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quarta-feira, 15 de maio de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (Farruz e sua esposa)

Conta-se que certo rei estava sentado um dia no terraço de seu palácio quando viu, no terraço da casa oposta, uma mulher cuja beleza não tinha igual entre as mulheres. O rei perguntou:

“A quem pertence essa casa?” Responderam-lhe: “A teu servidor Farruz, e essa mulher é a sua esposa.”

O rei desceu do terraço, embriagado por uma súbita paixão. Chamou Farruz e disse-lhe: “Pega esta carta e vai entregá-la em tal cidade e volta com a resposta.”

Farruz pegou a carta e, de volta a casa, colocou-a sob o travesseiro. Pela manhã, despediu-se da mulher e dirigiu-se para a cidade, sem suspeitar das intenções do rei. 

Assim que o viu partir, o rei disfarçou-se e foi bater na porta da casa de Farruz. A mulher abriu-lhe. 

“Vim visitar-te”, disse o rei. 

Ela sorriu e respondeu: 
“Refugio-me em Alá desta visita. Pois não vejo nela nada de bom.” 

Retrucou o rei: “Sou o amo de teu marido. Parece que não me conheces.” 

Respondeu ela com determinação: “Com certeza conheço-te. És o soberano de meu marido e meu soberano também. Também entendi a tua manobra, e sei o que queres de mim. E para te provar que compreendo o que te traz, vou recitar para ti estes versos do poeta”:

Não trilharei o caminho da fonte
se outros podem colar os lábios na rocha úmida.
Jogarei fora as melhores carnes,
se for dado às moscas partilhá-las comigo.

Depois de recitar os versos, a esposa de Farruz acrescentou:

“E tu, ó rei, beberás da fonte onde outros pousaram os lábios antes de ti?”

O rei escutou-a com estupefação, voltou as costas sem dizer uma palavra e fugiu daquela casa com tamanha precipitação que deixou uma de suas sandálias no chão atrás de si. 

Ora, Farruz deu-se conta no meio do caminho que esquecera a carta do rei sob o travesseiro, e voltou para apanhá-la. Vendo a sandália do rei, compreendeu por que tinha sido enviado a cidade tão longínqua, apanhou a carta em silêncio e saiu sem deixar a esposa perceber a sua volta. Após cumprir a missão, apresentou-se ao rei, que o recompensou com cem dinares. Farruz levou os cem dinares ao mercado dos joalheiros, comprou magníficos ornamentos que ofereceu à mulher, dizendo: “Estes são uma lembrança da viagem. Pega-os e tudo que te pertence e volta para a casa de teus pais.” 

“Assim farei,” disse a mulher sem nada perguntar ou comentar. Adornou-se com as joias, apanhou seus pertences e foi para a casa dos pais. Quando um mês se passou sem que Farruz procurasse a mulher, o irmão desta visitou-o e disse-lhe: “Se não queres revelar o motivo de tua cólera contra tua esposa e o abandono em que a deixas, terás que te explicar diante do rei.” 

O marido concordou, e foram juntos à presença do rei.

O rei transferiu-os ao cádi que estava sentado a seu lado. O cunhado disse: “Que Alá assista o nosso senhor cádi! Eis a minha queixa: eu e minha família possuíamos um lindo jardim, protegido por altos muros, cuidado e plantado de flores aromáticas e de árvores frutíferas. Entregamo-lo a este homem. E ele, depois de colher as flores e comer as frutas, e depois de demolir os muros e abandonar o jardim aos quatro ventos, quer romper o contrato e devolver-nos o jardim no estado em que o pôs. Tal é nossa queixa, ó nosso senhor cádi.”

O cádi perguntou a Farruz: “Que tens a dizer, ó jovem” 

Farruz respondeu: “Devolvo-lhes o jardim com vontade e sem vontade! O motivo desta restituição é que, um dia, entrei no jardim e vi nele as pegadas de um leão. Tive medo de que, um dia, ele acabe por me devorar”.

O rei prestava atenção sem o deixar perceber.

Ao ouvir as palavras de Farruz, compreendeu-lhes o sentido e o alcance e interveio, dizendo a seu servidor: “Ó Farruz, acalma teu coração e apazigua tuas dúvidas. Pois, pela verdade e pela santidade do islã, é o jardim mais bem defendido que encontrei em toda minha vida. Suas muralhas o protegem contra qualquer assalto. E suas flores são as mais belas que já vi.” 

Farruz compreendeu e fez a paz com a mulher e amou-a. Nem o cádi nem as demais pessoas presentes compreenderam de que se tratava. Pela forma alegórica dada ao pensamento de cada um, o segredo ficou limitado ao rei, a Farruz e ao irmão da esposa.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Contos Tradicionais Portugueses (A Princesa Carlota)

Havia um rei que era solteiro, e os conselheiros aconselhavam-no a que se casasse, para deixar sucessores ao trono. O rei era amigo de caçar, e sempre que saía passava defronte de uma cabana, onde morava um velho pastor e sua formosa filha, chamada Carlota. Um dia disse o rei ao pastor:

— Os meus vassalos querem que eu case, e tu és a única mulher de quem gosto. Queres casar comigo?

— Isso não pode ser, senhor, porque eu apenas sou uma pobre pastora.

— Mesmo assim, caso contigo; mas com uma condição, de nunca me contrariares nos meus desejos, por menos razoáveis que sejam.

— Estou por tudo que Vossa Majestade me ordenar.

Realizou-se o casamento. O rei mandou para a cabana do pobre velho fatos de rainha, que ela vestiu, largando os seus trapinhos. Então, disse-lhe o velho pai:

— Guarda esses trapinhos para quando te sejam precisos.

