domingo, 20 de janeiro de 2008

Monteiro Lobato (Obras)

Reinações de Narizinho
O livro-mater, a locomotiva do comboio, o puxa-fila. A história começa. Aparecem Narizinho, Pedrinho, Emília, o visconde, Rabicó, Quindim, Nastácia, o Burro Falante... e o milagre do estilo de Monteiro Lobato vai tramando uma série infinita de cenas e aventuras em que a realidade e a fantasia, tratadas pela sua poderosa imaginação, se misturam de maneira inextricável - tal qual se dá normalmente na cabeça das crianças. O encanto que as crianças encontram nestas histórias vem sobretudo disso: são como se elas próprias as estivessem compondo em sua imaginativa, e na língua que todos falamos nesta terra - não em nenhuma língua artificial e artificiosa, mais produto da "literatura" do que da espontaneidade natural. - Volume com 312 páginas

Viagem ao Céu e o Saci
Pedrinho consegue obter uma boa dose do pó de pirlimpimpim, o pó mágico que transporta as criaturas a qualquer ponto do Espaço e a qualquer momento do Tempo - e distribuindo pitadas a Narizinho, Emília, o visconde, Nastácia e o Burro Falante, empreende a viagem ao céu astronômico. Vão parar na lua, onde tia Nastácia fica como cozinheira de S. Jorge, enquanto os outros visitam Marte e Saturno e a Via Láctea, na qual encontram o Anjinho de Asa Quebrada. Enquanto brincam no éter, vão aprendendo sólidas noções de astronomia - só voltam de lá quando dona Benta os chama com um bom berro: "já pra baixo, cambada!".

Na Segunda parte, O Saci, desenvolve-se a estranha aventura que teve Pedrinho com um saci que conseguiu pegar com a peneira e conservar preso numa garrafa. O diabinho de uma perna só proporciona ao garoto ensejo de conhecer a vida noturna e fantástica das matas - com visões da Mula Sem Cabeça, da Caapora, do Lobisomem, do Boitatá, e das principais criações mitológicas do nosso folclore. - Volume com 275 páginas.

Caçadas de Pedrinho e Hans Staden
Neste volume Pedrinho organiza uma caçada de onça e sai vitorioso como também sai vitorioso do ataque das onças e outros animais de presa ao sítio de dona Benta. Depois encontra um rinoceronte, fugido de um circo do Rio, que se refugiara naquelas matas - um animal pacatíssimo e de bastante ilustração, do qual Emília tomou conta, depois de batizá-lo de Quindim.

Completa o volume a narrativa feita por dona Benta das celebres Aventuras de Hans Staden. Este aventureiro alemão veio ao Brasil em 1559 e esteve nove meses prisioneiro dos tupinambás, a assistir cenas de antropofagia e à espera de ser devorado de um momento para outro. Mas salva-se. Volta para a Alemanha e lá publica o seu livro: o primeiro que aparece com cenário brasileiro e um dos mais pungentes e vivos de todas as literaturas. - Volume com 144 páginas.

História do mundo para crianças
Este livro de Monteiro Lobato teve uma aceitação excepcional, estando já a caminho de 200.000 exemplares. Nele o autor dá um apanhado da evolução humana, e da história da humanidade no planeta, na seriação clássica de todas as "histórias universais" - mas escrita de modo extremamente atrativo, como um verdadeiro romance policial posto em nível infantil. As crianças lêem avidamente este livro, como lêem as histórias da carochinha, e desse modo criam uma história da civilização. E os pais também lucram imensamente com a leitura deste livro; dum certo modo podemos dizer que o que o grosso da nossa população sabe de história é o que Monteiro Lobato conta em sua exposição para as crianças ... - Volume com 313 páginas.

Memórias da Emília e Peter Pan
Emília, a terrível Emília, resolve escrever Memórias e as escreve com as unhas do visconde. Nelas vem o episódio, tão vivo e interessante da visita das crianças inglesas ao sítio de dona Benta, trazidas pelo velho almirante Brown. Vieram para conhecer o Anjinho de Asa Quebrada, que Emília descobre na Via Láctea, durante a Viagem ao Céu. Emília conta tudo - o que houve e o que não houve; e vai dando as suas ideiasinhas sobre tudo - ou a sua filosofia, que muitas vezes faz dona Benta olhar para tia Nastácia, e murmurar: "Já viu, que diabinha?".

Na Segunda parte, Peter Pan, dona Benta recebe o famoso livro de Sir John Barrie, Peter Pan and Wendy e o lê da sua moda para as crianças. Durante a leitura, a espaços interrompidos de cenas provocadas pelos meninos e, sobretudo, pela Emília, ocorre o caso do desaparecimento da sombra da tia Nastácia. Quem furtou a sombra da pobre negra? O visconde é posto a investigar, e como é um excelente Sherlock, descobre tudo: artes da Emília... - Volume com 247 páginas.

Emília no País da Gramática e Aritmética da Emília
Temos aqui uma das obras primas de Monteiro Lobato, e o mais original de quantos livros se escreveram até hoje. Lobato figura a língua como uma cidade, a cidade da Gramática, e leva para lá o pessoalzinho do sítio, montado no rinoceronte. E é este paciente paquiderme o gramático que tudo mostra e explica. Há a entrevista de Emília com o venerando Verbo Ser, que é uma pura criação. E a reforma ortográfica, que Emília opera à força, com o rinoceronte ali ao seu lado para sustentar suas decisões, constitui um episódio que não só encanta as crianças pela fabulação como ensina de modo indelével as principais regras da ortografia.

Na Aritmética da Emília, Monteiro Lobato usa do mesmo sistema e consegue, numa matéria tão árida como a aritmética, transformar o velho Trajano numa linda brincadeira no pomar. O quadro negro em que faziam contas a giz era o couro do Quindim... Volume com 302 páginas.

Geografia da dona Benta
Em vez de estudar geografia nos livros, como fazem todas as crianças, o pessoalzinho do sítio embarca no "O terror dos Mares" e sai pelo mundo afora, a "viver" geografia. E a geografia, aquele estudo penoso e tão sem graça, se torna uma aventura linda, com paradas em inúmeros portos e descidas em terra para ver as coisas mais notáveis de todos os países. É brincadeira das mais divertidas e é um preciosíssimo curso de geografia, porque as noções desse modo adquiridas ficam para sempre - não são esquecidas nunca. - Volume com 261 páginas.

Serões da dona Benta
Um certo dia dona Benta resolve ensinar física aos meninos e em vários serões faz um verdadeiro curso de física, melhor que quanto é feito, penosamente, nos ginásios. A física perde a sua secura. Os diálogos, os incidentes, as constantes perguntas dos meninos - e as constantes perguntas dos meninos - e as ocasionais maluquices da Emília, amenizam a matéria. Trata-se de um livro para meninos aí de seus 12 anos, já em idade ginasial, e que se tem revelado preciosíssimo auxiliar dos compêndios oficiais. - Volume com 352 páginas.

D. Quixote das crianças
As arqui-famosas aventuras de D. Quixote de la Mancha e de seu gordo escudeiro Sancho aparecem aqui contadas por dona Benta, naquele seu modo de contar que é só dela. Emília entusiasma-se com o herói e em certo momento resolve imitá-lo - e armada dum cabo de vassoura, feito lança, investe contra as galinhas do quintal. E faz que tia Nastácia teve que agarrá-la e prendê-la numa gaiola, como aconteceu com o herói da Mancha na sua loucura... - Volume com 239 páginas.

O Poço do Visconde
Um precioso livro em que a geologia, sobretudo a geologia especial do petróleo, é exposta ao vivo e com profundo conhecimento da matéria. O visconde vira geólogo, preleciona, ensina a teoria e depois passa à prática; abertura de poços de petróleo nas terras do sítio de dona Benta. E tão bem são conduzidos os estudos geológicos e geofísicos, que a Companhia Donabentense de Petróleo, por eles fundada, consegue abrir o primeiro poço de petróleo do Brasil: o Caraminguá nº 1. - Volume com 253 páginas.

Histórias de Tia Nastácia
São as histórias mais populares do nosso folclore, contadas por tia Nastácia e comentadas pelos meninos. Nesses comentários, no fim de cada história, Pedrinho, Narizinho e Emília se revelam bem dotados de senso crítico, e "julgam" as histórias da negra com muito critério e segurança. É um livro que "ensina" a arte da crítica - coisa que pela primeira vez um escritor procura inocular nas crianças. - Volume com 226 páginas.

O Picapau Amarelo e A Reforma da Natureza
Dona Benta adquire todas as terras em redor do sítio para atender a uma coisa prodigiosa: a resolução que os personagens da fábula tomaram de irem morar lá. Branca de Neve com os sete anões, D. Quixote e Sancho, Peter Pan e os meninos perdidos do País do Nunca, a Gata Borralheira, todas as princesas e príncipes encantados das histórias da carochinha, os heróis da mitologia grega, tudo, tudo que é criação da Fábula muda-se com armas e bagagens para o Picapau Amarelo, levando os castelos, os palácios, as casinhas mimosas como a de Capinha Vermelha e até os mares. Peter Pan transporta pra lá até o Mar dos Piratas. Acontecem maravilhas; mas no casamento de Branca de Neve com o príncipe Codadad, o maravilhoso sítio é assaltado pelos monstros da fábula - e no tumulto que houve tia Nastácia desaparece... - Volume com 295 páginas.

