sexta-feira, 9 de maio de 2008

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense - Parte IV)

4 – O GRUPO CLÃ E CONTEMPORÂNEOS

Na opinião de Sânzio, “o conto moderno só irá consolidar-se definitivamente em nossa terra com o chamado Grupo Clã, já na década de 40”.

O surgimento do Grupo Clã e sua revista (as Edições Clã se iniciam em 1943) traz a lume uma plêiade de novos contistas, entre eles Braga Montenegro, Moreira Campos, Fran Martins, Eduardo Campos e Lúcia Martins. Sobre os quatro primeiros serão dedicadas algumas páginas no decorrer deste livro.

A única mulher do grupo nasceu no Rio de Janeiro, em 1926, mudando-se para o Ceará em 1941. Romancista, novelista e contista, constam de sua bibliografia os livros Janelas Entreabertas (1971), Histórias Para Passar o Tempo e Por causa do Sol. Sobre o segundo, Francisco Carvalho, no artigo de igual título, se reportou assim: “Neste conjunto de histórias curtas (algumas não são tão curtas assim), ela demonstra invulgar capacidade para urdir a trama de suas narrativas com os clássicos ingredientes que fazem da ficção uma supra-realidade povoada dos sonhos e impulsos inerentes à condição humana”.

Outros poetas e romancistas do Clã que também escreveram composições ficcionais curtas são:

Aluízio Medeiros (Fortaleza, 1918-Rio de Janeiro, 1971), poeta e crítico literário, estreou com Trágico Amanhecer, em 1941.

José Stênio Lopes (Guaramiranga, 1916) se dedicou à poesia, crônica, conto, novela, crítica literária. Em parceria com João Clímaco, editou o volume Duas Novelas (1952). Autor também do livro de crônicas e contos O Homem e seu Cachorro (1959).

João Clímaco Bezerra (Lavras da Mangabeira, 1913) se dedicou ao romance, à crônica e à crítica literária.

Os nomes que se seguem são de romancistas e poetas que, aqui e ali, escreveram ou escrevem histórias curtas:

Artur Eduardo Benevides (Pacatuba, 1923), autor da coleção Caminho sem horizonte (1958) e, mais recentemente, 2001, de A Revolta do Computador e Outros Contos de Mistério. Braga assim se refere ao primeiro: “nove estórias, todas acomodadas numa estreita faixa de temas, sem maior esforço experimentalista e sem penetração no espaço da literatura, isto é, no espaço dos mitos e dos símbolos poéticos”.

Nas dobras da capa do segundo volume, Révia Herculano assim se manifesta: “Esta é uma coleção de contos de suspense, ou mistério, descendentes, em linha reta, dos contos góticos dos ingleses do século XVIII”.

Artur está também presente na Antologia do Conto Cearense (1990), organizada por Mary Ann Leitão Karam, com “Depoimento Sigiloso”, premiado em 1984 no Concurso Nacional de Contos promovido pela Editora Abril Cultural.

Jáder de Carvalho (Quixadá, 1901-1985), jornalista, romancista, poeta, não reuniu em livro as suas narrativas curtas. Publicou, com outros, o primeiro livro do modernismo cearense em 1927, O Canto Novo da Raça.

Margarida Sabóia de Carvalho (Fortaleza, 1905-1975) se dedicou à crônica e ao conto. A Vida em Contos é de 1964. Na reflexão de Braga Montenegro, “Seus contos, alguns de um teor lírico apreciável, filiam-se à maneira tradicional de narrar, não cogitando a autora de qualquer renovação no plano estético”. E remata: “Muito embora sem renovação estilística, a ficção de Margarida Sabóia se contém numa linguagem fluente, correta, em alguns casos de uma simplicidade emocionante”.

Milton Dias (Ipu, 1919-1983) publicou inúmeros livros de crônicas que se abeiram do gênero conto, entre eles Sete Estrelo (1960), As Cunhãs, A Ilha do Homem Só, Entre a Boca da Noite e a Madrugada, Cartas sem Resposta, As Outras Cunhãs e A Capitoa, todos subintitulados “estórias e crônicas”. Na opinião de José Hélder de Souza, em “Milton Dias, entre a crônica e o conto”, do livro De Mim e das Musas, “em verdade muitos dos trabalhos reunidos nestes volumes são deliciosos contos feitos do melhor barro da técnica contística como ‘ Botija’”.

F. S. Nascimento, no ensaio “A Prosa Aliciante de Milton Dias”, constante do livro Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Estudos também se encaminha por esta mesma senda, como se vê neste trecho: “Já em Sete-Estrelo se configurava a tendência de Milton Dias para transcender os limites da crônica, ousando exercitar-se, e com êxito, numa área da criação literária ocupada pelo conto”.

Sinval Sá (Paraíba, 1922), sobre quem Braga Montenegro informa ter reunido em livro, em 1959, algumas histórias curtas divulgadas na revista Clã e na imprensa, publicou também romances.

F. Magalhães Martins (Ipu, 1910), autor de Açude e Outros Contos (1955) e outros livros.

Carlyle Martins (Fortaleza, 1899-1986), poeta, crítico literário e contista, é autor de Alma Rude (1960), de contos regionais, e outras obras.

Diversos outros cultores da narrativa curta surgiram no mesmo período que se inicia com o surgimento do Grupo Clã, ou logo após, Alguns são mais poetas e romancistas, outros, porém, se dedicaram tanto ao conto como a outros gêneros literários e se destacaram num e noutro:

Lauro Ruiz de Andrade (Fortaleza, 1905), folclorista, novelista, romancista e contista, cuja estréia se deu em 1934, com Dunas e Penedos, seguido de Os bate-papos de João Tapuio (contos e apólogos), 1980.

João Jacques (Fortaleza, 1910-), um dos organizadores do jornal Cipó de Fogo (1931), órgão do modernismo no Ceará, deixou alguns livros de poemas e crônicas. Segundo Sânzio, trata-se de “cronista que às vezes freqüenta o conto”. Ao analisar o texto “O Derretido”, incluído na Antologia Terra da Luz, o ensaísta se refere ao livro Uma Fantasia e Nove Histórias Reais (1969) e explica: “são narrativas lineares, sem nenhuma pretensão inovadora, embora haja o autor sido, nos anos 30, um dos chamados modernistas. A verdade é que o escritor pretendeu mesmo aproximar-se da maneira tradicional de se contar história”.

José Maia, embora ainda inédito em livro, tinha na gaveta, em 1965, o livro A Noite e a Nudez. Apesar disso, participou de Uma Antologia do Conto Cearense. Braga Montenegro assevera: “talvez porque mais consciente do alcance de seus méritos ou suspeitoso de suas possíveis limitações, é retraído e pouco fecundo. Poderíamos chamá-lo, até certo sentido, um colecionador de essencialidades, tal o laconismo de suas composições e a escassez delas; e ainda a natureza de introversão poética com que engendra e reveste os assuntos de que se ocupa. Suas estórias são comumente flagrantes de uma crise moral velados de sutileza, mas em que se percebe, implícita e constante, a solidão do homem, a sua tragédia recôndita, os liames da insidiosa trama que definitivamente o prendem à vida e à morte. ‘O Anjo’, ‘A Fugitiva’, ‘Burleta’, ‘Vigília de Natal’ nos revelam, além do vínculo temático segundo essa visão particular do mundo, as virtudes artesanais com que o artista se define, embora ainda vacilante, na consciência de seu processo”.

Nonato de Brito (Fortaleza, 1926) apresentou pelo menos dois contos: “Ouro e Sexo”, estampado na revista Clã n.º 25, 1970, e “Última Cartada”, publicado na Antologia de Contistas Novos do Brasil, 1971, organizada por Moacir C. Lopes.

Raimundo Amora Maciel é mencionado por Girão. Nascido em Pacatuba (1895), publicou poemas, contos e romances, entre os quais Tição (1966), A marca dos passos perdidos (1975) e Safra do meio dia, de ficções curtas.

Carlos Cavalcante, que adotaria o pseudônimo de Caio Cid (Pacatuba, 1904-1972), cronista, poeta e contista, escrevia e divulgava volumes de crônicas e contos, tais como Aguapés (1935), Gitirana (1938) e Canapum (1950).

Alba Valdez (pseudônimo de Maria Rodrigues Peixe) nasceu em São Francisco de Uruburetama, hoje Itapajé, em 1874. Faleceu em 1962, na capital cearense. Jornalista e contista, iniciou-se com o livro Em Sonhos, de contos, em 1901. A seguir publicou Dias de Luz, em 1907. Deixou vasta obra. Teve narrativas curtas traduzidas para o sueco e o francês. (Dolor)

Assis Memória (Gauraciaba do Norte, 1886), padre, professor, orador, jornalista, cronista, deixou dois livros publicados.

Mozart Firmeza (Fortaleza, 1906) é um dos poetas de O Canto Novo da Raça, livro inaugural do modernismo no Ceará. Também cronista e contista, deixou um livro editado.

João Otávio Lobo (Santa Quitéria, 1892-1962) é “escritor de estilo elegante e linguagem esmerada”, na opinião de Raimundo Girão. Publicou livros científicos e algumas peças ficcionais curtas. No Almanaque de Contos Cearenses, primeiro número, foram mostradas algumas delas.

Yaco Fernandes (Fortaleza, 1914-Rio de Janeiro, 1977), poeta, crítico literário, ensaísta e contista. Deixou um importante livro: Notícia do Povo Cearense.

Martins d’Alvarez (Barbalha, 1903), poeta, novelista, romancista e contista, publicou a coleção A Morte do Anjo da Guarda, em 1979.

Antônio Girão Barroso (Araripe, 1914) pertenceu ao Grupo Clã. Como poeta, apresentou ao público alguns livros. Teve composições ficcionais estampadas em periódicos como Clã e O Saco.

Jandira Carvalho (Ipueiras, 1918) escreveu poemas, crônicas e contos, divulgados em jornais, revistas e coletâneas.

Geraldina do Amaral (Caucaia, 1925), jornalista, poeta, cronista e contista, participou de três coletâneas.

Florival Seraine editou em 1976 o volume A Noiva do Tempo. Embora nascido em Viseu, Pará (1910), cedo passou a viver no Ceará, onde exerceu a medicina e o magistério e escreveu obras de lingüística e folclore. Em 1993 divulgou outro livro de histórias curtas, Vida e Sonho. Faz parte da Antologia do Conto Cearense (1990), com “O Último Natal”. Membro da Academia Cearense de Letras.

Paulo Aragão (Fortaleza, 1943) é autor de O Clarim e os Cães e outras estórias, de 1967. (Raimundo Girão)

Angélica Coelho (Fortaleza, 1920) estreou como poeta em 1952. Seus contos estão reunidos em Elas não têm destino, de 1954, e Ternura. Escreveu também romances. (Girão)

Edigar de Alencar nasceu em Fortaleza (1901). Mudou-se cedo para o Rio de Janeiro, onde se formou em Ciências Econômicas. Jornalista, cronista e poeta, tem vários livros editados. Na orelha do livro de poemas Galé Fugido, de 1957, há referência a Volta da Jurema, título geral de seus contos, nunca publicados.

Hilda Gouveia de Oliveira (1929), romancista por excelência, teve editado o primeiro livro em 1971, Os Sete Tempos. Só recentemente imprimiu um volume de narrativas curtas, intitulado Novelo de Estórias. Sob este mesmo título, Francisco Carvalho escreveu um artigo, incluído em Rascunhas e Resenhas, onde enaltece as qualidades literárias da romancista de Granja: “O desenho verbal destas narrativas não faz concessões à vulgaridade, mas também não se mostra reverente ao culto da pureza romântica”.

Cândida Galeno (Nenzinha Galeno) é neta de Juvenal Galeno, nasceu em Russas. Cronista, ensaísta, folclorista e contista, estreou em livro em 1953. O conjunto de histórias Trevo de quatro folhas, escrito por ela e mais Elizabeth Barbosa Monteiro, Nívea Leite e Otília Franklin, é de 1955.

Miguel Newton Arraes (Crato, 1928). Suas primeiras histórias foram estampadas na extinta revista A Cigarra. “Verso e Reverso” é ganhador de concurso internacional. O livro Pau-de-Arara e Outros Contos recebeu prêmio em Pernambuco (1954). Tem composições em jornais e revistas, como Espiral (n.º 3): “Uma bela crioula”.

Ailton Alves Maciel nasceu em Baturité em 7 de março de 1943. Em vida nada publicou, embora tenha escrito inúmeros poemas, romances e contos. Sua obra mais importante desapareceu. Talvez no incêndio doméstico que quase o matou, em Brasília, onde foi viver (e morrer) no início dos anos 1970. Sua morte clíni­ca se deu no dia 22 de outubro de 1974. Apenas quatro contos se salvaram: "Santa Caçada", "O Touro", "O Careca" e "O Presente da Professora", este publicado na revista Literatura n.º 24, de 2003. Outros onze fragmentos encontrados podem ser de contos e romances.

De alguns contistas não foi possível obter mais informações, como de Melo Lima, Hélder de Queirós Lima, Antônio Marrocos de Araújo, Nieddy Frederick, Elcias Lopes, Jairo Martins Bastos, Francisco Fernandes do Nascimento, Miguel Newton de Alencar, Maria Luísa de Queirós, Mário Alcântara, Otília Franklin, Nívea Leite e Elizabeth Barbosa Monteiro. Seus nomes não foram mencionados nas obras do historiador Raimundo Girão que serviram de fonte para a elaboração de algumas biografias neste estudo, embora tenham sido referidos por Braga Montenegro e Sânzio de Azevedo.

