vislumbro, ou imagino, vi esta manhã uma cigarra morta. Eu estava chegando ao trabalho, e lá estava ela, intacta, parada, com a barriga para baixo e as translúcidas asas para cima, reluzentes, sólidas, ao sol. Lembrei-me na hora de um verso bonito de Cecília Meireles que diz: Não tenho inveja às cigarras: / também vou morrer de cantar. Isso é bonito, porque um poeta é meio cigarra também. Digo meio e não inteiro por causa do próprio ofício de escrever poemas, que, quase sempre, leva o poeta a ter outro trabalho, a fim de garantir o leite das crianças e, o que não é raro, seu próprio. Assim, meio cigarra, meio formiga, atravesso as páginas de meus dias, cantando e escrevendo o que vejo. Hoje, pela manhã, vi uma das minhas caída, morta na calçada. Se foi macho, cantou até morrer por sua amada. Se foi fêmea, amou, até morrer, seu bem-amado. Se eu fumasse, acenderia um cigarro e ganharia um trocadilho. Como não fumo, me resta, mais tarde, quando em casa, pegar a guitarra e me lembrar de que as cigarras, como os brutos, os músicos, os poetas e outras formas de inocência distraída, também amam. Com seu canto de moído vidro, seus cacos na garganta atroz, suas asas que desfocam o sol, recolhem-se e morrem.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://sorrisos-e-restos.deviantart.com

Contos Populares Portugueses (O Cego e o Mealheiro)

Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantidade de moedas. Para que ninguém elas roubasse, tinha-as metido dentro duma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo duma figueira. Ele lá sabia o lugar, e, quando arranjava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro.

Ora um vizinho espreitou-o, viu onde é que ele tinha a panela e foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta, ficou muito calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava maneira de tornar a apanhar o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou que por força teria de ser o vizinho. Tratou de ir à fala com ele e disse-lhe:

- Olhe, meu amigo, quero contar-lhe uma coisa muito em particular, que ninguém nos ouça.

- Então o que é, senhor vizinho?

- Eu ando doente, e isto há viver e morrer. Por isso quero dar-lhe parte que tenho algumas moedas enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para si, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tinha aí num buraco mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção, e naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro aonde ela estava, no fito de apanhar o resto do tesouro. Quando bem entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e levou-a para casa. Depois desatou num grande berreiro, para que o vizinho o ouvisse:

- Roubaram-me! Roubaram-me tudo!

E daí em diante guardou as suas moedas num sítio onde nunca ninguém soube.

Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (O nó)

Não, não era o nó dos sapatos, nem o da gravata que o incomodava. O nó era mais fundo, profundo, que um simples nó cego numa corda capaz de aguentar mil pessoas de um lado até o outro da ponte. Mais fértil que um campo minado por beija-flores, que esparramam pólen pela terra em transe do mundo, o nó transgredia os costumes e calava os trinados de qualquer ave. Não, já não era mais a época da repressão política e social iniciada em 1964 neste país, mas este nó, essa nódoa na roupa intelectual de quem se deixasse por isso enredar, este nó o reprimia como nunca. "Pai, afasta de mim esse cálice"... Nossa Senhora! Que nó era esse? Nós, que não tínhamos nada convosco, nem conosco, nos livrávamos desse nó. Era assim mesmo? Quantas vezes esse nó nos norteara rumo ao roubo das rimas, ao ramo das rosas que só era por nós quando nos convinha e, cá entre nós, não reparávamos que, quase sempre, nos perdíamos nele como peixes na rede de nós habitualmente trançada por um pescador experiente. Entrávamos e sentíamos esse nó que nos nublava a visão... Cego, feito o amor, sente hoje na garganta desnuda um cordão umbilical, primeiro nó, que lhe aperta o pomo de Adão, o nó de sua alma, cordão de prata que liga seu corpo à fonte, às mãos do Pai e da Mãe que o alimentam, sem nem mesmo ser nenhuma das aves do céu, nenhum dos peixes do mar. O nó, invisível, essencial, prende sua voz e solta suas lágrimas. Sim, sempre afrouxa os nós dos sapatos e os da gravata que, é bom que se diga, não usa. Mais fundo, profundo, o nó da existência.
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O Autor
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Jorge Luís Borges (A sedução do tigre)