O Minotauro
Neste livro desenrolam-se as aventuras de Pedrinho, do visconde e da Emília na Grécia Heróica, para onde foram em procura de tia Nastácia. Acontecem mil coisas, e afinal descobrem o paradeiro da negra, graças à ajuda do Oráculo de Delfos. Estava presa no Labirinto de Creta, nas unhas do Minotauro! Mas tia Nastácia já havia domesticado esse monstro, à força de bolinhos e quitutes; deixara-o tão gordo que os meninos puderam entrar no Labirinto e salvá-la sem que ele, espaçado no trono, pensasse em reagir... - Volume com 255 páginas.

A Chave do Tamanho
O mais original dos livros de Monteiro Lobato. Emília, furiosa com a duração da guerra, resolve acabar com a guerra. Como? Indo Ter à Casa das Chaves, lá nos confins do mundo, e "virando" a Chave da Guerra. Mas comete um erro e em vez da Chave da Guerra vira a Chave do Tamanho, isto é, a chave que regula o tamanho das criaturas humanas. Em conseqüência, subitamente todas as criaturas humanas do mundo inteiro "perdem o tamanho", ficam de dois, três centímetros de estatura - e Lobato conta o que se seguiu. Trata-se de um livro rigorosamente lógico, e que inocula nas crianças o senso da relatividade de todas as coisas. - Volume com 200 páginas.

Fábulas
Neste livro Monteiro Lobato reescreve as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, mas comentadamente. A novidade do livro está nestes comentários, em que as fábulas são criticadas com a maior independência - e Emília chega a ponto de "querer linchar" uma delas, cuja lição de moral lhe pareceu muito cruel. Um livro encantador, em que o gênio dos velhos fabulistas é singularmente realçado pelos diálogos entre os meninos, que a inventiva de Monteiro Lobato vai criando com a maior agudeza e frescura. - Volume com 300 páginas.

Os doze trabalhos de Hércules
Pela primeira vez em todas as literaturas os famosíssimos Trabalhos de Hércules - o mais belo romance fantástico da Antigüidade Clássica - aparece desenvolvido à moderna - e vivificado pela colaboração de Pedrinho, Emília e o visconde de Sabugosa. Esses três heroisinhos modernos penetram na Grécia Heróica a fim de acompanhar as façanhas de Hércules - e acompanham-nas, nelas tomando parte e muitas vezes salvando o grande herói. Do decorrer das aventuras ressalta a lição moral da superioridade da inteligência espontânea, viva como azougue e sempre vitoriosa. Livro que é um encanto para as crianças e para todos os adultos de bom gosto. 2 tomos com 584 páginas.

Urupês
Esse livro de contos, considerado por muito como a obra-prima de Monteiro Lobato, tornou-se um clássico da literatura brasileira. É um fenômeno sem precedente que provoca um terremoto literário, outro sociológico e outro político. A primeira edição, lançada em 1918 foi toda ilustrada pelo próprio Lobato.

Junto com Saci, constitui a primeira experiência e também o primeiro êxito editorial de Lobato, financiada com recursos próprios.

A terceira edição, em 1919, esgotou-se rapidamente devido a uma longa referência ao personagem central do livro feita por Rui Barbosa, o que ensejou uma quarta edição. Lobato brinca com o idioma, adota o vocabulário doméstico do interior de São Paulo, cria palavras novas - como por exemplo, "matracolejando gargalhadas" - muitas das quais estão hoje nos dicionários. São vários contos retratando aspectos da realidade brasileira nos quais denuncia, numa linguagem vigorosa, o drama da exclusão social que ainda persiste no Brasil pós Lobato. Velha Praga é uma reportagem sobre os grandes incêndios produzindo estragos na lavoura e na economia do País comparáveis a uma grande guerra. Buscando culpa refere-se ao nosso caboclo como "funesto parasita da terra... inadaptável à civilização". Em Urupês ele contrapõe aos heróis da literatura indigenista o caboclo, o pobre Jeca Tatu, indiferente ao desenvolvimento do País. O livro provocou muita polêmica por seu conteúdo racista. Lobato mais tarde reconheceu que o retrato do caboclo era injusto, que a culpa não era do Jeca, mas sim daqueles responsáveis pela sua miséria e abandono.

Contos: Os faroleiros - O engraçado arrependido - A colcha de retalhos - A vingança da peroba - Um suplício moderno - Meu conto de Maupassant - Pollice verso - Bucólica - O mata-pau - Boca torta - O comprador de fazendas - O estigma - Velha Praga - Urupês

Cidades mortas
Foi publicado originalmente em 1919 numa edição da Revista do Brasil. Reúne os primeiros escritos de Lobato, ainda estudante em Taubaté, e contos que escreveu antes de seguir para os Estados Unidos para ocupar um posto no Consulado brasileiro em Nova Iorque. Mostra o Brasil de duas épocas, porém com os mesmos problemas, onde os políticos não têm a menor preocupação social.
Nos contos transparece a transição na agricultura brasileira provocada pela grande crise do café ocorrida em 1929. É um retrato bem nítido do que era São Paulo nos anos 20.

Contos: Cidades mortas - A vida em Oblivion - Os perturbadores do silêncio - Vidinha ociosa - Cavalinhos - Noite de São João - O pito do reverendo - Pedro Pichorra - Cabelos compridos - O resto de onça - Porque Lopes se casou - Júri na roça - Gens ennuyeux - O fígado indiscreto - O plágio - O romance do Chopin - O luzeiro agrícola - A cruz de ouro - De como quebrei a cabeça à mulher do Melo - O espião alemão - Café! Café! - Toque outra - Um homem de consciência - Anta que berra - O avô do Crispim - Era no Paraíso - Um homem honesto - O rapto - A nuvem de gafanhotos - Tragédia dum capão de pintos.

Negrinha
Muitos consideram que neste livro estão os melhores contos escritos por Lobato. Sem dúvida são os mais emotivos e que mais agradaram ao público. Alguns contos foram escritos antes de sua viagem aos Estados Unidos, outros depois do retorno. O livro contém verdadeiras preciosidades no tratamento do idioma e os personagens são mais urbanos e mais mundanos que os dos livros anteriores.

Há, de fato, contos primorosos que honram a literatura brasileira, como por exemplo a "Facada Imortal".

Contos: A primeira edição de Negrinha continha os seguintes contos: Negrinha - Fitas da vida - O drama da geada - O bugio moqueado - O jardineiro Timóteo - O colocador de pronomes. Edições posteriores incluem: O fisco - Os negros - Barba Azul - Uma história de mil anos - Os pequeninos - A facada imortal - A policitemia de Dona Lindoca - Duas cavalgaduras - O bom marido - Marabá - Fatia de vida - A morte do Camicego - Quero ajudar o Brasil - Sete grande - Dona Expedita - Herdeiro de si mesmo.

Idéias de Jeca Tatu
No prefácio à primeira edição da Revista do Brasil em 1919, provavelmente redigido pelo próprio Lobato, diz que "uma idéia central unifica a maioria destes artigos" .... Essa idéia é um grito de guerra em prol da nossa personalidade.

Contem Paranóia ou mistificação, uma crítica aos modernistas, diretamente a Anita Malfatti, que provocou polêmica e a ira dos amigos da pintora. Ele não admitia que aqui se copiasse o que se produzia na Europa. Queria que o "vigoroso talento" de Anita produzisse coisas mais nossas.

Anota o editor que nas numerosas paginas deste volume a terra aparece em suas ominadas expressões - o interior, a roça, a gente da roça, os costumes e comidas da roça. ... Em Idéias de Jeca Tatu, "Monteiro Lobato aparece em mangas de camisa, integralmente ele próprio no pensamento e no modo de expressá-lo - vivo, alegre, brincalhão e com a ironia às vezes levada até à crueldade".

Escritos: A caricatura no Brasil - A criação do estilo - A questão do estilo - Ainda o estilo - Estética oficial - A paisagem brasileira - Paranóia ou mistificação? - Pedro Américo - Almeida Júnior - A poesia de Ricardo Gonçalves - A hosteofagia - Como se formam as lendas - A estátua do Patriarca - Sara, a eterna - Curioso caso de materialização - Rondônia - Amor Imortal - O saci - Arte francesa de exportação - A mata virgem, Mr. Deibler e Zago - Em nome do silêncio - Royal-street-flush arquitetônico - As quatro asneiras de Brecheret - Arte brasileira - Antonio Parreiras - Um romancista argentino - Um grande artista - Os sertões de Mato Grosso - O Vale do Paraíba - diamante a lapidar - O rei do Congo - O rádio-motor - Hermismo - Um novo 'frisson" - Cartas de Paris - A conquista do azoto.

A onda verde e o presidente negro
A primeira edição de Onda Verde saiu em 1921 pela Monteiro Lobato & Cia. São reportagens sobre a "onda verde" dos cafezais a cobrirem as terras agricultáveis de São Paulo. O Choque das raças, foi publicado em 1926, em vinte partes, no jornal A Manhã, onde era colaborador, e no final desse mesmo ano lançado em livro pela Editora Nacional.

Duas décadas mais tarde seria reeditado com o título de Presidente Negro ou O choque das raças (romance americano do ano 2.228). Em 35 foi publicado na Argentina pela Editorial Claridad. Em 1948, quando a Brasiliense editou as obras completas, juntou os dois num só volume.

Lobato escreveu O Choque pensando em lançá-lo nos Estados Unidos, porém lá acharam que era conflitivo. É seu primeiro e único romance. O que mais chama a atenção no livro é a capacidade de Lobato em desvendar o futuro. Ele mesmo diria mais tarde que os Estados Unidos que ele descreveu no livro são os Estados Unidos que ele depois ficou conhecendo.

Em A Onda Verde, descreve o papel do "grilo" na ocupação territorial de São Paulo e sua indignação com o Homo sapiens por seus crimes sociais e ecológicos, lançando um apelo a todos os animais: "Animais todos da terra, uni-vos..."