A filha guardou os trapos em uma caixa, que deixou em poder do pai, e partiu para o palácio.

Ao fim de nove meses deu à luz uma menina, tão formosa como sua mãe. Passados três dias entrou o rei no quarto da esposa e disse-lhe:

— Trago-te uma triste notícia: os meus vassalos querem que eu mande matar a nossa filha, porque não se conformam ser um dia governados pela filha de uma pastora.

— Vossa Majestade manda, e cumpre-me obedecer, respondeu a rainha, quase a saltarem-lhe as lágrimas dos olhos. O rei recebeu a menina e entregou-a a um conselheiro. 

Tempos depois teve a rainha um filho, que o rei mandou igualmente matar sob o mesmo pretexto.

Alguns anos depois entrou o rei muito apoquentado no quarto da esposa e disse-lhe:

— Vou dar-te uma notícia, de todas a mais triste, os meus vassalos estão indignados comigo; não querem que estejas em lugar de rainha, e dizem-me que te expulse do palácio. Por isso, querida Carlota, prepara-te, que tens de voltar para a cabana de teu pai.

— Não se apoquente, Real Senhor, estou pronta a obedecer. Parto já.

— Tens que despir os fatos de rainha.

— É o que já vou fazer.

E a rainha despiu todo o fato ficando em camisa.

— Não dispo a camisa, porque encobre o ventre onde estiveram guardados os nossos filhos. - Disse a rainha.

O rei nada teve que objetar. Estava o velho pastor à porta, quando viu aproximar-se a filha. Recolheu-lhe logo para dentro, tirou da caixa os antigos trapinhos e levou-os à filha para que os vestisse. Ela vestiu-os sem proferir um queixume. 

Continuou na antiga vida de pastora. Para ela a sua vida de rainha fora apenas um sonho; lembrava-se muito dos seus filhos e para estes eram todas as suas saudades. 

Passados anos voltou o rei à casa de Carlota, e disse-lhe que os vassalos instavam com ele, que casasse, e por isso tinha resolvido casar com uma formosa princesa de quinze anos.

— Efetivamente, respondeu a pastora, um rei bom como Vossa Majestade merece ter uma descendência que lhe perpetue o nome.

— Venho pedir-te o favor de voltares ao palácio para dirigires as criadas de cozinha. Bem sabes que a princesa há de ser acompanhada por fidalgos, e vem igualmente com seu irmão mais novo; quero, portanto, servi-los com lauta mesa.

— Estou pronta, logo que Vossa Majestade ordenar.

— Chegam amanhã. Deves ir hoje para o palácio.

Carlota foi, vestindo um pobre vestido de chita com que costumava ir à igreja. 

No dia seguinte, chegou a noiva e o irmão, com outros fidalgos, e houve à sua chegada grandes festejos. 

Carlota estava governando na cozinha e aí a foi o rei encontrar.

— Não vens ver a minha noiva?

— Estou esperando quem me substitua aqui, enquanto vou e volto.

Chegou então uma cozinheira, e Carlota foi cumprimentar a noiva.

— É muito linda! disse Carlota, beijando a mão da noiva: Deus conserve muitos anos a sua preciosa saúde. É digna do rei que vai receber por seu marido.

A menina ficou perplexa. Então o rei ajoelhou-se em frente de Carlota, e disse:

— Olha que são os nosso filhos. Quis experimentar o teu coração: és uma pastora que vale mil rainhas.

Houve então mil abraços e beijos, de parte a parte. O rei mandara os filhos para casa de uma tia, que os educava como príncipes que eram, em vez de os mandar matar como tinha firmado à rainha.

Abbie Phillips Walker (Asas Douradas De Nim-Nim)

Certa vez, havia uma pequena fada chamada Nim-nim que causou mais problemas e preocupações à Rainha do que todas as outras fadas juntas. Nim-nim nunca ganhou suas asas douradas e ela era uma fada há muito tempo.

Para ganhar suas asas de ouro, todas as pequenas fadas tiveram que fazer algo que sua Rainha considerava digna de usar asas de ouro. Até então, as pequenas fadas podiam carregar uma varinha e fazer coisas mágicas, mas não podiam ter asas até que as ganhassem.

Noite após noite, a Rainha esperava que Nim-nim ganhasse suas asas, e todas as noites ela dava a mesma resposta. “Não consigo encontrar nada para fazer, minha Rainha. Embora eu procure em todos os lugares, parece não haver mais nada para mim. Receio nunca poder usar asas douradas como minhas irmãs.

“Mas certamente deve haver boas ações a serem feitas no mundo”, disse a Rainha. “Tenho certeza de que você poderia encontrar muito o que fazer se tentasse, Nim-nim.”

“Oh, mas, minha Rainha, garanto-lhe que procuro em todos os lugares, e em nenhum lugar posso encontrar algo que valha a pena fazer”, disse Nim-nim.

“Eu irei com você amanhã à noite,” disse a Rainha. “Acho que sei onde está o problema com você, Nim-nim.”

Na noite seguinte, quando as fadas saíram em sua missão de boas ações, a Rainha foi com Nim-nim, seguindo logo atrás. Elas foram embora pelas florestas e prados, e finalmente Nim-nim voltou-se para sua Rainha e disse: “Veja, minha Rainha, eu estava certa; não há mais nada para eu fazer que valha a pena. Eu nunca vou ganhar minhas asas.”

“Venha comigo,” disse a Rainha, liderando o caminho. Desta vez, elas se afastaram dos verdes prados, árvores e colinas e foram para a cidade, para as ruelas onde a tristeza e o sofrimento abundavam.