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Fran Martins, nascido Francisco Martins, é natural de Iguatu (13 de junho de 1913) e faleceu em Fortaleza (1996). Filho de Antônio Martins de Jesus e Antônia Leite Martins. Uma das principais figuras do grupo e da revista Clã, cujo número inaugural saiu sob a sua direção. Formou-se em Direito, lecionou na Faculdade de Direito e na de Ciências Econômicas da UFC e escreveu inúmeras obras jurídicas. Colaborou em jornais e revistas de diversos Estados. Redator de A Esquerda e O Estado. Sua obra literária é vasta. No gênero conto estreou com Manipueira (1934), seguindo-se Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948), O Amigo de Infância (1960) e Análise (1989). Escreveu alguns romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas ((1950) e A Rua e o Mundo (1962). É autor também da novela Dois de Ouros (1966), considerada sua melhor obra.

Na opinião de Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” Mais adiante acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo, o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estréia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa”, (AAA, págs. 159/164), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta”: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flash-back etc.” O crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa, sendo rejeitada até a aspa simples”.

Analisando-se as narrativas curtas de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flashback. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nas obras anteriormente citadas, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Nesta, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.

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(Manuel) Eduardo (Pinheiro) Campos nasceu em 1923, em Guaiúba, então distrito de Pacatuba. Estreou em 1943, com a coleção Águas Mortas. Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito. Tem também peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias, memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio. Durante dez anos dirigiu a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará. Figura em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro. Sua peça O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados, A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas. Tem pequenas histórias incluídas em dez antologias, das quais duas no Uruguai e uma na Alemanha.

Embora não tenha alcançado notoriedade no resto do Brasil, no restrito espaço da crítica literária, Eduardo Campos tem seu nome gravado em alguns importantes compêndios de História da Literatura. Assim, está presente em A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, pelo menos no ensaio de Herman Lima: (...) “folclorista de altos méritos, tem, naqueles livros (refere-se aos três primeiros da bibliografia do contista), alguns contos regionais e psicológicos da melhor marca, a exemplo de “Os Abutres” e “O casamento”, o último, principalmente, na sua força bem da terra cearense, dos mais belos da atualidade brasileira”.

Eduardo Campos é um mestre do conto psicológico. Em “O Afogado”, do livro As Danações, o drama parece ir se deslocando não de lugar, mas de personagem, sob a óptica do narrador onisciente. O protagonista seria o afogado? Ou seria a podridão moral dos homens? No final, com o surgimento do cadáver, o narrador arremata a narrativa com uma frase moralista: “Foi quando os homens, amesquinhados, começaram a pensar que não era o afogado que malcheirava, mas eles, que haviam apodrecido em vida”.

No livro Três Momentos da Ficção Menor, F. S. Nascimento analisa “O Abutre”, no “Momento III”, e defende a tese de que “já em 1946 esta concepção de “new short story” era praticada no Ceará, efetivando-se na criação de “O Abutre”, de Eduardo Campos.” A seu ver, “O Abutre” se impõe como um modelo da “new short story”, sendo tão atual quanto “Cão Vadio” de Fran Martins, “Os Sete Sonhos” de Samuel Rawet, “A Coisa” de Garcia de Paiva” e qualquer uma das unidades narrativas de O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro.”

Eduardo Campos, no entanto, não se repete nas formas de narrar. Assim, em “A Viúva Enganada”, do mesmo livro As Danações, o desenlace se esboça não no começo, mas no título, o que não deixa de ser curioso, se não for original.

Na peça que dá título ao livro o contista também não muda o ponto de vista, e a narração vem recheada de falas curtas e diálogos breves, acrescentado o discurso indireto livre, embora ainda sem muita ousadia.

Na opinião de Braga Montenegro, em “Eduardo Campos, Contista”, apresentação de O Abutre e Outras Estórias (1968), “é no conto onde melhor se manifestam suas qualidades de talento”. E acrescenta que se manifesta, “com maior freqüência, em Eduardo Campos o feitio de um escritor regionalista, no que não lhe vai qualquer restrição”.

Em O Abutre e Outras Estórias, possivelmente escrito logo após As Danações, Eduardo Campos utiliza outros focos narrativos. Assim, em “O Casamento” se vale do ponto de vista do escritor onisciente, que dá voz às personagens em breves diálogos diretos e também em um monólogo interior.

Em “O Ficcionista Eduardo Campos” (Exercícios de Literatura, págs. 135/138), Francisco Carvalho analisa o volume Dia da Caça assim: “São contos de estrutura relativamente simples, em que se evidencia a familiaridade do Autor na abordagem de certas manifestações do lirismo popular, ao lado de uma particular sensibilidade pelos termos ligados à terra e ao homem”.

Passando dos primeiros livros para os mais recentes, como A Borboleta Acorrentada, observa-se que a linguagem do contista em nada mudou, consciente de que os modismos passam e o mais valioso na obra literária não está na aparente transgressão de normas.

Apesar desse apego à narração, o contista não esqueceu as outras linguagens, como o discurso indireto livre. Percebe-se também a presença, embora não muito freqüente, do monólogo interior indireto. E nada de explicações, volteios circenses, excesso de figurantes e cenários.

Na opinião de Herman Lima, “`O Abutre`, de Eduardo Campos, e ‘Lama e Folhas’, de Moreira Campos, por exemplo, são dos mais belos e originais, que já se escreveram entre nós, em qualquer tempo”.
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Braga Montenegro (1907-1979), mais conhecido como “crítico de primeira plana, ensaísta agudo e sensível”, no dizer de Herman Lima, o contista e novelista estreou com Uma Chama ao Vento (contos, 1946), reeditado em 1980 pelas Edições UFC, seguindo-se, em 1976, As Viagens e Outras Ficções, (novelas e contos), mais uma seleção dos Contos Derradeiros, até então inéditos em livro. Em Uma Antologia do Conto Cearense esteve presente com “Os Demônios”, editado pela primeira vez em 1959, na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Sânzio de Azevedo analisa as histórias do autor de Correio Retardado em “Braga Montenegro, Crítica e Ficção” (Aspectos da Literatura Cearense, págs. 265/276).

Francisco Carvalho estuda a obra de Braga em “A Inquieta Modernidade de Braga Montenegro”, incluído na 2a. edição de Uma Chama ao Vento e em Exercícios de Literatura. E elucida: “um dos aspectos a destacar em Braga Montenegro é o permanente sentido de universalidade que caracteriza os seus trabalhos de ficção. Universalidade nascida da convicção de que o homem é tudo o que importa. Não o têm seduzido, por isso mesmo, os regionalismos tipificadores, com o seu conhecido cortejo de deformações. Muito embora as raízes espirituais do ficcionista mergulhem fundo nas fontes da literatura européia, importa assinalar que isso em nada lhe compromete a originalidade, nem lhe desfigura as matrizes do impulso criador. Não menos digna de nota é a verticalidade com que o ficcionista engendra situações no contexto das suas narrativas e com que tece a teia do acaso em que se envolvem os seus personagens. Em nenhuma das novelas e contos do presente volume a atmosfera ficcional vem a ser comprometida pelo simples devaneio formal ou pelo discurso literário inconseqüente”. Ao se referir às histórias curtas, o crítico vê nelas “peças de extraordinária expressividade e de considerável beleza literária. A austera poesia dessas páginas como que nos fere a sensibilidade com a sua pungência avassaladora. ‘Os Demônios’, ‘O Hóspede’, ‘O Potrinho Pampa’, ‘Agonia’ e ‘Ansiedade’ são, inquestionavelmente, documentos que se impõem pela autenticidade e grande beleza literária com que foram realizados”. Destaca também “O Tesouro”.

Segundo Pedro Paulo Montenegro, na análise crítica de trecho de uma obra de Braga, constante da Antologia Terra da Luz – Prosadores, de 1998, o autor de Uma Chama ao Vento é “cultor de um estilo elegante, culto, que se poderia dizer clássico, na linhagem machadiana”.
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Entretanto, de todos os nomes aqui citados, desde Juvenal Galeno e José de Alencar, passando por outros expoentes da literatura cearense, até hoje (2004), somente um pode ser chamado de contista por excelência ou por natureza – Moreira Campos. Os outros foram mais poetas ou mais romancistas. E isto não é apenas uma opinião, é uma constatação. Vejam-se os estudos, as teses, as monografias, as histórias, as enciclopédias – em todos eles, quando o assunto é conto, o primeiro nome cearense é o de Moreira Campos. São também citados com freqüência os nomes de Caio Porfírio Carneiro e Juarez Barroso. No entanto, ainda há uma imensa lacuna nessas publicações, uma grande omissão, porque estes e outros contistas cearenses têm tanta importância quanto muitos contistas de outros Estados que aparecem em livros de pesquisa e análise editados principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Alfredo Bosi, ao se referir ao Ceará, menciona poucos nomes, omitindo pelo menos três dos mais importantes: Gustavo Barroso, Herman Lima (lembrado apenas como ensaísta) e Moreira Campos. Está escrito na página 482 de sua História Concisa: “O Ceará conta com prosadores que honram a tradição do romance naturalista que lá conheceu o alto exemplo de Oliveira Paiva e Domingos Olímpio, sem falar nos pais da literatura regional brasileira, Alencar e Franklin Távora”. Afirma que depois de Raquel de Queiroz lembra apenas Fran Martins, Braga Montenegro e João Clímaco Bezerra, dos quais cita alguns livros.

Antonio Hohlfeldt, em Conto Brasileiro Contemporâneo, não olvidou o nome de Moreira Campos e fez breves referências a outros contistas cearenses, como Holdemar Menezes, que se radicou no Sul do Brasil e lá escreveu livros, Juarez Barroso, Mario Pontes, Paulo Véras, que nasceu no Piauí mas viveu e escreveu no Ceará, e Socorro Trindad. O crítico gaúcho se dedicou a pesquisas mais amplas e, sem má vontade, escreveu duas páginas a respeito de Moreira Campos, no capítulo V, intitulado “O Conto Rural”, no qual são analisadas também as obras de Guimarães Rosa, Bernardo Élis, Jorge Medauar, Caio Porfírio Carneiro, Guido Wilmar Sassi e José J. Veiga. Para comentar as composições de Moreira Campos, faz constantes transcrições de estudos assinados por Antônio Houaiss, Temístocles Linhares, Hélio Pólvora e Francisco Carvalho.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, trata apenas de Moreira Campos, no capítulo 11, onde também estuda o baiano Cyro de Mattos e Bárbara de Araújo, e Juarez Barroso, no capítulo 19.

Assis Brasil, em A Nova Literatura – O Conto, comete um enorme erro, ao deixar de lado Moreira Campos. Ou para o crítico piauiense o escritor cearense estaria entre os “velhos contistas”? Ora, a estréia do autor de As Vozes do Morto se deu em 1949, enquanto a de Murilo Rubião é de 1947. Portanto, ignorância ou má vontade. Em outra oportunidade, no entanto, o crítico se redimiu. Pois no Dicionário Prático de Literatura Brasileira não olvidou o nome de Moreira Campos. Incluiu-o no rol dos modernistas, isto é, daqueles que escreveram entre 1922 e 1955.

Hélio Pólvora dedicou um capítulo, “A Espingarda na Parede”, de Itinerário do Conto, a Moreira Campos. Como em outros livros, o único contista cearense estudado no ensaio, se considerarmos Holdemar Menezes um contista catarinense.
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continua...

Rubem Fonseca (Agosto)

biografia do autor postado em 14/04/2008
1. PERSONAGENS E ENREDO

Neste romance, o autor desenvolve três tramas paralelas: policial, amorosa e histórico-política. Alguns personagens atuam em duas ou nas três tramas.

PERSONAGENS EM EVIDÊNCIA NA TRAMA POLICIAL:

ALBERTO MATTOS, ou simplesmente MATTOS: comissário de polícia, solteiro, residente em apartamento no oitavo andar de um prédio na Rua Marquês de Abrantes, bairro Flamengo, Rio de Janeiro. Formado em Direito, pretendia ser juiz, mas arrumou o emprego de comissário enquanto esperava completarem os cinco anos estipulados para prestar o concurso de acesso à magistratura. Carregava no bolso sempre um dente restaurado que se despregara da boca e sofria de uma úlcera gástrica que o atormentava.
PÁDUA: comissário de polícia que alternava plantões com Mattos.
ROSALVO: investigador de polícia, subordinado a Mattos.
RAMOS: delegado de polícia, superior de Mattos.
PAULO MACHADO GOMES AGUIAR: rico industrial assassinado, sócio fundador da Cemtex, uma das maiores firmas de importação e exportação do país (dizia-se que ele era testa-de-ferro de grupos estrangeiros)..
CLÁUDIO AGUIAR: primo de Paulo.
LUCIANA GOMES AGUIAR: esposa de Paulo.
ALICE: ex-amante de Mattos e casada com
PEDRO LOMAGNO: rico industrial, amante de Luciana.
SALETE: ex-prostituta, amante de Mattos e de
LUIZ MAGALHÃES: rico industrial.
CHICÃO: um negro forte, executor das ordens de Lomagno para eliminar aquelas pessoas influentes que prejudicassem seus projetos de corrupção.
VITOR FREITAS: senador, homossexual.
CLEMENTE: assessor do senador Freitas.

TRAMA POLICIAL

Início do mês de agosto de 1954. Mattos e Rosalvo, atendendo à comunicação, feita no final da manhã, do assassinato de Paulo Gomes Aguiar, ocorrido à noite, dirigiram-se ao oitavo andar do luxuoso edifício Deauville. Mattos encontrou no box do chuveiro um anel largo de ouro, no qual estava gravada a letra F, e guardou-o no bolso.

Da empregada que telefonara para a delegacia, Mattos ficou sabendo que Luciana estava em Petrópolis há mais tempo e que Cláudio Aguiar, acompanhado do advogado Galvão, havia chegado ao apartamento antes dos policiais. Comunicou-lhes que precisava interrogar a viúva. Antônio Carlos, o perito que fora fazer seu trabalho, encontrou e entregou ao comissário uma caderneta de endereços pertencente ao morto. Ao sair, Mattos deixou com o porteiro do dia recado para o porteiro da noite, Raimundo, que o procurasse no distrito tão logo pudesse.