Crônicas e artigos de A Onda Verde: A onda verde - O grilo - A lua córnea - O incompreendido - Veteranos do Paraguai - Os eucaliptos - Os tangarás - O pai da guerra - Homo Sapiens - Luvas - Dramas de crueldade - Dialeto caipira - Os livros fundamentais - Condes - Uruguaiana - O dicionário brasileiro - O 22 da Marajó - A arte americana.

Na antevéspera
Com o subtítulo Reações mentais dum ingênuo, a primeira edição data de 1933, pela Editora Nacional. É o estado d'alma do autor nos tempos da presidência de Bernardes e começos da de Washington Luís. Nas obras completas o livro é acrescido de escritos de épocas anteriores e/ou posteriores a esse tempo, o que os editores justificam pela necessidade de equilibrar a matéria dos vários volumes.

Neste livro, diz o prefaciador da primeira edição (talvez o próprio Lobato) "está enfeixada uma serie de reações ocorridas num período bem atormentado da vida brasileira. Todos sentíamos um terrível e indefinível mal ambiente. Um cheiro de fim. Era a República Velha que ia agonizando na presidência de Bernardes"....

Conteúdo: Manuelita Rosas - O primeiro livro sobre o Brasil - País de tavolagem - O hipogrifo - Fala Jove - Uma opinião de M Jerôme Coignard - Bacilos vírgula - Idéias russas - Doloi Stiid - O drama do brio - Literatura de cárcere - Novo Gulliver - O Pátio dos Milagres - Vatel - O nosso dualismo - Herói nacional - A feminina - O bocejo de leoa - Catulo - voz da terra - Justiça oxigenada - As cinco pucelas - A moda futura - Plágio post-mortem - Amigos do Brasil - O inimigo - A rosa artificial - O perigo de voar - Forças novas - Em pleno sonho - A influência americana - Krishnamurti - O direito de secessão - O grande problema - A grande idéia - O armistício d Catanduva - O bombardeio de São Paulo - O cabeça chata - O despique - Euclides, um gênio americano - A mata virgem - Ariel e a Rainha Mab - Uma visita a Guiomar Novais - O saco de carvão - D. Bosco e o petróleo - Estradas - A pucela de Indiana - Azoteida.

O escândalo do petróleo e ferro
O Escândalo do Petróleo foi escrito e publicado em 5 de agosto de 1936 pela Editora Nacional. Os cinco mil exemplares sumiram como pão quente. Em 14 de agosto soltaram uma Segunda edição com mais cinco mil que também desapareceram, levando os editores a lançar a terceira edição com dez mil exemplares.

O livro tinha uma dedicatória às Forças Armadas brasileiras dizendo: "Exércitos, marinhas, dinheiro e mesmo populações inteiras nada valem diante da falta de petróleo". O livro é um protesto indignado contra a burocracia federal que "não perfura, nem deixa que se perfure" para encontrar petróleo, e uma denúncia à ação das grandes empresas estrangeiras assim como a submissão de nossas elites aos interesses delas. Quando reunido nas obras completas da Brasiliense esse livro já estava na sua décima edição.

O Ferro completa esse volume com o relato da luta de Lobato para o uso de solução brasileira para a exploração do minério do ferro. Para ele, Volta Redonda não era a solução mais apropriada e defendia que o grande futuro da nossa siderurgia estava na redução dos óxidos de ferro em baixa temperatura. A primeira edição desse livro é de 1931 e foi outro grande sucesso de vendas.

No prefácio do volume que reúne esses dois livros, o editor, Caio Prado Jr., destaca que "o seu pensamento (de Lobato) não ficou pairando no mundo dos sonhos e dos projetos e prédicas. Transformou-se em ação; e seu ideal de melhorar a sorte do povo brasileiro, de regenerar o seu Jeca Tatu, materializou-se num negócio de grandes perspectivas e amplas possibilidades".

Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital
A primeira edição de Mister Slang e o Brasil - colóquios com o inglês da Tijuca -, foi publicada pela Editora Nacional em 1927. Slang é o velho inglês que em longos bate-papos com um carioca vai tecendo críticas ao modo de governar brasileiro e denúncias aos males da ditadura de Bernardes...

Problema Vital reúne série de artigos publicados no Estado de SP em 1918 e tem como epígrafe: "O Jeca não é assim: está assim". Aqui Lobato resgata a figura do caboclo e reafirma sua fé no brasileiro impedido de construir uma grande nação por uma elite predadora. Suas denúncias sobre o estado da saúde do povo provocaram grande repercussão na opinião pública obrigando o governo a adotar providências.

Sumário: 1º parte, Mr Slang - advertência - Da balbúrdia de idéias - Da maçaroca - De outras opiniões do Manoel - Do cruzeiro e outras miudezas - Do carpinteiro de Southdown - Do período ciclônico - Da indústria da repressão - Da camisola de força - Da proteção à incompetência - Do capítulo que faltou - Da Estrada Alegre - Dos direitos imorais - Do prasitismo camuflado - Da cabeça e da mão - Da importação de cérebro - De frutas e livros - Dos ladrões - Do suplício da senatoria - Das elites - Dos trinta homens - Nota final.

2º parte, Opiniões - Psicologia do jornal - Audiências públicas - O padrão - A moeda de borracha - Gânglios pensantes - A cegueira naval - Loucura - Guerra do livro - Artur Neiva - Resignação - A morte do livro - A desencostada - Assessores - Vacas magras e gordas - A maravilha do Calabouço - O quarto poder - Honni soit.
3º parte, Problema Vital - A ação de Osvaldo Cruz - Dezessete milhões de opilados - Três milhões de idiotas - Dez milhões de impaludados - Diagnóstico - Reflexos morais - Primeiro passo - Déficit econômico, função do déficit da saúde - Um fato - A fraude bromatológica - Início de ação - Iguape - A casa rural - As grandes possibilidades dos países quentes - Jeca Tatu.

América
Neste livro Lobato revive o personagem inglês Mr Slang e com ele percorre os Estados Unidos, mostrando a pujança daquele país, tecendo comparações, buscando soluções que possam servir para tirar o Brasil do atraso. Depois de passar 4 anos nos Estados Unidos, Lobato volta ao Brasil para dedicar-se inteiramente a lutar pelo petróleo e pelo ferro. A primeira edição foi lançada pela Editora Nacional em 1932.

Mundo da Lua e Miscelânea
A primeira edição de Mundo da Lua saiu em 1923 e reúne uns escritos de Lobato em um diário de sua juventude. Na edição das obras completas, foram acrescentados outros escritos posteriores e que ajudam a compreender a mocidade do autor. Miscelânea, também acrescentado a esse volume contém série de artigos sobre pessoas e impressões sobre viagens pelo interior do Brasil.

Primeira parte, Mundo da lua - trechos de um diário. Segunda parte, Fragmentos - trechos de um diário. Terceira parte, Miscelânea - Traduções - Processos americanos - Primeiro amor - A dourorice - Alice in the Wonderland - O segredo de bem escrever - Fim do esoterismo científico - Pearl Harbour - Pelo Triângulo Mineiro - Paulo Setúbal - Moeda aregressiva - La moneda rescindible - Planalto - Um romance que prenuncia outro - De São Paulo a Cuiabá - A cidade dos pobres - Júlio César da Silva - Apelo aos nossos operários - A geada - Mais estradas - Jesting Pilate - Quem é esse Kipling? Machado de Assis.

A barca de Gleyre
Com a epígrafe "Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Vai de 1903 a 1948. O próprio Lobato se espanta: "quarenta anos do mesmo amigo e mesmo assunto, que fidelidade... E a conseqüência foi se tornarem uma raríssima curiosidade". Lançada em 1943 é a última obre de Lobato na Editora Nacional.

O autor explica que carta não é literatura, é algo à margem da literatura... Porque literatura é uma atitude - é a nossa atitude diante desse monstro chamado público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com elegância, arte, pronomes no lugar e sem um só verbo que discorde do sujeito. O próprio gênero memórias é uma atitude: o memorando pinta-se ali como quer ser visto pelos pósteros - até Rouseaau fez assim - até Casanova.... Mas cartas não... Carta é conversa com um amigo, é um duo - e é nos duos que está o mínimo de mentira humana.

Prefácios e entrevistas
O enorme sucesso de Lobato como escritor o fazia ser constantemente procurado por intelectuais e escritores que queriam associar seus nomes ao de Lobato para conquistar o público, e por jornalistas de todas as partes, principalmente durante a ditadura. Lobato dizia que se responsabilizava unicamente pelas entrevistas escritas de seu próprio punho. Como nunca estava satisfeito com as versões publicadas, parou de receber jornalistas.

Esse volume, com prefácio de Marina de Andrade Procópio de Carvalho, reúne 20 prefácios e 17 entrevistas.

Sumário: prefácio de Marina de Andrade Procópio - Prefácios (para os seguintes livros): Ipês, de Ricardo Gonçalves - Antologia de contos humorísticos - Seleta de contos brasileiros, organizada por Lee Hamilton - Contas de capiá, de Nhô Bento - Éramos seis, da Sra. Leandro Dupré - Luta pelo petróleo, de Essad Bey - Aspectos de nossa economia rural, de Paulo Pinto de Carvalho - Diretrizes para uma política rural e econômica, de Paulo Pinto de Carvalho - Nos bastidores da literatura, de Nelson Palma Travassos - Serpentes em crise, de Afrânio do Amaral - Nós e o universo, de Urbano Pereira - Bio-perspectivas, de Renato Kehl - Gilberto Freyre, de Diogo de Melo Menezes - Cartas para outros mundos, de Álvaro Eston - O pecado original, de Rocha Ferreira - Falam os escritores, de Silveira Peixoto - A sabedoria e o destino, de Maurice Maeterlinck - Uma revolução econômico-social, de Otaviano Alves de Lima - Prefácio de paraninfo na formatura de contadores de uma escola de comércio - carta-prefácio aos Poemas atômicos, de Cesídio Ambrogi.