Então a Rainha disse a Nim-nim para olhar em volta, mas mesmo assim Nim-nim continuou; ela não parou para fazer nenhuma ação gentil.

“Não há nada aqui para eu fazer,” disse Nim-nim finalmente. “Minhas asas douradas não podem ser conquistadas; não há trabalho para mim”.

“Aqui nesta pobre casa mora um garotinho aleijado”, disse a Rainha. “Você não poderia encontrar atos de bondade para fazer aqui? Tire suas muletas e toque com sua varinha suas pernas tortas e endireite-as.

“E aqui mora a velha Martha, a mulher-maçã, que tem reumatismo em seus velhos ossos. Você não poderia tocar sua varinha nas costas dela e fazer a dor ir embora?

“E aqui está a pequena florista, cujas flores murcham antes que ela possa vendê-las. Você não poderia tocar as flores murchas com sua varinha mágica e fazer com que elas exalem seu perfume e coloquem vida em suas pétalas?”

Nim-nim ouviu sua Rainha, e então ela disse, “Mas, minha Rainha, certamente asas douradas não podem ser ganhas trabalhando em lugares tão pobres e humildes como estes. Devo fazer grandes feitos e salvar a filha de um rei ou fazer algum feito real, tenho certeza, antes de ganhar lindas asas douradas como as que minhas irmãs usam.

“Não pense que esses serão atos de baixo grau”, disse a Rainha. “As asas mais brilhantes são conquistadas pelos atos mais humildes, como você os chama. Nim-nim, você procurou apenas no palácio por seu trabalho. Asas douradas não são facilmente conquistadas, como você diz, mas se você estiver disposta a fazer o trabalho que encontra aqui, logo terá um par de asas que ofuscará todas as outras. Deixe-me ver se você é digna de usá-las.

Lá se foi a Rainha, deixando Nim-nim sozinha com o trabalho que ela não queria fazer. “Que glória pode haver em ajudar essas pobres criaturas?” ela pensou. “Mas eu devo ter minhas asas, então tentarei fazer o que a Rainha deseja.”

Demorou mais de uma noite para Nim-nim fazer todo o trabalho que ela encontrou na rua da tristeza e sofrimento, mas logo ela ficou tão feliz em fazer o bem e ver a felicidade que ela poderia dar que ela se esqueceu completamente das asas douradas para que ela estava trabalhando.

Uma noite, a Rainha chamou Nim-nim. “Você ganhou as asas douradas,” ela disse a ela, tocando-a com sua varinha, e o pequeno vale onde elas estavam ficou brilhante como com a luz do sol.

“Oh, o que é que brilha tanto?” perguntou Nim-nim.

“Suas asas douradas, minha querida,” disse a Rainha com um sorriso. “Suas boas ações as poliram até que ficassem tão brilhantes quanto o sol.”

Nim-nim agradeceu à Rainha e voou para seu trabalho com o pensamento de que ela nunca deixaria suas asas escurecerem por negligenciar as ações de bondade que ela poderia fazer, não importa onde as encontrasse.

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Irmãos Grimm (O violino maravilhoso)


Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como criado um rapaz honesto e ativo, como não haverá muitos. Todas as manhãs, o moço se levantava ao romper da aurora e só se deitava ao último cantar do galo.

Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.

Logo que acabou o primeiro ano de permanência na casa do avarento, que não estipulara soldo, não recebeu um ceitil (tipo de moeda) de paga, pensando de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não tentaria outra colocação. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como antes, e ao cabo de dois anos, o avarento nada deu, o rapaz permaneceu no seu mutismo.

Ao fim do terceiro ano, o rico, espicaçado pela consciência, meteu a mão no bolso para remunerar o criado fiel, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vazia. O rapaz exclamou então:

— Patrão servi-o três anos o melhor que me foi possível; agora quero ver mundo e por isso peço que me pague as moedas que me deve.

— Tens razão! — respondeu o rico avarento — Fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens três escudos novos; é um por cada ano que me serviste.

O rapaz, que andava sempre alegre e que era de uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permitiria viver vida folgada por largos anos.

Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e vales, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.

Ao acercar-se de um monte, viu sair um velhinho muito curvado que lhe gritou:

— Olá, companheiro, não pareces levar em conta os pesares à tua vida?!

— Que ganho eu em me apoquentar? — retorquiu o moço — Tenho na algibeira o soldo de três anos de trabalho.

— E a quanto monta essa fortuna?

— A três escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sinto-os tilintar, quando lhes toco com as mãos.

— Ora ouve cá — tornou o gnomo, de bom coração como se vai ver. – Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.

O rapaz, que era de boa índole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos três preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.

— Como és generoso — expressou-se então o gênio bom em figura de gnomo — dou-te licença para que me peças três coisas que são a paga dos teus três escudos.

— Então, pois sim! — fez o rapaz incredulamente — Isto que tu queres fazer é só do domínio das fantasias para entreter crianças. Mas, enfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu mire; um violino que tenha a virtude de forçar a todos bailar, quantos me ouçam e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais nem menos, a graça que eu pedir.

— És modesto no pedir — retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia meter na algibeira. Aqui tens — continuou o gnomo ao os dar-lhe — e fica ciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.

O rapaz, jovialíssimo, continuou a sua rota. Depois de caminhar um bocado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de bode muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avezinha.

— É extraordinário que um animal de tão pequeno talho, possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!

— Posso satisfazer o teu desejo — disse o rapaz que tinha ouvido as últimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho, este caiu atordoado em cima dos espinhos.

— Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.