O depoimento prestado por Luciana ao comissário no distrito nada de esclarecedor acrescentou.

Rosalvo estava pesquisando a vida pregressa de Paulo Gomes Aguiar, de Cláudio Aguiar e também do senador Freitas, nome incluído na caderneta de endereços do morto. Até então, o investigador nada descobrira que pudesse explicar o homicídio.

Pádua relatou ao colega Mattos que os senadores tinham o costume de relaxar de suas graves tarefas no “senadinho”, um apartamento de prostituição em prédio vizinho ao Senado. Para lá os dois policiais se dirigiram a fim de obter declarações da “cafetina” Laura, proprietária do prostíbulo. A única novidade obtida, sem interesse para o caso, foi a de que o Freitas era homossexual obcecado por rapazes.

Rosalvo colheu a informação de que Paulo, Cláudio e Pedro Lomagno tinham estudado no mesmo colégio, do qual foram expulsos por terem violentado sexualmente um outro aluno, José Silva. O mesmo investigador descobriu que Pedro Lomagno era sócio da Cemtex. Aliás, essa empresa conseguia vantagens junto ao Banco do Brasil por intermediação de Luiz Magalhães.

O perito e o legista passaram para Mattos algumas conclusões acerca do homicídio de Paulo: o assassino era um negro que matara por estrangulamento. O comissário interrogou o porteiro noturno do edifício Deauville e ficou sabendo que o apartamento dos Gomes Aguiar tinha sido visitado, na noite do crime, por um negro corpulento e mal-encarado, que disse estar indo lá para fazer um trabalho, provavelmente de macumba, segundo o porteiro. Luciana, porém, o havia proibido de falar com alguém sobre essa visita.

Mattos desconfiou que o assassino fosse Gregório Fortunato, o importante chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas; ele correspondia à descrição e usava um anel pelo menos semelhante ao encontrado pelo comissário. Alice insinuou que seu marido estava implicado na morte do empresário por ser amante da viúva. Mas, como ele não era negro, a hipótese foi considerada improvável.

Mattos nunca aceitou suborno dos bicheiros, mas tinha o costume de soltar os pobres coitados que eram presos quando colhiam os palpites do jogo de bicho nas ruas. Certo dia, irritou-se com a arrogância de um desses contraventores de pequeno porte, Ilídio. Deu-lhe um pontapé no traseiro e o manteve preso por curto tempo. Ilídio integrava uma corrente de bicheiros importantes que subornavam os policiais. Ramos, o delegado, chamou a atenção de Mattos por ter sido violento. Ele era um dos que recebiam suborno dos banqueiros do bicho; por isso Ilídio entrava no distrito policial com ares de poderoso. Humilhado, ele jurou vingar-se de Mattos. Contratou um capanga temido para matar o comissário, um tal de Turco Velho, que estava em Caxambu visitando a mãe. Imediatamente, retornou ao Rio para efetuar esse trabalho. Os poderosos banqueiros de bicho Aniceto Moscoso e Eusébio de Andrade convocaram seu subordinado Ilídio e usaram de um argumento convincente para que ele desistisse de mandar matar Mattos, ato completamente prejudicial aos interesses dos contraventores: ofereceram-lhe mais pontos do jogo de bicho, sonho dele, que ansiava crescer naquele ramo de atividade. Ilídio aceitou a proposta e ficou de dar uma contraordem para Turco Velho. Este, porém, gostava de “trabalhar” sozinho, não foi encontrado, ninguém sabia de seu paradeiro.

Mattos foi à sede da Presidência da República, o Palácio do Catete, para interrogar Gregório Fortunato. Conseguiu conversar com o subchefe da guarda pessoal do presidente, o inspetor Valente. Gregório, o chefe, estava ocupado, não poderia atender.

Alguém telefonou para o distrito, sem se identificar, e informou ao comissário que alguém iria lhe dar um tiro. Mattos não deu importância a essa ameaça pois não sabia que o “anônimo” era Ilídio, preocupado porque não conseguira cancelar a incumbência dada ao capanga.

Sem que Mattos percebesse, foi seguido por Turco Velho, que bateu à porta da casa dele, simulando querer fazer uma denúncia. O comissário teve certeza de que era o matador contratado. Mandou-o entrar, deu-lhe voz de prisão e o levou para o distrito. Ciente disso, o colega Pádua insistiu com Mattos, em vão, no sentido de liquidar o preso. O comissário permitiu que o delegado soltasse Turco Velho no dia seguinte, por falta de provas. Pádua não se conformou com a idéia de que fosse solto alguém que queria e poderia matar um policial. Por isso, de madrugada, levou o homem para um lugar ermo e o executou com um tiro na nuca, mais convicto ainda de que agira certo depois de saber que se tratava do famoso matador Turco Velho. Este aceitou morrer como conseqüência de sua falha e, antes, pediu que Pádua avisasse à mãe dele que no cartório de Caxambu havia a escritura de uma casa em nome dela, comprada em segredo como presente de aniversário dentro de dois dias. Pádua atendeu ao pedido e nada disso contou a ninguém, muito menos a Mattos. Só se arrependeu depois de não ter tido a curiosidade de saber quem fora o mandante. Tempos depois, Mattos ficou ciente de tudo, inclusive de que o mandante era Ilídio, através de um ladrão de jóias perseguido por Pádua e pela informação de um funcionário do necrotério. Os banqueiros Eusébio de Andrade e Aniceto Moscoso deram proteção a Ilídio. Mandaram-no internar numa clínica de repouso e, assim, evitou-se o interrogatório policial.

Rosalvo encontrou-se com Teodoro, capanga do senador Vítor Freitas, e propôs um acordo: se o senador arrumasse sua transferência, ele o livraria das suspeitas que constavam na polícia de sua participação em várias negociatas. Teodoro levou essa proposta a Freitas. O senador, bêbado, desentendeu-se, após a saída do capanga, com Clemente e confessou seu medo de que o comissário Mattos descobrisse que ele tinha sido flagrado, pelo síndico do prédio onde morava, praticando sexo oral com um rapaz no elevador. Por enquanto, tal caso estava abafado. Quanto a seu envolvimento na Cemtex, o senador não tinha receio. Chegou a pedir a Clemente que acionasse Teodoro para liquidar Mattos. Mais tarde, voltou atrás, deixassem o comissário de lado.

Numa nova entrevista com Luciana, esta deu a entender a Mattos que o negro visitante de seu apartamento era um macumbeiro. Aliás, Lomagno concluíra que o porteiro Raimundo deveria ser morto; caso contrário, ele poderia induzir Mattos a suspeitar que o assassino procurado não era o pai-de-santo e sim Chicão, o qual agira sob as ordens do casal de amantes. Para executar a morte do porteiro, Lomagno recorreu novamente a ele.

A fim de cumprir sua missão, Chicão pediu emprestado o carro de sua amante Zuleika. Já passava de uma hora da madrugada quando ele atraiu o porteiro para dentro do carro, imobilizou-o à força e matou-o quebrando-lhe o pescoço. Pôs o corpo no porta-malas e conduziu o carro para um local afastado da cidade. Ali, protegido pela escuridão, mutilou o cadáver, colocou os pedaços num saco e o atirou num rio, amarrando nele uns halteres bem pesados. Teve o cuidado de levar consigo os dedos da mão decepados. No retorno, o dia já estava claro e o carro ficou retido num congestionamento diante da Igreja da Candelária, pois estava terminando a missa de sétimo dia pelo Major Vaz. Uma multidão gritava, ameaçava as autoridade. A polícia interveio. Chicão aproveitou-se da confusão; ao passar por onde havia feridos e alguns mortos, foi jogando na rua os dedos de Raimundo, guardando intervalos. Lomagno deu-lhe a ordem de sumir da zona sul do Rio.

Atendendo a um chamado telefônico de Lomagno, Mattos procurou-o no escritório da empresa Lomagno & Cia. e foi informado de que Alice fazia tratamento psiquiátrico por sofrer de psicose maníaco-depressiva. Mas interessou mesmo ao comissário ficar sabendo que Paulo Aguiar tinha recorrido a Gregório Fortunato para conseguir favores do Governo. Lomagno passou essa informação falsa quando percebeu que o comissário suspeitava de Gregório como assassino de Gomes Aguiar. Ainda com o intuito de confundir mais a elucidação da morte, Lomagno confirmou a história da amizade da família do morto com um macumbeiro e até se prontificou a mostrar onde ele morava. Assim foi feito. Os dois chegaram à casa do pai-de-santo e o comissário o interrogou. Embora não convencido de que aquele pudesse ser o assassino – o anel não caberia no dedo dele –, Mattos o levou para o distrito, pretendendo fazer uma acareação dele com o porteiro Raimundo. No edifício Deauville, colheu a informação de que Raimundo tinha sumido. Então, liberou o pai-de santo, já certo de sua inocência.

Outra diligência de Mattos foi conversar com José Silva, molestado sexualmente no colégio por Paulo Gomes Aguiar e outros. Encontrou-o em casa. Era dentista, casado, vivia com a mulher e a filha. O comissário logo notou que ele não tinha nenhuma implicação no assassinato.

Procurando perseguir a pista do homicídio que levava a Gregório Fortunato, Mattos convidou Pádua a irem entrevistar o poderoso “Anjo Negro” que estava preso na base aérea do Galeão. Não conseguiu seu intento. Pediu, então, ao oficial que verificasse se Gregório usava um anel. O militar trouxe o anel que o prisioneiro usava e era muito parecido com o que foi encontrado no apartamento do morto.

Continuando suas pesquisas, Mattos voltou ao “senadinho” e fez perguntas à cafetina Laura, de quem obteve a informação de que Lomagno era muito amigo de um negro forte, treinador de boxe.

Com a ajuda da Seção de Vigilância, tomou ciência de que Chicão dava aulas de boxe num clube. Lá chegando, em lugar do negro encontrou o velho Kid Terremoto, segundo o qual Lomagno abrira uma academia para Chicão e este usava, sim, um anel só tirado do dedo quando calçava luvas ou tomava banho. Mattos foi atendido pelo vigia do galpão de propriedade de Francisco Albergaria, que há muito não aparecia por lá. O comissário deixou um bilhete pedindo que Chicão se comunicasse com ele para uma informação, “coisa sem importância”.

Lomagno estava envolvido na negociata da Cemtex. Sua preocupação quase exclusiva, porém, era um plano para cuja realização precisava da ajuda de Chicão, a quem prometeu alta recompensa: matar o comissário Mattos.

No dia 24 de agosto, pela manhã, Mattos soube do suicídio de Getúlio Vargas e foi logo para o Palácio do Catete, onde a confusão era grande. Valendo-se de sua condição de policial, o comissário atingiu o objetivo de sua ida ao palácio, pois viu Vargas morto. Abalado, retornou ao distrito, desarmou os policiais de serviço, trancou-os na sala, pegou as chaves do carcereiro e soltou todos os presos. Pádua, avisado disso por telefonema do próprio Mattos, dirigiu-se ao distrito e encontrou o colega. Os dois discutiram. Pádua censurou o que o outro fizera, mas este, sem dar importância às palavras iradas a ele dirigidas, saiu sozinho. De madrugada, voltou ao Palácio do Catete, porque desejou ver de novo Vargas morto. Depois, esperou a saída do cortejo fúnebre e entrou no meio da multidão que seguiu até o aeroporto, onde o caixão do presidente foi embarcado. Mattos assistiu a vários confrontos que se sucederam nas ruas entre grupos de pessoas revoltadas e os soldados.

Já em seu apartamento, Mattos sentiu que sua úlcera estava sangrando. Telefonou para Salete que logo o foi socorrer. De repente, Chicão entrou pela porta da frente. Levado por Salete, o negro foi até o quarto e conversou com o comissário, o qual lhe entregou o anel e lhe deu voz de prisão. Sem se abalar, Chicão aumentou o volume da vitrola ligada e matou o comissário com um tiro de revólver. Após, lamentando ter que matar uma moça bonita – Salete lhe agradeceu por ele tê-la achado a mulher mais linda que vira na vida –, colocou o revólver sobre o seio esquerdo dela, apertou o gatilho. Diminuiu o som da vitrola e saiu sem olhar os mortos.

Poucos minutos depois, Genésio, o pistoleiro irmão de Teodoro a quem Clemente contratara para matar o comissário, chegou ao apartamento. Constatou as mortes. No hotel, onde o irmão dele e o mandante Clemente o esperavam, deu a notícia de missão cumprida – “Tive também que matar a moça que estava com ele. Mas não vou cobrar por isso” –, recebeu os cem contos combinados e foi-se embora.

O alto comando do jogo de bicho mandou um emissário à clínica na qual estava internado Ilídio para saber se ele havia participado da morte de Mattos. Mediante a negativa do bicheiro, um novo guarda-costas o escoltou na saída. No meio da estrada, o carro do bicheiro foi fechado por um Chevrolet em que estava Pádua e outro policial. Este atirou nos dois acompanhantes de Ilídio, matando-os. Depois, o bicheiro foi levado para um local ermo e, sob tortura, forçado a declinar o nome do negro que assassinou Mattos e Salete. Não acreditaram que Ilídio estivesse falando a verdade quando declarou não conhecer o matador. Por medo de morrer, ele denunciou Feijoada Completa, apelido do único negro cuja lembrança lhe veio à cabeça. Mesmo assim, Pádua o executou com um tiro na nuca, sem lhe tirar as algemas. “Deixa as algemas. Para os amigos desse filho da puta saberem que foi o pessoal da casa que fez este trabalho. Para aprenderem que não podem matar um tira assim sem mais nem menos”.