Na infância pratiquei com fervor a adoração ao tigre; não o tigre cor de pêssego dos camalotes do Paraná e da confusão amazônica mas o tigre rajado, asiático, real, que só pode ser enfrentado pelos homens de guerra, encastelados sobre um elefante. Costumava demorar-me infindavelmente diante de uma das jaulas no Zoológico; apreciava as vastas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor dos seus tigres. (Lembro-me ainda dessas figuras: eu que não posso recordar sem horror o rosto ou sorriso de uma mulher). A infância passou, caducaram os tigres, e a paixão por eles, mas eles ainda permanecem em meus sonhos. Nessa lembrança submersa ou caótica, continuam a prevalecer, e assim: adormecido, um sonho qualquer distrai-me e eu sei de imediato que é um sonho. Costumo então pensar: Este é um sonho, uma pura diversão de minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.

         Oh incompetência! Meus sonhos nunca sabem engendrar a apetecida fera. Aparece o tigre, isso sim, mas dissecado e débil, ou com impuras variações de forma, ou bastante fugaz, ou tirante a cão e a pássaro.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Parabéns para um menino )

Há um ano nascia um menino que chamaram Arthur. Sim, Arthur, nome de rei, o da Távola Redonda. Seu pai, Luís Felipe, também nome de rei, mandou-me uma fotografia de seu pequeno, que mal nascera e já estava lá, sorrindo, aberto para a vida. Por causa desse sorriso, fiz uma música, uma canção de ninar e passei a cantá-la para minha mãe sempre que ela me pedia, até que, finalmente, a mostrei para o pai da criança. Não sei se ele costuma cantá-la para o filho. Muita, muita água rolou desde então, sob a ponte e pelos olhos, que a vida vem da água, vive em água e volta para a água. Se existe algum pó em nossos corpos e em nossas almas é o do tempo, que nos cobre e nos recobre de poeira de estrelas, nossa cosmicidade natural, tão clichê, que nem a notamos. Somos de tempo, os tais seres históricos. De história em história, viramos memória e voltamos para as águas, de rio e de mar, com seus afluentes. Eu, que, em meio ao trajeto, me perco em lagos, pequenas fontes, parabenizo os pais pelo nascimento do menino Arthur há exatamente um ano.

A imagem de seu sorriso é a primeira e a única que tenho. Quando o vi ao vivo, ele estava dormindo. Não é à toa que as crianças e os velhos dormem tanto. No caso delas, por estarem se acostumando ao nosso mundo; no dos velhos, porque já estão se preparando para o outro, que, no fundo, é o mesmo, dois lados do eterno espelho em que nos vemos todos. Pela água, pela luz e pelas fotografias, como essa, a do Arthur.
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Fontes:
O Autor
Imagem = www.chegadadobebe.com

Contos Populares do Tibete (A Oração que foi Escutada)

O pequeno cômodo brilhava à luz das lamparinas de gordura colocadas com esmo sobre a mesinha baixa diante do altar. Neste, podiam-se distinguir os objetos sagrados: os livros santos envolvidos num pano, a imagem de Buda, um retrato emoldurado do Dalai lama, xícaras de ofertório de prata; e, na parede do fundo, com a fumaça do incenso enroscando-se à sua volta, o tanka1 que reproduzia a divindade tutelar e padroeira do Tibete: Chenrezik, o bodhisattva da compaixão, com onze cabeças e mil braços. Pelas outras paredes do pequeno cômodo, havia quadros de outras divindades, todas elas objeto de devoção para o povo do Tibete. Havia uma representando Dolma, o aspecto feminino da compaixão, e Jamyang (Manjushri), o bodhisattva da sabedoria.2

Esse cômodo, o oratório, era o mais rico da pequenina vivenda. O povo do Tibete era muito religioso, e suas vidas giravam em torno dos ensinamentos de Buda, tal como estes haviam sido explicados pelos grandes mestres e santos que tinham alcançado o estado final de iluminação. As pessoas acreditavam que os grandes santos, embora tendo chegado ao estado de iluminação, ainda se preocupavam pelo bem de todos os seres, e que aqui permaneciam para protegê-los e guiá-los em seu caminho por esta e por suas outras vidas futuras.