— Tratas-me com crueldade — respondeu o judeu — mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avezinha.

Em seguida meteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De súbito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a tocar o violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a contorcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe as barbas; ficou com o vestuário todo rasgado e a cara a escorrer sangue.

— Ai, ai! — lastimava-se o infeliz judeu — Sossega, aquieta-te, não toques mais nesse amaldiçoado instrumento, aqui não é lugar próprio para baile!

O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:

— Este rabino esfolou tanto infeliz enquanto pôde, que é justo que seja esfolado agora!

E de novo tomou o violino tirando acordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dor. De súbito gritou:

— Apieda-te de mim, pelas barbas de Abraão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago comigo.

— Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabéns pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!

O judeu então, entregando-lhe a bolsa que prometera, suspirou imenso, enquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino, não podendo conter o seu rancor, exclamou:

— Músico das dúzias, estás a dever comigo. Grande espertalhão! Hás de pagar-me a partida mais cara do que ossos!

Tendo com essa fala dado vazão ao seu ódio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais próxima antes que o rapaz aparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz nestes termos:

— Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou, maltratou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia, cem moedas de ouro, que eram todo o meu pecúlio, as economias que consegui com o meu trabalho, o único bem que possuía. Faça todo o possível para que esse tesouro me seja restituído.

— Foi com alguma arma que o gatuno te pôs assim? — perguntou a autoridade.

— Nada, não senhor. Agarrou-me e arranhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se identifica.

O magistrado pôs em campo os guardas, que depressa viram o indicado espertalhão, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-no ante o magistrado e o judeu, que repetiu a acusação.

— Não toquei nessa criatura nem com um dedo — defendeu-se o rapaz — assim como não lhe tirei à força o dinheiro que ele trazia; ofereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos acordes o faziam nervoso!

— É mentira! — exclamou o rabino — Está a mentir impunemente!

— Está resolvida a questão? — ajuntou o magistrado — Pois é caso extraordinário um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um bocado de música. Pois senhor: a sentença do seu mau ato está lavrada: vai ser enforcado imediatamente!

O verdugo — que se havia ido chamar, segurou o inocente moço, conduziu-o à forca, que já estava erguida na praça principal onde acorreu toda a cidade em peso, e o rabino fora o primeiro a mostrar-se fazendo menção de socar o pobre condenado, vociferando:

— Espertalhão, vais ter a recompensa que te é devida!

O moço conservou-se muito tranquilo; subiu sozinho a escada apoiada à forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patíbulo e solicitou-lhe:

— Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?

— Concedo — respondeu o magistrado — desde o momento em que não seja o perdão!

— Nada disso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros acordes do violino!

Ao ouvir tais palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!

— Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a única alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.

— Ai, meu Deus! — lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possível abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.

— Dou-lhe uma peça de ouro, — prometeu ele no auge da aflição — se me amarrar com força ao pau da forca!

Nesse instante, porém, o rapaz deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o agente, os guardas, enfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circunstantes, o próprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o próprio verdugo desceu a escada e colocou-se em pé de dança.

O moço então — ao vê-los naquela pouco parlamentar atitude — tocou o mais possível, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de trás e dançavam como todos! O condenado deu uns acordes mais fortes e nessa ocasião era inexplicável o movimento: pareciam possessos de algum espírito ruim, batendo com as cabeças umas nas outras, pisando-se, acotovelando-se, atropelando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, aflito, fatigadíssimo, pediu:

— Não toques mais que eu perdoo-te! Foi o que o moço quis ouvir, visto que, concordando que o gracejo fora longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veio postar-se em frente do rabino que, fatigado, extenuado, exausto, se sentara na rua, respirando a custo.

— Agora és tu quem vais confessar a proveniência da bolsa que me deste, com peças de ouro. Não mintas, do contrário pego novamente no violino e tornas a dançar! — Tais as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:

— Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ela pela tua honestidade; dei-a para que não tocasses mais no violino!

Aparecendo o juiz, já um pouco refeito do cansaço, inquiriu do que se havia passado e provando-se à evidência que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Contos e Lendas da Espanha (O Galego e o cavalo do rei)

Certa vez aconteceu um fato curioso com um galego que era criado de um rei.

Esse rei tinha um belíssimo cavalo branco. E o prezava mais que a todas as riquezas que possuía. Gostava tanto do animal, que anunciou, que seria capaz de mandar para a forca o homem que lhe trouxesse a notícia mais triste do mundo. E quando lhe perguntaram que notícia seria essa, o rei respondeu sem hesitação:

— A morte do meu cavalo, oras. O que mais poderia ser?

Algum tempo depois, um soldado andaluz estava cuidando do cavalo, como fazia todas as manhãs. De repente, o animal se assustou. Relinchando, deu um coice no ar com tanta força, que escorregou e quebrou uma pata. Sem outra alternativa, o soldado teve de sacrificá-lo ali mesmo. Depois, começou a tremer de medo, pois conhecia muito bem a ameaça do rei. E não duvidava que ele fosse capaz de mandar enforcá-lo. 

Apavorado, o soldado chegou a molhar a camisa, de tanto que transpirava e tremia. O galego, que naquele momento entrava na cocheira, deparou-se com um triste quadro: o cavalo sem vida e o soldado pálido como um fantasma, a ponto de sofrer um ataque e cair ali mesmo, ao lado do animal.

— O que aconteceu? — perguntou o galego.

O soldado contou, mas sua voz soava tão trêmula, que o galego o interrompeu:

– Espere um. pouco enquanto vou buscar um copo de água. Você precisa se acalmar, homem.