Entrevistas: O Brasil às portas da maior crise de sua história - Inglaterra e Brasil - Um governo deve sair do povo como o fumo sai da fogueira - Entrevista com Silveira Peixoto - Resposta a uma "enquete" da Mocidade Paulista - Faz vinte e cinco anos... - Monteiro Lobato fala sobre o problema judaico e outros assuntos - Insultos ao Brasil - Eu sou um homem sem função - Entrevista ao Correio Paulistano sobre a beca na Academia Paulista de Letras - As orelhas de Vasco da Gama - Lobato, editor revolucionário - Monteiro Lobato na torre de marfim - Um mundo sem roupa suja ... Que fazer da Alemanha depois da guerra? - Quando era proibido entrevistar Monteiro Lobato.

Conferências, artigos e crônicas
Reúne, segundo os editores, uma pequena parte da colaboração de Monteiro Lobato espalhada por jornais e revistas do País, ou apenas divulgada em pequenos folhetos, além de alguns textos inéditos. Da leitura desse volume, os leitores podem ter uma visão mais rica da ação de Lobato nos variados setores para onde convergiu seu talento.

Sumário: Prefácio - Conferência em Ubatuba - Conferência em Belo Horizonte - Prefácio a "No Silêncio" - Prefácio a "Minha vida e minha obra"- Sobre poesia e poetas I, II, III - Vida Ociosa - Discurso de agradecimento - Saudação a Horácio Quiroga - Torpilhar - O teatro brasileiro - Fantasia - O mais velho dos escultores: O acaso - Pedro Alexandrinho - O doutor Quirino - O cigarro do Padre Chico - A evolução das idéias argentinas - A hora perigosa - A glória - Estradas de rodagem - São Paulo e o Brasil - Reconstruir a casa - Como países se suicidam - A nossa doença - Confissões ingênuas - Fradique Mendes - Eu tomo o sol - A criança é a humanidade de amanhã - Mensagem à mocidade do Brasil - De quem é o petróleo da Bahia? - Georgismo e Comunismo - O planejamento do futuro - O visconde científico - História do rei vesgo - Entrevista coletiva - Zé Brasil - A última entrevista.

Literatura do minarete
O "Minarete" era o nome que Lobato e seu grupo de amigos mais chegados davam ao chalé onde realizavam suas tertúlias. Depois serviu para batizar um jornal que seu amigo Benjamim Pinheiro lançou em Pindamonhangaba, onde todos colaboravam. O editor reuniu nesse volume das obras completas os textos que Lobato publicara em diversos jornaisinhos na juventude enquanto estudante de direito.

Sumário: Outrora e Hoje - Juro! - A cor - O charuto - Rubis - Tio Pedrosa - Falta de assunto - Os lambe-feras - Da janela - Fragmento - Como se escreve um conto - A todo transe - A fuga dos ideais - Crônicas teatrais - Tão ingênua! - Diário dum esquisitão - Memórias de um velho - Assombro - Psicologia do sono - Futebol - Na roleta - En Tigelópolis - Sara Bernhardt - Um Giles moderno - A poesia japonesa - O queijo de Minas ou História de um nó cego - Filosofias - Em casa de Fídias - Duas dançarinas.

Cartas escolhidas.
Em dois volumes, com prefácio de Edgard Cavalheiro, reúne farta correspondência de Lobato, desde 1895 até 1948. Ao incorporar essas cartas às obras completas os editores quiseram ampliar os subsídios para a compreensão do homem e do escritor. Nas palavras de Edgard Carvalheiro - "Que as novas gerações extraiam destas páginas as lições que elas encerram. Nada do grande homem é sonegado nestas cartas. Elas refletem uma personalidade realmente invulgar. E despida de todo o aparato das biografias. O homem-Lobato está vivo, palpitante, nestes volumes".


Fontes:

http://www.projetomemoria.art.br/ MonteiroLobato/bibliografialobatiana/bibliot.html

Monteiro Lobato (Conto: O Colocador de Pronomes)

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no "Itaoquense" , com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o flechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Tiburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Tiburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd'aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores - o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d'Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela...

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou...

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!
Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto - para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

- A família Tiburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca - nunca, ouviu? - que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

- É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

- Laurinha, quer o coronel dizer...

O velho fechou de novo a carranca.

- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-"lhe". Se amasse a ela deveria dizer amo-"te". Dizendo "amo-lhe" declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher...

- Oh, coronel...

- ... ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa - quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa - a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa - de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

- Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo - empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía - Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...

Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar.
Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor - mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar "pomos de Hesperides" na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

- Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

- A ingresia d'hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

- Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

- Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

- Teve lugar ontem... É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

- ... no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava - a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório...Tarelos é que são, tarelos!

E suspirava deveras compungido.

- Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d'antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma - Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à... adivinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...

- Mas a evolução...

- Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a "evolução" darwinica, os vocábulos macacos - pitecofonemas que "evolveram", perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

- "Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...

Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

- Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n'alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos "galicígrafos de papel e graxa". Transigiu e, breve, desses "pulmões da pública opinião" apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os "periódicos" fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

- Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

- Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu a fim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

- Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da "Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos".

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os "afeites" do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

- Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...

Aldrovando empertigou-se.

- Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

- Hei - de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja... Salta rumor!

E foi-lhes "empós", Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a "asnidade", ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta - "Ferra-se cavalos" - escoicinhava a santa gramática.

- Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção...

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

- Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

- ? ? ?

- Que reformes a tabuleta, digo.

- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

- Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz...

- Digo que está a forma verbal com eiva grave. O "ferra-se" tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é "cavalos".

O ferreiro abriu o resto da boca.

- O sujeito sendo "cavalos", continuou o mestre, a forma verbal é "ferram-se" - "ferram-se cavalos!"

- Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que ...

- ... que "ferra-se cavalos" é um solecismo horrendo e o certo é "ferram-se cavalos".

- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele "se" da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos - Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

- Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum "m" ali...

- Se V. S. paga...

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do "m" com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o "m" do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina adentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

- Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

- "Sancta simplicitas!" ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou...

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

- Não hei - de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa...

Pronto o primeiro tomo - Do pronome Se - anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...

Que vinha vindo mas não veio, aí!... As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo "Não é vendável"; ou: "Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n'alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

- Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém - até os fados conspiram contra a língua! - e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo ...d'aquele que sabe-me as dores... E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI - Do método automático de bem colocar os pronomes - engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o "914" da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa adentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

- Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele "Me" tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao "doente".

- Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

- Isto no "sebo" sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
"daquele QUE SABE-ME as dores".

- Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

- "que sabe-me"...

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor - dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia - permaneceu imóvel uns momentos.
Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

- Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos - nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

Paz à sua alma.

1920

(1) Octave Mirbeau - Journal d'une Femme de Chambre.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Sebos, o destino dos livros (Gilfrancisco)

Bibliófilos e discófilos constituem uma seita que ama livros e discos acima de todas as coisas. Eles reviram sebos à procura de raridades, podem não ser nem muito eruditos nem muito importantes. Freqüentadores assíduos dos sebos – lugares onde, aos sábados, vários intelectuais também fazem ponto de encontro – eles passam horas, às vezes dias inteiros, garimpando seus “tesouros”, como costumam chamar suas obras raras.

Nos sebos há um pouco de tudo. Vale a lei da oferta e da procura. Vamos encontrar também, volumes gastos, maltratados ou sujos, edições amareladas, poeira fina, páginas rotas e preços às vezes baixos. Portanto, para quem gosta de livros o salão de festas é uma livraria ou uma biblioteca, pública ou particular.

O acervo dos sebos é formado principalmente pela aquisição de bibliotecas. A morte acaba levando os parentes a se desfazerem dos livros, seja pela dificuldade de manutenção ou simplesmente para se livrarem dos objetos que despertam saudades.

Livros ocupam espaços e os apartamentos são cada vez menores, inclusive na altura, que era por onde as estantes podiam espalhar-se. As vezes, os descendentes não tem os mesmos interesses intelectuais que o chefe da família.

As constantes mudanças de casas para apartamentos pequenos também costumam motivar as pessoas a abrirem mão de suas bibliotecas. E há aqueles proprietários, com cara e coragem, vão importunar logo a viúva ou os filhos do colecionador, e em troca de mísera quantia, transformam o seu estabelecimento em entreposto onde os bibliófilos saciam um pouco de sua sede de saber ou da mania de ter coisas... Uma coisa é certa, não é por questões financeiras, as pessoas que têm boas bibliotecas não necessitariam do pequeno rendimento que a venda de seus livros lhes proporcionaria.

Os sebos, tradicionais comércios de vendas, compras e trocas de livros usados, e que em outras cidades é apenas isso mesmo – comércio, embora trabalhando com mercadoria cultural – que aos poucos vai adquirindo traços de verdadeiro movimento cultural em ascensão, trazendo expectativas de um redimensionamento não só aos que trabalham no ramo mas aos próprios caminhos do comportamento de quem impulsiona a cultura.

O comércio de livros usados se perde na noite dos tempos em todos os países de tradição editorial ele existe, como oportunidade de se encontrar obras raras e esgotadas a preço barato. Em Paris, é denominado de “bouquinerie”, e todo turista que visitou a capital francesa conheceu o pitoresco da fileira de bancas de livros às margens do rio Sena.