TRAMA AMOROSA

Mattos tinha sido amante de Alice, até que esta desistiu de esperá-lo tornar-se juiz. Largou-o e casou-se com Pedro Lomagno. Entretanto, o comissário nunca deixou de gostar de Alice. Afastado dela, mantinha relações amorosas freqüentes com Salete, a qual, embora mantida financeiramente pelo amante Luiz Magalhães, alimentava a esperança de casar-se com Mattos.

ALICE E MATTOS

Fazia três anos que Mattos não via Alice. Às seis horas da manhã de certo dia, o telefone do apartamento do comissário tocou. Era Alice, que queria encontrar-se com ele. Marcaram, para aquela tarde no Café Cavé, um encontro, no qual Alice recordou hábitos e fatos envolvendo os dois no período em que viveram juntos, o gosto dele por óperas, entre outros. Acabou ela não dizendo o que desejava dizer. Combinaram nova conversa para dois dias depois.

Salete estava com Mattos no apartamento dele no momento em que Alice tocou a campainha. Assim que viu a outra lá dentro, ela se despediu sem entrar e ficou de telefonar mais tarde.

Após alguns dias, Alice voltou ao apartamento de Mattos, que estava sozinho desta vez. Sem muitos rodeios, ela desabafou: “Meu marido é amante de Luciana Gomes Aguiar”. Nervosa, não deu continuidade ao assunto. Os dois discutiram e ela se retirou.

Em conversa com o marido, Alice lhe disse ter informado que Luciana era amante dele ao comissário Mattos. Lomagno a chamou de tola e ouviu da mulher que Mattos estava à procura de um negro, suspeito de ter matado Paulo Aguiar.

Alice, por sofrer de psicose maníaco-depressiva, fazia tratamento com um psiquiatra. Mattos o procurou querendo colher dados que o levassem a esclarecer a morte de Paulo Aguiar. Dr. Arnoldo Coelho, o médico, explicou que Alice, na fase maníaca, precisava de movimento, tornava-se irônica, escrevia compulsivamente páginas e páginas de seu diário, presenteava as pessoas; na fase depressiva, ficava totalmente apática e já chegara a ser internada. À pergunta de Mattos se ela costumava ter alucinações, o psiquiatra disse que não; às vezes, apenas passava por ilusões, como mania de perseguição, e só.

Novamente Alice apareceu no apartamento de Mattos e pediu para morar lá. Os dois dormiram juntos naquela noite. Na manhã seguinte, ela saiu com o comissário, que lhe deu as chaves da portaria e do apartamento. Ela havia deixado uma carta para o marido, comunicando-lhe que não queria mais viver com ele, que não a procurasse, pois estava bem de saúde.

Salete resolveu levar sua mãe para Mattos conhecer. Encontrou Alice no apartamento. Ao chegar, o comissário surpreendeu-se com as três juntas. Sugeriu que mãe e filha se retirassem. Salete saiu com vontade de chorar. Alice comprara vários objetos para o apartamento, inclusive cama nova, sob os protestos de Mattos, que nada adiantaram. Estava tudo pago.

O comissário se preocupava com a presença de Alice no seu apartamento porque tinha sido procurado lá por Turco Velho, incumbido de matá-lo. Por sorte, ela não estava no momento. Entretanto, mesmo ciente do perigo, Alice continuou morando com Mattos e até informou isso ao marido, o qual insistiu em que ela voltasse para casa. Mas ouviu-a dizer que amava o comissário e só precisava dele.

Em uma de suas conversas habituais, Alice perguntou a Mattos se estava feliz e pediu que prometesse não ver mais Salete. O comissário disse que precisava sair depressa, desconversou e não prometeu. Alice afirmou ser até bom que ela ficasse sozinha naquele momento porque tinha muita coisa para escrever no diário. No distrito, Mattos recebeu um telefonema do porteiro do prédio cientificando-o de que tinha havido um início de incêndio no andar em que morava. Lá chegando o mais depressa possível, soube que Alice queimara o diário e deixou o fogo se alastrar. Encontrou-a sem ferimentos. O comissário ligou para o psiquiatra, que mandou levá-la para a Casa de Saúde Dr. Eiras. O médico quis aplicar eletrochoque; Mattos pediu que ele não usasse esse procedimento em Alice. Deixou-a internada e disse que passaria lá no dia seguinte, assim que saísse do plantão. Logo que pôde foi visitá-la. Achou-a dormindo. O Dr. Arnoldo já havia passado cedo e a medicara. De casa, ligou para o psiquiatra, segundo o qual Alice passava bem e teria alta em dois dias. Mas não queria voltar para junto de Lomagno. Mattos pediu ao Dr. Arnoldo que lhe desse o recado de voltar para o apartamento dele. Pouco depois desse telefonema, o comissário foi assassinado.

SALETE E MATTOS

Salete só estudou até a quarta série do ensino fundamental. Seu amante, Luiz Magalhães, ofereceu a ela emprego no Senado, pois ele era bem-relacionado lá. Por medo, Salete recusou. Mas tinha vontade de estudar mais para conseguir exercer alguma profissão. Ela nasceu e foi criada em grande pobreza, sem conhecer o pai, numa favela perto de São Cristóvão, no Rio. Era a primeira dos três filhos. Ainda criança, tomava conta dos irmãozinhos para a mãe, uma mulata quase preta, feia e ignorante, ir trabalhar. Aos treze anos, Salete fugiu de casa e tornou-se babá numa casa de família em Botafogo. Lá ficou até encontrar D.Floripes, que a convidou para morar com ela e ganhar muito mais.

Antes, pois, de ser “descoberta” por Magalhães, Salete se sustentava financeiramente como uma prostituta agenciada por D. Floripes, relacionando-se com homens de classe média. Gastava o que ganhava comprando roupas caras. Graças a isso, foi notada por um homem rico.

Eram freqüentes as idas de Salete ao apartamento de Mattos. Este referia-se a Luiz Magalhães como o coronel dela. “É uma pessoa que me ajuda”, retrucava. “Se você quiser eu largo ele e venho morar aqui”. Mattos nunca quis. As discussões dos dois não tinham efeito duradouro.

Salete pedia sempre os “trabalhos” de mãe Ingrácia para conquistar Mattos (até cueca dele levou para a macumbeira fazer “despacho”).

Na primeira vez que Salete viu a loura Alice – justamente quando esta tocou a campainha no apartamento de Mattos e se despediu sem entrar –, não pôde deixar de se comparar fisicamente com ela. Embora soubesse que seu corpo era perfeito, achava-se horrorosa de rosto.

Mãe Ingrácia, ao lhe contar Salete sobre Alice, aconselhou-a a conseguir casquinhas de alguma ferida, mais eficientes do que a cueca para “trabalhos” de atrair paixão de homem. Quando o comissário bateu com a cabeça na parede e formou um “galo”, Salete ficou esperançosa de que virasse ferida com casquinha. Na primeira oportunidade que apareceu, ela foi mexer no fogão do apartamento de Mattos, pediu ajuda para fazer macarronada e acabou queimando, de propósito, a mão dele, na expectativa de que viesse a se formar uma ferida com casquinha. Mattos não esbravejou. Prometeu dar-lhe as casquinhas da ferida, mas pediu que não voltasse a ver a macumbeira, pois ele já gostava dela.

Salete não tinha tido nunca mais notícias da família e supunha que a mãe estivesse morta. Grande foi a sua surpresa no dia em que, do ônibus onde estava, viu a mãe saindo de uma loja. Pensou: “... a desgraçada não tinha morrido. Meu Deus, ficou mais negra e mais feia!” Sentiu-se infeliz ante a possibilidade de Luiz Magalhães e, sobretudo, Mattos virem a conhecê-la. Um dia depois, contudo, passou a pensar na mãe com pena. Tomou uma decisão. Pegou um vestido novo de seda francesa, embrulhou-o e foi tentar localizar a mãe para presenteá-la. Subiu o morro olhada com espanto pelos moradores, à procura de D. Sebastiana. À porta do barraco de madeira, coberto com folhas de zinco, encontrou-a. Sob forte comoção, ficou sabendo que um dos irmãos estava preso e o outro fugira de casa e não voltou mais. Salete pediu perdão à mãe e disse que a levaria para morar com ela. Já no seu apartamento, Sassá, como a mãe a chamava, a fez tomar banho e depois levou- a uma loja e à costureira, a fim de providenciar-lhe roupas novas.

A queimadura da mão de Mattos criou uma casca que ele guardou para Salete, a qual não sabia disso porque sumira do apartamento do comissário desde que Alice passara a morar lá.

Salete andava muito desgostosa, mais magra. Parara de se comunicar com Mattos e não atendia aos telefonemas de Magalhães. Certa feita, porém, com muita insistência deste, resolveu fazer-lhe um favor. Magalhães a levou à Sul América – Seguros e Capitalização, onde alugou um cofre em nome dela. Ele precisava ir para o Uruguai às pressas e passaria lá um tempo indeterminado “até que as coisas melhorassem”. Como tinha muitos inimigos, explicou, alguns objetos de valor ficariam guardados no cofre em nome dela. Assim que voltasse, os pegaria de novo. Deixou com Salete a chave, recomendou que não a perdesse, informou-a de que havia depositado bastante dinheiro na conta dela e afastou-se rapidamente. Salete desolou-se porque ele nem se importou quando lhe disse que gostava de outro homem. Magalhães sempre falava que, se isso acontecesse, a mataria. Ele brincou nervosamente: “Na volta eu te mato”.

Logo depois de ligar para o Dr. Arnoldo, que tratava de Alice hospitalizada, Mattos telefonou para Salete. Disse-lhe que a outra estava internada, que iria precisar dele por um tempo, mas que a verdadeira namorada dele era ela, Salete. Pediu que fosse vê-lo, tinha saudade. Na verdade, ele estava tendo uma crise fortíssima por causa da úlcera. Salete chegou logo, encontrou-o deitado, pálido, suando muito, precisando ser levado para um hospital. Ao socorrê-lo, Salete recebeu um embrulhinho com casquinhas de ferida. De repente, a porta da frente foi aberta. Chicão entrou e matou os dois.

PERSONAGENS EM EVIDÊNCIA NA TRAMA HISTÓRICO-POLÍTICA

GETÚLIO VARGAS – presidente da República do Brasil, ditador de 1937 e 1945 e eleito pelo voto popular em 1950.
GREGÓRIO FORTUNATO – um negro forte, amigo e chefe da guarda pessoal de Vargas, conhecido como “Anjo Negro”, mandante próximo do atentado à vida de Lacerda.
CARLOS LACERDA – jornalista, dotado de grande poder verbal, apelidado de “Corvo”; eleito deputado federal, através de artigos no jornal “Tribuna da Imprensa” e de discursos na Câmara, liderou o partido da UDN e aliou-se aos militares na conspiração golpista contra o governo de Vargas.
CLIMÉRIO – integrante da guarda pessoal de Vargas, encarregado por seu chefe e compadre Gregório de contratar um matador para dar fim à vida de Lacerda.
ALCINO – um carpinteiro desempregado, amigo de Climério, contratado por este para matar Lacerda.
NÉLSON - motorista cujo táxi foi utilizado por Climério e Alcino no atentado contra Lacerda.
MAJOR VAZ – oficial da Aeronáutica, morto no atentado contra Lacerda.
CAFÉ FILHO – vice-presidente da República no governo democrático de Vargas.
BRIGADEIRO EDUARDO GOMES – líder das forças militares contrárias a Vargas.
MARECHAL MASCARENHAS DE MORAIS – chefe do Estado Maior das Forças Armadas no governo de Getúlio, ex-comandante das tropas militares brasileiras que atuaram na Itália durante a 2ª Guerra Mundial.
GENERAL ZENÓBIO DA COSTA – Ministro da Guerra no governo de Vargas.
ALZIRA VARGAS – filha de Getúlio, casada com
ERNÂNI DO AMARAL PEIXOTO – político atuante e de confiança do sogro.
LUTERO VARGAS – filho de Getúlio, deputado federal.

TRAMA HISTÓRICO-POLÍTICA

Gregório Fortunato estava sozinho em seu quarto rememorando o mau transcorrer daquele ano de 1954 que já ultrapassara o primeiro semestre: manifestos dos militares contra o Governo; falta de confiança de Getúlio no apoio das Forças Armadas; tentativa de “impeachment” do presidente por parte dos políticos traidores; a liderança do oposicionista Carlos Lacerda com claros objetivos golpistas; vários políticos e empresários getulistas cobrando dele, Gregório, a morte de Lacerda. Já lhe tinham prometido uma boa soma de dólares como recompensa. De fato estava em poder de Luís Magalhães a quantia de quinhentos mil cruzeiros, enviada pelo industrial Matsubara – beneficiado pelo Governo num grande empréstimo junto ao Banco do Brasil – importância destinada a ajudar na campanha dum deputado, que era secretário particular do presidente Getúlio, mas que Gregório estava guardando para pagar ao futuro matador de Lacerda.

Gregório saiu do quarto e foi encontrar-se com Climério. Cobrou dele o que já lhe havia pedido: a indicação de um homem de confiança para matar Carlos Lacerda. Climério tranqüilizou o chefe dizendo que logo arranjaria o matador certo. Estava pensando em Alcino, que não era pessoa qualificada para isso, mas não podia contar com outro. Talvez, bem instruído, fizesse o serviço direito.

Alcino assumiu com Climério a obrigação de matar o jornalista Lacerda, única forma de ele conseguir dinheiro para ter casa própria.

Estabelecido o plano, Climério e Alcino tomaram o táxi de um tal de Nélson. Na noite do dia 5 de agosto – o ano era 1954 – estacionaram o carro em rua próxima ao Colégio São José, de onde sairia Lacerda. Com um revólver 45, Smith & Wesson, furtado do Exército, Alcino se pôs próximo à entrada do colégio. Climério ficou na porta. Depois de Alcino atirar, aproveitariam a confusão para fugir em direção ao táxi.