O galego voltou rapidamente;

– Pronto, aqui está. Trate de beber a água em pequenos goles e tome cuidado para não se afogar.

O soldado obedeceu, E com um olhar de gratidão, devolveu o copo ao galego:

— Obrigado, amigo.

— Sente-se melhor?

_ Não muito... Pois minha vida está por um fio.

– Calma — o galego recomendou. — Conte-me o que aconteceu.

O soldado assim o fez. No final, disse:

– Você estava presente quando o rei deu aquela declaração?

– Sim. Ele jurou que mandaria enforcar... O homem que lhe levasse a notícia da morte de seu cavalo — o soldado completou, voltando a tremer como uma vara verde no meio da ventania.

— Sabe de uma coisa? — disse o galego. Acho que vou livrá-lo dessa encrenca.

— Mas como?

– Encarregando-me de levar a notícia ao rei.

– Agradeço, mas isso não é justo. Não quero que você seja morto em meu lugar.

– Acontece, meu amigo, que não pretendo morrer tão cedo.

— E o que você tenciona fazer?

– Isso é comigo. Agora, trate de levar o cavalo para o pasto. 

E o galego se afastou, muito tranquilo e confiante. Com um suspiro de alívio, o soldado andaluz apressou-se a cumprir a ordem do galego. Pediu a outros criados que o ajudassem, colocou o cavalo numa carroça e deixou-o no pasto.

O galego entrou no palácio do rei e disse aos guardas que tinha uma notícia importante. O rei, que tratava com deferência os empregados responsáveis por seu belo cavalo, não tardou a recebê-lo.

— E então? — perguntou. — O que há?

Saiba Vossa Majestade que o cavalo branco está jogado lá no pasto, com moscas entrando-lhe pela boca e saindo-lhe pelo rabo.

O rei, assustado, exclamou:

– Mas, homem, isso quer dizer que ele morreu!

— Ah, eu não sei, majestade, pois não sou veterinário.

Assim, o galego escapou da forca, pois não tinha sido ele, e sim o rei, quem havia dito que o cavalo estava morto.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

sábado, 20 de abril de 2024

Figueiredo Pimentel (A gatinha branca)

Existiu há séculos passados um rei que tinha três filhos. Tendo medo que eles tivessem desejos de reinar antes de sua morte, porque já corriam boatos que conspiravam contra ele, e não querendo deixar um lugar que tão dignamente ocupava, pensou que o melhor meio de viver em repouso era distraí-los com promessas, cujo resultado seria iludi-los.

Uma vez chamou-os ao quarto e disse-lhes:

— Meus filhos, a minha avançada idade já não permite que me dedique aos negócios do reino com tanto cuidado como antes, e quero que seus vassalos não sofram. Por isso, quero colocar a minha coroa na cabeça de um de vós. Haveis, porém, de concordar comigo que, para isso é preciso que façais uma ação digna de tão grande presente. Quero, pois, que vós três procureis um cão, lindo e fiel, que me faça companhia no resto dos meus dias. Aquele que me trouxer o animal mais bonito será o dono da minha coroa e, portanto, meu herdeiro.

Os moços ficaram admirados com o desejo de seu velho pai, mas resolveram ir procurar o animal que lhes havia de dar a sucessão do reino, prometendo que, ao fim de um ano, àquela mesma hora, estariam de volta dando o resultado da incumbência.

Partiram os moços, cada um para um lado.

O príncipe Nestor, como era chamado o mais jovem, seguiu viagem, e não havia dia em que não comprasse um cachorrinho.

Mas, como não podia nadar acompanhado de tantos animais, à proporção que comprava um mais bonito, abandonava os outros.

Ia seguindo sempre à procura de um animal lindo, quando uma noite foi surpreendido por uma tempestade no meio de uma floresta.

Subiu em uma árvore muito grande, que havia perto do lugar onde estava, para se abrigar da chuva, e poder passar a noite, quando viu de longe uma luzinha.

Desceu imediatamente, e foi caminhando na direção daquele farolzinho.

Chegou à porta de um castelo, o mais soberbo que se pode imaginar, todo de ouro, com muros de porcelana transparente, representando todas as histórias de fadas que há no mundo.

Aproximando-se da porta, tocou a campainha, cujo som, repercutindo lá dentro, parecia ser de ouro ou de prata.

Passados poucos segundos, abriu-se a porta, sem que ele visse outra coisa senão uma dúzia de mãos no ar, segurando archotes para alumiar sua passagem.

Ficou tão admirado, que hesitava em entrar, quando sentiu que o empurravam para a frente.

Começou a andar ao acaso, e sempre maravilhado de ver salas, com mais de mil velas cada uma, cada qual de uma qualidade: de ouro, de prata, de marfim, de pérolas, de tudo quanto é precioso neste mundo.

Depois de ter atravessado as salas, as mãos que o conduziram até ali, fizeram-no parar, e viu um sofá encostado a um fogão.

Sentou-se, e sentiu mãos começarem a despir-lhe a roupa molhada que trazia, substituindo-a por uma bela camisa bordada a ouro com botões de pérolas.

Com este novo vestuário, as mesmas mãos empurraram-no a um quarto contíguo, onde viu um lavatório, espelho, perfumarias as mais esquisitas, enfim tudo quanto é necessário a um moço para se vestir.

Sentou-se em uma cadeira de marfim, e começaram a fazer-lhe a barba, penteá-lo, frisá-lo e mudar-lhe a camisa por uma roupa mais própria e de riqueza nunca vista.

As mesmas mãos, depois do príncipe Nestor estar pronto, conduziram-no a uma sala, admirável pelos seus enfeites.