No Brasil, os estabelecimentos deste tipo receberam a denominação “sebos”. Nas grandes cidades brasileiras, certas ruas e bairros caracterizam-se pela proliferação deles. É o caso do bairro de Pinheiros, em São Paulo ou o da rua São José, no Rio de Janeiro, que durante muito tempo teve esta característica, de rua dos sebos.

Sebo é enriquecimento cultural: é um local onde se encontra material de vanguarda tradicionalista. Sebo é também antropologia: o livro usado é a história de um leitor, com anotações, frases sublinhadas e história muitas vezes documentada em fotos e documentos familiares esquecidos em páginas passadas e repassadas, e que sebistas sensíveis e atentos já estão colecionando e catalogando em pastas apropriadas. Existe até um Guia de Sebos Brasileiros, que teve sua 1a. edição em 1990.

É ainda nos sebos que vão parar alguns dos volumes roubados das Bibliotecas Públicas, do Arquivo Público, do Instituto Geográfico e Histórico, da Academia de Letras, de Instituto e colégios particulares – como atestam os respectivos carimbos.

Já é tempo de que o humanismo dos sebos seja reconhecido em seu papel social e cultural. Que as pessoas aprendam a ter na palavra “sebo”, quando se trata deste tipo especial de comércio, não mais uma palavra agressiva e feia, e sim algo que recorde bons momentos de convivência com estes amigos fiéis e sábios: os livros, os discos, as revistas...

Num país que a crise econômica vem transformando o hábito de ler num verdadeiro luxo, uma saída para não pagar os preços de ficção científica cobrados pelas livrarias é comprar nos sebos. Hoje, os sebos não são só dos caçadores de livros raros ou das classes mais pobres. O universo de consumidores cresceu e sebistas continuam ampliando seus negócios.

Nesses pontos se vendem, se compram e se trocam livros de literatura, filosofia, história, didáticos, enfim, de todas as especialidades e até mesmo pornográficos. Revistas e também coleção de jornais podem ser encontrados.

Não há preço fixo no sebo. Tudo está aberto a negociação. “O preço, agente discute”, diz um proprietário. Para os sebistas conta muito a curiosidade do freguês. E se alguém demonstrar necessidade e urgência em adquirir um certo volume, o sebista anota tudo com a sua psicologia básica. Neste caso o livro é valorizado. O sebista tem faro para negócio, percebe o tipo de freguês e até a forma como paquera um livro usado. Por este motivo é que se questiona o item”raridade de um volume”. O que pode ser raro para um, pode ser figurinha fácil para outro.
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Gilfrancisco é jornalista, pesquisador e professor universitário.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/sebo

O Conto - como fazer

Teses sobre o conto
(por Ricardo Piglia )
1. Num de seus cadernos de notas Tchekov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tchekov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchekov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".
A história do suicídio no argumento de Tchekov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchekov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

O CONTO

Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias venha acompanhando a humanidade em sua trajetória no espaço e no tempo. Em que momento o primeiro agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes de atrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, no rastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ou um momento de prazer?

O que se pode afirmar é que todos os povos, em todas as épocas, cultivaram seus contos. Contos anônimos, preservados pela tradição, mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a história, iluminaram as noites dos tempos.

De Sherazade (uma voz de mulher que conta mil e um contos nas Mil e uma noites, fazendo, dessa forma, a compilação dos contos mais conhecidos no final da Idade Média) aos contistas contemporâneos, a narrativa curta tem sido observada com especial interesse.

A fórmula de compilação e narração de contos até então mantidos no ideário popular adotada nas Mil e uma noites foi largamente adotada e repetida por muitos autores nos anos subseqüentes (Veja-se, por exemplo, o Decamerão, de Bocaccio).

Aos poucos, novas modalidades de contos foram surgindo, diferenciando-se dos contos infantis e dos contos populares, regidos agora por uma nova maneira de narrar, de acordo com a época, os movimentos artísticos que essa época produziu e o estilo individual do autor/narrador.

Luzia de Maria, no volume O que é conto, da coleção Primeiros Passos, introduz seu leitor na discussão das várias modalidades de conto, começando por distinguir “o conto como forma simples, expressão do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitido de gerações a gerações e o conto adquirindo uma formulação artística, literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem para o universo do estilo individual de um certo escritor”. [1]

E surgiram os contos de humor, os contos fantásticos, os contos de mistério e terror, os contos realistas, os contos psicológicos, os contos sombrios, os contos cômicos, os contos religiosos, os contos minimalistas, os contos estruturados de acordo com as técnicas da narrativa.

Ricardo Piglia assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em entrelaçar ambas e, só ao final, pelo elemento surpresa, revelar a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira se desenrola. As duas histórias encontram-se nos pontos de cruzamento que vão dando corpo a ambas, embora o que pareça supérfluo numa seja elemento imprescindível na armação da outra.

A história visível e a história secreta, segundo ele, recebem diferentes tratamentos no conto clássico e no conto moderno. No primeiro, uma história é contada anunciando a outra; nos contos modernos, as duas histórias aparecem como se fossem uma só.

Na forma reduzida do conto, a intensidade da busca: “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta.” [2]

As qualidades que lhe são apontadas são a concisão e a brevidade, ou seja, é estruturado com uma linguagem densa, com o máximo de economia de palavras. Sua dimensão se dá no sentido da profundidade.

O conto de feição clássica se organiza numa cadeia de acontecimentos que centralizam o poder de atração, apresentando, conseqüentemente, ação, personagens, diálogos. Caracteriza-se como narração de um episódio, uma única ação, com começo, meio e fim, concentrado num mesmo espaço físico, num tempo reduzido. Destaca-se por sua unidade de tempo e de ação.
O conto contemporâneo, reflexo da nova narrativa que se foi construindo nas últimas décadas, substituiu a estrutura clássica pela construção de um texto curto, com o objetivo de conduzir o leitor para além do dito, para a descoberta de um sentido do não-dito. A ação se torna ainda mais reduzida, surgem monólogos, a exploração de um tempo interior, psicológico, a linguagem pode, muitas vezes chocar pela rudeza, pela denúncia do que não se quer ver. Desaparece a construção dramática tradicional que exigia um desenvolvimento, um clímax e um desenlace. Em contrapartida, cobra a participação do leitor, para que os aspectos constitutivos da narrativa possam por ele ser encontrados e apreciados. Exige uma leitura que descortine não só o que é contado, mas, principalmente, a forma como o fato é contado, a forma como o texto se realiza.

1- REIS, Luzia de Maria R. O que é o conto. São Paulo: Brasiliense. 1987, p.10.
2. PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.

Ricardo Piglia é escritor argentino, autor de, entre outros, "Respiração Artificial" (Iluminuras) e "Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado originalmente em "O Laboratório do Escritor" (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/comofazer

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

Referendado como o Poeta da Morte, dos cemitérios, dos ossos e da carne em putrefação, Augusto dos Anjos, ao contrário do que muitos imaginam, segreda em sua obra poética uma filosofia esotérica libertária,capaz de nos guiar pela senda da mais pura transcendência.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão, esta pantera,
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Estes são seus "Versos Íntimos", escritos em 1906 pelo poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, a compor um dos mais declamados trabalhos deste enigmático discípulo de Baudelaire, cuja breve vida esteve marcada por um intenso questionamento filosófico, disseminado por toda a sua obra.

"Versos Íntimos" expõem, de modo formal e cruel, a nossa efêmera condição, fadados que estamos a nos prostrar na lama sepulcral não sem antes experimentarmos toda a sorte de sofrimentos advindos do relacionamento humano.

Só mesmo a perfeição faria toda a filosofia Hobbeana, a considerar o homem lobo do próprio homem, caber assim metrificada nos catorze versos (geralmente dois quartetos e dois tercetos) decassílabos heróicos - 6a e 10a sílabas são tônicas - de um único soneto. O poeta observa laconicamente o definhar de nossos sonhos, lembra-nos a todos de que a ingratidão é o natural presente que nossas mãos estão acostumadas a receber por toda a vida, e nos adverte acerca das traições a que estamos sempre sujeitos, considerando por isso inútil qualquer espécie de remorso que possamos sentir esboçar-se em nosso peito. São versos realistas, eivados de um pessimismo desconcertante, a reproduzir o comportamento da sociedade hipócrita à qual estamos condenados desde o nascimento.

Por dizer verdades como estas, Augusto dos Anjos pagou seu preço. Sua poesia, considerada por muitos impressionista, não agrada à maioria, posto que seus versos rasgam as principais feridas da natureza humana, não acostumada a falar da morte sem estremecer, pouco disposta a observar os erros de sua maneira absurdamente competitiva de viver.

Entretanto, se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra, encontraremos não obstante os termos difíceis por onde esbanja o cientificismo, toda uma mística que lhe serve de arcabouço, inequívoca função compensatória para o pessimismo declarado do poeta, sempre a questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em alguns de seus sonetos e outras partes não tão popularizadas de seus versos, deparamo-nos com um caráter filosófico ocultista absolutamente singular em toda a literatura brasileira, com genuínas reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por uma religiosidade espiritualista, voltados para a libertação e transcendência desta nossa alma, a mesma que, no mais das vezes, vive atormentada.