Assim o acreditava também uma velhinha que estava sentada num canto da capela, a desfiar nos dedos as contas do seu rosário e a repetir, lentamente, a oração de Chenrezik: OM MANI PADME HUM. Uma e outra vez, a poderosa oração brotava dos seus lábios. A anciã vivia preocupada, pois era uma viúva sem dinheiro nem terras: tudo o que possuía no mundo era a sua única filha.. E ela achava que, sem um dote pata oferecer, a moça jamais iria ser pretendida pelos homens ricos da região, e, portanto. iria viver a vida inteira na miséria. Não era por sua própria vida que ela se preocupava, pois a sua vida quase já se havia consumido, mas desejava, de todo o coração que a vida de sua filha pudesse ser próspera e feliz. Por isto é que rezava.

E sucedeu que um homem pobre, de uma aldeia vizinha, tinha ouvido falar da filha da anciã, e, quando a vira, ficara tão impressionado com a sua beleza, que determinou faze-la sua esposa. Ele sabia que não seria fácil que a mãe da moça consentisse no casamento da filha com um homem de uma condição tão humilde quanto a sua. Por isso, tramou fazer com que a mãe acreditasse que era um homem próspero e rico.

Escondendo-se na capela da casa da velhinha, ele esperou que ela entrasse, fizesse as suas oferendas de alimentos e se sentasse num canto a rezar. A anciã rezava e rezava com fervor, pedindo aos deuses que mandassem um rico marido para tomar sua filha em casamento. O pobre homem ficou escutando até que ela terminasse o pedido. E, no exato momento em que ela se dispunha a deixar a capela, ele falou:

A velhinha se assustou ao ouvir a voz. E, como não visse ninguém mais no local, acreditou que fosse a voz dos deuses. Ouviu a voz dizer-lhe que, no dia seguinte num cavalo branco, apareceria um homem rico para pedir-lhe a filha em casamento.

A anciã não cabia em si de contentamento. Ela e a filha limparam a casa inteirinha, a fim de deixá-la preparada para receber o homem rico que os deuses iam enviar para marido da moça. Depois de preparar a comida, a velhinha foi dizer aos vizinhos que ficassem prevenidos para a grande festa do dia seguinte, pois que a sua única filha ia se casar com um homem rico.

E, no outro dia, a anciã e a filha se levantaram bem cedo. Os pássaros cantavam e o azul do céu contrastava com o vermelho dos picos das montanhas, banhados pela luz do sol que nascia A velhinha e a moça estavam emocionadas e contentes. Sentaram-se na parte de fora da pequena casa e ficaram esperando a chegada do homem do cavalo.

Não muito tempo depois, ele apareceu no horizonte. E, enquanto o homem se aproximava a cavalo da casa, a filha ia sentindo a angústia cansada pelos súbitos pressentimentos que a dominavam. Perguntava-se como seria ele, se elegante e bom; se a sua vida de casada iria ser tranquila e feliz como ela sempre havia desejado; e perguntas como estas lhe vinham a mente. Mas depois lembrou que este homem era uma dádiva dos deuses, de modo que ela não deveria sentir temor algum.

Até que, enfim, homem pobre, vestido com roupas que os vizinhos lhe haviam emprestado e montado no cavalo branco que era o único que possuía parou diante da casinha da anciã. Desmontou, sorriu para a moça e tomou a mão dela entre as suas. Contendo a emoção com muita dificuldade, a velhinha pediu ao homem que entrasse na casa e descansasse um pouco. Ele assim o fez. E, depois de terem conversado por algum tempo, ele pediu à anciã a mão de sua filha em casamento.

O regozijo foi grande. Celebrou-se a festa e todos os vizinhos e amigos vieram para desejar ao casal a maior felicidade, pois dava para se perceber que aquele casamento havia sido mesmo determinado pelo céu.

O homem pobre chamou a moça e, colocadas as poucas coisas que pertenciam a ela num baú, os dois partiram rumo à humilde casa dele, numa aldeia vizinha. Durante a viagem, o homem começou a se inquietar pela impostura que havia praticado. Tinha medo que a moça gritasse e berrasse quando soubesse que ele não era, em absoluto, um homem rico, mas, sim, um camponês muito humilde; temia, também, que ela fugisse e ele a perdesse para sempre.