A mesa estava posta com dois talheres, o que intrigava em excesso o príncipe, a ponto de se julgar no inferno.

A sua admiração chegou ao auge quando, a um sinal dado, viu uma porção de gatos, de diversas raças e cores, entrar cada um com um instrumento e seguidos de um gato de óculos, com um rolo de papel debaixo do braço.

Subiram os bichinhos para um estrado, e começaram a tocar, cada qual de sua maneira, de sorte que formavam a orquestra mais engraçada que jamais se tem imaginado, pelas caretas que os bichinhos faziam, o que provocaram ao príncipe gargalhadas estrepitosas.

Pensava Nestor em todas as coisas que lhe haviam acontecido naquele castelo, quando viu entrar uma figurinha, coberta com um véu de crepe, e com dois gatos fardados segurando na cauda do seu vestido preto, também de luto e de espada à cinta.

Seguia-se um cortejo de gatos, cada um trazendo ratoeiras cheias de ratos, camundongos e morcegos.

O príncipe não sabia como se ter de tanta surpresa, quando a figura se aproximou dele, e viu uma bela gatinha branca.

Tinha um ar triste, e começou a miar tão docemente que quem a ouvisse se sentiria pesaroso.

Chegou-se ao moço, e falou-lhe:

— Filho de rei, sê bem-vindo; a minha real majestade te recebe com gosto.

— Excelentíssima gatinha, disse o príncipe, sois tão generosa em me receber com tanto agrado, que não me pareceis uma gatinha qualquer; o dom da palavra, que possuis, e este castelo tão rico, são provas bastante evidentes do que vos digo.

— Príncipe, respondeu a gatinha, acaba com teus galanteios; sou simples, em meus discursos e em meus modos, porém, tenho bom coração. Ordeno que sirvam ao nosso hóspede, e que os músicos se calem, porque o príncipe não entende o que eles dizem.

— E eles dizem alguma coisa? replicou o príncipe.

— Sem dúvida, continuou ela. Temos aqui poetas de muito espírito; e se demorares aqui algum tempo, ficarás convencido do que te digo.

Serviram o jantar, e o príncipe viu dois pratos, com um ratinho assado, e outro com uma carne que ele não conheceu.

Ficou com repugnância de comer tal comida, porém a gata, adivinhando o que se passava no espírito do moço, asseverou-lhe que o outro prato era feito de propósito para ele, e que por isso não precisava ter escrúpulos.

O príncipe acreditou no que lhe dizia a gatinha, e jantou muito bem, admirando somente um retrato que viu no colar da gatinha, onde reconheceu a fotografia de um homem muito bonito, e que se parecia um pouco com ele.

Perguntou de quem era aquele retrato; a gatinha ficou mais triste e não respondeu.

Com medo de contrariá-la, levantaram-se da mesa, sem mais o jovem moço se ocupar com a fotografia.

Depois do jantar, foi o príncipe Nestor convidado para assistir a um espetáculo no teatro do palácio, e ficou maravilhado de ver doze gatos e doze macacos dançarem como as mais afamadas bailarinas.

Terminado o espetáculo, esteve o príncipe a conversar com a gatinha, admirando cada vez mais como ela era instruída em todas as histórias dos príncipes e reis do mundo.

Já era mais de meia-noite, quando os dois se deram as boas-noites, e foram deitar-se.

No dia seguinte estava o príncipe ainda deitado, quando lhe apareceram duas mãos que traziam numa bandeja de ouro e brilhantes um cartão da gatinha, convidando-o para uma caçada.

O príncipe levantou-se, vestiu-se, e foi ter com a gatinha, que já encontrou montada em um macaco, oferecendo-lhe ela um cavalo-de-pau, que corria mais que o melhor animal deste mundo, e tanto como o vento.

A caçada era feita pelos gatos aos coelhos, e era de se admirar como podiam estes animais caçar aqueles.

***

Levava Nestor essa boa vida, e havia esquecido o fim da sua viagem, entretido como estava pelos divertimentos que a toda hora lhe proporcionava a gatinha, quando um dia esta lhe disse:

— Sabes que só tens três dias para procurar o cãozinho que teu pai deseja, e que teus irmãos já encontraram dois, lindos?

O príncipe, admirado de sua negligência, exclamou:

— Por que encanto secreto esqueci a coisa mais importante deste mundo, para mim? Onde poderei encontrar um cão como desejo, e um cavalo bastante rápido para fazer tantas léguas em tão pouco tempo?

A gatinha, vendo-o tão inquieto, acalmou-o:

— Sossega; sou tua amiga; podes ficar ainda um dia em meu palácio; e, conquanto daqui ao teu reino haja quinhentas léguas, o meu cavalo-de-pau vai lá ter em menos de doze horas.

— Agradeço-vos muito, bela gatinha, mas não é preciso somente chegar à casa de meu pai; é necessário também encontrar um cão, e onde irei agora achá-lo?

— Pois toma esta amêndoa, disse a gatinha; lá dentro está um cãozinho.

— Oh! disse o príncipe, vossa majestade quer caçoar comigo?

— Não; e se não acreditas, encosta-a ao ouvido, que escutarás o latido.

O príncipe obedeceu; e quando ouviu o “au-au” do cachorrinho, ficou maravilhado; e queria por força abrir a amêndoa para ver o animalzinho.

A gatinha proibiu-lhe que assim procedesse, dizendo que só devia abri-la em presença do rei seu pai.

Nestor despediu-se da gatinha, dizendo que se sentia pesaroso de deixar uma gata tão gentil, e suplicou-lhe ardentemente para que fosse a seu palácio, onde seria muito bem tratada.

