sexta-feira, 16 de maio de 2008

Charles Dickens (O espectro)

— Olhe cá, ouça!

Quando falou assim a voz que o chamava, estava de pé, à porta de sua casinha, empunhando a bandeirola, que conservava enrolada no pauzinho que desempenhava as funções de haste.

Era tal a configuração do terreno que não parecia possível que pudesse ter dúvida sobre a procedência da minha voz. Contudo o homem, longe de erguer os olhos para o lugar em que me achava, à borda da trincheira, precisamente sobre a sua cabeça, deu meia volta e olhou em direção à vila.
— Olhe cá, ouça!

Só então deixou de esquadrinhar a linha. Girou de novo sobre os calcanhares e deitando a cabeça para trás distinguiu-me por cima do seu observatório.
— Há algum caminho que me permita descer até aí para travarmos conversação um pouco mais de perto?

Houve uma pausa, então. O homem examinava-me com profunda atenção. Por fim, apontou-me com a bandeirola um ponto situado a duzentas ou trezentas toesas à esquerda.
— “All right!” Muito bem! — exclamei.

E dirigi-me ao lugar indicado. Lá, depois de muito olhar em torno de mim, descobri um estreito caminho, toscamente talhado em ziguezague e comecei a segui-lo.

A trincheira era funda em extremo. Estava talhada a pique sobre um bloco de pedra e, à medida que se descia, diminuía a consistência da pedra, ao passo que a umidade aumentava proporcionalmente. Vi-me obrigado a serpentear. Durante minhas voltas e reviravoltas não me saíam da memória o jeito indeciso e a rara timidez que havia notado no pobre homem quando se decidiu a indicar-me o caminho.

Concluídos os rodeios, tornei a contemplá-lo da vertente e pude observar que permanecia na via que dera passagem ao último comboio. Sua atitude permitia afirmar que estava à minha espera.

Encostava o queixo na palma da mão esquerda, enquanto o braço correspondente procurava apoio no direito que tinha cruzado ao peito; e era tão singular a sua expectativa, refletia tanta ansiedade que parei por um pouco, cheio de surpresa.

Continuei descendo até chegar ao terrapleno e então pude contemplar, à vontade, a cútis morena, a barba negra e as sobrancelhas espessas da minha estranha personagem.

Sua casita ocupava o lugar mais solitário e triste da via férrea. De cada um dos lados erguia-se um muro pedregoso que vertia água e impedia o olhar de espraiar-se pela imensidade do céu, de que só se distinguia uma faixa estreita.

E não eram mais alegres as perspectivas da estrada. De um lado via-se a prolongação tortuosa desse grande cárcere; de outro, ainda mais limitado, o que atraía os olhares era uma luz de vermelho sinistro, situada sobre a abertura de um túnel sombrio, cuja estrutura maciça oferecia um aspecto grosseiro e repulsivo. Os raios solares ali chegavam minguados e amortecidos; respirava-se um cheiro subterrâneo. Um vento fúnebre que me gelou o sangue nas veias soprava daquela boca escura... Estremeci. Apossou-se de mim a idéia de que já não estava no mundo dos vivos.

O interpelado permanecia fixo no mesmo lugar. Cheguei-lhe ao lado; consegui tocar-lhe; mas perseverou indefinidamente na sua primitiva imobilidade. Enquanto não parei, permaneceu quieto em seu lugar. Depois, retrocedeu um passo e levantou a mão; mas não tinha deixado um só instante de assestar nos meus olhos o olhar desvairado dos seus.
— É bem solitário este posto — disse-lhe eu. — Já lá de cima, quando o descobri, foi o que me pareceu. Poucas visitas terá por aqui, não é verdade? mas nem por isso elas lhe serão desagradáveis... Pelo menos, é o que me parece! Sou um sujeito cuja vida decorre entre horizontes bem limitados. Por fim consegui alcançar a liberdade e minha curiosidade arrasta-me, apaixonadamente, ao exame cuidadoso das grandes construções ferroviárias. Tais investigações, inteiramente novas para mim, satisfarão minha ignorância com a maior precisão.

Disse-lhe aproximadamente essas palavras. Estou longe de reproduzi-las com absoluta fidelidade. Nunca fui muito forte na arte de entabular conversações e nessa ocasião, menos do que nunca, pois o interpelado tinha certa expressão pouco tranqüilizadora, que me infundia medo.

Voltou-se, para registrar, com exagerada solicitude o lugar em que permanecia fixa a luz vermelha que só alumiava as proximidades do túnel, como se fizesse pouco caso dos outros objetos naquelas ermas paragens.

Por fim, dirigiu-me novamente o olhar.
— Está também a seu cargo a vigilância e cuidado desse sinal? — perguntei-lhe.

Respondeu, em voz calma:
— O quê! Pois não sabia?

Era tão insistente a fixidez do seu olhar e tão intensa a sombra que lhe escurecia o rosto, que me cruzou pela mente uma suspeita singular.

Devia considerar como a um homem aquele ser que estava diante de mim? Não seria um fantasma? Mais tarde pensei que devia sentir-me contagiado pelo seu aspecto. Coube-me então a vez de retroceder um passo. Isso provocou no desgraçado os sinais mais inequívocos de terror. Eu lhe metia medo. Esta descoberta pôs fim às minhas suspeitas extravagantes.
— O senhor me olha — disse-lhe com um sorriso forçado — como se eu lhe fizesse medo.
— Parece-me que já o vi antes.
— Onde?

Indicou com a vista a luz vermelha.
— Ali? — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu num gesto mudo de assentimento e sem tirar de mim os olhos ansiosos.
— Mas, bom homem, que é que eu poderia ir fazer ali? Ainda que isso fosse possível, creia que isso nunca me ocorreu e que nunca, em toda minha vida, pus os pés naquele lugar. Posso jurá-lo — disse; — estou bem certo disso e posso jurá-lo.

Por fim, pareceu que estas palavras tinham desfeito o gelo entre nós.

Daí em diante, respondeu com desembaraço às minhas perguntas.

Fez-me entrar na sua casinha, onde tinha um fogão, uma estante para o registro do serviço, um livro em que se estampava determinadas observações e um aparelho telegráfico composto de um mostrador com setas indicadoras e uma campainha de chamada.

O digno e excelente homem ter-me-ia merecido o conceito de empregado competentíssimo nas suas funções se não tivesse suspendido por duas vezes suas respostas, empalidecendo, para olhar para a campainha (que, no entanto, permanecia muda, nesses momentos), e não tivesse aberto a porta de sua vivenda (fechada unicamente para evitar a insalubre umidade), desejoso de olhar de fora a chama vermelha da entrada do túnel.

De ambas as vezes acompanhou o seu regresso para junto do fogão com aquele gesto inexplicável que lhe havia observado, sem poder defini-lo, quando nos olhamos a distância, eu, das minhas alturas, ele, das suas profundidades.
— Alegro-me de acreditar — disse-lhe, ao levantar-me para partir — que encontrei aqui um homem satisfeito com a sua sorte.

Era intenção minha induzi-lo a fazer-me qualquer comunicação.
— Sim, realmente, foi assim em outros tempos — respondeu — mas agora — acrescentou com essa voz apagada que havia empregado antes — estou inquieto, senhor: a inquietação me devora.

Teria querido, talvez retirar as suas palavras, mas já era impossível. Estavam irremissivelmente pronunciadas.

Aproveitei-me delas imediatamente.
— Por quê? Qual a causa da sua inquietação?
— É muito difícil explicá-la, cavalheiro; custa-me indizivelmente falar deste assunto. Se o senhor tornar a visitar-me de novo, tentarei expandir-me.
— Acredito! Desejo vivamente voltar. Quando quer que eu apareça?
— Abandono este posto muito cedo, mas às dez horas da noite estarei de volta.
— Virei amanhã às onze.

Agradeceu-me e acompanhou-me até à porta.
— Porei à vista a minha luz branca — disse-me surdamente, conforme o seu costume — até que o senhor acerte com o caminho. Quando o encontrar, não grite, e ao regressar, quando se encontre no ressalto da trincheira, não o faça também.

As maneiras e o som da sua voz pareciam-me aumentar o aspecto glacial daquele lugar. Limitei-me a responder-lhe:
— Muito bem.
— Não se esqueça — continuou. — Quando vier amanhã à noite, não há necessidade de fazer barulho. Permita-me uma pergunta, para terminar. Por que gritou esta noite: “Olhe cá, ouça!”.
— Garanto-lhe que não sei. Mas, realmente, disse algo parecido com isso.
— Algo parecido, não, foi isso que disse. Conheço perfeitamente esse modo de chamar.
— Oh! não digo que não. Fiz assim simplesmente porque o avistava aqui no fundo.
— Só por esse motivo?
— Que outro poderia ser?
— Não lhe pareceu que alguém lhe ditava essas palavras: que obedecia, de certo modo, a uma influência sobrenatural?
— Não.

Deu-me boa noite e foi-me alumiando o caminho com a lanterna. Continuei andando ao longo da via férrea, fora dos trilhos, sob o peso de uma impressão desagradável. Parecia que tinha um comboio ao meu encalço... Achei finalmente o caminho. Foi-me fácil a subida e acabei por chegar à minha hospedaria, sem nenhum embaraço.

Veio a noite seguinte. Fiel à minha entrevista, punha o pé no primeiro degrau da encosta em ziguezague, ao bater das onze, que se ouvia ao longe.

O homem se achava ao pé da trincheira, espreitando a minha chegada com o seu farol branco ao alto.
— Não murmurei meia palavra — disse, ao chegar junto dele. — Posso falar agora?
— Sem dúvida, cavalheiro!
— Pois então boa noite. Venha de lá um aperto de mão.
— Boa noite, senhor. Aí vai.

Depois do cumprimento, dirigimo-nos, caminhando um ao lado do outro, para a casinhola. Entramos e sentamo-nos junto ao fogo.
— Não vou permitir que se incomode, cavalheiro (começou a dizer, inclinando-se e com voz imperceptível como um suspiro), perguntando-me novamente o motivo do meu desassossego. Ontem à tarde confundi-o com outra pessoa. Era esse o motivo da minha inquietação.
— Aborrece-o esse engano?
— Não é que o senhor me perturbe. O outro é que..
— Quem é esse outro?
— Não sei.
— Parece-se comigo?
— Também não sei. Nunca lhe vi o rosto. Esconde-o com o braço esquerdo, enquanto move rapidamente o direito, assim; veja.