Lacerda não apareceu entre as pessoas que saíram do colégio. Então, os dois foram aguardar o jornalista perto do prédio onde ele morava, na Rua Tonelero, em Copacabana. Depois de quinze minutos de espera, já iam desistir, quando um carro parou e dele saltaram Lacerda, um filho e o Major Vaz. Alcino atirou no jornalista, que, ferido, correu para o interior da garagem. Sem que Alcino desse conta, o major se aproximou e agarrou a arma. O matador atirou, caiu o major. Alcino fugiu para onde estava o táxi; um policial correu atrás, atirando. Alcino apontou para ele e disparou, deixando-o caído. O táxi já estava de motor ligado e saiu em disparada. Climério tinha sumido, mas deixara a instrução de que Alcino embrulhasse o revólver e o jogasse no mar. No momento em que ele pôs a mão para fora do táxi, na Avenida Beira-Mar, a fim de lançar nas ondas a arma envolvida numa flanela, o carro fez uma manobra brusca e o embrulho caiu no asfalto. O táxi parou mais à frente e foi embora assim que Alcino desceu. Andou de um lado para outro sem saber o que fazer, já que não localizou na escuridão o revólver caído. Fora da visão de Alcino, um mendigo apanhador de papéis recolheu do meio da rua o embrulho e desapareceu. O matador acabou desistindo de encontrar a arma. Tomou um ônibus e foi até à casa de Climério, que logo em seguida chegou no táxi de Nélson. Com a promessa de que receberia o dinheiro prometido daí a dois dias, Alcino retirou-se.

O Major Vaz morreu em decorrência do tiro, mas Lacerda ficou ferido apenas no pé e responsabilizou o presidente da República pelo atentado, que provocou muita confusão no meio político. O filho de Getúlio, deputado Lutero Vargas, foi apontado como mandante do crime.

Dois dias após o atentado, Climério retornou à casa do pistoleiro Alcino. O motorista Nélson havia se apresentado à polícia e fez declarações incriminando os dois. Climério deu a Alcino dez notas de mil e mandou que ele sumisse.

As investigações sobre o atentado foram tomando vulto. Enquanto isso, em todos os grupos de pessoas no país o assunto político estava em pauta. Havia os que apostavam na decadência de Getúlio, os que tinham medo de o vice-presidente Café Filho assumir, os que viam o Brasil na mão dos militares, sobretudo da Aeronáutica... O senador Freitas, por exemplo, percebendo que a oposição ganhava mais força, declarou em discurso no Senado: “a nação não pode esquecer, não pode perdoar essa ignomínia”, referindo-se ao atentado.

Mais de quatrocentos oficiais da Aeronáutica, do Exército e da Marinha reuniram-se para manter o clima de indignação pela morte do Major Vaz e exigir o prosseguimento do inquérito até o fim. Outros encontros de militares em maior quantidade se realizaram sob a liderança do brigadeiro Eduardo Gomes.

Devido às informações prestadas pelo motorista Nélson, Climério estava sendo caçado pela polícia, que trabalhava no processo com apoio de oficiais militares. Já tinham até interrogado o mendigo Russo que encontrara na rua a arma do crime e a apreenderam.

Climério recebeu dinheiro enviado por Gregório Fortunato e fugiu para o sítio de um compadre, na Serra do Tinguá. Lá, se escondeu num barraco no meio de um bananal.

O deputado Lutero Vargas foi visitar seu pai para confirmar-lhe sua inocência no atentado. Achou Getúlio muito prostrado, sem vontade de lutar contra o Corvo difamador. Em contato com seus assessores, incluindo ministros e generais do Alto Comando, Vargas notava indecisão no apoio a ele, exceto o governador Amaral Peixoto, seu genro, e o ministro da Justiça Tancredo Neves, que estavam francamente a seu lado.

Além da imprensa, os opositores do governo faziam uma bem orquestrada campanha de desmoralização do presidente, da qual participavam a cúpula da Igreja, setores das Forças Armadas, do empresariado, partidos políticos de oposição. A voz mais eloqüente desse grupo era Lacerda, um mestre da intriga, segundo o senador Freitas. Suas falas no rádio e seus artigos no jornal haviam levado o Governo a colocar de prontidão nos quartéis trinta mil soldados, somente no Rio de Janeiro. Os diretores dos grandes jornais – incluindo Roberto Marinho de “O Globo” – conseguiram designar um representante credenciado no inquérito do atentado, certos de que formavam o Quarto Poder.

Vargas marcou uma reunião secreta com a família e alguns amigos. Propôs sua renúncia como forma de evitar uma guerra civil. Mas o consenso dos presentes foi que ele não cedesse às pressões dos golpistas.

Alguns generais quiseram forçar o Mal. Mascarenhas de Morais a concordar em entregar o Governo ao Gen. Zenóbio da Costa. Em nome do marechal falou o Gen. Castelo Branco que, se o Presidente renunciasse, deveria assumir o Governo seu substituto legal, o vice-presidente.

Depois da missa de sétimo dia pela morte do Major Vaz formou-se um tumulto da multidão aglomerada às portas da Igreja da Candelária, no centro do Rio. A polícia interveio. Houve feridos e mortos.

Após a inauguração da Usina Siderúrgica Mannesmann, em Belo Horizonte, durante o almoço no Palácio da Liberdade, ao lado do Governador Juscelino Kubitschek, Vargas afirmou que não entregaria o cargo e o exerceria até o fim do seu mandato.

Os deputados da UDN, porém, acusavam o Governo exigiam a renúncia de Getúlio. De todo lado e a todo momento eram veiculadas no rádio e na imprensa notícias alarmantes, que incriminavam o Governo de Vargas pelo atentado.

O Senador Vítor Freitas tentava convencer, sem conseguir, os líderes de seu partido, o PSD, a exigirem de Getúlio a renúncia ou a deporem-no. Os dezesseis deputados e quatro senadores continuavam indecisos porque, apesar de reconhecerem o “mar de lama” denunciado por Lacerda e a iminência da queda do Presidente, o partido deles apoiava o Governo, no lado oposto ao da UDN. As pressões a favor de um golpe aumentavam e choviam denúncias de corrupção.

Preso no Galeão, Gregório Fortunato foi interrogado durante oito horas. Negou saber do atentado e disse ter sido surpreendido com a notícia do envolvimento de Climério no caso. Os militares e policiais que chefiavam as investigações arrancaram dele um depoimento escrito no qual apontava Lutero Vargas como mandante. Foi promovida uma acareação do filho de Getúlio com o “Anjo Negro”, para desmoralizar o integrante da própria família do Presidente. Gregório, porém, nada disse, permanceceu totalmente indiferente e alheio.

Enquanto isso, Climério, cansado do isolamento, resolveu dar um passeio com o compadre até a uma venda no vilarejo. Lá encontraram uma mulher que morava no Rio e conversaram. Essa mulher, assim que voltou para casa, ligou para um tenente da Aeronáutica, seu amigo, para revelar o esconderijo de Climério. Logo depois chegaram à residência dela vários oficiais. Certificaram-se da veracidade da informação e colheram o endereço do foragido na Baixada Fluminense.

Armou-se uma verdadeira operação de guerra para capturar Climério. Quando alguns soldados e cães farejadores cercaram a casa do compadre de Climério, este já havia fugido, embrenhando-se na mata. Veio a noite e ele descansou. Na manhã seguinte, tropas do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, com apoio de aviões, helicópteros e viaturas militares fecharam o cerco sobre o fugitivo. Às oito horas, localizaram-no. Às onze, ele, preso, desembarcava de um helicóptero na base militar do Galeão. Sua mulher, Elvira, também fora presa naquela manhã.

Homens do Governo, para resistir aos diários ataques a Vargas por parte da UDN e seus aliados, estavam articulando o apoio do ex-presidente Dutra e do Governador Juscelino a Getúlio. Mas os jornais faziam o jogo da oposição.

Apesar de tudo, o Governo procurava dar sinais de vida. Vargas chegou a entrar em entendimento com Henri Kaiser, um dos reis da indústria automobilística norte-americana, para instalar no Brasil uma fábrica com capacidade de produzir cinqüenta mil carros por ano. Os negociadores saíram do encontro com a firme convicção de que Vargas estava doente, tamanho era seu abatimento.

Os envolvidos no atentado da Rua Tonelero foram apresentados à imprensa: Gregório Fortunato, que assumiu ser o mandante do crime; João Valente, ex-subchefe da guarda pessoal da Presidência, que entregou o dinheiro a Climério para efetuar a fuga; Alcino, que foi preso quando buscou mulher e filhos em sua casa; o taxista Nélson Raimundo de Sousa; Climério, que pareceu muito assustado. Em seguida, exibiu-se o material de propaganda do PTB, partido do Governo, encontrado com eles.

Em reunião no Clube Militar, exigiu-se a renúncia do Presidente, mas alguns oficiais ponderaram que primeiro deveria ser apurado o crime. Nos meios políticos também se faziam, no país inteiro, pressões para a renúncia de Vargas. Até o Tribunal de Contas da União manifestou seu repúdio ao atentado da Rua Tonelero. O Consultor Geral da República deu o parecer de ter havido arbitrariedade e abuso no vultoso empréstimo do Banco do Brasil a empresas sem idoneidade – entenda-se que apoiavam o Governo Federal.

Alzira Vargas venerava o pai. Tinha na memória a sua trajetória política desde os primeiros movimentos, em 1923, quando ele partiu para lutar numa interminável revolução. Lembrava-se dele em 1930 chefiando a outra revolução que o levou ao Governo Federal; em 1932, abafando a insurreição de S. Paulo; em 1935, comandando a resistência a militares rebeldes, unidos aos comunistas; em 1945, derrotado e exilado no próprio país. Alzira imaginou que a História redimira seu pai, retornando-o pelo voto à Presidência do país. Agora, em 1954, Getúlio era um velho derrotado.

Em longa reunião no Clube da Aeronáutica, os brigadeiros decidiram unanimemente que só a renúncia de Vargas seria capaz de restaurar a tranqüilidade no país. Quando esse fato foi levado ao Presidente, ele rejeitou a hipótese da renúncia. As movimentações dos militares caminhavam no sentido de guerra civil. Gen. Zenóbio da Costa e o Mal. Mascarenhas de Morais mantinham lealdade a Vargas; o Brigadeiro Eduardo Gomes liderava os opositores, que pressionavam cada vez mais. A residência do vice-presidente Café Filho permanecia repleta de amigos e correligionários políticos.

Às onze horas da noite de 23 de agosto, os dois altos militares da confiança de Getúlio estavam receosos: mais de quarenta generais do Exército haviam subscrito o manifesto dos brigadeiros. Já passava de meia-noite quando foram ao Palácio do Catete anunciar a Vargas que ele tinha perdido o apoio militar. O Presidente concordou com a idéia de convocar uma reunião de todo o ministério na manhã seguinte. Nesta, Vargas ouviu a opinião de todos os ministros, de sua filha Alzira e de alguns outros presentes indevidamente. As alternativas eram resistência armada ou renúncia. Vargas estava visivelmente desgastado. Finalizando a reunião, ele fez cessar a confusão de vozes que se cruzavam e definiu: “Se os ministros militares me garantem que as instituições serão mantidas, eu me licenciarei.” Tancredo Neves, ficou encarregado de redigir uma nota à nação. Café Filho chegou a receber os cumprimentos daqueles que estavam em sua casa, pois a notícia chegou rapidamente. Mas às cinco e vinte da manhã, quando o Chefe de Polícia anunciou pelo rádio que se tratava apenas de licença e não de renúncia, a expectativa tornou-se tensa.

Em seu quarto, Getúlio preparou-se para descansar. Recebeu a visita do irmão Benjamim, chorou diante dele que, sensibilizado e surpreso por nunca ter visto o irmão assim, confortou-o: “Tu já saíste de situações piores.” Quando o camareiro Barbosa entrou no quarto para lhe fazer a barba, Vargas estava de pé, vestido com um pijama de listas e disse que não queria se barbear. Novamente sozinho, o Presidente apanhou um revólver, deitou-se, encostou o cano da arma no lado esquerdo do peito e apertou o gatilho.

Imediatamente correu a notícia do suicídio de Vargas. Grande foi a confusão no Palácio do Catete. Os jornalistas receberam uma nota oficial da morte do Presidente. Foram entregues também dois documentos: o texto da chamada carta-testamento de Vargas e de um bilhete que diziam ter sido manuscrito pelo próprio Presidente (“deixo à sanha dos meus inimigos o legado de minha morte...”).

O corpo de Vargas ficou exposto na sala do Chefe do Gabinete Militar. Uma multidão formou filas para ver o Presidente morto, situação que durou até às oito e meia do dia 25. Logo em seguida, colocado numa carreta, o caixão foi conduzido até o Aeroporto Santos Dumont, seguido por milhares de pessoas. Como houve gritos de protestos e ameaças de tumulto, soldados da Aeronáutica dispararam contra os manifestantes; populares reagiram e várias pessoas acabaram ficando feridas. Acompanhado pela viúva Darcy Vargas e pelos filhos Alzira e Lutero, o caixão foi posto num avião que alçou vôo para o Rio Grande do Sul. Pessoas que retornavam do aeroporto foram formando grupos de protesto diante de vários prédios: Ministério da Aeronáutica, Embaixada dos Estados Unidos, edifício da Esso... Pelotões de soldados investiram contra os revoltosos e muitos foram os feridos. Uma multidão exaltada encaminhou-se para o escritório do jornal “O Globo” para incendiá-lo. As labaredas já começavam a queimar o edifício quando os bombeiros acudiram.

Sufocados os focos de rebelião contra os militares e civis que levaram Vargas ao suicídio, a vida brasileira voltou ao normal.