A gatinha deu um suspiro triste, e não respondeu.

O moço montou no cavalo-de-pau e voou ao palácio do rei, onde encontrou os irmãos, que estavam chegando naquele instante.

Quando os três príncipes chegaram à presença do velho rei, este não sabia qual dos dois cães trazidos era o mais bonito, tão lindos eram. Perguntou a Nestor onde estava o animal que devia trazer.

— Está aqui, meu pai, e mostrou-lhe a amêndoa.

O rei supôs que o filho queria caçoar, e já estava disposto a mandar castigá-lo severamente pela falta de respeito, quando o moço abriu a amêndoa, de onde saiu um cãozinho, do tamanho de um caroço de feijão, a latir, a pular e a saltar que era um gosto.

Todos foram de acordo haver sido Nestor quem trouxera o animal mais lindo. Mas o rei, que não se achava com disposição de lhe ceder a coroa, disse:

— Na verdade, meu filho, foste tu que ganhaste o prêmio. Mas, para não descontentar a teus irmãos, quero uma segunda prova. Tragam-me, daqui a um ano, um pano que seja capaz de atravessar o fundo da agulha mais fina que houver em todo o reino.
***

Partiram os príncipes à procura do que lhes pedia seu pai pensando onde poderiam encontrar pano tão fino que passasse pelo fundo de uma agulha, e desanimados de conseguir o que lhes fora pedido.

Nestor montou no cavalo-de-pau, e partiu para o palácio da gatinha, a quem foi pedir proteção e conselho.

As mãos, que da primeira vez o tinham recebido, assim que ele chegou, levaram-no à presença da gatinha, que lhe falou:

— Príncipe, senti muito a tua partida, e não contava mais te ver, porque te estimo muito, e desejava a tua volta. Infelizmente, do que desejo neste mundo, nada tenho conseguido. Falemos sobre assunto que mais te interessa. Já sei a que vens; o que teu pai pede é muito difícil de se conseguir, senão quase impossível. Como tenho, porém, aqui no meu reino, tecelões admiráveis, vou fazer a tua encomenda e estou certa que eles envidarão todos os esforços para me serem agradáveis.

Nestor começou a viver no palácio da gatinha a mesma vida que dantes. Tendo sempre com que se distrair – festas de todas as espécies – esqueceu-se do fim da sua segunda visita.

Uma tarde em que conversava com a gatinha, cada vez mais admirado de tanto espírito do animalzinho, ela lhe disse:

— Príncipe, é amanhã o dia em que deves apresentar a teu pai o pano que ele te encomendou. Já te esqueceste?

— Palavra que tinha me esquecido, minha formosa gatinha, do fim a que voltara a este palácio. A vossa companhia é tão encantadora, que de bom gosto passaria o resto de minha vida, aqui. O único sentimento que tenho é não serdes mulher, para eu viver de joelhos, vos adorando. Mesmo assim, basta que me dês consentimento, que aqui ficarei, não querendo mais saber do direito que tenho, sobre a coroa de rei meu pai.

— Príncipe, o que me pedes é impossível. Volta ao palácio de teu pai, a quem não deves abandonar por amor a uma triste gata.

— Mas como voltarei eu, se de todo me esqueci de procurar o pano, e de hoje até amanhã não o poderei haver, nem que tenha o auxílio do cavalo-de-pau?

— Sossega, príncipe Nestor, disse ela muito triste, eu me incumbi de arranjar o pano que teu pai deseja. Ei-lo aqui. Vai, e lembra-te sempre da tua amiga, a gatinha.

Entregou-lhe uma caixinha do tamanho de um dado.

O príncipe não poderia supor que dentro de uma caixinha tão pequena houvesse uma peça de pano. Mas, como a gatinha não gostava de caçoar, aceitou o microscópico embrulho, com recomendação de só abri-lo em frente do rei.

Montou no cavalo-de-pau que lhe dera a gatinha, e em dez horas viajou quinhentas léguas.

Assim que chegou ao palácio, viu dois cavaleiros saltando de dois cavalos, e reconheceu os dois irmãos.

Estes indagaram do príncipe Nestor se tinha arranjado a peça de pano, ao que lhes respondeu que não, porque o mais fino pano que encontrara só passava pelo anel de uma criança.

Chegaram os dois príncipes à presença do rei, que os julgou logo sem direito à coroa, por isso que a peça de pano que levavam só passava pelo fundo de uma agulha de coser sacos.

Voltando-se para seu filho mais moço:

— E tu, meu filho, foste tão feliz como da outra vez?

— Suponho que sim, meu pai. Aqui está a peça de pano que o senhor deseja. Tem cem metros de comprimento por trinta de largura.

Apresentou a caixinha que lhe havia dado a gatinha.

O rei não quis acreditar que uma caixa do tamanho de um dado pudesse conter tanto pano, mas para se certificar abriu-a.

Encontrou dentro uma caixa de vidro.

Todos começaram a duvidar do jovem príncipe, quando este pediu a seu pai que abrisse a segunda caixinha.

Este abriu-a, e encontrou um grão de milho.

Aumentaram as zombarias ao príncipe Nestor, dizendo que tinha sido enganado, e ele mesmo, um tanto envergonhado, disse consigo mesmo:

— Será possível que a gatinha branca me tenha ludibriado?

Nestor sentiu uma arranhadela na mão. Compreendeu que era a gatinha, que não queria que ele duvidasse de sua palavra; e, virando-se para todas as pessoas presentes, disse:

— Garanto a todos que encontrarão cem metros de pano de comprimento por trinta de largura.