Reparei na sua pantomima muda. Era uma série de gestos descompostos, que queria exprimir, de um modo veemente, convulsivo e apenas com um braço, esta frase: “Pelo amor de Deus! Saia do caminho!”
— Numa noite de luar — acrescentou o homem eu estava aqui, no lugar em que o senhor está agora, quando ouvi uma voz gritando: — Olhe cá, ouça! — Corri para fora. O outro estava de pé, junto ao sinal vermelho, gesticulando como lhe mostrei ainda agora. Estava rouco à força de gritar: Olhe, cuidado, cuidado! Não se calava nem por um segundo. Repetia sem descanso: Olhe, cuidado, cuidado! — agarrei o farol e corri para o homem, perguntando-lhe: — Que aconteceu? É um aviso ou um acidente? Em que lugar? — Parei a dez passos da entrada do túnel; fiquei tão perto dele que percebi, assombrado, que o desconhecido escondia o rosto com o braço esquerdo. Segui direito para ele, estendi a mão para descobrir-lhe o rosto; mas de repente, antes que o conseguisse, desapareceu.
— Pelo túnel? — perguntei.
— Não senhor. Percorri-o em toda a sua extensão de quinhentos metros; parei; levantei o farol em todas as direções; vi perfeitamente os números das cotas do nível e as indicações quilométricas escritas na parede. A umidade deslizava como azeite ao longo das pedras e gotejava pela abóbada; mas, nem sombra de ser humano! Voltei, então, sobre meus passos, mais rapidamente que na ida, porque me inspiravam horror mortal esses lugares. Depois de ter revistado minuciosamente os arredores da luz vermelha, sem abandonar um minuto o meu farol regulamentar, subi até o sinal. Nada! Desci de novo e fui telegrafar. Fi-lo por duas vezes. — Alarma. Que está acontecendo? — E de ambas as vezes me transmitiram a resposta costumeira: — Sem novidade.

Enquanto o guarda-chaves falava, parecia-me que um dedo gelado me percorria lentamente a espinha. Resisti quanto pude a essa sensação, esforçando-me por dar a entender ao infeliz que semelhante aparição fora o resultado de uma ilusão de ótica e que aquele grito imaginário podia bem ter sido causado pelo ruído do ar ao chicotear os fios do telégrafo ou ao chocar-se com as altas paredes, arrancando ao silêncio da noite as suas notas lúgubres de harpa eólia.

Deixou-me acabar, movendo a cabeça, mas sem dar sinais de impaciência.

Depois, ao cabo de alguns instantes, observou-me que conhecia perfeitamente o ruído dos fios vibrados pelo impulso do vento. Ninguém era como ele tão capaz de distingui-lo, pois tinha passado ali, sozinho, em vigília, muitas, muitíssimas intermináveis noites de inverno.

Disse-me, além disso, que não tinha acabado ainda sua narração.

Pedi-lhe que me perdoasse a interrupção; e ele, então apoiando suavemente a mão no meu braço esquerdo, prosseguiu lentamente:
— Seis horas depois da aparição ocorreu um desastre memorável na via; e, ao cabo de outras duas, retiraram os mortos e feridos do túnel, depositando-os no mesmo lugar em que tinha visto o fantasma.

Estremeci, da cabeça aos pés. Contudo, consegui dominar-me.
— Certamente — disse-lhe — não há dúvida de que houve uma coincidência notável, capaz de impressionar profundamente a sua imaginação. Mas é igualmente exato, que muito freqüentemente ocorrem casos parecidos.

Observou-me novamente que ainda não terminara.
— O que lhe contei — prosseguiu pondo-me outra vez a mão no braço e dirigindo-me por cima do ombro um olhar insistente — ocorreu há um ano já. Seis ou sete meses depois, quando não havia voltado a mim ainda da minha surpresa, nem me achava reposto da passada emoção, uma madrugada, ao amanhecer, achando-me no interior da minha barraca, olhando para a luz vermelha, tornei a ver o espectro.

Guardou silêncio por um pouco e cravou em mim o seu olhar.
— Vamos a ver, ocorreu algum outro acidente depois dessa ressurreição?

Tocou-me várias vezes com a ponta dos dedos, movendo sempre a cabeça com uma lentidão de espectro que me gelava o sangue nas veias.
— Naquele mesmo dia, cavalheiro — continuou — à passagem de um trem que saía do túnel, observei num compartimento movimentos descompostos de mãos, de cabeças... numa palavra, uma agitação extraordinária. Dei sinal de parada; o maquinista deu imediatamente contravapor e apertou os freios; o trem, contudo, andou ainda cem ou cento e cinqüenta metros. Deitei a correr e ouvi, efetivamente, gemidos e lamentos desesperados. Uma linda mulher tinha sido assassinada num vagão. Trouxeram-na ao meu posto e deixaram-na aqui onde conversamos agora.

Involuntariamente, puxei minha cadeira para trás e não tirei dele os olhos.
— Cavalheiro, esta é a pura verdade. Conto-lhe o acontecimento com toda a precisão.

Já não conseguia falar nem pensar. Fora, o vento e os fios do telégrafo ajuntavam ao horror da narração o acompanhamento de sua voz lastimosa e prolongada. E o homem concluiu:
— Julgue o senhor se posso ter ânimo sereno; há uma semana reapareceu a visão e, de então para cá, não deixou de apresentar-se diante dos meus olhos, de quando em quando.
— Na luz vermelha?
— Sim, no sinal de perigo.
— E o que faz ali?
— Mais veementemente ainda, se é possível, repete os gestos de angústia, como que dizendo: Pelo amor de Deus, saia do caminho.
— Já conhece agora — acrescentou — a causa do meu desassossego. Não tenho trégua nem descanso. O desconhecido me chama por vários minutos consecutivos, empregando sempre o seu grito desesperado: Ouça cá, cuidado! — Agita o braço e dá alarma com a campainha...

Ao ouvir estas palavras, interrompi-o:
— Diga-me o senhor se a campainha tocou ontem à tarde, quando me aproximava daqui, à hora em que o senhor saiu.
— Duas vezes.
— Duas vezes? — repliquei. — Isso prova o quanto a sua imaginação está desorientada. Eu era todo olhos e ouvidos; pois bem, tão certo como eu estar vivo, a campainha não tocou essas duas vezes. Não, nem tocou dessa vez nem das anteriores, está claro que toca, mas quando se comunicam com o senhor dos postos vizinhos.

Meneou a cabeça.
— Não me engano nisso, cavalheiro — replicou. — Nunca confundi a chamada do fantasma com a de meus companheiros. A vibração daquela é especial, não se transmite pelos fios. Não digo que ele toque a campainha; mas que soa, não há dúvida. Não há nada de singular em que o senhor não a tenha ouvido. Eu, por minha parte, ouvia-a exatamente como a ouço sempre: muito bem.
— E quando saiu para fora, viu a aparição?
— Vi.
— As duas vezes?
— As duas — afirmou, com plena convicção.
— Quer sair comigo e olhar agora?

Mordeu os lábios, mas levantou-se.

Abri a porta, detendo-me um momento no limiar. Meu interlocutor ficou a alguma distância. Tudo permanecia no seu respectivo lugar: a luz do sinal, a abóbada do túnel, a parte enorme impregnada de umidade... tudo permanecia o mesmo, à luz das estrelas. — Vê qualquer coisa de anormal? — perguntei, fixando-lhe atentamente o rosto. — Tinha os olhos muito abertos, talvez não tanto como os meus, que ergui, ao mesmo tempo que ele, na direção temida.
— Não — respondeu — não vejo nada.
— Bem — disse eu. — Estamos de acordo!

Entramos novamente e tomamos lugar junto ao fogo. Pensava eu em como tirar melhor partido do bom êxito obtido, se assim podia chamar-se o resultado negativo de nossa inspeção ocular, quando o nosso homem reatou a sua narrativa no mesmo ponto em que a havia interrompido, convindo na afirmação de que os fatos repetidos, objeto de nossa narrativa, não podiam seriamente constituir base para um alarma. Foi um novo embaraço para mim.
— Isso aumenta, cavalheiro, a espantosa confusão em que me acho. Não cesso de perguntar-me: o que quererá anunciar o fantasma?
— Não sei — disse — se compreende claramente...
— Contra que risco vou prevenir-me? — continuou dizendo com ar pensativo, cravando o olhar ora no fogão, ora em mim. — Que perigo está ameaçando? Onde acontecerá? Porque, sem dúvida nenhuma, está-se aproximando da linha um perigo qualquer. Uma terceira desgraça nos ameaça... quem poderá negá-lo, dados os precedentes dos fatos anteriores! Assim, ao que parece, o senhor me julga meio doido! Posso, acaso, evitá-lo? Que devo resolver? Que fazer?

Tirou o lenço e enxugou o suor da fronte.
— Se telegrafo para baixo ou para cima, ou em ambos os sentidos, que fundamento posso alegar? acrescentou, enxugando as palmas das mãos como tinha enxugado a fronte momentos antes. — Só criarei confusão, a mesma que experimento eu, sem vantagem nenhuma em favor do próximo. E hão de julgar-me louco... Veja o senhor! dar-se-ia o seguinte. Telegrama: “Perigo, atenção.” Resposta: “Que perigo? Onde?” Telegrama: “Não sei; mas pelo amor de Deus, estejam de sobreaviso.” Despedir-me-iam do emprego. Poderia suceder outra coisa?

Causava dó a agitação do infeliz. Ao vê-lo assim entendi que, por uma questão de caridade e por assim o exigir a segurança do público, o que havia a fazer, em primeiro lugar, era acalmar o pobre homem. Deixando, pois, para outra ocasião discutirmos se era real ou ilusória essa necessidade, procurei persuadi-lo de que todo empregado fiel e perito no cumprimento de seus deveres procede sempre corretamente e que, tendo ele perfeita consciência de sua obrigação, devia ficar tranqüilo e sem inquietar-se pelo inexplicável das aparições. Minha tática deu melhor resultado que a oposição às suas supersticiosas convicções. Acalmei-o. As exigências do serviço e os incidentes próprios de tais ocasiões reclamavam-lhe todo cuidado. Eram duas horas da madrugada. Deixei-o então, não sem haver-me oferecido antes para ficar em sua companhia até o amanhecer, mas ele não consentiu nisso.

No dia seguinte, estava tão linda a tarde que me apressei a sair, depois do jantar, para aproveitar-lhe a beleza. Ia caindo o sol quando tomei o caminho que, através dos campos, levava até à encosta que dava acesso à via férrea. “É questão de mais uma hora”, pensei. “Em trinta minutos chegarei até ali e em outros trinta terei regressado do meu passeio, que não terá durando grande coisa. Conto falar com o meu guarda-chaves no momento mais propício.”

Antes de terminar o meu caminho, assomei ao parapeito da trincheira e olhei maquinalmente para o fundo, exatamente no mesmo lugar em que interpelei, pela primeira vez, tão estranha personagem. Como descrever o sentimento de horror que me petrificou ao observar que um ser homem ou fantasma, colocado rente à entrada do túnel, agitava vivamente o braço direito, enquanto com o esquerdo escondia o rosto! O indizível espanto que esta visão me produziu durou um momento só; pois não demorei em ver que não era ilusão nenhuma, como o dava a entender um grupo de indivíduos, aos quais se dirigia a personagem que primeiro avistei; esta, naturalmente, com os seus gestos, pretendia explicar-lhes o acontecido. Ainda não se percebia o luzir vermelho do sinal. Divisava vagamente do lado do poste uma espécie de barriquinha construída com espeques de madeira e uma tela de lona embreada. O seu vulto não era maior que uma cama pequena.

O rápido pressentimento de uma desgraça cruzou-me pela mente. Corri para a vereda em ziguezague e desci por ela, com toda a precipitação que pude.
— Que aconteceu? — perguntei.
— Um guarda-chaves, cavalheiro, que foi morto esta manhã.
— Não será o desta casinha?
— Sim, senhor.
— Aquele que eu conhecia?
— Fácil lhe será reconhecê-lo — disse o homem que respondia às minhas perguntas.