2. DIGRESSÕES

O CUMPRIMENTO DA LEI

Numa de suas intervenções, Mattos discutiu com o delegado Ramos. O comissário estava presidindo um auto de prisão em flagrante de um marido por haver cometido crime de lesões corporais em sua mulher. O delegado discordou: o homem só tinha dado uns sopapos, a mulher não apresentava marca de ferimentos, ela mesma ficaria contra a polícia e favorável ao marido em juízo... em suma, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Apesar disso, sob os protestos do advogado que defendia o agressor, Mattos prosseguiu, o fragrante foi lavrado, assinado e a mulher enviada a exame de corpo de delito. O marido pagou uma pequena fiança como mandava a lei e foi liberado. Mattos encerrou o episódio mastigando um comprimido de Pepsamar para acalmar a úlcera gástrica e se perguntando: ele estava tornando o mundo melhor cumprindo a lei?

AS MOTIVAÇÕES DE UM ASSASSINATO

Quando o investigador Rosalvo colhia informações para verificar a possível implicação do senador Freitas no assassinato de Paulo Gomes Aguiar, sugeriu a Mattos que pesquisassem a vida sexual do suspeito. O comissário rejeitou a idéia, alegando que tal tipo de notícias não interessava. Acrescentou que Rosalvo não tinha a menor noção de ética. Apesar do medo que tinha de Mattos – um esquisito e maluco, como o julgava – o experiente policial Rosalvo resolveu dar uma lição no inexperiente comissário. Segundo ele, só se mata por sexo, por poder ou pelos dois motivos juntos. “Assim é o mundo”, concluiu Rosalvo.

O MECÂNICO COSME

Esteve a cargo do comissário Mattos fazer diligências para esclarecer o assassinato de um cliente do mecânico Cosme, a quem este matara durante uma briga com um golpe de chave de cruz na cabeça. A oficina era de Cosme, jovem de 22 anos, e do pai, um português que, na ocasião, estava fora, em Nova Iguaçu. O inquérito pareceu terminado porque Cosme confessou o crime. Mas Mattos, mesmo assim, quis ouvir o velho, por estranhar sua ausência.

Informado da intimação dirigida ao pai a fim de comparecer ao distrito para interrogatório, o rapaz implorou ao comissário que não o fizesse, pois o velho era doente e tudo já estava resolvido. Para Mattos, o criminoso era o pai, a quem o filho estava protegendo.

O sr. Adelino – tal era o nome do pai de Cosme – foi conversar com Mattos. Afirmou que estava na oficina quando o filho cometeu o homicídio. Mattos insistiu na idéia de que Cosme se declarara culpado para proteger um velho doente, o verdadeiro assassino. O sr. Adelino acabou reconhecendo que perdera a cabeça ao ver o filho ser espancado pelo brutamontes e o matara. A decisão de fazer Cosme assumir o crime viera da família reunida, receosa de ver na prisão um homem idoso que sofria do coração. Lavrada a confissão, Cosme foi solto sob seus protestos: “Fui eu, fui eu! O papai não sabe o que está dizendo!” O sr. Adelino esperaria o julgamento em liberdade, porquanto não tinha havido fragrante. Mattos ficou visivelmente abalado com toda essa situação e disse aos dois que um bom advogado conseguiria a absolvição do velho.

Passado certo tempo, os policiais do distrito receberam a notícia de que o Sr. Adelino morrera de um enfarto fulminante. Dias depois, Cosme procurou o comissário para ser fiel à verdade. Esclareceu que a confissão de culpa do pai acontecera porque Mattos o forçara a fazê-la, mas que o criminoso era ele, Cosme. A família se calara por acabar se convencendo de que seria melhor o crime ser atribuído ao pai porque ficaria mais fácil absolvê-lo. “ O senhor matou o meu pai. Eu matei o meu pai. Minha mulher, minha mãe mataram o meu pai. Ele era um português velho que não sabia fingir ser o que não era...” E Cosme pedia para ser preso. Mattos o expulsou do distrito com brutalidade, arrastando-o pelo braço: “Ouça, sua besta. Eu não posso e não quero prender você por esse crime. Não posso aliviar sua consciência, nem a da sua mulher, nem a da sua mãe. Não seja estúpido. Não há nada mais a fazer. Saia daqui e não volte, não quero ver sua cara nunca mais, viva com essa lembrança horrível pelo resto da sua vida, como eu também terei de viver com ela.”

O VELHO EMÍLIO

Quando estudante, Mattos fazia parte da claque do Teatro Municipal para assistir a operas de graça e ainda ganhar algum dinheiro. O velho Emílio era o chefe da claque.

Após muito tempo sem vê-lo, o comissário recebeu um telefonema dele pedindo que marcassem um encontro. Na hora combinada, lá estava Emílio, ao lado da estátua de Chopin, com aparência de enfermo e empobrecido. Os dois dirigiram-se para um bar, onde tomaram chope. O velho recordou o passado, começou a cantar trechos de ópera. Mattos percebeu que ele queria dinheiro e deu-lhe um cheque de duzentos e oitenta cruzeiros para pagar o aluguel de quarto vencido.

Menos de uma semana depois, Emílio foi ao apartamento de Mattos, justamente quando este estava recebendo Alice pela primeira vez após três anos sem se verem. O velho queria mais dinheiro. Como o comissário lhe dissesse que não tinha, Emílio insinuou que Alice poderia ter. De fato, a pedido de Mattos, ela assinou um cheque de quinhentos cruzeiros e o doou ao velho. O comissário o despediu: “Está na hora de ir embora”, e o levou para a sala, abrindo-lhe a porta a fim de que saísse. Não se viram mais.

A TEORIA DE PÁDUA

O comissário Pádua irritava-se constantemente com Mattos porque este, ao substituí-lo nos plantões, costumava soltar os vagabundos que ele prendia. Na primeira vez em que isso aconteceu, Pádua pensou até em matar o colega; porém se controlara ao saber que Mattos era um dos raros policiais do Departamento a quem chamavam de “asa branca”, termo designativo dos que não aceitavam suborno.

Pádua preferiu discutir sempre com Mattos na esperança de mudar a opinião dele. Repetia mais ou menos o mesmo “discurso”: prendia qualquer um que estivesse parado numa esquina de madrugada, tachando-o de suspeito; mais tarde, se a ficha fosse limpa, soltava-o. Chamava isso de medida cautelar. “Aquela treta de santo Tomás de Aquino de que é preferível absolver cem culpados do que condenar um inocente é conversa mole para boi dormir. Puro lero-lero. Não é pensando assim que vamos proteger as pessoas decentes. Você tem medo de quê? Dessa imprensa de merda corrupta e analfabeta? Desse cascateiro escroto que é o nosso delegado? A cidade está entregue aos marginais, essas filosofias covardes não passam de justificativas de tiras comodistas que querem fugir das suas responsabilidades.”

Antes, Mattos ficava nervoso e revidava discordando: agora, ficava entediado, porém não discutia mais.

A PROSTITUIÇÃO

A propósito do “senadinho”, Mattos levantou a hipótese de que poderia fechá-lo, porquanto ali cometia-se o crime de lenocínio, por estar sendo mantida uma casa de prostituição. Mas, pensava, havia algum mal num bordel? Em Atenas antiga, a prostituição era livre e os prostíbulos considerados estabelecimentos de utilidade pública. Santo Agostinho tinha o ponto de vista de que a eliminação das meretrizes seria um mal maior do que deixá-las livres. Lembrou-se “ dos debates nas aulas de Direito Penal em torno de frases idiotas sobre prostituição que inflamavam as discussões entre os alunos. Desde criança se sentia atraído pelas prostitutas, conquanto jamais tivesse freqüentado um bordel. Vieram à sua mente as frases de Weininger, ‘a mulher prostituta é a salvaguarda da mulher mãe’; de Lecky ‘a prostituta é a custódia da virtude, a eterna sacerdotisa da humanidade’; de Jeannel, ‘ as prostitutas em uma cidade são tão necessárias quanto os esgotos e as lixeiras’. Um mal inextirpável, mas necessário – quem dissera isso? Numa associação de idéias recordou a melodia da ária Ah, Fors è lui...”

A LÓGICA

“Mattos, conquanto reconhecesse ser emotivo e impulsivo em demasia, acreditava ter lucidez e perspicácia suficientes para escapar das clássicas ciladas da investigação criminal, principalmente da ‘armadilha da lógica’. A lógica era, para ele, uma aliada do policial, um instrumento crítico que, nas análises das situações controversas, permitia chegar a um conhecimento da verdade. Todavia, assim como existia uma lógica adequada à matemática e outra à metafísica, uma adequada à filosofia especulativa e outra à pesquisa empírica, havia uma lógica adequada à criminologia, que nada tinha a ver, porém, com premissas e deduções silogísticas à la Conan Doyle. Na sua lógica, o conhecimento da verdade e a apreensão da realidade só podiam ser alcançados duvidando-se da própria lógica e até mesmo da realidade. Ele admirava o ceticismo de Hume e lamentava que suas leituras realizadas na faculdade não apenas do filósofo escocês, mas também de Berkeley e Hegel, tivessem sido tão superficiais.”

CRIMINOSOS E INDULTO

Diálogo de Rosalvo e Mattos:

“O senhor viu que o presidente vai indultar mais criminosos? Em julho já foram beneficiados trinta assassinos, vinte e dois ladrões, três estelionatários, um macumbeiro e um receptador. O que o senhor acha disto, doutor? Mais sessenta e tantos criminosos soltos na rua’.
‘Eles não deviam nem sequer ter sido presos.’
‘O senhor está falando sério? Acho que o nosso problema é que existem criminosos demais na rua.’
‘Prender um macumbeiro, um receptador é uma estupidez. O sujeito preso custa um dinheirão à sociedade, cumpre algum tempo de cadeia e sai pior do que entrou.’
‘Então o senhor acha que nem ladrões nem assassinos deveriam ser presos? E um tarado estuprador, como o Febrônio?’
‘Se o sujeito for um risco grande para a sociedade, um criminoso psicopata, coisa assim, aí o cara tem que ser tratado apenas.’
‘E a família da vítima?’
‘Foda-se a família da vítima. Você fala como se estivéssemos no século XVIII, antes de Feuerbach. A pena como vingança. Você devia ter estudado melhor esta merda na faculdade.”

3. COMENTÁRIO

“Agosto” é classificado como romance – embora possa lhe caber a classificação de novela, uma vez que engloba vários conflitos paralelos e vivenciados por personagens comuns a vários deles – apresenta 26 capítulos que acompanham cronologicamente os primeiros vinte e seis dias do mês de agosto de 1954.

O livro tece uma narrativa ficcional que abrange relatos históricos numerosos e detalhados com exatidão: datas, locais... Os personagens pertencentes à História recebem envolvimento também imaginário.

A estrutura da parte de ficção se concentra no assassinato de Paulo Machado Gomes de Aguiar e da parte histórica, no atentado da Rua Tonelero. Este foi cometido com a intenção de matar o jornalista Carlos Lacerda, mas acabou vitimando fatalmente o Major Vaz, da Aeronáutica, crime cujos desdobramentos pressionaram o presidente Getúlio Vargas e o levaram ao suicídio.

O foco narrativo é a visão do próprio autor em terceira pessoa, impessoal e onisciente. Quando são apresentadas opiniões subjetivas dos personagens, costuma ser usado o discurso indireto livre, misturando primeira e terceira pessoas.

A História e a ficção têm na intriga policial um elemento comum, muito explorado, objeto de amplo conhecimento de Rubem Fonseca, que exerceu a função de comissário de polícia na vida real.

O cenário é a cidade do Rio de Janeiro, útero da corrupção. Nela está o Palácio do Catete, morada do Presidente, uma espécie de túmulo no qual jazem silenciados os crimes políticos. Nela está o distrito policial, em que o bem-intencionado Mattos atua com honestidade insuficiente para deter o domínio do crime organizado. Nela está o hospital, que abriga Alice para jogá-la à margem com eletrochoque. A única compensação, em toda esta cadeia negativa, é o apartamento de Mattos, uma pequena ilha, refúgio desprovido de luxo mas rico de arte – os discos de ópera – , para onde acorrem Alice e Salete, que desejam sobreviver à corrupção, acolhidas por um policial solitário e solidário.

A trama histórico-política é apresentada de forma documental, fruto de minuciosa pesquisa nas publicações da imprensa em 1954, sobretudo no mês de agosto. O narrador menciona jornais (Tribuna da Imprensa, O Globo, Última Hora...) e revistas (Grande Hotel, Revista do Rádio, O Cruzeiro, A Cigarra...)

Não se faz um julgamento da História ou de Vargas. “Agosto” é uma investigação que resgata a memória de um período da vida pública brasileira.

A trama policial tem como protagonista Mattos, que parece ter pensamentos, sentimentos e procedimentos autobiográficos do autor: policial intelectualizado, honesto, isento e crítico da corrução, compreensivo com os marginalizados autores de pequenos delitos – ele libertava os bicheiros de rua – inadaptado impacientemente ao meio policial bruto e subornado...

Assim como em “Dom Casmurro”, também em “Agosto” tipos são criados semelhantes a personagens de ópera: Alice lembra a princesa Isolda (de “Tristão e Isolda”) e Salete, a “La Traviata”, na condição de ex-prostituta.

Parece ter sido intencional atribuir a Mattos o gosto pelas óperas. Sabe-se que a origem delas se relaciona com tragédia. E esse aspecto trágico se mostra tanto na ficção – Mattos, Salete... – quanto na História – Vargas. Os protagonistas de tragédia sempre procuram o caminho da autenticidade perante si mesmos, mas o destino acaba destruindo-os.

Como existe o gênero da ópera bufa – que ameniza o trágico pela inserção do cômico –, o livro contém ingredientes desse tipo de ópera. Por exemplo, Mattos e Salete foram assassinados duas vezes, porquanto dois matadores, agindo individualmente e em momentos diferentes, assumiram os crimes e receberam recompensas. Aliás, vem explícita essa tragicômica situação no trecho de ópera cantado pelo sr. Emílio, em italiano, cuja tradução é a seguinte: “Tudo no mundo é farsa, o homem nasceu farsante, em seu cérebro a razão sempre é ludibriada.(...) Ri bem quem dá a última risada.”