Preocupado por esses pensamentos, o homem pobre concebeu um plano. Tirou as coisas da moça do baú e as enterrou. Depois, disse a ela que se enfiasse no baú, pois iria fazer-lhe uma surpresa quando chegassem à casa. Quando a moça já estava dentro do baú, o homem o fechou à chave e o colocou numa valeta que havia num caminho da floresta. Depois, se dirigiu à sua casa.

Chegando lá, o homem pobre foi correndo aos vizinhos mais próximos, e, contando-lhes que trazia para casa uma recém-casada, logicamente nervosa, preveniu-os de que, se ouvissem gritos e berros durante a noite, não se preocupassem. Depois, pôs ferrolhos novos e fortes na casa, a fim de que a moça não pudesse escapar.

Enquanto o homem pobre estava em sua casa, um homem rico e de influência foi dar justo no lugar onde a moça estava fechada no baú, esperando a volta do marido. O homem rico e influente ordenou a seus servidores que abrissem o baú, e, quando viu a moça dentro, ficou tão impressionado com a sua rara e delicada beleza, que a levou com ele. Dentro do baú, no lugar da moça, deixou um urso feroz.

O homem pobre voltou em busca da esposa; amarrou uma corda em volta do baú e o arrastou até a sua casa. Já dentro desta, abriu o baú e... ficou aterrado diante do urso feroz — de uma ferocidade que, naturalmente, se havia exacerbado durante o trajeto dentro do baú e pela violência do tratamento. O homem pobre gritou e berrou a mais não poder, pedindo ajuda, enquanto o urso o atacava, mas os vizinhos não fizeram caso do barulho, pois o próprio homem os havia prevenido a respeito.

E assim, o homem pobre, que havia tramado todo aquele embuste com a pretensão de ser um deus, acabou morrendo nas garras de um urso selvagem. E a moça viveu para sempre mais feliz do que nunca, como esposa de um homem rico e influente. As orações da anciã haviam sido escutadas.
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Notas
1. Um tanka (thang-sku, "algo que se enrola") é uma pintura sobre tela geralmente de algodão, que num dos bordos, ou em ambos, leva uma ripa ou uma vara de bambu que permite possa ser enrolada. Quase sempre a pintura é emoldurada com um brocado de seda.
A confecção de um lanka está sujeita a regras precisas, transmitidas pela tradição, e nada deve à improvisação ou ao subjetivismo. Os lankas, no geral, são de tema sagrado e constituem, rigorosamente, da mesma forma que os ícones cristãos, suportes de medição. Não obstante, os narradores ambulantes também levavam lankas com representações de caráter épico e narrativo, que ilustravam lendas populares e acontecimentos.
2. Manjusrí (em tibetano, 'Jam-d pai) é um bodhisattva que personifica a Sabedoria da mente completamente iluminada. Aparece sempre, na iconografia tibetana, brandindo na mão direita uma espada flamígera, a qual corta a raiz da ignorância.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (O mundo é seu )

Flor de ir embora, eu vou
Agora esse mundo é meu
Fátima Guedes

O rapaz chegou à casa e não encontrou ninguém. Todos haviam saído. A casa seria dele, apenas dele aquela noite. Pensou em colocar uma música, mas primeiro tomaria banho e colocaria uma roupa limpinha e bem velha, velhinha, como só ele gostava de usar. Não tinha ninguém em casa, ninguém para dizer a ele "Troca essa roupa, menino!"... A casa estava só. E ele se solidarizava com ela.

Depois do banho, pintou vontade novamente de música. Colocou-a no MP3 e se deitou no sofá, tomando o cuidado de elevar os pés em duas fofas almofadas de algodão, como se duas nuvens fizessem carinhos angélicos em seus pés, tão cansados. Cansaço. Eis a palavra que lhe vinha à mente enquanto se deixava embalar pela voz da cantora. Quem não gosta de música? Suave, então... Ah...

Eram pouco mais de seis e meia da tarde. Não sei se foi a luz amarelada, translúcida, adentrando a sala, mas o sofá transfigurou-se em delicada nuvem, os móveis sumiram e, em pouco tempo, ele estava dormindo em branquíssimo chão, lá no céu. Assustado, tentou acordar, não conseguiu. Queria levantar-se, mas o solo, fofo e branco, não deixava que seus pés progredissem e, como se pisasse em movediça areia, não saía do lugar. Começou a gritar pedindo socorro. Ninguém ouviu. Onde estaria São Pedro, seu avô falecido, o cachorrinho da irmã que morrera tragicamente atropelado naquela avenida? Não sabia. Talvez o céu seja igual ao Japão, isto é, sem endereço para correspondência, e as pessoas se percam um pouco por lá. Estava perdido. Morreria afogado numa nuvem, sem direito a tábua, digo, a boia de salvação? Foi então que apareceu um anjo, todo alegre, e lhe perguntou o que estava acontecendo.