Tirou gravemente o chapéu e levantando uma ponta da tela:
— Não está desfigurado — acrescentou.
— Deus meu! Mas como aconteceu a desgraça? Que se passou aqui? — Repeti, indo de um lado para outro, apenas caiu o negro sudário.
— Cavalheiro, a máquina o feriu. Ninguém conhecia nem desempenhava melhor suas obrigações; mas hoje, sabe-se lá por quê? não soube acautelar-se. Era já dia claro; trazia ainda o farol aceso. Um trem saía do túnel; o guarda estava ali, de costas. Foi derrubado. É este o maquinista. Ele lhe dirá o que aconteceu, com todos os pormenores... — Tom, dê a este cavalheiro todos os detalhes...

O maquinista, foi até a boca do túnel.
— Vou explicar-lhe como se passou, cavalheiro. Da curva que faz a via, ali dentro, vi o guarda-chaves junto à saída como se vê um homem por um binóculo. Não havia tempo para apertar os freios; mas não me inquietei por isso. Tive-o sempre por homem cauteloso. Contudo, como me pareceu que não o preocupava o silvo da locomotiva, soltei vapor... Estávamos já em cima dele... Chamei-o com toda a força dos pulmões.
— Que foi que o senhor disse?
— Gritei: “Olha lá! Oh! Oh! Fuja, fuja! Saia da linha!”

Estremeci.
— Ah, senhor! Foi um rude transe! Não parei de chamá-lo. Ocultei o rosto com este braço e nem um momento deixei de agitar nervosamente o outro. Nada consegui!

Assim terminou, com essa morte trágica, tão extraordinária aventura, cujo mistério jamais consegui decifrar.

Fonte:
As obras-primas do conto universal. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942.
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestr131.htm

Colóquio Sobre Padre Antonio Vieira

Em São Paulo, Brasileiros e portugueses em Colóquio sobre Pe. Antonio Vieira

Entre os dias 22 e 23 de abril, o Memorial da América Latina em São Paulo sediou o Colóquio Internacional "400 anos de Pe. Antônio Vieira, Imperador da Língua Portuguesa".

As comemorações estenderam-se até o dia 24, em colóquio na Casa de Portugal de São Paulo, em conjunto com o Encontro Cultural de Língua Portuguesa, e dia 26, marcado pela apresentação do Coral Baccarelli no Salão Nobre do Hospital Beneficência Portuguesa São Paulo.

Aberto pelo presidente do Memorial, Fernando Leça, o colóquio contou com especialistas brasileiros e portugueses, como o advogado e professor Dr. Ives Gandra Martins e o escritor Antonio Machado. Para tanto, os conferencistas abordaram a vida e obra do padre sob diversas perspectivas, entre outros temas como lusofonia, Fernando Pessoa e José Saramago, e a vinda da corte portuguesa ao Brasil.

Entre os participantes, estiveram os professores Tereza Rita Lopes, da Universidade Nova de Lisboa, Carlos Carranca, da Escola Superior de Teatro - Portugal, e o historiador Hernâni Donato, além do coordenador acadêmico do evento João Alves das Neves, presidente do Centro de Estudos Fernando Pessoa.

O professor Neves destacou a importância e a influência do jesuíta na formação e no estilo de grandes escritores da língua portuguesa ao longo do tempo. O próprio Fernando Pessoa, por exemplo, considerava Vieira o “imperador da língua portuguesa”.

A professora Regina Anacleto, da Universidade de Coimbra, apresentou a palestra “A Arte no Tempo de Vieira”, discorrendo sobre a criação dos primeiros colégios jesuítas e franciscanos em Portugal e no Brasil. Segundo ela, a arquitetura e a arte portuguesa no tempo de Vieira estava a meio caminho entre o Renascimento e o Barroco.

Um dos destaques da noite foi a apresentação do grupo A Quatro Vozes. Com percussão e cordas, o grupo executou repertório indo de “Kuenda”, composição do séc. XVII, época de Vieira, à “Cantiga do Pastor” do grupo contemporâneo português Madredeus, passando por “Araruna”, tema indígena recolhido por Marlui Miranda, “Vila Rica”, composição de Lula Barbosa que alude à barroca Minas Gerais, e terminando com “Planeta Sonho” de Cláudio Venturini.

Imperador da Língua

Para relembrar o escritor português e sua obra nos seus 400 anos, diversos eventos estão sendo promovidos durante este ano em algumas capitais brasileiras. Nascido em Lisboa em 6 de fevereiro de 1608, o padre Antônio Vieira veio para o Brasil aos seis anos, onde estudou e missionou durante a maior parte da sua vida; escreveu cerca de 200 sermões e mais de 500 cartas.

Destacou-se, não somente como literato, mas no campo da política e economia. Defendeu o direito dos “cristãos-novos” (judeus que eram obrigados a adotar a religião católica para fugir da inquisição) de permanecer em terras portuguesas numa época marcada pela intolerância. Era também contra a escravização indígena.

Fernando Pessoa refere-se a ele em seu livro “Mensagem” como o “Imperador da Língua Portuguesa”. Sua obra tem como característica marcante o jogo de conceitos por meio do uso do raciocínio lógico e da retórica aprimorada. Padre Antônio Vieira morreu aos 89 anos, na Bahia.

Presenças

Os eventos contaram ainda com Raul Francisco Moura, escritor e museólogo no Rio, Carlos Francisco Moura, escritor e arquiteto da Real Gabinete Português de Leitura, e professores José Eduardo Franco, da Universidade Lusófona - Lisboa, Maria Beatriz Rocha-Trindade, da Universidade Aberta de Lisboa, e Teodoro Koracakis, da Universidade Estadual do Rio, escritoras Rita de Cássia Alves e Dalila Teles Veras, e pesquisador Teodoro Antunes Mendes Tamen.

Outros nomes participantes foram professores Paulo de Assunção (USJT/ Unifai/ Inicapital e FAENAC), Beatriz Alcântara (Universidade Estadual do Ceará), Odete da Conceição Dias (Universidade Ibirapuera), Márcia Arruda Franco, Flavio Vichinski, Anísio Justino da Silva Filho, Vera Helena Amatti, Luiz Antônio Lindo, Cristiane Prando Martini Simeoni e Eduardo Navarro (da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP).

O evento teve apoio Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca Nacional de Portugal, Real Associação Portuguesa de Beneficência, Numatur Turismo e Banco Banif, Secretaria de Estado da Cultura.
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Fonte:
Jornal Mundo Lusíada
http://www.mundolusiada.com.br/

O Nosso Português de Cada Dia (Palavras e Expressões que Apresentam Dúvidas)

A / HÁ (em função do espaço de tempo).
A (preposição): "Ela voltará daqui a meia hora." (tempo futuro)
(verbo HAVER): "Ela saiu há dez minutos." (tempo decorrido)

A PAR / AO PAR
A par:
Significa "bem informado", "ciente"
Exemplo:
Estou a par da situação.

Ao Par:
Indica relação de equivalência ou igualdade entre valores financeiros.
Exemplo:
Algumas moedas mantêm o câmbio praticamente ao par.

AONDE / ONDE / DE ONDE.
Aonde: com verbos que indicam movimento, um destino, como o verbo IR.
Exemplos:
Aonde você vai?
Aonde você quer chegar?

Onde: com verbos que indicam permanência, como o verbo estar.
Exemplos:
Onde você está?
A casa onde moro é muito antiga.

De Onde ou Donde: com verbos que indicam procedência.
Exemplos:
De onde você saiu?
Donde você surgiu?

AS PARTÍCULAS "ATÉ" E "NEM".
"Até" é uma partícula que traz a idéia de inclusão.
Exemplo:
Até o diretor estava presente no show dos alunos.

"Nem" deve ser usado quando houver idéia de exclusão.
Exemplo:
"Nem mesmo os jornalistas credenciados puderam entrar no camarim da Madona."

BASTANTE / BASTANTES.
Esta palavra, que originalmente é um advérbio, somente varia em número (singular ou plural) quando empregada como pronome adjetivo para concordar com o substantivo que a acompanha.
Exemplos:
Os candidatos estavam bastante (advérvio) confiantes.
Aquela livraria possui bastantes (pronome) livros raros.

Bastante é palavrinha bivalente. Ora é advérbio; ora, pronome indefinido. Como advérbio, ela se mete na vida de verbos, adjetivos ou dos próprios advérbios. Fica invariável. Não quer saber de plural:
Estudei bastante.
Trabalho bastante.
Maria anda bastante.
Diana era bastante querida.
Maria é bastante crescidinha para saber distinguir entre o bom e o mau.
Depois do tombo, o garoto ficou bastante mal.

Macete: o advérbio é sempre substituível por muito. Assim, sem plural.
Estudei bastante (muito).
Diana era bastante (muito) querida.
Depois do tombo, o garoto ficou bastante (muito) mal.

Como pronome, o bastante acompanha o substantivo. E concorda com ele.
É substituível por muitos ou muitas:
Tenho bastantes (muitos) amigos.
Recebeu bastantes (muitos) foras ao longo da vida.
Teve bastantes (muitas) oportunidades na vida.

HAJA VISTO ou HAJA VISTA?
Deve-se empregar a expressão "haja vista", já que a palavra "vista", neste caso, é invariável. Haja vista significa "por causa de, devido a, uma vez que, visto que, já que, porque, tendo em vista". Compare: quando se usa a expressão "tendo em vista", ninguém diz "tendo em visto". Então, não esqueça: haja vista = tendo em vista.
Exemplos:
Haja vista o grande evento deste domingo.
Haja vista os concursos deste ano.

HUM / UM.
Em português, o numeral é "um", e não "hum". "Hum" é interjeição: palavra ou expressão usada para expressar uma reação (dor, alegria, espanto, irritação, admiração, etc).
Exemplos:
"Comprei um relógio de ouro para dar à minha namorada."
"Hum... você deve estar mesmo muito apaixonado!"
Observação: Assim também, o extenso de R$1.000,00 não é nem "um mil reais", nem "hum mil reais". É "MIL REAIS".

MAS / MAIS
Mas: indica idéia contrária.
Conjunção adversativa, equivalendo a "porém"
Ex.: Fui, mas não queria ir.

Mais:
a) Pronome:
Exemplo:
Há mais meninos do que meninas na sala.

b) Advérbio de intensidade
Exemplo:
Não fale mais!

MAL / MAU
Mal:
a) Advérbio (opõe-se a "bem")
Exemplo:
Ele agiu mal

b) Substantivo (opõe-se a "bem")
Exemplo:
Ele só pratica o mal.

c) Conjunção, indicando tempo
Exemplo:
Mal cheguei, você saiu.

Mau:
É adjetivo
Exemplo:
Quem tem medo do lobo mau?

MEIO / MEIA.
Meio: Como advérbio, modifica o adjetivo com o qual se relaciona, sendo invariável; equivale à "um tanto", "um pouco".
Exemplos:
Os alunos estavam meio cansados.
Daniela ficou meio preocupada com a sua viagem de avião.

Meio: como numeral fracionário adjetivo, sofrerá as flexões de gênero e número, concordando com o substantivo ao qual se refere e que geralmente vem depois dele.
Exemplos:
Pegue aquela meia garrafa de vinho e encha meio copo para mim.
Ela só sabe dizer meias verdades.
Nossa reunião ficou marcada para meio-dia e meia (MEIA por causa
da concordância com HORA que está implícita na expressão.)