Augusto dos Anjos nasceu aos 20 de abril de 1884 no engenho do Pau-d’Arco, na Paraíba do Norte. Criado no seio de um austero regime patriarcal, o poeta veio ao mundo em época tumultuada, quando a sociedade assistia ao crescimento dos movimentos abolicionista e republicano que se contrapunham à decadente monarquia de fim de século. Filho do advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e de D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, Sinhá Mocinha para os íntimos, foi alimentado na primeira infância pelo leite da escrava Guilhermina, a quem dedicaria anos mais tarde o soneto "Ricordanza della mia Giuventú"

Augusto, terceiro filho de uma prole de seis, não cursou escola alguma até seus 16 anos, quando iniciou sua produção literária. Recebeu do próprio pai, junto de seus irmãos, todas as lições de humanidades. Somente o caçula não pôde ser educado pelo "Dr. Alexandre", vitimado que fora o genitor pela paralisia geral em 1905, ano em que faleceu; e foi o próprio Augusto quem se encarregou de ensinar o irmão menor. Ao pai, dedicou três sonetos na ocasião: "A meu pai doente", "A meu pai morto", e "Ao sétimo dia de seu falecimento". A família reunida, tomava lições às sombras do tamarindo, árvore que marcou a vida de Augusto, considerada membro da família, sob a qual o jovem se sentava para ler, estudar, e compor seus versos. A "árvore de amplos agasalhos" acha-se homenageada nos sonetos "Debaixo do Tamarindo" e "Vozes da Morte" entre outros, peças de elevada sensibilidade.

Dr. Alexandre era um misantropo. Por nada trocava a quietude de sua vida doméstica, e passava seus dias lendo, sempre alienado das questões administrativas do engenho, que ficavam a cargo de seu primo, Dr. Aprígio, monarquista de índole racista e reacionária. Alexandre era homem ilustrado, dono de vasta biblioteca. Títulos de todos os gêneros incluíam os hinos sagrados do "Rig Veda", cujo nome sânscrito significa "saber", e o "Phtah-Hotep", livro egípcio de sabedoria reputado à V dinastia, cerca de 2400 a.C. Augusto os menciona em seu soneto "Agonia de um Filósofo". O acervo abrangia obras filosóficas, poesia, literatura clássica, códigos do Direito, livros nacionais e obras importadas da Europa que chegavam por navio, escritas em todas as línguas latinas, inglês e alemão, além dos dicionários e das gramáticas de grego e latim. Todos liam de tudo naquela casa, até faziam circular internamente três jornais escritos à mão pelos próprios membros da família, "O Miserável", "O Espinho", e "O Ourinol da Tarde", este último temido pelo tanto de pilhérias que trazia, dirigido com bom humor pelo conservador Dr. Aprígio. Neles, semanalmente, "publicavam-se" crônicas, comentários políticos, opiniões, receitas, enigmas e charadas, além de verdadeiras disputas literárias. Lamentavelmente, deles nada resta; nenhum exemplar desta "imprensa sui generis" sobrou.

A família também se divertia promovendo sessões espíritas. Embora todos ali se intitulassem católicos fervorosos, a virada do século trazia em seu bojo a febre das sessões espíritas, muito praticadas na Europa em torno de manifestações curiosas que alimentavam a crença nos espíritos desencarnados, capazes de interferir em nosso mundo e nos trazer mensagens do além. Augusto dos Anjos não perdeu tempo e resolveu investigar o outro mundo por si mesmo. Passou a promover as sessões na sala de jantar de sua casa, para o desespero de sua mãe que, nestas horas, se agarrava ao terço ou recitava o responso de Santo Antônio, temendo o sobrenatural. Conta-se que Augusto logo passou a ser visto como médium qualificado. Certa feita teria recebido o espírito de Gonçalves Dias que poetou na melhor da verve maranhense. Não houve quem duvidasse da autoria dos poemas psicografados.

Mas convém lembrar que Augusto bem conhecia o estilo dos grandes poetas, ele próprio era repentista nato, capaz de fazer sonetos de cabeça em questão de dois ou três minutos, para só depois transcrevê-los num papel. Porém, nessa época, o Pau-d’Arco foi assolado por medos de assombração de toda gente. A família presenciara fenômenos no estilo Poltergeist na casa grande, eram batidas que à noite assustavam. Na capela do Pau-d’Arco (também cemitério), pegada à casa, surgiram manchas de gordura em seus ladrilhos, às quais o poeta chamou de "óleo malsão". A família estava atarantada. À noite não havia quem abrisse as janelas com medo dos espíritos, e os empregados se apavoraram por conseguinte, julgando que a gordura que escorria na capela era dos espíritos perturbados que haviam acordado com as sessões praticadas por Augusto. Dona Mocinha tomou atitude enérgica e proibiu as tais sessões. Nas "Cismas do Destino", o implicado perpetraria as pancadas que os atemorizavam:

"Todas as divindades malfazejas,
Siva e Ahriman, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas".

No ano de 1900 matricula-se no Liceu Paraibano, e após rápida passagem pelos bancos escolares presta exames para a Faculdade de Direito de Recife, sendo facilmente aprovado em 1903. Fez o chamado curso vago, estudava no Pau-d’Arco e ia a Pernambuco apenas cumprir as provas que, em seu caso, eram mais severas e incluíam todos os pontos do início ao fim do curso. Nesta época é influenciado pelo positivismo de Comte, propalado aos quatro cantos por seu professor, Tobias Barreto.

O poeta formou-se em 1907, mas, igual ao pai, não exerceu a profissão. Em 1908 é nomeado professor de literatura do Liceu Paraibano. Também passa a dar aulas particulares que serão seu ganha pão, uma vez que a família, por conta das crises econômicas e da vertiginosa baixa do açúcar no mercado internacional, viu-se obrigada a hipotecar seus dois engenhos, para os perder definitivamente em 1910. Neste mesmo ano, aos 4 de julho, casa-se com Ester Fialho, de quem haverá três filhos. O primeiro deles foi um natimorto de sete meses a quem o poeta escreveu seu soneto "Agregado infeliz de sangue e cal...". Em 1912 mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, vivendo sempre em pensões baratas e ministrando aulas. Nasce sua filha Glória nesse ano, e no seguinte, Guilherme. Mas sua permanência no Rio seria curta, só serviria mesmo para empreender a publicação de seu livro.

Mas antes de falarmos dele, convém ainda citar outro nome, não muito importante, mas que exerceu certo fascínio sobre a juventude de Augusto. Foi seu tio Generino dos Santos, que não vivia no engenho. Ao visitá-lo provocava-o com os ideais libertários que, como maçon convicto e republicano extremado, professava. Era também defensor ferrenho do positivismo que, embora presente na obra augustiana, não absorveu toda a inquietação do poeta. Augusto fora buscar suas verdades mais além; transpondo o cabedal de toda a literatura clássica, leu Darwin, Leibnitz, também os alemães Spencer e Haeckel, e abraçou-se ao filósofo Schopenhauer, precursor da noção de inconsciente, que o conduziu às portas do brahamanismo e do budismo, temas centrais de Augusto, a denotar a espiritualizada busca de sua mente efervescente, acusada pelos incautos de ter sido meramente pessimista e mórbida.

Exemplo disso é o "Monólogo de uma Sombra"; são 31 sextilhas que abrem seu único livro intitulado "Eu". A primeira edição data de 1912; trazia 58 poemas em 131 páginas impressas pela Princeps da Guanabara, dois anos antes da morte do poeta. Foi custeado por seu irmão Odilon dos Anjos, e não vendeu o suficiente para ressarcir o investimento de 550 mil réis. Só a foto de Augusto, a figurar no livro, custou 50 mil.

O que a princípio possa parecer egolatria, em verdade revela um Eu em amplo sentido de expressão, repleto de conflitos, tomado por densas questões existenciais e uma preocupação permanente com a transcendência da alma. O Eu de Augusto mais parece ser um Eu profundo, distante do ego, e substancializado como essência. Por ele Augusto se apresenta aos leitores em pleno exercício de reflexão cosmogônica, à moda dos antigos pré-socráticos, que se perguntavam acerca do cósmico segredo, a respeito da substância de todas as substâncias. Perpassa por toda sua poética uma noção monista e panteísta do universo, isto é, uma idéia defendida também pelos gnósticos e alquimistas, cuja raiz se encontra no orfismo, de que tudo na natureza é vivo, mesmo a matéria inanimada, e de que cada uma de suas partes representa o todo. À moda schopenhaueriana, Augusto acreditava na expiação como forma de solucionar a perene luta entre as vontades, e aguardava pelo advento de uma humanidade redimida e pura, quando os homens valorizariam o sentido universal da vida em detrimento das questões egóicas e particulares da alma. Isto está bem claro em seu título "Os Doentes", onde encara a morte como mera etapa do processo ininterrupto da vida, a assinalar não o fim, mas uma continuidade ou recomeço de seu perene ciclo.

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do "Eu" — desde 1919 constantemente reeditado como "Eu e outras poesias" — um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular.

Augusto dos Anjos bateu também às portas do ocultismo e da teosofia, galgando a mesma senda de Fernando Pessoa, de quem era leitor. Pessoa tornar-se-ia divulgador da doutrina de Mme. Blavatsky em Portugal, tradutor que fora das obras teosóficas de Annie Beasant. A doutrina esotérica ocupava a mente do poeta paraibano, que também se interessou pela astrologia, mas sua breve existência não lhe deu o tempo para que se iniciasse formalmente nas Escolas de Mistério.

Esta sua mística, espécie de filosofia em forma de poesia inclassificável, destoante de qualquer escola literária, transborda por seus intrincados versos, científicos sim, mas sobretudo herméticos. Exemplos tácitos de sua espiritualidade poética, dentre tantos outros, são "O Lamento das Cousas", soneto schopenhaueriano que bem sintetiza os paradoxos atualmente pesquisados pela mecânica quântica; "O Meu Nirvana"; "Caput Immortale"; "Louvor à Unidade", soneto que privilegia a mônada de Leibnitz (ou pitagórica, se preferirem); "Supreme Convulsion"; "Natureza Íntima", verdadeira máxima alquimista, a de que a natureza evolui per si e também em decorrência do aprimoramento pessoal de cada um; "Ao Luar", soneto em que descreve aquilo que bem pode ter sido uma experiência sua fora do corpo, fenômeno este com que se preocupam hoje os parapsicólogos; e "Ultima Visio", no qual é a alquimia gnóstica quem se pronuncia.