O comissário Mattos vai se configurando na sucessão dos relatos como a única figura detentora de algum poder que se faz antagônica ao mal. Tanto os contraventores do jogo de bicho que subornavam quanto os policiais subornados tinham a honestidade dele como demonstração de loucura. Sem apoio, impotente para conter a onda avassaladora do mal, rompeu com a polícia e se decidiu por Salete. Neste exato momento, a úlcera perfurou e ele morreu vítima das forças a que se opôs.

É constante na produção literária de Rubem Fonseca a revelação da violência explícita. Em “Agosto”, ela aparece sob a forma brutalista nas descrições dos matadores em ação. Predomina, porém, o enfoque do ninho da violência, o estado de corrupção em que vivem os poderosos de grande e de pequeno porte: “toda autoridade contém de certa forma algo de corrupto e imoral”. Há um desfile de corruptos , desde os políticos desonestos, passando por industriais metidos em negociatas, até os contraventores do jogo de bicho que subornam policiais irresponsáveis.

Da leitura atenta do livro, pode-se deduzir que o nascedouro da violência está no âmbito político, pois é a violência camuflada, exercida pelos condutores dos destinos do país, preocupados apenas em alcançar o poder com apoio da imprensa venal que manipula covardemente a opinião pública.

É interessante aduzir que, na narrativa histórica, o autor não se posicionou a favor do Governo ou contra ele, porquanto preferiu denunciar a corrupção tanto naqueles que provocavam quanto naqueles que acusavam o “mar de lama”. Estende, na ficção, essa denúncia ao meio policial. Em ambas as situações “a impunidade sempre será a testemunha ocular da fragilidade humana”.

“Agosto” contém situações com forte ingrediente metafórico. Eis alguns exemplos: o assassinato de Paulo Aguiar (veio à tona tudo o que o rico industrial escondia como representante da alta sociedade apodrecida no meio de prazeres, “a morte se consumou numa descarga de gozo e de alívio, expelindo resíduos excrementícios e glandulares – esperma, saliva, urina, fezes”); a reação de Mattos diante da morte de Vargas, quando ele soltou todos os prisioneiros do distrito ( os verdadeiros criminosos estavam atuando fora da prisão, o que absolvia e tornava inocentes os pobres coitados dentro dela); a úlcera persistente de Mattos (somatização das contrariedades causadas pela corrupção com a qual o policial estressado e inadaptado tinha que conviver); o anel do criminoso que Mattos carregou (fruto lucrativo da vida marginal que o comissário queria desvendar); o dente de ouro de Mattos que ele guardava no bolso (precioso, mas frustrante, porque em vez de triturar como seria sua função na boca, estava arrancado, inútil).

Como é típico em Rubem Fonseca, o vocabulário inclui palavras chulas, grosseiras, agressivas, violentas, como forma de traduzir expressões da realidade sem máscaras. Além disso, ele deu autenticidade à trama histórica, usando termos políticos eruditos e populares das décadas descritas. Acrescentou vocábulos médicos exatos, citações cultas, provérbios... A linguagem dos personagens é fruto do levantamento exaustivo que ele fez da época focalizada.

Este conceituado escritor juizforano confirma em “Agosto” sua excelente performance como minucioso pesquisador dos temas e ambientes escolhidos, como cronista policial, como contador de histórias desenvolvidas sob a forma de roteiro cinematográfico, mantendo o paralelismo de situações diversificadas e o “suspense”.

FONTES:
Concursos Públicos. Digerati. CEC 0004. (CR-ROM)
http://www.sebodomessias.com.br/ (imagem)

Rodamundinho 2008 (Relação dos Participantes)

Escolhidos os 25 participantes do Rodamundinho 2008

O Rodamundinho já está indo pro forno, galerinha! Quem se inscreveu para a coletânea e foi um dos 25 escolhidos espera ansioso para o grande dia! O Rodamundinho será lançado no dia 24 de julho, durante a Semana do Escritor, e reúne contos, redações, poemas e poesias de jovens de Sorocaba e região.

Confira os nomes dos 25 participantes do livro:

André Borges Dias, André Felipe Camargo Bruni, Beatriz Rodrigues Soares, Beatriz Silvério da Rocha, Bianca Marques Milanda, Carolina Arakaki de Camargo, Felipe Giacomin, Isabela Rodrigues Rigo, Jaqueline Andressa Oliveira Manão, José Estevão Pinto de Oliveira, Joyce Souza da Conceição, Júlia Mira dos Santos, Juliana Guimarães Terse, Katherine Martins de Oliveira, Laís Castro Franco de Almeida, Larissa da Silva Vendrami, Laura de Oliveira Marchetti, Laura Mattucci Tardelli, Lucas Geraldo de Milanda Miranda, Luiz Alberto Braga Stopa, Maria Giulia Jacção Alves, Matheus Dantas, Rafaela Moreno Lopes Benevides, Roberta Rodrigues Giudice e Verônica Rodrigues S. Lima.

Fonte:
Colaboração de Douglas Lara. In http://www.sorocaba.com.br/acontece
Notícia publicada na edição de 20/04/2008 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 10 do caderno Cruzeirinho.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Graciliano Ramos (São Bernardo)

Desdobramento e Busca

A obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, apesar de pertencer à Segunda Geração Modernista, cujos propósitos, em prosa, ligam-se à denúncia social, à apresentação questionadora e crítica do Brasil, afasta-se, ao mesmo tempo, da mesma.

Notamos, ao analisar o romance, que, se há denúncia, esta fica em segundo plano. Todo o romance envolve a tensão psicológica de Paulo Honório, que se desenvolverá, aqui, em dois planos: o Paulo Honório narrador e o Paulo Honório personagem.

Paulo Honório causa-nos o "estranhamento" por ser um herói problemático, buscando o entendimento na avaliação de si mesmo. A história é contada num tempo posterior aos fatos, ou seja, Paulo Honório, no passado, vivenciou uma série de experiências, que, agora, num tempo atual (já com cinqüenta anos), pretende relatar em livro. Toda a narrativa se envolverá num processo de circularidade e alternâncias : no enredo central, teremos Paulo Honório personagem; na narração, aparecerá o Paulo Honório avaliativo, distante dos fatos, buscando entender a si, ao mundo e até mesmo ao seu processo de criação.

Inicialmente, o narrador explica ao leitor todo o seu processo de escritura, fazendo-o participar da obra. Em todo o primeiro capítulo do livro, Paulo Honório narrador expõe seu projeto de fazer a obra pela "divisão do trabalho". Para tanto, "Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do ‘Cruzeiro’."(p.7).

Percebe-se que, por meio de um processo de metalinguagem, coloca-se o processo da escritura em discussão. Junto com ele, descobrimos que o processo de elaboração é falho ("O resultado foi um desastre."- p. 8), pois mascara seu autor: ele é um homem rústico, e não aquilo que estavam fazendo que ele parecesse (...está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá quem fale dessa forma!- p.9).

Desta maneira, Paulo Honório coloca-se como alguém simples, não afeito a técnicas narrativas normalmente consideradas sofisticadas, daí as referências à "língua de Camões". É por isso que assumirá a escritura do romance que tratará de sua história, desde guia de cegos a proprietário da fazenda São Bernardo: narrativa que se pretende escrita de forma rústica para tratar de uma "alma agreste", conforme ele se autoqualifica.

Porém, engana-se o leitor se imagina encontrar um texto desconexo, escrito por alguém que se diz semi-analfabeto; ao contrário, deparamo-nos com um texto, que, em termos de linguagem, poderia, inclusive, ser classificado como clássico: a linguagem é "enxuta", sem preocupação descritiva ou abuso de linguagem figurada; é a nítida preferência pelo substantivo, pela informação direta, aproximando-se de uma linguagem referencial, bastante afastada daquilo que chamaríamos, tradicionalmente, de poético. Neste sentido, poderíamos fazer uma comparação com Machado de Assis, pois é a mesma preferência pela análise psicológica, por conseguinte ocupando maior espaço na obra.

É aí que encontramos a iconicidade: é a linguagem reveladora da personagem, ambos agrestes, áridos. Todavia, essa simplicidade toda não nos leva a uma narrativa primitiva, linearmente organizada. O texto é carregado de digressões e processos metalingüísticos.

O narrador quer criar a ilusão de que está escrevendo o texto sem planejamento, sem cálculo prévio, forjando um primitivismo literário num livro de memórias: Paulo Honório narrador conta a história de Paulo Honório personagem. Seu método seria algo semelhante à técnica narrativa impressionista, contando os fatos conforme vão surgindo na memória, daí a "desordem", a falta de linearidade cronológica; por exemplo, ficamos sabendo que o filho de Madalena já havia nascido, porque o narrador o apresenta chorando:

O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena:
- Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa , e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido um menino.
(p.123).

Agora, sem dúvida, um dos pontos mais altos desse processo de digressão é o capítulo 19. Ele é todo digressão: Paulo Honório - já com seus cinqüenta anos, em seu tempo presente - interrompe o desenrolar dos fatos para escrever um capítulo fluxo de consciência, que o leitor, que entra em contato com a obra pela primeira vez, só vai entender quando acabar de ler o romance. No auge do seu conflito psicológico, com Madalena já morta, Paulo Honório a vê aproximar-se dele:
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não , não é aos ouvido. Também já não a vejo com os olhos
." (p. 102).

Ele só a vê em suas lembranças, em sua consciência, mas é como se ela se materializasse diante de si; é aí que ele faz algumas conjecturas sobre ela e ele:

A voz de Madalena continua acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura uma pessoa estar ao mesmo tempo irritada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos
. (p. 102 e 103).

A contradição o assola ("... é uma irritação antiga que me deixa inteiramente calmo."); o desejo de compreender acentua-se, daí as constantes referências às contradições: é o desejo de rever Madalena, mas, simultaneamente, o não entendimento de suas atitudes, o que ainda o irrita, como no passado:
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente, estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito
. (p. 103).

Este capítulo traz o mesmo Paulo Honório do final da obra: sozinho, triste, convivendo com seus fantasmas, como o senhor Ribeiro e d. Glória, já distantes no momento presente:

Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras. (p.103 e 104).

Todo esse momento do enredo nos revela tanto os conflitos de Paulo Honório quanto a consciência técnica do narrador; afinal, esse fluxo de consciência é extremamente bem feito para alguém que se diz semi-analfabeto. Por conseguinte, enxergamos, por trás de Paulo Honório, o escritor Graciliano Ramos, consciente pleno do processo narrativo, capaz de criar uma "desordem" apenas aparente, reveladora, na verdade, do tempo atual da personagem.

Após o capítulo 19, o texto retoma o seu desenvolvimento normal. É interessante observar que, apesar de o narrador deixar claro que tem consciência de tudo o que se passou, inclusive antecipando fatos, cria o suspense em citações de intensa emoção, como no momento da "despedida" de Madalena, preparando já o seu suicídio, por meio de um diálogo rápido e vigoroso:
- O resto está no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim quando eu escrevi.
- A quem?
- Você verá. Está em cima da banca. Não é caso para barulho. Você verá.
- Bem.

Respirei. Que fadiga!
- Você me perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
- Julgo que tive minhas razões.
- Não se trata disso. Perdoa?

Rosnei um monossílabo.
- O que estragou tudo foi esse ciúme. Paulo. (p. 160).
A metalinguagem também tem o papel de apresentar o narrador avaliativo. Paulo Honório coloca-se na posição de quem, além de auto-avaliar os dois primeiros capítulos como "inúteis", avalia as atitudes da personagem, com uma visão adiantada dos fatos:

Já viram como perdemos tempo com padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior que atormentar-se um vivente por gosto? Será? Não será? Para que isso? Procurar dissabores! Será? Não será?
(p. 148).

O de que sempre temos certeza é da dúvida de Paulo Honório. Ele é alguém que jamais fechará um raciocínio sequer, como veremos no desfecho.

Todo o foco central da ação desse personagem se liga à posse de São Bernardo e ao relacionamento com Madalena, e até nisso o narrador se utiliza das digressões, numa pretensa "desorganização natural" das lembranças. No capítulo dois, por exemplo, temos exposto seu grande objetivo na vida: "O meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. " (p.11)

Porém, no capítulo 3, observamos um retrocesso temporal, pois o narrador apresenta-nos a sua história de vida - o menino de origem humilde, que vendia doces para a velha Margarida, e o guia de cegos; a prisão, o aprendizado mínimo da leitura na cadeia e a posterior saída, pensando já em "ganhar dinheiro" (p.13). Tal processo digressivo é flagrante tentativa de autojustificação; Paulo Honório usará de meios pouco lícitos para conseguir São Bernardo (aproveita-se da miséria e vício de Padilha, para conseguir a fazenda por valor baixo); sua infância sofrida, a falta de oportunidades, as dificuldades, tudo para "justificar" suas atitudes e a falta de remorsos.

Na verdade, não se conforma com o descaso de Padilha para com tão boa propriedade; era realmente muito injusto vê-la nas mãos de um farrista, e não em suas mãos, que, como veremos, trabalharão essa terra:

Trabalhava danadamente, dormindo pouco, levantando-se às quatro da manhã, passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de bacalhau assado com um punhado de farinha. (p.29).

Claro que não podemos dizer que o narrador queira envolver, emocionalmente, o leitor. Não há interesse em deixar o leitor penalizado, justificando-se frente a ele, como se o estivesse fazendo frente à sociedade.

Se há alguém frente a que Paulo Honório queira justificar-se, esse alguém é ele mesmo, na busca do autoconhecimento.

A posse de São Bernardo, para ele, será fundamental. Adquiri-la significa adquirir respeito. A criança humilde aprendera que só os poderosos são respeitados, daí a obsessão por ganhar dinheiro, por mandar; nota-se tal procedimento já na posse da fazenda:

Pensei que, em vez de aterrar o charco, era melhor mandar chamar mestre Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contra-ordem, coisa prejudicial a um chefe. (p.28).