A palavra "MEIO" pode ainda se apresentar como um substantivo, significando "MANEIRA, MODO, CAMINHO". Neste caso, ela sofrerá apenas a flexão de número, pois sempre será empregada no masculino.
Exemplos:
Acho o metrô o melhor meio de transporte de massa.
"Os fins justificam os meios." (Maquiavel)

NA MEDIDA EM QUE / À MEDIDA QUE
Na medida em que:
Equivale a "porque", "já que", "um vez que", exprimindo relação de causa.
Exemplo:
Na medida em que a prefeitura não faz nada, a população carente sofre.

À medida que:
Equivale a "à proporção que"
Exemplo:
À medida que escurecia, crescia o meu medo.

QUE / QUÊ
Que: monossílabo átono
Pode ser:
A - Pronome:(O) que você faz aqui?
B - conjunção:Pedi que ele viesse
C - partícula expletiva:Quase (que) morri de susto.

Quê: monossílabo tônico
Pode ser:
A - pronome no final da frase, antes de ponto (final, interrogação ou exclamação) ou reticências.
Você precisa de quê:
B - substantivo (= alguma coisa, certa coisa)
Ele tem um quê de especial.

POR QUE

Por que : tanto nas orações interrogativas diretas quanto nas indiretas.
Exemplos:
Por que você fez isso?
Quero saber por que você fez isso.
Por que você não foi à festa?
Gostaria de saber por que você não foi à festa.

O "QUE" pode ser ainda um pronome relativo, podendo ser substituído por "O QUAL", "A QUAL", "OS QUAIS", "AS QUAIS".
Exemplos:
A razão por que (pela qual) não fui à sua festa, você logo saberá.
"Só eu sei as esquinas por que (pelas quais) passei."
É um drama por que (pelo qual) muitos estão passando.

Observação: também quando houver a palavra "motivo" antes, depois ou subentendida.
Exemplos:
Desconheço os motivos por que (pelos quais) a viagem foi adiada.
Não sei por que motivo ele não veio.
Não sei por que (por que motivo) ele não veio.

Por quê: seguido de um sinal de pontuação forte (pontos de interrogação, de exclamação, final, reticências).
Exemplos:
Você vai sair a esta hora da noite por quê?
Ele não viajou por quê?
Se ele mentiu, eu queria saber por quê!
"Mãe, preciso de cem reais?"
"Por quê?"

PORQUE
Porque: equivale à "PORQUANTO", "POR CAUSA DE".
Exemplos:
Não saí ontem porque estava chovendo muito (causal)
Ele viajou, porque foi chamado para assinar o contrato. (explicativa)
Ele não foi porque estava doente. (causal)
Abra a janela, porque o calor está insuportável. (explicativa)
Ele deve estar em casa, porque a luz está acesa. (explicativa)

Porquê: artigos "O" ou "UM". equivale à "a razão".
Exemplos:
Não estou entendendo o porquê de tanta alegria em você hoje.
Quero saber o porquê da sua decisão.
Estamos esperando que você nos dê um porquê para tal atitude.

DICA DE PORQUE E PORQUÊ

A conjunção porque sabe das coisas. Conhece a causa de tudo. Por isso se chama causal:
Maria se atrasou porque perdeu o ônibus.
Vera Michel se internou porque quer desintoxicar-se das drogas.
A Encol foi pro beleléu porque tinha administração pouco profissional.

Quando a gente faz uma pergunta começada com por que, a resposta pede sempre uma causa. A conjunção porque responde na bucha:
Por que precisamos beber muita água?
Porque a umidade do ar está baixa.

PORQUÊ


Quando usar porquê? Só se a palavrinha for substantivo. Aí significa causa. Tem plural. E geralmente vem acompanhada de artigo, numeral ou pronome.
Não sei o porquê da decisão da juíza.
Há muitos porquês sem resposta.
Ficou intrigado com dois porquês.

Fonte:
Apostila da Caixa Econômica Federal. Instituo Padre Reus, 2004.

Graça Maria Fragoso (Biblioteca na Escola)

São muitas, mas invariavelmente distorcidas, as visões que se costuma ter de uma biblioteca. Ora é lugar sagrado, onde se guardam objetos também sagrado, para desfrute de alguns eleitos. Ora, sob uma ótica menos romântica, é apenas uma instituição burocratizada, que serve para consulta e pesquisa, assim como para armazenar bolor, cupins e traças. Para muito poucos, aqueles que a freqüentam assiduamente, ela constitui o local do encontro com o prazer de ler, conhecer, informar-se.

O fato é que, quando se trata de Brasil, a maioria das pessoas desconhece o verdadeiro papel de uma biblioteca em suas vidas e, portanto, na vida da comunidade. E esta afirmação se aplica tanto aos usuários potenciais quanto àqueles que de um modo ou outro têm responsabilidade pelo seu funcionamento. Como, por exemplo, as escolas. Por inúmeras razões, as bibliotecas escolares brasileiras estão ainda longe de cumprir sua importantíssima função no sistema educacional. Poucas instituições dispõem dos recursos e da visão necessários (duas condições que nem sempre andam juntas...) para manter uma biblioteca digna desse nome. E raros são os profissionais empenhados em prestar serviços que realmente dêem suporte ao aprendizado e à vida cultural da escola.

ZELO e RABUGICE

Neste século, as mudanças têm sido profundas e muito mais velozes, em relação ao ritmo de desenvolvimento da vida humana na Terra até cem anos atrás. Os meios de comunicação se aperfeiçoaram e continuam a se transformar numa progressão cada vez mais vertiginosa, já que, em matéria de tecnologia, o novo torna-se obsoleto praticamente a toda hora. No terreno da leitura, os CD-ROM - ou "livros audiovisuais", se assim se pode defini-los - parecem ameaçar o futuro do livro convencional.

No Brasil - como, de resto, em todo o chamado "Terceiro Mundo" - a questão não é apenas o quê se lê atualmente, mas quantos estão lendo. A pouca leitura pode ser efeito da concorrência com outros meios de comunicação, porém, entre nós, ela é principalmente o reflexo de um sistema educacional que há várias décadas vem se deteriorando. Por isso costumamos dizer que a invenção da imprensa gerou um número quase ilimitado de leitores: sem planos e ações educacionais solidamente estruturados, ainda que se façam grandes esforços para reduzir o analfabetismo - e, no caso brasileiro, com resultado -, ainda assim não se cria uma população leitora. E nem, é óbvio, cidadãos conscientes e atuantes.

Conseqüência direta ou indireta desse quadro, na grande maioria das escolas brasileiras, quando há bibliotecas, prevalece um sistema arcaico de utilização e aproveitamento do acervo e não apenas por indigência material.

Mesmo aquelas que podem se dar o luxo de algum aparato tecnológico e de práticas mais modernas relutam em investir nos recursos humanos, deixando que alguns velhos cacoetes culturais perdurem. Por exemplo, o de improvisar um guardião que terá como missão, de fato, guardar o geralmente precário material bibliográfico. E o fará, geralmente também, com um zelo e uma rabugice de burocrata. Os leitores da assim chamada biblioteca - crianças e adolescentes, em sua maioria - irão freqüentá-la com igual despreparo e desinteresse, subutilizando sempre os possíveis recursos. E o contato prazeroso com a leitura - já de si tão problemático nestes tempos de cultura visual -, este sim, passa por metamorfose definitiva: ler se torna mais um entre os deveres escolares.

DE NORTE A SUL

A situação da biblioteca escolar no Brasil é reflexo do contexto em que ela tem existência, qual seja, o da educação. Portanto, não é grande surpresa a dificuldade em se obterem dados atualizados sobre essa situação - quantas escolas possuem bibliotecas, o porte de seus acervos, quais têm profissionais especializados em seu comando e daí por diante. Assim, para se ter uma visão panorâmica do quadro, vamos recorrer aqui a informações de 1987, reunidas numa ampla reportagem da revista Escola.

"De norte a sul do País", constata o artigo, "as escolas enfrentam inúmeras dificuldades para organizar uma biblioteca, manter - mesmo precariamente - as que existem ou ainda para tentar integrá-las no processo educacional.”.

Com isso, os 25 milhões de alunos do 1º grau (à época, 18 % da população brasileira) ficavam privados de material de pesquisa, leitura e de outras fontes de informação além do próprio professor e do material didático. Em última análise, então como agora, os estudantes sem acesso a uma biblioteca em sua própria escola correm mais o risco de ficar à margem de um ensino democratizado.

Como não existe um órgão nacional que cuide especificamente de bibliotecas escolares, as questões relativas a elas têm que ser administradas pelas secretarias estaduais e municipais de educação. E mesmo estas não dispõem, em sua maioria, de dados precisos e atuais sobre a situação das bibliotecas escolares.

AS DUAS FUNÇÕES

Embora tão marginalizada de nosso sistema educacional, a biblioteca escolar, tem funções fundamentais a desempenhar e que podem ser agrupadas em duas categorias - a educativa e a cultural.

Na função educativa, ela representa um reforço à ação do aluno e do professor. Quanto ao primeiro, desenvolvendo habilidades de estudo independente, agindo como instrumento de auto-educação, motivando a uma busca do conhecimento, incrementando o gosto pela leitura e ainda auxiliando na formação de hábitos e atitudes de manuseio, consulta e utilização do livro, da biblioteca e da informação. Quanto à atuação do educador e da instituição, a biblioteca complementa as informações básicas e oferece seus recursos e serviços à comunidade escolar de maneira a atender as necessidades do planejamento curricular.

Em sua função cultural, a biblioteca de uma escola torna-se complemento da educação formal, ao oferecer múltiplas possibilidades de leitura e, com isso, levar os alunos a ampliar seus conhecimentos e suas idéias acerca do mundo. Pode contribuir para a formação de uma atitude positiva, prazerosa frente à leitura e, em certa medida, participar das ações da comunidade escolar, servindo-lhes de suporte.

Nessas funções, por assim dizer, "ideais" de uma biblioteca escolar, estariam implícitos seus objetivos como instituição, que relacionamos a seguir:

- cooperar com o currículo da escola no atendimento às necessidades dos alunos, dos professores e dos demais elementos da comunidade escolar;

- estimular e orientar a comunidade escolar em suas consultas e leituras, favorecendo o desenvolvimento da capacidade de selecionar e avaliar;

- incentivar os educandos a pensar de forma crítica, reflexiva, analítica e criadora, orientados por equipes inter-relacionadas (educadores + bibliotecários);

- proporcionar aos leitores materiais diversos e serviços bibliotecários adequados ao seu aperfeiçoamento e desenvolvimento individual e coletivo;

- promover a interação professor-bibliotecário-aluno, facilitando o processo ensino-aprendizagem;

- oferecer um mecanismo para a democratização da educação, permitindo o acesso de um maior número de crianças e jovens a materiais educativos e, através disso, dar oportunidade ao desenvolvimento de cada aluno a partir de suas atitudes individuais;

- contribuir para que o educador amplie sua percepção dos problemas educacionais, oferecendo-lhe informações que o ajudem a tomar decisões no sentido de solucioná-los, tendo como ponto de partida valores éticos e cidadãos.