- Me ajude, seu anjo, por favor, estou morrendo! Não consigo sair dessa nuvem, desse buraco em que me meti! - O anjo, calmamente, como se fosse irreal o medo do moço, pediu a ele que prestasse mais atenção a suas costas. Nessa hora, como se nunca tivesse sabido quem era, sentiu uma enorme protuberância logo abaixo da nuca e, num intuitivo gesto, tirou a camisa. Estava com asas. "Meu Deus!", pensou, "Tenho asas para fugir desse lamaçal em que, sem querer, me enfiei!". O anjo, ainda mais calmo, falou como se lhe ordenasse:

- Voa! Voa! O céu, o mundo é seu! Voa, moço! - Corajoso, com vontade e pulso firme, prendeu a respiração e... quando viu, estava na sala outra vez, com a mesma luz amarela encantando os vidros, enredando a tarde, como se lhe dissesse: "Dorme, dorme, menino, que a tarde é velha, mas o sonho, a história, a noite é só uma criança!...".
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://economistinha.com

Contos Populares Portugueses (A Mão do Finado)

Havia um mercador que tinha três filhas e todos os anos fora da cidade para buscar uma renda. Aconteceu falecer-lhe a mulher, e, quando teve de se ausentar, custou-lhe deixar as filhas sozinhas. Disse-lhes então:

- Minhas filhas, eu preciso de ir receber a renda do costume, mas custa-me ir porque não queria arredar-me da vossa beira.

As filhas responderam:

- Vá, meu pai, que não nos vai acontecer nada. Nós |fechamo-nos por dentro e não se consente que ninguém cá entre.

Fiado na palavra das filhas, foi o mercador embora.

Havia fora da cidade uma quadrilha de ladrões, e o capitão deles andava à espera da ocasião da partida do mercador. Assim que soube o dia em que ele saiu da cidade, vestiu-se com trajes de mendigo, e ao anoitecer estava toda a sua quadrilha no canto da rua onde moravam as três meninas.

Foi o capitão bater-lhes à porta e, como estivesse a chover, pediu pousada do ar da noite. As meninas mais velhas compadeceram-se dele e queriam-no agasalhar. A mais moça disse:

- Não! Lembrem-se da palavra que deram ao pai. Damos-lhe esmola e ele que vá com Deus.

Respondeu a mais velha:

- A menina, como mais criança, não determina nada aqui!

E o falso velhinho sempre entrou em casa. Deram-lhe na cozinha uma enxerga e cordas para ele estender a roupa e puseram-lhe a ceia diante. As meninas, depois de terem arranjado o velho, foram também cear.

Estavam elas a acabar quando o velho foi ter com elas à mesa e lhes deu três maçãs dormideiras, uma para cada uma comer à sobremesa. Ficou o capitão dos ladrões ainda um bocado a ver se elas as comiam. De facto, as mais velhas comeram-nas, enquanto a mais nova fingiu que o fazia, escondendo o fruto.

Foram-se as meninas deitar e as mais velhas pegaram em sono profundo, mas a mais nova, com medo, não conseguiu dormir. Quando o ladrão calculou que a dormideira estava a fazer efeito, agarrou num alfinete real e foi confirmar que todas dormiam. Chegou ao pé da mais velha e deu-lhe uma picada a ver se estremecia. Ela não sentiu a picada. Fez o mesmo à do meio, que também nada sentiu. A mais nova, com medo de que o ladrão a matasse, fingiu que dormia e, quando ele a picou, fez que não sentiu.

O ladrão trazia consigo uma espada, uma pistola e uma mão de finado. Numa banca pôs estas coisas todas. A menina mais nova abriu os olhos para ver o que o ladrão ia fazer e tornou-os a fechar. O ladrão pôs lume à mão do finado para as meninas ficarem mais pesadas no sono e correu as salas para arrumar o que tinha que roubar. Abriu o alçapão que dava para a loja das fazendas, entrouxou o que quis e abriu a porta da loja. Saiu a chamar a sua quadrilha.