Vejamos um dos melhores exemplos desta sua visão budista-panteísta, essencialmente presente em seu diálogo interno "Solilóquio de um Visionário", publicado na citada edição do "Eu":

"Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue, transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo.

Vestido de Hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!"

O poeta, evidentemente, está aqui às voltas com o eterno mistério da morte, ao qual classifica como "velho e metafísico". Caberia uma tese inteira somente sobre este soneto, mas indiquemos o essencial. Suas metáforas tratam mesmo de um corpo que, uma vez enterrado, libertaria sua alma. O poeta diz comer seus olhos crus avidamente, ou seja, imagina transpor seu olhar superficial sobre as coisas, seu entendimento comum da vida. Uma vez liberto dos limites impostos pela carne, ao completar sua "digestão", isto é, ao metabolizar suas reflexões sobre o labiríntico tema, o poeta tem suas impressões visuais (algo próprio dos sentidos físicos) substituídas por visões divinas, recurso dos que se elevam em suas orações, e que permitem perceber as coisas pela ótica superior de um habitante das alturas (íncola etéreo). Esta é a condição da alma "desprendida", que se veste de Hidrogênio incandescente (a maiúscula é alegorizante, sugere não o elemento químico, mas algo extraordinário), original metáfora para o estado anímico incorpóreo. Passa assim o poeta a vagar pelas monotonias siderais, talvez uma alusão ao interregno entre duas existências para todo aquele que, como Augusto dos Anjos, acredite na reencarnação. Mas ele vaga improficuamente, e o sem sentido de seu vagar se explica justamente por causa de sua atual condição, a de se achar encarnado, com a alma às escuras, pois é necessário que nesta existência a alma ainda aprenda mais!

Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me"), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"). A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa"). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma ("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").
Augusto dos Anjos, que nunca ficara doente em sua vida, foi tomado por uma pneumonia dupla de funesta proporção. Morreu assim, precocemente, aos 30 anos, em Leopoldina, aos 12 de novembro de 1914. Seu livro foi reeditado por seu amigo Órris Soares, acrescido de todas as suas outras poesias dispersas, em 1920. Desde então vem sendo o poeta nordestino mais lido, também o menos compreendido. Poeta não da morte, nem da carne em putrefação, mas sim da vida, capaz que foi de ver o mundo num grão de areia e de ouvir verdades ditas pelas pedras mortas

Fontes:

URBAN, Paulo. Augusto dos Anjos: O Poeta da Espiritualidade. Publicado na Revista Planeta nº 337 / outubro 2000. Disponível em


Conto de Ficão Cientifica: Lucy in the Sky with Diamonds

O que havia era um calmo "mar" escuro, que foi perturbado por um pequenino fio luminoso amarelado com bordas vermelhas. Depois foi ficando cada vez mais intenso; ofuscando a vista. Um arco incandescente começou a se formar com uma beleza indescritível; agora um pequeno ponto se destacava no centro da semi-esfera como um ponto mais luminoso. Logo a cabine ficou completamente iluminada, os raios amarelados entravam pela pequena janela e a cabine começava a ficar aquecida. A íris de Michelle se contraiu involuntariamente para se acostumar com a luz. Já estava em órbita há três meses, mas ainda se deslumbrava com o amanhecer visto a mil quilômetros da superfície terrestre. "Here comes the Sun", pensou Michelle.

Michelle teria que se preparar para mais um dia de trabalho; além de ocupar o cargo de Comandante da Estação Espacial LUCY, suas culturas de morangos estavam em um estado adiantado de desenvolvimento. Era impressionante como os morangos (e outros vegetais) se desenvolviam quando estavam "sem peso". Principalmente com um ambiente sob medida (luz, umidade e temperatura) e uma espécie de cortiça porosa que continha tudo aquilo que o melhor solo terrestre podia oferecer. Assim que a tecnologia fosse mais desenvolvida, a Terra teria "Campos de Morangos para sempre!!!" Pensava Michelle.

Para variar, outra cena cômica se deu durante suas abluções matinais. Hoje foi o sabonete que escapou para o teto. Resolvido o pequeno incidente, Michelle se dirigiu ao módulo cilíndrico "Miss Eleanor Rigby", que dava acesso à sala de exercícios. Ao passar pela cabine do Sargento Peppers, observou que ele, novamente, não havia prendido bem as amarras ao dormir, e estava no teto batendo levemente com a cabeça no duto de ventilação que o havia "sugado" lentamente durante a noite. Havia uma grande vantagem em uma Estação Espacial: se você perdesse alguma coisa, essa coisa iria invariavelmente se dirigir ao duto de ventilação.

Depois de uma hora na bicicleta ergométrica, Michelle se sentia melhor, já que ativara a circulação em seu corpo e exercitara suas pernas. A imponderabilidade, causava várias mudanças no corpo humano. Como o corpo está em queda livre, o sangue se dirige para a cabeça, deixando-a inchada, com os olhos vermelhos e o nariz entupido (por isso dizem que a comida de astronauta não tem gosto, o sentido do olfato fica muito debilitado em órbita); as pernas ficam finas, com o os músculos gelatinosos. A pessoa fica alguns centímetros mais alta, pois sua coluna vertebral não precisa sustentar o peso do corpo; o famoso "frio na barriga" é constante, já que o aparelho digestivo fica "flutuando". Outro problema é que o cálcio dos ossos escapa pela urina, deixando os ossos frágeis. Com a diminuição dos movimentos, consome-se menos oxigênio, diminuindo em até 20% o número de glóbulos vermelhos no sangue. Por essas e outras, é necessário uma dieta ricam em todos os tipos de alimentos e uma boa dose de exercícios.


Michelle estava pronta para mais um dia de trabalho. Encontrou com o Doutor Robert no caminho da sala de comunicações. Ele era o responsável pela saúde da tripulação. Michelle entrou no pequeno cilindro. Tinha que dizer a senha diária ao computador:

_"Yellow Submarine". Disse Michelle.

_Bom dia Cap. Michelle. Respondeu a Unidade de Inteligência Artificial (UIA).

_Bom dia Walrus. Respondeu Michelle.

_Cap. Michelle, acabo de receber uma mensagem.

_Não vá me dizer que você não tem a menor idéia de onde ela vem! Não vejo nenhum monolito por aqui! Disse Michelle em tom jocoso.

_Entendi sua observação Cap. Michelle... Meus bancos de dados possuem várias referências... Ficção Científica do século XX. Interessante, mas completamente absurda. Uma UIA é incapaz de fazer o que aquele HAL-9000 cometeu. Ironia, uma coisa curiosa exclusiva aos humanos. A mensagem é da Terra, é urgente.

_Me desculpe Walrus. Reproduza a mensagem, por favor. Disse Michelle com arrependimento. Mas logo se sentiu uma idiota, computadores não tem sentimentos. Pelos menos não deveriam ter...

A voz que saiu do auto-falante era impessoal e sem personalidade.

_Estação LUCY, atenção! Um acidente ocorreu com o Módulo de Transporte "Penny Lane". Um destroço de menos de 5cm de um antigo satélite se chocou com o giroscópio do Módulo. Eles perderam o alinhamento e passarão por uma órbita ao lado de vocês. O comunicador deles está avariado e o piloto automático se foi. O controle está manual.

_Que coisa! Ser atingido por um destroço no espaço é o mesmo que ser atingido por um meteorito na superfície da Terra! É impossível! Exclamou Michelle.

_Existem três casos registrados em meus bancos de dados com pessoas que foram atingi...

_Silêncio Walrus! Estabeleça contato com a Terra agora! Disse Michelle.
Alguns segundos depois, a Superintendente da Agência Espacial Mundial estava no visor da LUCY. Todas as atividades da Estação estavam suspensas. Foi instalado o regime de alerta total. Uma tripulação de 4 homens estava quase a deriva em órbita, e a única esperança era que o piloto encontrasse a Estação Espacial LUCY visualmente e atracasse com ela.

_Doutora Yoko. Como o Piloto irá ver a estação? Estamos na sombra da Terra; o Sol ainda está atrás de nós. Eles não recebem o rádio-farol; na certa está avariado também! Assim que o piloto ver nossas luzes, será tarde demais para ele manobrar em nossa direção e passará direto! A próxima vez que nos encontrarmos poderá ser tarde demais!! Disse Michelle com o rosto completamente molhado de suor (apesar da temperatura da cabine permancer em 22º Celsius) Apenas o Doutor Robert e o Sargento Peppers estava com ela na cabine.

_Ainda não sabemos!! A nave de resgate "Mystery Tour" só sairá em seis horas, e levará outras três para se encontrar com a "Penny Lane". Pelo radar, ela passará por vocês em trinta minutos, temos que pensar em alguma coisa. Recebemos uma leitura de que há vazamento de oxingênio na "Penny Lane". Disse a Doutora Yoko que ainda aparentava um rosto sonolento.

_Entre em contato conosco o mais rápido possível.

_Nossos melhores homens em Terra estão trabalhando numa solução. Entraremos em contato assim que tivermos uma idéia!

O monitor ficou escuro, refletindo apenas o reflexo perplexo da Cap. Michelle.

_Que ótimo! A batata quente está em nossas mãos! Disse Michelle fazendo um gesto de concha com as mãos.