DE GUARDIÃO A MEDIADOR

De nada serviria uma bela biblioteca escolar, com espaço físico e acervo suficientes às necessidades do estabelecimento de ensino se, para exercer as funções e cumprir seus objetivos, não estiver em seu comando um profissional consciente, com sensibilidade e habilitações básicas para manter esse espaço de cultura e informação bem azeitado e atraente.

Entre as habilitações se incluem, claro, aqueles conhecimentos técnicos essenciais de organização do acervo, bem como dos mecanismos cotidianos para utilizá-lo - empréstimos e devoluções, dentre outros. É verdade que a maior parte das bibliotecas escolares brasileiras não conta com o bibliotecário a sua frente. Uma série de motivos podem ser apontados como causas desta situação.

Para atuar como bibliotecário escolar, o profissional deve ter noções mínimas de seu papel. Deve saber, por exemplo, que lhe compete oferecer oportunidades, materiais e atividades específicas, visando despertar o interesse da comunidade escolar pela biblioteca para, a partir daí, poder trabalhar no desenvolvimento da leitura.

A promoção de certas atividades - só requer um pouco de inventividade e gosto por parte do bibliotecário. Um exemplo: ao narrar histórias para crianças das primeiras séries, ele poderá abrir caminho à aquisição do hábito de ler. Neste ponto, é oportuna uma observação: quando falamos em hábito de ler, não nos referimos a uma atitude mecânica e obrigatória como, por exemplo, escovar dentes; estamos falando, sim, daquela "compulsão" de procurar e saborear determinado livro ou texto, daquela necessidade tão natural que se pode compará-la à de um gourmet que habitualmente antegoza e depois frui um belo prato.

Ler poemas, para despertar emoções e sentidos; realizar exposições, entrevistas; promover a leitura de textos teatrais; oferecer atividades em diversos campos da arte, como a mímica, a dramatização, a pintura; eis algumas das ações que bibliotecários escolares podem e devem empreender no recinto da biblioteca ou fora dela, mas sempre em consonância com o currículo e coadjuvando o trabalho do corpo docente.

Em síntese, sua grande tarefa é tornar a biblioteca da escola um lugar agradável, dinâmico, onde prevaleça um clima de harmonia entre ele e o público, seja qual for a faixa etária ou a posição deste na hierarquia da escola. No Brasil, a principal barreira a ser vencida nesse convívio parece ser a que tacitamente se ergue entre o educador e o bibliotecário. Este, por nem sempre estar bem entrosado com os problemas educacionais, costuma fechar-se em seus "domínios", tornando-se apenas mero entregador de livros.

O professor, por não saber desenvolver, na maioria dos casos, outro tipo de aula que não o discursivo, acha que prescinde do bibliotecário e não o procura. E assim se têm perdido ótimas oportunidades de um trabalho entrosado que propiciaria a aprendizagem baseada na indagação e na busca de conhecimentos mais amplos.

Apresentamos, a título de resumo, um rol das principais funções e atribuições que deveriam fazer parte do cotidiano do bibliotecário escolar:

- participar ativamente do processo educacional, planejando junto ao quadro pedagógico as atividades curriculares. E isso deve ser feito para todas as disciplinas, acompanhando o desenvolvimento do programa, colocando à disposição das comunidades escolar materiais que complementem a informação transmitida em classe;

- fazer da biblioteca um local prazeroso, descontraído, de modo a que os se sintam atraídos por ela;

- estimular os alunos, através de atividades simples, desde o maternal, a desenvolverem o "gostar de ler";

- proporcionar informações básicas que permitam ao aluno formular juízos inteligentes na vida cotidiana;

- oferecer elementos que promovam a apreciação literária, a avaliação estética e ética, tanto quanto o conhecimento dos fatos;

- favorecer o contato entre alunos de idades diversas.

O que se pretende, com tal comportamento profissional, é fazer com que a biblioteca escolar seja o agente de transformação do ensino, na medida em que provoque mudanças pedagógicas na escola. Isso, certamente, enquanto nossas instituições de ensino não atingem aquela sonhada maturidade, em que transformar seja apenas sinônimo de progredir e elas possam simplesmente exercer sua função primordial de formar.

Fonte:
Publicado em 1999.
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/

Ryunosuke Akutagawa (O Nariz)

Na cidade de Ike-no-O não há quem não conheça o nariz de Naigu Zenti. É realmente um respeitável nariz com uns quinze centímetros de comprimento, e que se esparrama pelo lábio superior até alcançar o queixo. É um formato único, grosso, desde a raiz até a extremidade final; uma espécie de salsicha incrustada bem no meio do rosto.

Naigu é hoje um homem com mais de cinqüenta anos, e ocupa um dos mais elevados postos dentro da igreja budista. Porém, desde o tempo de noviço, a sua maior preocupação sempre foi o tamanho do nariz. É evidente que Naigu tentava aparentar a maior das indiferenças pelo assunto. Aliás, preocupações nesta natureza eram incompatíveis com o espírito de um sacerdote que aspira ao nirvana; seria muito desagradável se os outros reparassem que seus pensamentos mais íntimos eram monopolizados pela enormidade do seu nariz. O grande terror de Naigu consistia, portanto, no acidental surgimento da palavra nariz durante os bate-papos cotidianos.

E, convenhamos, havia realmente motivos para Naigu ficar atrapalhado com seu nariz. Era um apêndice demasiadamente comprido e, por isso mesmo, muito incômodo. Principalmente na hora das refeições. Quando abria a boca para engolir alguns grãos de arroz, a inconveniente ponta do nariz ficava, lá embaixo, fossando o fundo da tigela. Naigu via-se, assim, coagido a pedir a um dos seus discípulos que se sentasse no outro lado da bandeja para, com uma tábua de três centímetros de largura e setenta de comprimento, lhe suspender o nariz. Porém, comer dessa maneira era uma situação tão difícil para Naigu, quanto para o discípulo que cansava o braço para manter o celebrado nariz esplendidamente arrebitado. Contava-se mesmo em Kioto que um dia, um noviço ao substituir o já bem treinado discípulo, dera um espirro, tremera a mão, deixando dessa forma cair quinze cm de nariz dentro da sopa.

Mas, se exteriormente Naigu apenas se aborrecia com os contratempos provocados pelo gigantesco apêndice, no íntimo sofria a sua vaidade ferida.

Os habitantes de Ike-no-O comentavam que era uma felicidade para Naigu não ser homem profano. Porque – pensavam todos – mulher alguma estaria disposta a ser sua esposa. Existia, porém, toda uma fauna de maliciosos que argumentava ser precisamente o nariz de Naigu a causa do sucesso de sua carreira sacerdotal. Contudo, a verdade era outra. Apesar de bonzo, Naigu nunca deixara de preocupar-se com o nariz. Tinha uma sensibilidade tão a flor da pele, que o amargurava atrozmente saber que, caso lho permitissem as leis sacerdotais, mulher alguma seria, voluntariamente, sua esposa.

Naigu tentou, então, por todos os meios, disfarçar a presença inevitável do seu nariz. A primeira tentativa consistiu em encurtar, por um doloroso esforço de imaginação, a desastrosa lingüiça nasal. Depois de verificar a ausência de qualquer curioso, sentava-se diante do espelho e contemplava-se segundo os mais diversos ângulos e posições. Colocava o rosto entre as mãos; encostava o dedo no queixo. Mas, apesar de todo esse ritual em honra da vaidade ofendida, jamais conseguiu ver diminuir o tamanho do nariz. Por vezes, tinha mesmo a impressão que, quanto mais se esforçava, mais comprido ficava. Então, Naigu suspirava, desanimado, guardava o espelho no estojo e, mais amargurado do que nunca, voltava à escrivaninha para prosseguir a leitura do Livro de Kwannon.

E já que “nariz” era a sua preocupação máxima, Naigu preocupava-se também com o nariz dos outros. O templo era um importante centro religioso, onde se realizavam freqüentes reuniões da Ordem. No templo, havia inúmeras celas para bonzos. No banheiro, um sacerdote vigiava para que houvesse sempre água quente. Eram muitos e variados os bonzos e profanos que visitavam o templo. Ansiosamente, Naigu contemplava o rosto de todos eles. Não reparava nos quimonos azuis, nem nos brancos. As vestes sacerdotais às quais se habituara eram como se não existissem. Podemos dizer que não via caras: via narizes.

Porém, se de vez em quando aparecia um nariz em forma de gancho, jamais apareceu um nariz em forma de salsicha como o seu. Decepção sobre decepção, aumentando o seu íntimo desgosto. Um dia, conversando com um visitante, chegou mesmo a enrubescer como um tomate, ao coçar, num gesto involuntário, a ponta do nariz. E Naigu tinha já nessa altura, os seus cinqüenta anos.

Como última e desesperada tentativa, Naigu dedicou-se a pesquisar entre os clássicos do país e do mundo, algum personagem ilustre que tivesse tido um nariz igual ao seu. Obteria, assim, algum conforto íntimo. Porém, nenhum dos livros da doutrina budista se referia a qualquer monstruosidade nasal de seus homens santos ou altos prelados. Mais tarde, durante uma conversa acerca das coisas da China e da Índia, soube que Ryu Gen Toku , da China, tinha umas orelhas muito compridas. Naigu suspirou, desanimado. Ah! Se fosse o nariz...

Desnecessário dizer que, simultaneamente com estes métodos, algo ideais, de compensação nasal, Naigu experimentava outros, de maior interesse prático, mas nem por isso menos fantásticos. Chegou a tomar infusória de cabeça e a untar o nariz com urina de rato. Todavia, apesar de todos os esforços, o nariz persistia em balançar diante dos seus olhos.

Ora, aconteceu que num outono, um discípulo que fora à capital a serviço de Naigu, trouxe uma sensacional receita para encurtar o nariz, passada por um médico afamado, natural do continente, que no momento trabalhava em Choraku.

Naigu, como habitualmente, manifestou pouco interesse pela receita. Que não o preocupava o tamanho do nariz. Por outro lado, lamentava o trabalho que dava aos discípulos durante a hora das refeições... E, em sobressalto, aguardava que o discípulo o convencesse a submeter-se ao tratamento. Estratagema ingênuo que faria sorrir sarcasticamente o moço, não fosse a compaixão que lhe despertava a sensibilidade em carne viva de Naigu. Tudo se passou como fora previsto pelo bonzo narigudo. O discípulo insistiu, o mestre recusou, voltou a recusar, e acabou por ceder.

A receita era muito simples. Bastava amolecer o nariz em água quente, para depois ser pisado. Água quente era coisa que não faltava no banheiro do templo. Diligente, logo o discípulo foi buscar um jarro com o precioso líquido. Água quente, tão quente, que nem um dedo se podia mergulhar. Seria uma temeridade enfiar diretamente o nariz na bacia, porque o vapor poderia queimar o rosto. Foi então aberto um buraco no centro de uma bandeja laqueada e através deste orifício improvisado, tratou o discípulo de enfiar o magnífico apêndice nasal do mestre. Naigu nem sequer sentiu a temperatura da água. Momento depois, dizia o discípulo:
- Já deve estar cozido...

Naigu sorriu, contrafeito. Cozinhar – pensou – cozinham-se as salsichas. Porém, salsicha ou nariz, o que é certo é que o extraordinário apêndice, cozido em água quente, coçava como se houvesse sido picado pelas pulgas.