Paulo Honório personagem está-se acostumando a ser chefe, daí a necessidade de se impor para ser respeitado. Para isso São Bernardo chegará a ter objetos de que ele sequer se utiliza:

Comprei móveis e diversos objetos que entrei a utilizar com receio, outros que ainda hoje não utilizo, porque não sei para que servem. (p.39). Paulo Honório acredita que ter é fundamental. Sendo assim, tudo será válido para conseguir seu objetivo:

A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las . (p . 39).
E é por isso que tudo será avaliado pelo valor monetário que possui, até mesmo a velha Margarida:

A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu. (p.12 e 13).

É a isso que Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, chamará de "universo do ter", que se amplia a cada atitude sua. A instrução, a cultura, para ele, é uma das coisas mais inúteis - são supérfluas, frente à necessidade maior, que é a da posse. Mesmo assim, chegará a construir uma escola na fazenda, buscando, em troca, "a benevolência do governador" (p.44); assim será também com a igreja ("A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram também capital" - p. 44 e 45).

A filosofia do ter endureceu Paulo Honório. Ao pensar, por exemplo, em relacionamento entre homem e mulher, vê-os como "machos e fêmeas" (p.65).

Por isso, no casamento, buscará, inicialmente, o "herdeiro para São Bernardo", alguém capaz de herdar sua obsessão pelo ter.

Madalena parece adequada. Cogitando a possibilidade de casar-se com ela, imagina, de imediato, a reprodução dos "bons espécimes"; reproduzir filhos não é diferente de reproduzir animais:

Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia. ( p. 87).

Sendo assim, também acredita que atrairá Madalena, mostrando-lhe o que há em São Bernardo, desde as aves até a extensão das terras. Chega a, inclusive, colocar a Madalena o casamento como uma espécie de negócio, como algo que lhe possa "garantir o futuro":

- O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job, entende?
- Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a um acordo, quem faz negócio supimpa sou eu
. (p. 90).

Madalena não se revelará, mais tarde, como alguém que valorize os bens materiais (vemos, por exemplo, sua dedicação aos pobres e funcionários que viviam na fazenda), o que torna difícil acreditar que se tenha casado por dinheiro. Porém, não se podem fazer, por outro lado, colocações fechadas em relação ela; o narrador, em relação a Paulo Honório, mantém distância mínima, pois trata-se de um processo de desdobramento, mas, em relação a Madalena, a distância é máxima.

Tudo isso significa que o leitor não tem acesso direto à consciência dela, o que reforça a ambigüidade - será que não haveria, por parte de Madalena, nenhum interesse financeiro, nenhuma necessidade de adquirir segurança por meio do casamento? O diálogo acima transcrito permite essa análise. Para dificultar ainda mais as coisas, não nos podemos esquecer de que quem conta essa história é Paulo Honório, diretamente envolvido com ela.

Por conseguinte, o foco narrativo é dele, o que gera uma visão parcial da história. O próprio narrador dará subsídios para este tipo de enfoque; vejamos, por exemplo, os comentários dele sobre a transcrição de um de seus diálogos com d. Glória:

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do rubi, por exemplo, foi mais enérgico e mais extenso que as linhas chochas que aqui estão. A parte referente à enxaqueca de d. Glória (a enxaqueca ocupou, sem exagero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei igualmente, na cópia, numerosas tolices ditas por mim e por d. Glória. Ficaram muitas, as que as minhas luzes não alcançaram e as que me pareceram úteis. É o processo que adoto; extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço. (p.77 e 78).

Se ele expurgou seu diálogo com ela, por que não faria o mesmo em sua conversa com Madalena, ou mesmo contaria tudo como lhe conviesse?

Mas por que Madalena? Ela não se revelará como alguém que se harmonize, em nada, com Paulo Honório; para ele, ela tem defeitos irremediáveis, como, por exemplo, ser culta, instruída, altruísta, ou pior, escreve artigos:
- Mulher superior. Só os artigos que publica no Cruzeiro!

Desanimei:
- Ah! Faz artigos!
- Sim, muito instruída. Que negócio tem o senhor com ela?
- Eu sei lá! Tinha um projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou. Julguei que fosse uma criatura sensata. (p. 85).

Porém, ele a escolheu. A justificativa que parece mais lógica é o fato de ela ser exatamente aquilo que ele não é. Paulo Honório - como já anteriormente citado - busca o respeito alheio, busca estabilizar-se e ser reconhecido. Uma esposa professora seria mais respeitável do que qualquer cabocla comum.

De início, ele imaginou-a como uma menina frágil, fácil de dominar. Enganou-se: Madalena tem iniciativa, quer trabalhar, ajuda aos outros sem pedir autorização e não dá importância às aparências:

Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano. (p.95).

O protagonista sente necessidade de adaptar-se a ela, tenta de tudo, porém todas as tentativas são infrutíferas.

O grande problema é que as energias que regem a vida dos dois são diferentes: ele é regido pela posse, pelo ter; ela, pelo ser.

São diretrizes de vida muito diversas, daí a dificuldade de compreensão de Paulo Honório. A conseqüência será um ascendente ciúme; os alvos desse sentimentos serão vários: Padilha, seu Ribeiro, Gondim, Padre Silvestre, chegando ao ponto de imaginar que o amante vinha encontrá-la à noite, dentro de sua própria casa ("Três anos de casado. Fazia exatamente um ano que tinha começado o diabo do ciúme."- p. 164).

Madalena, apesar de forte, será destruída por tudo isso. Seu suicíidio é o auge disso tudo:
"Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma branca nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado. No soalho havia mancha de líquido e cacos de vidro. (p.165).

E, assim, chegamos ao momento presente. Justificativas e justificativas... no final, um Paulo Honório que escreveu um livro e só consegue ter certeza de sua solidão, seu estado de abandono, sua inutilidade:

"Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?" (p.181).

A seqüência de exclamações é icônica; temos, diante de nós, um homem revoltado, reconhecendo a inutilidade de sua vida. Isso o redime?:

Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é também conseqüência da profissão. (p.181).

Enfim, a circularidade da narrativa acontece: o mesmo Paulo do início, que reconhece, parcialmente, seu erro, mas a culpa é jogada aos fatores externos. Meio possível de acalmar a consciência, mas que não elimina a dor do reconhecimento e da perda. Quem queria acumular bens acumulou perdas: destruiu a si e aos outros.

Assim, Paulo Honório torna-se apenas um ser humano, não típico espacialmente, mas um ser humano universal, capaz de refletir, mas incapaz de chegar a respostas definitivas.

Fonte:
Biblioteca Eletrônica vol. III. Magister. (CD Rom)
http://www.ciashop.com.br (imagem)

José Lins do Rego (1901 - 1957)

José Lins do Rego Cavalcanti (Pilar, 3 de julho de 1901 — Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1957) foi um escritor brasileiro, considerado um dos grandes nomes da literatura regionalista brasileira.

Nascido no Engenho Corredor, município paraibano de Pilar, filho de João do Rego Cavalcanti e de Amélia Lins Cavalcanti, fez as primeiras letras no Colégio de Itabaiana, no Instituto N. S. do Carmo e no Colégio Diocesano Pio X de João Pessoa. Depois estudou no Colégio Carneiro Leão e Osvaldo Cruz, em Recife. Desde esse tempo revelaram-se seus pendores literários. É de 1916, por exemplo, o primeiro contato com O Ateneu, de Raul Pompéia. Em 1918, aos dezessete anos portanto, José Lins travou conhecimento com Machado de Assis, através do Dom Casmurro. Desde a infância, já trazia consigo outras raízes, do sangue e da terra, que vinham de seus pais, passando de geração em geração por outros homens e mulheres sempre ligados ao mundo rural do Nordeste açucareiro, às senzalas e aos negros rebanhos humanos que a escravidão foi formando.

Após passar sua infância no interior e ver de perto os engenhos de açúcar perderem espaço para as usinas, provocando muitas transformações sociais e econômicas, foi para João Pessoa, onde fez o curso secundário e depois, para Recife, onde matriculou-se, em 1920, na faculdade de Direito.

Nesse período, além de colaborar periodicamente com o Jornal do Recife, fez amizade com Gilberto Freyre, que o influenciou e, em 1922, fundou o semanário Dom Casmurro. Formou-se em 1923. Durante o curso, ampliou seus contatos com o meio literário pernambucano, tornando-se amigo de José Américo de Almeida, Osório Borba, Luís Delgado, Aníbal Fernandes, e outros. Gilberto Freyre, voltando em 1923 de uma longa temporada de estudos universitários nos Estados Unidos, marcou uma nova fase de influências no espírito de José Lins, através das idéias novas sobre a formação social brasileira.

Ingressou no Ministério Público como promotor em Manhuaçu, em 1925, onde entretanto não se demorou. Casado em 1924 com d. Filomena (Naná) Masa Lins do Rego, transferiu-se em 1926 para a capital de Alagoas, onde passou a exercer as funções de fiscal de bancos, até 1930, e fiscal de consumo, de 1931 a 1935. Em Maceió, tornou-se colaborador do Jornal de Alagoas e passou a fazer parte do grupo de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti, Aloísio Branco, Carlos Paurílio e outros. Ali publicou o seu primeiro livro, Menino de engenho (1932), chave de uma obra que se revelou de importância fundamental na história do moderno romance brasileiro. Além das opiniões elogiosas da crítica, sobretudo de João Ribeiro, o livro mereceu o Prêmio da Fundação Graça Aranha. Em 1933, publicou Doidinho, o segundo livro do "Ciclo da Cana-de-Açúcar".

Perfil da obra e trajetória literária

O mundo rural do Nordeste, com as fazendas, as senzalas e os engenhos, serviu de inspiração para a obra do autor, que publicou seu primeiro livro - Menino de engenho - em 1932.

Como vimos, em 1926, decidiu deixar para trás o trabalho como promotor público no interior de Minas Gerais e transferiu-se para Maceió, Alagoas. Lá conviveu com um grupo de escritores muito especial: Graciliano Ramos (o autor de Vidas Secas), Rachel de Queiroz (a jovem cearense, que já publicara o romance O Quinze), o poeta Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Holanda (o mestre do dicionário), que se tornariam seus amigos para sempre. Convivendo neste ambiente tão criativo, escreveu os romances Doidinho (1933) e Bangüe (1934). Daí em diante a obra de Zélins, como era chamado, não conheceu interrupções: publicou romances, um volume de memórias, livros de viagem, de conferências e de crônicas. E Histórias da Velha Totônia, seu único livro para o público infanto-juvenil, lançado em 1936.

Em 1935, mudou-se para o Rio de Janeiro. Homem atuante, participava ativamente da vida cultural de seu tempo. Gostava de conversar, tinha um jeito bonachão e era apaixonado por futebol, ou melhor, pelo Flamengo. Seus livros são adaptados para o cinema e traduzidos na Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos, Itália, entre outros países. Em meados dos anos 50, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.

Em 1957, o Brasil perdia um de seus grandes escritores. A obra de José Lins do Rego é publicada pela editora José Olympio.

A criação literária de José Lins do Rego (Zé do Rego), como ele próprio afirma, foi baseada, fundamentalmente, nas histórias de trancoso, contadas pela velha Totônia e pela leitura de Os doze pares da França, de Carlos Magno, que ele leu aos doze anos, ainda no internato de Itabaiana, tendo recebido, também, influências de Victor Hugo, Proust, Hardy, Stendhal e os que ele chamava de "os grandes russos da minha vida: Tolstói, Tchecov e Dostoievski". Entre os nacionais, ele cita Raul Pompéia, Machado de Assis, Gilberto Freyre e Olívio Montenegro.Participou do movimento regionalista de 33 organizado por Gilberto Freyre no Recife .

A obra dele caracteriza-se, particularmente, pelo extraordinário poder de descrição. Reproduz no texto a linguagem do eito, da bagaceira, do nordestino, tornando-o no mais legítimo representante da literatura regional nordestina. À Menino de Engenho, seguiram-se Doidinho, 1933; Bangüê, 1934; Moleque Ricardo, 1935; Usina, 1936; Fogo Morto, 1936, fechando, com este, o Ciclo-da Cana-de-Açúcar. Em 1937, publicou Pedra Bonita e, em 1953, Cangaceiros que formaram o Ciclo do Cangaço. Outras publicações: Pureza; Riacho doce; Água mãe (prêmio da Fundação Felipe de Oliveira); Eurídice (Prêmio Fábio Prado); Meus verdes anos (memórias); Histórias da velha Totônia; Gordos e magros; Poesia e vida; Homens, seres e coisas; A casa e o homem; Presença do Nordeste na literatura brasileira; O vulcão e a fonte, (1958, póstuma). Conferências: Pedro Américo; Conferência no Prata; Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Viagem: Bota de sete léguas. Em colaboração com Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos Brandão entre o mar e o amor.

Obras
Menino de engenho (1932)
Doidinho (1933)
Bangüê (1934)
O moleque Ricardo (1935)
Usina (1936)
Pureza (1937)
Pedra bonita (1938)
Riacho doce (1939)
Água-mãe (1941)
Fogo morto (1943)
Eurídice (1947)
Cangaceiros (1953)
Meus verdes anos (1953)
Histórias da velha Totonha (1936)
Gordos e magros (1942)
Poesia e vida (1945)
Homens, seres e coisas (1952)
A casa e o homem (1954)
Presença do Nordeste na literatura brasileira (1957)
O vulcão e a fonte (1958)
Dias idos e vividos (1981)

Academia Paraibana de Letras
É patrono da cadeira 39 da Academia Paraibana de Letras, que tem como fundador Luciano Ribeiro de Morais. Atualmente ocupada por Sérgio de Castro Pinto.

Academia Brasileira de Letras
Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1956, para a cadeira número 25.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.academia.org.br