Os dois homens se olharam e deram de ombros. Eles não tinham a menor idéia de como resolver esse sério problema. Michelle flutuava de um lado para o outro dentro da cabine. Perguntou ao Sargento Peppers se adiantaria ir até lá fora e fazer sinal com alguma lanterna. A resposta foi negativa. O Módulo de Fuga "Help" que ficava preso ao casco da estacão não possuía sistema de navegação. As comunicações por rádio estavam cortadas. Apenas as visuais, mas as luzes que possuíam não eram suficiente para avisar ao "Penny Lane" onde eles estariam. Michelle supirou.

_Cap. Michelle, a senhora deve se acalmar, tome um pouco de água fresca. Disse o Doutor Robert. Era estranho um senhor inglês de quarenta e setes anos se dirigir para uma bela jovem francesa de vinte quatro anos por senhora. Ne certa seria pelo cargo.

_Não me chame de senhora Doutor! E eu não estou com sede, estou com...Espere aí!

_O que foi? Perguntou Peppers.

_Água! É isso!!! Walrus, onde está o Sol? Quando os raios nos alcançarão? Disse Michelle com um expressão de quem havia visto um fantasma.

_O Sol está a 20º acima do horizonte terrestre. Os raios solares ainda não atingiram nossa órbita por estarmos indo a favor da rotação terrestre com uma defasagem de 35%. Quando os raios atingirem a Estação LUCY, o Módulo "Penny Lane" já terá passado da órbita em 2 minutos e 13 segundos. Respondeu o computador.

_Ótimo!! Walrus, abra as válvulas dos tanques de água 2 e 3. Disse Michelle.

_Com todo o respeito Cap. Michelle, mas a senhora tem certeza dessa ordem? Qual o motivo dela? Perguntou o Sargento Peppers.

_Não me chame de senhora! Depois eu explico! Walrus, execute a ordem!

_Sim Cap. Michelle. Respondeu o computador enquanto abria as válvulas. A água saía dos tanques que mantinham toneladas de pressão em suas paredes com uma fúria enorme.

A pressão externa era praticamete zero, fazendo com que o conteúdo dos tanques fossem "sugados" pelo vácuo do espaço numa avalanche.

_Paul!! Veja isso!! Quê diabos é aquilo?? Apontou o piloto Starr para a pequena janela da cabine de controle da "Penny Lane".

_Parece uma nuvem!! Uma nuvem aqui no espaço??? Ela brilha, como se fosse feita de milhares de pequenas luzes!!

_O que foi? Perguntou o Engenheiro Lennon que entrava naquele momento na cabine.

_Veja!! É a coisa mais linda que já vi!! Parece uma nuvem de pequenos "diamantes", milhares deles!! Um pequeno arco-íris está sendo formado!! Disse o pequenino piloto.

Os três homens ficaram em silêncio por alguns segundos paralizados pela visão que tinham através da pequena janela da cabine. O Capitão Paul colocou as mãos à cabeça e gritou:

_Mande George parar como os reparos!! Já sei o que é aquilo!! Starr, vá em direção da nuvem!!

_Em direção na nuvem? Mas...

_Faça o que mandei!!

Alguns minutos, no meio da manta brilhante que se formara no espaço, o piloto pôde ver as luzes da Estação LUCY.

_Lá está!! Conseguimos!! Agora é só levar a "Penny Lane" com cuidado. Mas o que é essa coisa brilhante? Perguntou Starr.

_Você ainda não descobriu? Disse Lennon.

_Acho que não. Me diga logo!!

_Bem só pode ser uma coisa!! Paul teve um palpite de que aquilo fosse alguma coisa vinda da Estação Espacial LUCY. A Estação sabia que estávamos por perto, mas não sabiam onde exatamente.

_Você ainda não disse o que é essa Nebulosa Brilhante!!! Disse o pequeno piloto com cara de raiva.

_Calma!!! Como eu disse, sabíamos que a Estação LUCY estava por perto. De repente uma nuven de pequenos "diamantes" começa a brilhar numa órbita próxima a nossa. Note que o Sol está atrás da nuvem. Essa nuvem só pode ter vindo de LUCY. Ao vermos os "diamantes", saberíamos de onde eles viriam. É só pensar!! Os "diamantes" são feitos de cristais de ÁGUA!! Na certa o capitão da Estação mandou abrir as válvulas dos tanques, que possuem milhares de litros. Assim que a água escapa para o espaço, acontecem duas coisas: a água evapora e congela ao mesmo tempo!! Como a pressão no vácuo tende a zero, o ponto de ebulição da água é baixíssimo, fazendo-a evaporar instantaneamente; mas como a temperatura no espaço é de 3 Kelvins (-270º Celsius), quase zero absoluto, a água congela!! Mas como eu disse, ela evapora milésimos de segundo antes e, congelando, se transforma em cristais de gelo, que, iluminados pelos raios do Sol que estão logo atrás, brilham e decompõem a luz, como pequenos prismas, fazendo aquele espetáculo maravilhoso que vimos a pouco.

_Puxa!! Como sou burro!! Disse o piloto Starr.

_Não se preocupe com isso, você ainda tem que se preocupar em fazer a junção com LUCY. Disse o Engenheiro Lennon.

Depois, tudo ocorreu perfeitamente bem. O Módulo de Transporte "Penny Lane" se conectou perfeitamente com a Estação LUCY graças a perícia de Starr. As duas tripulações se abraçavam e comemoravam com muita água e música de um antigo grupo de rock inglês do século XX. Afinal quatro astronautas escaparam por pouco da morte iminente graças a genial idéia da Cap. Michelle em transformar a região ao redor da Estação Espacial numa espécie de prisma gigante, espalhando luzes coloridas pelo espaço. No meio da escuridão quase completa, era óbvio que a tripulação da "Penny Lane" avistaria "LUCY no Céu com Diamantes!!!"

Fonte:
http://galaxiabr.vilabol.uol.com.br/lucyintheskywithdiamonds.htm

Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779 - 1868)

Vida

Beatriz Francisca de Assis Brandão nasceu na cidade de Vila Rica, então capital da província de Minas Gerais, atual Ouro Preto, a 29 de julho de 1779. Filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e de Isabel Feliciana Narcisa de Seixas. Dedicou-se à poesia, à prosa e à tradução, assinando-se apenas com o prenome à guisa de pseudônimo, D. Beatriz, no período em que colaborava para a Marmota Fluminense.

Depois de publicar seus versos no Parnaso brasileiro, os reúne em volume sob o título de Cantos da mocidade, em 1856. A segunda obra publicada foi Carta de Leandro a Hero, e Carta de Hero a Leandro, também no Parnaso brasileiro. Em 28 abril de 1868, já bastante conhecida, mereceu um artigo, no Correio Mercantil, intitulado "Prima de Marília", onde se lê que "D. Beatriz era um ânimo varonil e uma inspirada poetisa."

D. Beatriz dedicou-se também ao ensino. Dirigiu em Vila Rica um educandário para meninas. E participou da nossa imprensa, tendo publicado no Guanabara e na Marmota Fluminense, de 1852 a 1857.

Faleceu no Rio de Janeiro a 5 de fevereiro de 1868.

É a patrona da cadeira n° 38 da Academia Mineira de Letras e pertenceu à Sociedade Promotora da Instituição Pública da Cidade de Ouro Preto.

Obra:

Poesias. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1831. v. 2, cad. 5°, p. 27-38.

Carta de Leandro a Hero, traduzida do francês, e dedicada à Senhora D. Delfina Benigna da Cunha, e Carta de Hero a Leandro. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1832. v. 2, cad. 7°, p. 7-28.

Cantos da mocidade. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro,1856. v. 1.

Saudação à Ilma. e Exma. Sra. Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco. Poesia em versos hendecassílabos, que vem em um livro anunciado por B.X.P. de Sousa, em 1859.

Catão. Drama trágico pelo abade Pedro Metastásio, traduzido do italiano. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, 1860. É precedido de uma dedicatória em versos à princesa Dona Januária.

Lágrimas do Brasil. Poesia em versos hendecassílabos, no mausoléu levantado à memória da excelsa rainha de Portugal, dona Estefânia. Rio de Janeiro, 1860.

As comendas. Rio de Janeiro, s. d. Poesia.

Romances imitados de Gessner. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, s.d. Poesia. 32 p. Contém dois pequenos romances em versos: "O caçador" e "Lelia e Nerina".

Óperas traduzidas para o português: Alexandre na Índia, José no Egito, Sonho de Cipião, Angélica e Medoro, Semíramis reconhecida, Diana e Endimião.

Drama à coroação de D. Pedro I, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Drama ao nascimento de D. Pedro II, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Cantata aos anos da imperatriz D. Leopoldina.

Textos

Soneto

Estas, que o meu Amor vos oferece,
Não tardas produções de fraco engenho,
Amadas Nacionais, sirvam de empenho
A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece
Em que brilheis nos traços, que desenho:
De excessivo louvor glória não tenho,
E se algum merecer de vós comece.

Raros dotes talvez vivem ocultos,
Que o receio de expor faz ignorados;
Sirvam de guia meus humildes cultos.

Mandei ao Pindo os vôos elevados,
E tantos sejam vossos versos cultos,
Que os meus nas trevas fiquem sepultados.

Soneto

Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.

Soneto

Meu coração palpita acelerado,
Exulta de prazer, de amor delira,
Novo alento meu peito já respira,
É mil vezes feliz o meu cuidado.

O meu Tirce de mim vive lembrado,
Saudoso, como eu, por mim suspira;
Que seleto prazer a esta alma inspira
A amorosa expressão do bem amado!

Doce prenda dos meus ternos amores,
Amada, suavíssima escritura,
Que em meu peito desterras vãos temores;

Em ígneos caracteres na alma pura
Grava, Amor, com os farpões abrasadores
Estes doces penhores da ternura.

Soneto

Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

Fontes:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_vida.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_obra.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_textos.html

Literatura Feminina (Virginia Woolf)


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/