Mal o mestre retirou o rosto da bandeja, logo o discípulo começou a pisar, com vontade, o nariz ainda fumegante de vapor. Deitado a todo o comprimento do chão, o nariz acompanhando a linha do corpo, Naigu contemplava, pensativo, as enérgicas subidas e descidas dos pés do discípulo. Este, de vez em quando, olhava para baixo, para a calva lustrosa de Naigu e, penalizado, perguntava:
- Não está doendo? O médico aconselhou a pisar com força. Mas... não dói mesmo?

Naigu tentou abanar a cabeça mas como o nariz estava preso, não pôde mexer o pescoço. Olhou de soslaio para cima, e vendo os pés do discípulo já com rachaduras, gritou sufocado pela raiva:
- Não dói, não dói!

E não mentia. Tratando-se de esborrachar o nariz, sentia com isso mais prazer do que dor.

Mais algumas pisadas e começam a surgir algumas erupções do tamanho de grãos de alpiste. O nariz transformara-se num passaroco depenado e tostado. Reparando nas erupções, o discípulo suspendeu subitamente os saltos, e avisou:
- O médico disse que isso devia ser tirado com uma pinça.

Naigu sujeitou-se à operação, as bochechas infladas de mal contida revolta. Reconhecia a boa vontade do moço, mas aborrecia-o o fato de ele tratar seu nariz como se fosse um objeto estranho, uma espécie de excrescência sem dono. Naigu, tal como um paciente que se submete à intervenção cirúrgica efetuada por um médico de pouca confiança, ficou contemplando, com desprazer, o discípulo que extraía, com um pinça, a gordura que se amontoava nos poros. Uma gordura toda especial, em forma de raiz de pena de ave, com um centímetro e meio de comprimento.

Terminada a operação, diz o discípulo, como que aliviado:
- Agora é cozinhar mais um pouco, e pronto!

Naigu franziu mais uma vez a testa, mas se submeteu.

Retirando finalmente o apêndice que fora ao segundo cozimento, Naigu verificou que o nariz estava realmente curto como nunca dantes estivera. Pouco se diferenciava, agora, dos narizes em forma de gancho que visitavam com certa freqüência, o templo. Naigu, esfregando o encolhido apêndice, mirou-se timidamente ao espelho que lhe apresentou o radiante discípulo. O nariz – aquele nariz que não há muito se projetava até abaixo do queixo – por um golpe de mágica contraíra-se, recolhendo-se, acanhado, a uma modesta posição acima do lábio superior. Apenas algumas manchas vermelhas. Certamente, em resultado das pisadas.

Nariz curto, quem troçará agora de Naigu? Dentro do espelho, o olho de Naigu piscou, satisfeito, para o Naigu de fora do espelho.

Porém, durante todo esse dia, o bonzo ficou apreensivo, receando que o nariz voltasse a crescer de um momento para o outro. Durante os ofícios religiosos, durante as refeições, durante toda e qualquer situação, lá estava o bom Naigu coçando a ponta do nariz. Todavia, o impertinente apêndice conservava-se acima do lábio superior, muito comportadinho, sem mostrar a menor das disposições de voltar a esparramar-se rosto abaixo.

Ao despertar cedo, na manhã seguinte, o primeiro cuidado de Naigu foi ainda o de levar a mão ao nariz. O apêndice continuava curto. Após muitos anos de melancolia, Naigu sentia-se agora de coração leve e despreocupado, numa euforia que tinha apenas paralelo com a que experimentara ao terminar de copiar a sagrada escritura de Hokke.

Porém, passados dois ou três dias, Naigu descobriu um fato insólito. Um samurai, que visitava freqüentemente o templo, fitava-o hoje com uma expressão mais divertida do que nunca. Mas não foi só. Aquele noviço que lhe deixara cair 15 cm de nariz dentro da sopa, ao cruzar com o mestre, perto da sala de ofícios, baixou os olhos, tentando conter uma gargalhada que, irreprimível, foi explodir alguns passos mais à frente. E não foi nem por uma ou duas vezes que os bonzos, no momento de receberem alguma incumbência ou ordem sua, o ouviam de fisionomia séria e compenetrada, para logo sacudirem o edifício da dignidade com umas gargalhadas nervosinhas e abafadas, mal ele voltava as costas.

Naigu concluiu que tais manifestações eram apenas devido à súbita mudança de sua fisionomia. Era, porém, uma interpretação que não o satisfazia inteiramente. Não tinha outra justificativa o riso dos bonzos, argumentava o solitário Naigu. Porém, segredava-lhe uma voz íntima, também a natureza do riso se modificou. Será então que um nariz curto e desconhecido é mais jocoso do que um nariz comprido e familiar? Absurdo.
- Mas antes não riam tão abertamente, murmurava Naigu, durante os ofícios religiosos. E balançava, tristemente, a cabeça calva.

O atormentado Naigu contemplava então a imagem de Samantabhadra, pendurada na parece, e recordava a época que terminara, há quatro ou cinco dias atrás, quando ainda tinha um nariz em forma de salsicha. E a melancolia enchia-lhe os olhos, tal como “homem rico que ficou pobre, ao lembrar-se do passado tempo de fartura e riquezas”.

Lamentavelmente faltava a Naigu a clarividência para solver as contradições que o atormentavam. No coração humano há dois sentimentos que mutuamente se contrapõem. Ninguém duvida que todos sentem compaixão pela desgraça do próximo. Porém, mal esse indivíduo consiga desvencilhar-se da desgraça, surge no coração humano a insatisfação, o desapontamento. Exagerando um pouco poderíamos dizer que surge no coração humano a esperança de que esta mesma pessoa volte a ser atingida pela mesma desgraça. E, pouco a pouco, imperceptivelmente, começamos a hostilizar essa pessoa.

Naigu sentia crescer o mal-estar, sem contudo lhe descobrir a fonte; sentia que ia se avolumando uma atitude de expectativa em todos os bonzos e habitantes de Ike-no-O. Justificava-se o seu mau humor. Ralhava com todos, por tudo e por nada. Chegou a tal extremo que até mesmo o discípulo que lhe pisara o nariz, acabou por segredar aos companheiros que “Naigu está cometendo uma falta grave”. Todavia, o que mais enfureceu Naigu foi descobrir um dia o noviço que lhe largara o nariz dentro da sopa, perseguir pelo jardim um cachorro magro. O cachorro gania, a mão do aprendiz empunhava uma tábua, e gritava:
- Não bato no nariz, não bato no nariz...

Naigu arrancou violentamente a tábua das mãos do mocinho, e aplicou-lhe sonora bofetada. A tábua era precisamente aquela que antigamente servia para lhe suspender o nariz.

E, assim, Naigu foi ficando com remorsos de ter encurtado do nariz.

Mas eis que algo aconteceu certa noite. Começou a ventar, logo após o escurecer. Os bramidos metálicos dos sinos da torre alta perturbavam Naigu. Alem do mais, estava frio, e o bonzo, já no limiar da velhice, não conseguia adormecer. Veio a insônia. Foi então que sentiu uma estranha coceira no nariz. Levou a mão ao apêndice, e notou que estava um pouco intumescido. Parece mesmo que tinha um pouco de febre na ponta.
- Talvez esteja doente, pois foi obrigado a diminuir...

Naigu murmurou algo imperceptível, e sustentou o nariz com a palma da mão, como se tivesse oferecendo uma dádiva a Buda.

Na manhã seguinte, despertou cedo e inquieto. As folhas das árvores tinham caído todas, atapetando com um amarelo incerto, o jardim do Templo. Os telhados, ainda cobertos de geada, brilhavam à fraca luz matinal. Naigu, de pé na varanda, respirou fundo.

Foi neste momento que voltou a experimentar uma leve sensação, da qual já estava perdendo a memória. Levou, precipitadamente, a mão ao nariz. Não existia mais o nariz curto da noite anterior. Pendia, do alto do lábio superior, até abaixo do queixo, um magnífico apêndice nasal. Numa só noite, o nariz tinha voltado à forma primitiva.

Ao mesmo tempo uma estranha e indecifrável sensação de bem-estar, em tudo idêntica àquela que experimentara ao encurtar o nariz, voltava a confortar o coração de Naigu.
- Assim, ninguém voltará a rir, murmurou.

Naigu manteve durante longos momentos, um reconfortante diálogo íntimo. E, ao mesmo tempo, balançava o comprido nariz ao vento matinal de outono.
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Akutagawa, Ryunosuke (1892-1927). Escritor japonês, nascido em Tóquio. Sua principal característica é ter sido autor de contos inspirados na literatura kirishitan (cristã) do século 16, além de lendas populares e grandes obras clássicas (Rashomon, 1915; Figuras infernais, 1920). Nota-se em sua obra a progressão de sua loucura que acabaria por levá-lo ao suicídio.
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Fontes:
Estante Digivirtual - http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/
http://www.ndl.go.jp/ (imagem)

O Nosso Português de Cada Dia (Palavras homófonas e Parônimas)

Brocha (pequeno prego)
broxa (pincel)

Chá (nome de uma bebida)
xá (título de antigo soberano do Irã)

Chácara (propriedade rural)
xácara (narrativa popular em versos)

Cheque (ordem de pagamento)
xeque (jogada de xadrez)

Cocho (vasilha para alimentar animais)
coxo (manco)

Tacha (pequeno prego)
taxa (imposto)

Tachar (pôr defeito em)
taxar (cobrar imposto)

Cozer (cozinhar)
coser (costurar)

Prezar (ter em consideração)
presar (prender, apreender)

Traz (do verbo trazer)
trás (parte posterior)

Acender (iluminar)
ascender (subir)

Acento (sinal gráfico)
assento (onde se senta)

Caçar (perseguir a caça)
cassar (anular)

Cegar (tornar cego)
segar (cortar para colher)

Censo (recenseamento)
senso (juízo)

Cessão (ato de ceder)
seção ( departamento - parte ou divisão )
secção ( corte ) sessão (reunião).

Concerto (harmonia musical)
conserto (reparo)

Espiar (ver, espreitar)
expiar (sofrer castigo)

Incipiente (principalmente)
insipiente (ignorante)

Intenção (propósito)
intensão (esforço, intensidade)

Paço (palácio)
passo (passada)

Palavras Parônimas:
Área (superfície)
ária (melodia)

Deferir (conceder)
diferir (adiar ou divergir)

Delatar (denunciar)
dilatar (estender)

Descrição (representação)
discrição (reserva)

Despensa (compartimento)
dispensa (desobriga)

Emergir (vir à tona)
imergir (mergulhar)

Emigrante (o que sai do próprio país)
imigrante (o que entra em um país estranho)

Eminente (excelente)
iminente (imediato)

Peão (que anda a pé)
pião (brinquedo)

Recrear (divertir)
recriar (criar de novo)

Se (pronome átono, conjunção)
si (pronome tônico, nota musical)

Vultuoso (atacado de vultuosidade, ou seja, congestão na face)
vultoso (volumoso)

Fonte:
Apostila da Caixa Econômica Federal. Instituo Padre Reus, 2004.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Adelmar Tavares ( 1888 - 1963)

Adelmar Tavares (A. T. da Silva Cavalcanti), advogado, professor, jurista, magistrado e poeta, nasceu em Recife, PE, em 16 de fevereiro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 20 de junho de 1963.