A menina mais nova levantou-se ao mesmo tempo que o ladrão saiu, viu as trouxas e as fazendas prontas, e a toda a pressa trancou a porta da loja. O ladrão, que já vinha com a quadrilha, ainda se pôs aos empurrões na porta, ao mesmo tempo que dizia:

- Foi a mais nova que me enganou e que não comeu a maçã dormideira!

E começou a ameaçar que ela lhe havia de pagar tudo. Teve ainda a confiança de tornar a bater à porta, pedindo à menina que lhe desse a sua mão de finado. Ela respondeu-lhe de dentro que a mão estava em labareda e não sabia como a apagar. Pediu então o ladrão que a deitasse numa tigela de vinagre, que ela apagava por si. A menina foi buscar a espada, que o ladrão deixara, e disse-lhe:

- Aqui está a mão do finado.

Ora na porta havia um buraco em que cabia uma mão. Disse-lhe o ladrão:

- Meta a menina a mão pelo buraco.

- Se quer, meta a sua, que eu lhe darei a mão do finado.

Vai o ladrão, cai em meter a mão, e a menina traçou-a com a espada.

Os ladrões foram-se embora e o capitão com a mão quebrada. A menina foi para o quarto onde as irmãs estavam dormindo, apagou no vinagre a mão do finado, e ao mesmo tempo as irmãs começaram a estremecer e acordaram.

A boa da menina fê-las levantar, contou-lhes tudo e levou-as a ver os sinais da desgraça em que estavam. Elas ficaram muito assustadas e choraram muito, lembrando-se do que o pai diria quando chegasse e soubesse que lhe tinham desobedecido.

Chegou o mercador da renda e viu as filhas, que lhe pareceram muito tristes. Pediu a menina mais nova a seu pai que a escutasse. Contou o que se tinha passado e como se tinha livrado dos ladrões. O mercador chamou então as filhas e disse:

- Daqui por diante daremos obediência a vossa irmã mais moça. Eu, com ser seu pai, farei o que ela determinar, porque venho de conhecer que vos livrou da morte e de ficarmos desgraçados.

Quando, por fim de muitos anos, o capitão dos ladrões, que tinha mandado fazer uma mão de ferro com engonços e andava de luvas, vestido como qualquer senhor, estabeleceu um armazém defronte da casa do mercador.

Ora um dia o mercador, por o vizinho lhe parecer boa pessoa, convidou-o para ir lá jantar. Ele aceitou de boa vontade e as meninas ficaram satisfeitas com isso. A mais nova é que se mostrou muito triste, e o pai perguntou-lhe o que era. A menina respondeu que não gostava que o pai convidasse o tal senhor para ir a sua casa. Chegou à hora do jantar e foram para a mesa. As outras duas irmãs, essas, estavam muito contentes. Houve uma conversa e neste tempo o visitante pediu em casamento a menina mais nova. O mercador ficou muito satisfeito e disse que sim. Mas a menina respondeu:

- Aqui o desengano, pai, que com ele não me quero casar.

  O vizinho, aborrecido, pediu a mais velha, que ficou muito contente, e ele começou a dizer os bens que tinha e que morava em palácios longe da cidade.

Chegou o dia do casamento, despediu-se a menina mais velha e montou no carro- mais o marido para fora da cidade. Lá no meio da estrada, ele apeou-se mais a mulher e pagou ao boleeiro, para que não se soubesse onde morava. Foram andando, até que chegaram a umas casas metidas nuns matos. Assim que a sua companhia o avistou, vieram com os seus ouros e joias oferecer à senhora, que ele apresentou como sua mulher.

Entrou o capitão de ladrões com ela para um quarto e deu-lhe um papel para escrever uma carta ao pai. Ditou-lha, dizendo que estava muito satisfeita com ver tanta riqueza e que mandava buscar uma das suas irmãs para estar uns dias em sua companhia. Acabada a carta, que ele fechou, tirou então a luva e a mão de ferro, mostrando o braço maneta, perguntando:

- Conheces quem me fez isto? Ela respondeu-lhe que não.

- Bem sei que não tens culpa, mas o pagarás e tuas irmãs também!