O rei já se via satisfeito, por ver que a coroa não passaria a nenhum dos seus filhos, e, para contentar o príncipe Nestor, mandou que ele quebrasse o grão de milho.

Este imediatamente partiu-o, e encontrou um grão de ervilha, que também quebrou, tirando de dentro um pano tendo em todo o comprimento e largura pintadas todas as qualidades de pássaros, peixes e animais.

Todos se admiraram de ver um pano assim, e foram de acordo que a coroa pertencia a Nestor.

Todavia, o rei desta vez ainda não quis ceder, dizendo:

— Meus filhos, é a última experiência que faço. De bom grado daria o meu reino a meu filho mais moço, que é o que se tem saído melhor em suas aventuras, porém acho que um homem solteiro não governa bem um reino tão importante como é o meu. Por isso dou-vos um ano de prazo para trazer a mulher mais bonita que encontrardes. Aquele que trouxer a que mais me agradar, será o rei meu substituto, e casar-se-á com a moça. Quero gozar a minha velhice cercado de netinhos.

Os três príncipes saíram do castelo, indo Nestor, no seu cavalo-de-pau, em direção ao palácio da gatinha.

Chegando ali contou-lhe qual a incumbência que o pai lhe fazia, dizendo achar ser impossível consegui-lo.

— Não, príncipe, eu te ajudarei no que puder. Talvez saiba de alguma moça formosa, que queira ir em tua companhia.

— Não, minha gatinha, estou disposto a não voltar mais ao palácio; e peço-te o que já pedi uma vez: amo-te muito, e o meu maior desespero é ficar sem tua companhia.

— Não penses nisso, príncipe. Cuidemos do meio de fazer a vontade a teu pai, e, enquanto não o encontramos, divirtamo-nos.

Passou o príncipe mais de um ano no palácio da gatinha, e já estava esquecido do que viera ali fazer, quando um dia lhe disse a sua amiga:

— Meu caro príncipe, é depois de amanhã que deves ir ao palácio do rei, com a moça que levarás, e previno-te que arranjei uma, linda como os amores.

— Pois eu, minha gatinha, desisto de tudo, porque uma das condições que meu pai apresentou foi aquele que levar a moça mais bonita casar-se com ela, e eu não quero deixar de gozar a tua preciosa companhia.

— Não, príncipe Nestor, deves fazer o que te digo, que é para teu bem, e talvez para o meu. Arranjei a moça que procuras, mas é preciso um sacrifício de tua parte, para levá-la.

— Dize-me qual é, que o farei, uma vez que é para meu benefício, e talvez para o teu, como dizes.

— Só terás a moça, que é de uma beleza nunca vista, se me cortares a cabeça e a cauda, e as jogares no fogo.

— Isso não, gatinha: prefiro morrer, abandonar todos os reinos da terra, a ter que fazer tal barbaridade.

— Mas olha que é preciso; e se me tens a amizade que dizes, faze o que te peço de joelhos, que é para meu benefício.

— Pois bem, fá-lo-ei, se jurares que nada te acontecerá.

— Garanto-te que até serei mais feliz.

Nestor fez o que lhe disse a gatinha.

Com a mão trêmula pegou num facão, que ali aparecera por encanto, e de olhos fechados cortou-lhe a cabeça e o rabo.

Quando abriu os olhos, ficou deslumbrado.

Em sua frente estava uma moça de uma beleza extraordinária, que lhe disse:

— Obrigada, príncipe, pelo serviço que acabas de me prestar. Estou às tuas ordens, para irmos ao palácio do rei, teu pai. Sou uma princesa, transformada na gatinha que conheceste, por uma fada má, inimiga da minha madrinha, a fada Beleza. Só me desencantaria quando um príncipe me amasse no meu invólucro de gata, e me matasse. Salvaste-me, e hoje sou a rainha Maroca, senhora de seis reinos. Vamos ter com teu pai que, estou certa, não me recusará como nora.

O príncipe estava estupefato ante um fato tão estranho, e em frente de um formosa mulher, tão linda como nunca vira nem em sonhos.

Maroca mandou que seus vassalos, que eram os antigos gatos, também desencantados, preparassem a carruagem que os devia levar ao reino do pai do príncipe Nestor.

Era um lindo carrinho puxado por dez mil casais de pombos brancos, atrelados por cordões de ouro, onde, de espaço a espaço, havia um brilhante do tamanho de um grão de milho.

Quando os dois jovens chegaram ao palácio do rei, foi uma surpresa geral.

Os dois irmãos de Nestor não quiseram mostrar as suas noivas, envergonhados, embora fossem formosíssimas.

O rei, vendo aquela mulher com seu filho, lhe disse:

— Agora, meu querido filho, tens o direito à minha coroa, e estimo-o bem, vendo que vou ter uma nora como não há igual. Só ela vale todos os reinos que existem.

— Real Majestade, disse a rainha Maroca, desculpai se não aceitamos a vossa coroa. Pretendemos somente o vosso consentimento para nos casarmos. Podeis ficar com o vosso reino, e com mais um, que vos ofereço. Os meus cunhados serão reis de dois reinos, também meus, independentes da minha coroa, porque nos bastam, a mim e ao príncipe Nestor, três reinos que governaremos em boa harmonia.

O rei ficou contentíssimo com o que acabava de ouvir.

Efetuaram-se os casamentos dos três príncipes irmãos, no mesmo dia, com as maiores pompas que têm havido em casamentos de príncipes.

Cada um dos três príncipes foi tomar conta dos seus reinos, ficando satisfeitos e vivendo felizes por muito tempo.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.