Era filho de Francisco Tavares da Silva Cavalcanti e de Maria Cândida Tavares. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife, onde colou grau em 1909. Ainda estudante, começou a colaborar na imprensa como redator do Jornal Pequeno. Em 1910, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ocupou importantes cargos. Foi professor de Direito Penal na Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro; promotor público adjunto (1910); curador de resíduos e testamentos (1918); curador de órfãos (1918-1940); advogado do Banco do Brasil (1925-1930); desembargador da Corte de Apelação do Distrito Federal (1940) e presidente do Tribunal de Justiça (1948-1950).

Enquanto desenvolvia sua carreira na magistratura, Adelmar Tavares continuava colaborando na imprensa, e seu nome se tornara conhecido em todo o Brasil no setor da trova, sendo considerado, até hoje, o maior cultor desse gênero poético no Brasil. Suas trovas sempre mereceram referência na história literária brasileira. Sua obra poética caracteriza-se pelo romantismo, lirismo e sensibilidade, sendo recorrentes temas como o da saudade e o da vida simples junto à natureza.

Era membro da Sociedade Brasileira de Criminologia, do Instituto dos Advogados, da Academia Brasileira de Belas Artes, membro e patrono da Academia Brasileira de Trovas. Era considerado o Príncipe dos Trovadores Brasileiros. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras em 1948.

Quinto ocupante da Cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de março de 1926, na sucessão de João Luís Alves e recebido em 4 de setembro de 1926 pelo Acadêmico Laudelino Freire. Recebeu o Acadêmico A.J. Pereira da Silva.

Obras:
Descantes, trovas (1907);
Trovas e trovadores, conferência (1910);
Luz dos meus olhos, Myriam, poesia (1912);
A poesia das violas, poesia (1921);
Noite cheia de estrelas, poesia (1925);
A linda mentira, prosa (1926);
Poesias (1929);
Trovas (1931);
O caminho enluarado, poesia (1932);
A luz do altar, poesia (1934);
Poesias escolhidas (1946);
Poesias completas (1958).
Escreveu também várias obras jurídicas, entre as quais Sobre a história do fideicomisso; Do homicídio eutanásico ou suplicado; Do direito criminal; O desajustamento do delinqüente à profissão.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras
http://www.academia.org.br

Adelmar Tavares (Textos Escolhidos)

A VIDA TEM DOIS CAMINHOS

A vida tem dois caminhos.
Um, todo cheio de flores,
todo cheio, outro, de espinhos...

Uns pela estrada florida,
passam, bem longe das dores,
só tendo flores na vida.

Outros, bem tristes, se vão,
trazendo os pés nos espinhos,
e espinhos no coração.
*
Deus! Senhor dos dois caminhos
da vida que a gente trilha,
tem pena de minha filha,
da filha de meus amores
que é tão pequenina, assim...
Junca-lhe a estrada de flores!
Deixa espinhos para mim!
(Luz dos meus olhos, Myriam, 1912.)

SERENIDADE

Nunca de mim se ouviu um só protesto
de maldição, de cólera aturdida,
sequer uma palavra, ou mesmo um gesto
de malquerer a quem mais quis na vida.

Arrasto como a um fardo, a alma ferida,
e a dor que me crucia, manifesto,
sem jamais inculpar de fementida,
aquela que em meu sonho amo, e requesto.

Em perdendo-a, perdi toda a alegria
do coração que em mágoas apunhalo.
Perdi a luz!... Fechou-se o sol que eu via!...

Tudo abateu com a queda desse amor,
tão forte, que ainda sinto o seu abalo,
tão grande, que ainda escuto o seu fragor.
(Noite cheia de estrelas, 1925.)

AMOR
Querer que o amor seja eterno, é
querer eterna a primavera.

JÚLIO DANTAS

Todo amor dura, apenas, um segundo,
ou quando dura muito, - uma estação.
É como a Primavera o amor no mundo,
querê-lo, eternamente, uma ilusão.

Chega... Perfuma tudo... O charco imundo
faz em jardim, e passa... É um sonho vão.
- Mas o amor-sofrimento?!... O amor-profundo,
lá da raiz do nosso coração?!...

Amor que sendo angústias sufocadas,
ama cada vez mais, sereno e forte,
e acha encanto nas lágrimas choradas?!...

- Esse, há de eterno, pelo seu sofrer,
arder por toda a vida, até a Morte,
para no além da Morte, reviver...
(Noite cheia de estrelas, 1925.)

A CIDADE DE RECIFE

Pátria do meu amor! Recife linda,
como te guarda o meu saudoso olhar!
Velas ao longe... Os coqueirais de Olinda,
e uma terra a nascer da água do mar...

Um céu de estrelas que entrevejo ainda.
Sob as pontes, o rio a se estirar...
Noites de lua... que saudade infinda...
brancas... que dão vontade de chorar...

Filho ingrato, parti... Mas nem um dia,
deixei de te lembrar, por mundo alheio,
onde me trouxe a glória fugidia.

Pátria, quando eu morrer, piedosa e boa,
dá que eu durma o meu sono no teu seio,
como um seio de Mãe que ama e perdoa...
(Noite cheia de estrelas, 1925.)

MISTÉRIO

"Conheço um coração, tapera escura."
Bilac. (Tarde)
A Clementino Fraga

Que voz foi essa em meu ouvido?
Alguém falou no meu ouvido...
Que doce e estranha vibração
toma-me, agora, o coração?...

- Ninguém falou no teu ouvido...
Esses rumores todos são,
mistério sem explicação,
coisas de velho coração...

Mas esse aroma revivido
ao meu olfato? A exalação
que estou sentindo, de um vestido,
que era o jasmim do seu vestido,
que me não mente o coração?

- Oh, nada sentes!... Nada... Não...
Esses perfumes todos são,
do teu espírito abatido,
mera, fugaz perturbação.
Coisas de velho coração...

Ah que bem disse um Poeta, um dia,
que o triste, humano coração,
quando com o tempo envelhecia,
era também casa vazia,
de assombração...
(O caminho enluarado, 1932.)

TROVAS

Não sei porque, quando canto,
por mais alegre a canção,
tem uma gota de pranto
que vem do meu coração.
*
Eu vi o rio chorando
quando te foste banhar,
por não poder te banhando,
dar-te um abraço, e ficar...
*
Oh lindos olhos magoados,
de tanta melancolia...
- Da tristeza desses olhos
é que vem minha alegria.
*
Amar é obra perdida
mas, que dissessem, queria,
se não fosse amar na vida,
a vida, que valeria?!
*
As penas em que hoje estou,
disse-as ao Sol, - fez-se triste.
Disse-as à Noite, - chorou...
Disse-as a ti, e sorriste...
*
Não lamento a minha lida,
nem, pobre, choro os meus ais.
Quem tem um amor na vida,
tem tudo! Para que mais?
*
Vou vivendo a minha vida,
como Deus quer e consente.
- Sou como a folha caída,
levada pela corrente.
*
Trovas, - cantiga do povo,
alma ingênua dos caminhos,
de lavradores, cigarras,
mulheres, e passarinhos...
*
Para esquecer-te, outras amo,
mas vejo, por meu castigo,
que qualquer outra que eu ame,
parece sempre contigo...
*
Para de amor cantar mágoas,
foi que se fez o violão,
que a gente aperta no peito,
e encosta no coração...
*
Quem tiver amor, esconda,
faça por muito esconder,
que as coisas da alma da gente,
ninguém carece saber...
*
Só peço o dia em que eu morra
faça uma noite de lua,
todo troveiro descante,
todo violão saia à rua.
*
Quando eu morrer, levo à cova,
dentro do meu coração,
o suspiro de uma trova
e o gemer de um violão...
*
A morte não é tristeza,
é fim... É destinação...
Tristeza é ficar na vida
depois que os sonhos se vão...
*
Depois de mandar-te embora
foi que - cego! - percebi,
que eras a felicidade
que eu tinha em mãos, e perdi.
*
Bem sei que amar custa muito,
custa a vida querer bem,
mas custa o dobro da vida,
na vida não ter ninguém.
*
Oh linda trova perfeita,
que nos dá tanto prazer!...
- Tão fácil, - depois de feita...
tão difícil, de fazer...
*
Para definir o Poeta,
Só mesmo em versos defino.
- É um homem que fica velho,
com o coração de menino...
*
Minha Mãe, minha velhinha,
Deus te abençoe, e acompanhe,
porque uma Mãe neste mundo,
quanto mais velha, mais Mãe.
(Poesias completas, 1958.)

VELA BRANCA

Vela branca, vela branca,
que vais lá longe... no mar...
quem me dera, vela branca,
que me quisesses levar
para tão longe... tão longe,
que eu não pudesse voltar...

Mas uma vez, vela branca,
que não me queres levar,
para tão longe... tão longe...
que eu não pudesse voltar,
leva-me a saudade dela
para o mais fundo do mar.

GUILHERME DE ALMEIDA

Vejo a ciranda das horas,
moças lindas a cantar...
doze vestidas de branco,
umas de flores na testa,
outras de flores na mão...
E, no balanço da dança,
quando uma vem, outras vão...

Horas do dia e da noite...
Ó vocês! ... Lindas que são! ...
Qual será mesmo a minha Hora,
minha hora de Redenção?!...
Será das doze de branco,
ou das que de negro estão?!...
Qual virá, vindo o meu dia,
pousar a mão no meu peito,
parando o meu coração?!...
(Poesias completas, Rio, 1958.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras
http://www.academia.org.br/

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Carlos de Laet (Machado de Assis)

publicado no Jornal do Brasil, 1-10-1908

Desejara não escrever sobre o caro morto. Outros já o têm feito. Outros ainda o farão melhor. Em sua glória, aliás, e definitiva colocação no panteon literário, nada pode influir o meu juízo nestas páginas efêmeras da imprensa, amanhã já dispersas, e que com razão têm sido comparadas aos antigos oráculos de Dodona, lançados em folhas de carvalho, com pretensões a dirigirem os povos, e logo tomadas pelo vento e por ele arrastadas ao limbo do olvido. Mas ninguém faz como quer. Insensivelmente se me volve o espírito para a câmara ardente onde no seu esquife enflorado se embarca o velho amigo, caminho da eternidade.

Eu não ignorava que Machado de Assis estava enfermo; e só me admirava a resistência daquele débil organismo, quando bem a cheio no coração o sabia ferido, desde que de súbito o colheu a irreparável desgraça a perda da mulher, em quem mais do que em nenhuma cabia o doce epíteto de consorte.

Dolorido ainda não há muito o víamos aí pela rua, ou na Livraria Garnier; mas singularmente se enganava quem o supunha vivo. Nem sempre se agoniza no leito. Agonia é luta, luta com a morte, que afinal sempre entoa o canto de vitória. O pobre Machado agonizava de pé, e ocultando na sua impassibilidade de moderno estóico os tremendos combates que lá por dentro se lhe travavam.

Quando quem escreve estas linhas começou a entender de literatura, já o nome de Machado de Assis era apontado como o de exímio cultor das letras. Sua obra poética, primeiro ensaiada em jornais e revistas, ia tomando vulto e formava volumes. Suas crônicas, seus contos, suas novelas repetidamente acusavam o lavor de um artista da palavra. De vez em quando apareciam no teatro algumas das suas tentativas dramáticas, e todas deixavam a impressão de um talento mesurado, em eurrítmico, isto é, que por principal mérito de forma houvesse o sentimento de comedido e decoroso, no sentido em que o tomava a estética dos clássicos.