Acabado isto, pegou na espada e degolou-a. No fim de uns dias, levou a carta ao sogro, que a sua mulher lhe mandava. O pai leu-a e disse à filha do meio que fosse. O ladrão levou-a consigo e fez que ela escrevesse uma carta para ir também a mais nova. Depois de a degolar, apareceu outra vez com a carta ao sogro. O mercador mandou a última filha que tinha em casa. Ela não queria ir, mas, para não desobedecer, sempre se resolveu. Lá foi com o cunhado, que no meio da estrada a fez apear e, depois de irem a pé por muito tempo, descalçou a luva e mostrou-lhe o punho sem mão, dizendo:

- As tuas manas já pagaram. Agora é a tua vez! Chegaram a casa. Os ladrões apareceram-lhe todos e ele determinou:

- Façam de conta que é minha irmã!

Pôs ao pescoço da menina uma pera de ouro e disse:

- Podes ir a todos os quartos deste palácio menos a este.

Partiu com a quadrilha, mas, assim que ele voltou costas, a menina tirou a pera do pescoço e foi ao quarto dos mortos. Viu lá um menino príncipe todo esfaqueado, que lhe disse:

- Esta casa é um covil de ladrões. Que faz a menina aqui? Olhe que eles estão aí a chegar.

A menina fechou outra vez tudo. Pôs a pera ao pescoço, e nisto chegou o cunhado.

- Fez o que lhe mandei? - Fiz.

Ele olhou para a pera sem malha, ficou muito contente. Destinou-lhe serviços para ela fazer e foi-se outra vez embora para uma viagem de oito dias.

A menina tirou a pera e foi ao quarto dos mortos levar um caldo ao menino príncipe, que ficou são. Sentiram uns carros do rei que levavam esterco e eles fugiram e foram ter com os carreiros para os levarem para o palácio. Pararam os carreiros e perguntaram:

- Que novidades há nessa cidade?

- Ofícios dobrados pela falta do príncipe.

- O príncipe sou eu e esta menina deu-me a vida, na casa onde eu estava esfaqueado pelos ladrões. Agora, carreiro, deita esterco fora do carro de trás, põe meia sebe e deita em cima esterco, que nós nos esconderemos aí.

O carreiro assim fez. Eram três carros e puseram-se a andar. Os ladrões tinham encontrado um feiticeiro e ele ofereceu-se para ir para a sua companhia. Chegaram a casa, o capitão não encontrou a menina, mas o feiticeiro logo lhe disse que ia de fugida no carro de trás.

Partiu um dos ladrões para a ir buscar. Chegou ao carreiro, mandou-o parar e cavar no carro de trás até meio e, vendo que não achava nada, foi-se. Os meninos passaram para o segundo carro. Chegando a casa, disse o ladrão:

- É mentira! Não achei ninguém, pois despejei o carro até meio!

E o feiticeiro aconselhou:

- Despeja o carro todo, que eles lá estão.

Parte o ladrão a toda a pressa, apanhou o carreiro, mandou despejar o carro todo. E como os meninos já tinham passado para o segundo, não achou ninguém. Disse outra vez o feiticeiro:

- Vai lá, que eles passaram-se para o carro da frente. Mas os carros chegavam já ao palácio e escaparam os fugitivos. O rei ficou muito contente por ter tornado a encontrar o seu filho e soube da menina tudo desde a mão do finado até dar a vida ao príncipe, que quis logo casar com ela. O rei deu o sim e nos dias das festas do casamento veio um dos ladrões com moedas de ouro, entrou para a igreja que estava preparada e abriu uma saca e dizia com ar de tolo:

- Tão bonito! Tão bonito! Apareceu ali um vassalo e desdenhou"

- Quando você se admira disto, que seria se visse a câmara real!

E o que fingia de tolo:

- Eu dava todas estas moedas de ouro a quem me levasse lá.

O vassalo ofereceu-se, e o ladrão, no meio de tanta gente, sumiu-se e meteu-se debaixo da cama sem o vassalo ver. Casaram-se os príncipes e foram para a câmara real. A princesa, com uma grande agonia, não podia dormir e não se quis deitar.

Exclamou o príncipe:

- Deita-te, que os ladrões não podem vir aqui matar-nos.

- O meu coração diz que é mesmo aqui que me hão de vir matar!

O príncipe levantou-se, chamou a sentinela para fora da porta e um leão para a borda da cama. O leão, mal entrou, começou a farejar para debaixo da cama. A menina levantou-se e foi ver onde o leão estava dando sinal. Chamou o príncipe para ver um dos ladrões que os tinha querido matar. Acudiu a sentinela, que fez sair o ladrão, que ainda fingia de tolo, dizendo:

- Tão bonito! Tão bonito!

Mas levaram-no dali para a prisão, até confessar quem o tinha ali mandado, sendo enforcado com o vassalo. O rei mandou tropa a rodear a casa dos ladrões,, foram todos mortos e encontraram muitas riquezas, que o rei deu aos noivos, que foram muito felizes.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (À Luz de Velas)

- Onde tem vela, vó? - perguntou Felipinho.

- Embaixo da pia, Lipe! - respondeu a avó, lá do quintal.

Os homens da companhia de luz haviam cortado a energia elétrica daquela casa logo à tarde. Não quiseram nem saber. Não pagou, se danou. E a luz foi cortada. Moravam apenas avó e neto naquela casa de quatro cômodos na periferia da pequena cidade em que moravam. A mãe dele havia morrido de doença ruim. O pai, sabe-se lá onde estava. Sumiu. Ficou para a avó criar o neto. Para isso, lavava roupa para fora. O dinheiro era pouco, mas dava para o pão. Sem pão, ninguém vive. E Felipinho adorava pão fresco, margarina e café coado em coador de pano, quente e doce.

Lipe, ou Felipinho, depois da escola. com seus dez anos de idade, catava latinhas de refrigerante nas ruas do bairro e fazia pequenos serviços para os vizinhos. Queria ser médico quando crescesse. Achava bonito. Gostava de ver Dr. House na tevê. A avó embarcava no sonho, sonhava junto. Ter um sonho é vital. Persegui-lo é surreal. O tempo daria conta de Lipe e de seu sonho? Não sei, o tempo não fala o tempo todo. De vez em quando, sisudo, se cala e custa a passar. Aliás, falando em passar, dona Nica e Felipinho passariam o Natal daquele ano à luz de velas. Romântico?

Era véspera de vinte e cinco de dezembro. Caía a noite. A avó sentou-se ao lado do neto e lhe fez um doce afago nos cabelos.

- Acende as vela, Lipe, enquanto a vó faz arroz pra nós, "filho"...
 
Felipinho, devagar, com se acendesse uma esperança, alumiou a casa dos dois. Depois, na mesa da cozinha mesmo, com o barulho da avó refogando o arroz e cantando um samba antigo do Paulinho da Viola, Lipe escrevia. Sua avó nem viu que aquela carta era um gesto de agradecimento. As sombras na cozinha, cuidadosamente formadas pela luz amarelada das velas acesas por Felipe, indicavam a poeticidade da noite. Lipe agradecia pela chance de ter a avó como mãe, a única que conhecera. Deixaria essa cartinha na meia furada, posta do lado de fora da janela. Não, não para o Papai Noel, que, assim como seu pai, nunca aparecera. Escrevia para o Menino Jesus, tão bonito, que ele via no presépio da praça ao fim do mês de novembro, sempre que voltava da escola. Logo, à luz de velas, arroz com carne moída e suco, ceariam. 
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://comofas.com

Jorge Luiz Borges (O Livro)

Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978

Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria , os livros são descritos como a memória da humanidade. O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ? A função do livro é recordar.

Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Splenger

Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Scripta manet, Verba volans" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais .

Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno, que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros.

Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre.

Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre fisicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."

Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral.

Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" . Isto é o que se pensava dos livros.

No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebraico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar.

A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e na Odisséia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia.

Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes ?. Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes.

Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral, porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os muçulmanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser lido.] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos.

Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo. Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito, porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a ideia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora,ou Bíblia em Grego. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito.

Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado. Pensemos nas consequências desta idéia. Por exemplo se digo:

Correntes águas, puras, cristalinas,
árvores que estais refletindo nelas
verde prado, cheio de frescas sombras.

É evidente que os três versos são de onze sílabas. Foi proposta pelo autor, assim o quis.

Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que agora sentimos do que da ideia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral.

Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os muçulmanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Bíblia dos judeus. Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros.

É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.

Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiração por Hugo, porém Hugo não é tipicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França.

Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos.

Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade.

Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer.

Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.

Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez.

Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos.

Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.

Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório). Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.
 Buenos Aires, 24/05/1978

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.