Porque ele o era, um clássico verdadeiro, no tocante à forma, no minucioso estudo da língua, e no escrupuloso cuidado com que se apartava de quanto se lhe afigurasse dissonância.

Espírito assim conformado, claro está que não se podia alar em grandes surtos aos extremos em que por vezes o rigor da crítica apanha os geniais desvairos de um Shakespeare no drama, de Hugo no tentame lírico, ou de Hoffmann no conto. O famoso ne quid nimis [“nada em demasia”] achou no glorioso extinto impecável observante. Sabe-se que os termômetros comuns podem marcar desde os grandes frios, mais gélidos ainda que o próprio gelo, até a cálida temperatura em que a água se faz vapor; mas; por perfeita que seja a graduação, só aproximativas se revelam as indicações do instrumento. Nos extremos, então, muito é possível errar a observação termométrica. Quando, porém, para as temperaturas médias, dos aposentos ou dos corpos humanos, a coluna está preparada de modo que só funciona entre próximos limites, não é difícil apanhar com justeza diferenças mínimas, em décimos de grau. O termômetro estético do nosso Machado era um desses aparelhos de precisão, impróprios para as temperaturas violentas das paixões, mas admiravelmente calibrado para indicar e traduzir, com máxima exação, toda a gama das modalidades físicas entre dados limites, que aliás são os comuns na vida social.

A religião e a política eis as duas causas por que mais se apaixonam os homens; e nunca ninguém as viu discutir pelo extinto chefe literário. É que isso, e com razão, lhe parecia uma luta, e ele absolutamente não se propunha lutar. Seu campo de ação ele o delimitara na expressão dos afetos brandos ou na crítica impessoal dos costumes crítica em que jamais se demasiava, não direi até a ferroada, porém mesmo até a picada de alfinete. As personagens mais ridículas e censuráveis, nos contos e escritos de Machado, nunca tanto o são que deixem de ser socialmente aceitáveis. Se fora a charge uma “publicação a pedido”, nenhum dos criticados acharia motivo para um processo por injúria.

Temperamentos assim tímidos e moderados não é raro que descaiam na fraqueza ou pusilanimidade; mas tal não sucedia com o nosso querido morto. Sua eurritmia (peço licença de voltar ao termo tão bem feito para dizer a minha idéia); a sua eurritmia estética prolongava-se no terreno moral. Incapaz de censurar com veemência um abuso, ele também o era de baixar à lisonja. Em suas relações oficiais sabia guardar conveniências, mas não se vergava a elas. Impoluto, impoluível no tocante a interesses pecuniários, tão absurdo lhe fora um conchavo, uma culposa complacência, quanto um solecismo ou uma vulgaridade estilística. Sabe-se que o arminho tem à lama horror instintivo, asseio que se exagera contando-se que, se acaso se mancha, logo morre de nojo. Daí aqueles altivos brasões dos Rohan, da Bretanha, onde figura o arminho com a legenda Potius mori quam foedari. Antes morrer que manchar-me! Soberbo lema de fidalgos; e que sem deslize da verdade também se pudera por sobre a lápide deste honrado homem do povo, tão fidalgo, ele também, na imaculável probidade.

Modesto nas suas origens, porque começou a trabalhar como simples operário tipógrafo, ele cresceu até às alturas em que o vimos, não por um desses abalos sísmicos com que freqüentes emergem celebridades, como no Oceano Pacífico se improvisam ilhas; e antes a compararíamos, a fama literária do extinto amigo, àquelas outras formações madrepóricas, que lentas e lentas se vão erguendo do abismo, pelo trabalho acumulado de muitos anos. O que fora recife, alteia-se finalmente exornado de plantas, que um dia serão árvores, desatando-se em flores e frutos de bênção.

Quando se fez a Academia de Letras, realizada em meio da República essa criação aristocrática, ante a qual tinha recuado a democracia zombeteira do Império, se um por um se tomassem os votos para a escolha do chefe, creio que ninguém discreparia na escolha de Machado. Simpático aos mais velhos, porque com eles tinha vivido, ou de pouco os precedera; bem querido dos novos, para quem sempre usava de benevolência, escusando senões e propiciando tentativas Machado foi o cabeça unanimemente aceito pela indisciplinada grei dos homens de letras. Ninguém lhe tinha que exprobrar um ataque ou perdoar uma invectiva.

Quem isto escreve, entrou para a Academia sem saber como. Ouviu dizer que foi sua inclusão no douto grêmio a obra de um confrade com quem outrora havia mantido peleja, e talvez demasiado viva, o Sr. Dr. Lúcio de Mendonça. Se o boato é verdadeiro, só pode redundar em prol do imparcial confrade, que talvez errou, mas supondo fazer justiça a um adversário. Humilde lidador da imprensa, o escrevedor destas linhas ali tão deslocado se acha como, por exemplo, um soldado raso, todo empoeirado das suas marchas e do seu trabalho de sapa, entre donairosos generais, que em sábias manobras idéiam batalhas incruentas. Mas dos motivos por que acredita estar ali condecorado, sobressai o ter como pares alguns brasileiros de incontestado mérito. Era Machado o primeiro desses.

Impossível seria que em vida quase septuagenária, através da administração e das letras, ele não houvesse, muito sem o querer, gerado antipatias, não direi inimizades, e provocado indébitas agressões. Lá pelos intermúndios burocráticos não sei o que tenha ocorrido. Aqui nos literários, época houve em que Machado foi objeto de rijos e porfiosos assaltos... Mas nunca respondeu. A brincar com ele, uma vez, eu lhe disse que ainda o havia de obrigar a ter comigo uma polêmica.

Não faça tal, respondeu-me a gaguejar ligeiramente, que os partidos não seriam iguais: isto para você seria uma festa, uma missa cantada na sua capela, e para mim uma aflição...

Nunca verdadeiramente privei com Machado de Assis, mas de uma vez se me desvendou o homem íntimo e pelo seu lado meigamente afetivo.

Estava eu a conversar com alguém na Rua Gonçalves Dias, quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos a tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bond das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até casa.

Tão insignificante fineza, que ninguém recusara ao primeiro transeunte, pareceu grande cousa àquela natureza retraída, mas amorável. Procurou-me de propósito para mo agradecer e, na longa conversação que então travamos, descobriu-me o coração ulcerado pela recente morte da sua Carolina. Após uma crise de lágrimas, ele me deixou profundamente entristecido: triste por vê-lo assim malferido, triste pela convicção de que para tal golpe não havia bálsamo possível.

Ao tempo em que por vezes nos encontrávamos em festas, tinha Machado uma frase feita, para designar a sua discreta desaparição, sem rumor nem despedidas: Vou raspar-me à francesa! Talvez por isto me parece que às pompas do oficialismo ele preferira que mais depressa o levassem para junto de um túmulo querido... Mas não censuro, antes aplaudo o ato do Governo com essas honras excepcionais a um homem que nada foi na política e que não deixa filhos nem parentes poderosos.

Vale! Tem saúde! diziam os romanos aos mortos bem-amados, fórmula absurda porque só aplicável aos vivos. Xaire! Regozija-te! exclamavam os gregos, e sem razão maior. No Cristianismo, que não é só a mais pura porém a mais bela das sínteses filosóficas, quão melhor nos exprimimos com o nosso adeus!

Ele é uma prece, uma suprema recomendação do viajor ao grande Espírito de amor e misericórdia. Adeus, irmão e amigo!

Fonte:
Academia Brasileira de Letras.
http://www.academia.org.br

Alfredo Ciuffi Neto (Conto da Meia Noite)

A casa estava afastada do centro da cidade apenas dez minutos para quem vai de carro. Na frente, enormes portões de ferro forjado todo trabalhado se encarregavam de limitar a entrada e saída das pessoas que por ali passavam. Nas laterais, um gradio igualmente de ferro fundido delimitava toda a extensão do terreno, cuja área era imensa.

Um jardim composto de inúmeras variedades de plantas, na sua maioria exóticas, compunha um
cenário um pouco estranho e estarrecedor para quem do lado de fora observava. As plantas mal podadas se entrelaçavam umas com as outras, formando um emaranhado quase que indissolúvel. Folhas secas caídas pelo chão se misturavam com a grama alta e não cuidada, demonstrando o estado de desleixo de seus proprietários com o aspecto daquela velha mansão.

Havia uma ruela que saía logo após o portão de entrada e ia até à frente do velho prédio, que se achava em lenta desintegração através dos anos. Enormes janelas, cujas venezianas pareciam que iriam se desprender da parede de uma hora para outra com o balançar dos ventos fortes, nas noites de longas e tenebrosas tempestades.

O interior do “castelo”, como era conhecido por todos na cidade, durante a noite toda só era iluminado por grandes castiçais de porcelanas, cujas velas forneciam uma parca claridade aos seus aposentos. Sombras se avultavam pelas paredes longevas e úmidas projetadas pelas antigas peças do mobiliário, provocadas pela pouca luz que resplandecia no ambiente. Nas paredes velhos quadros retratavam seus moradores em poses sofisticadas e impeticadas, como só os bem antigos gostavam de posar com os seus familiares.

O casarão guardava todas as tradições de seus antepassados num empoeirado sótão, que abrigava no seu âmago os mais ínfimos segredos daquela família. E não eram poucos, conforme os ditos que corriam de boca em boca das pessoas da cidade. Hoje, não havia um só vivente que não tivesse medo até de passar na sua frente, dado às histórias que dele falavam.

Naquela noite de inverno de 1.830, estavam reunidos na sala, como sempre faziam após o jantar,
em volta da lareira que queimava em brasa troncos de árvores, gerando calor para aquecer o ambiente, seus primeiros proprietários, detentores de títulos de nobreza, como Condes, Viscondes, entre tantos outros. Ali eles estavam bebericando um delicioso licor importado da França, a “família dos Carpelos”.

Magnatas, donos de muitas propriedades na localidade, possuíam negócios de produtos extrativos, como canela, cravo entre tantos outros, distribuindo-os pela Europa toda, era uma família próspera, porém, guardavam a sete chaves um segredo.

Enquanto as labaredas do fogo aceso na lareira tremelicavam naquela noite, ouviu-se repentinamente um clamor aterrorizante de mulher que se misturava ao badalar da meia noite do antigo carrilhão. Aquele grito vinha de algum lugar daquela enorme mansão. Todos ficaram arrepiados e extasiados por alguns instantes, quando começou um corre-corre desvairado por entre os aposentos procurando identificar de quem era aquele berro horripilante e de onde ele vinha.

Não tardou, e por entre as frestas do assoalho de tábua, gotejava um sangue vermelho e semicoagulado vindo do sótão. Pingava intermitente, gota-à-gota sobre um tapete igualmente vermelho que se achava estendido no piso da sala. Todos correram para lá atônitos e desesperados. Arrombaram a porta e se depararam com o corpo ainda pulsante que se contorcia ao jorrar abundante do sangue pela garganta cortada. Era a filha mais velha do Sr. Carpelo. Ninguém, até hoje, sabe contar ao certo a causa de tanto desatino. Muitas histórias foram inventadas através dos anos. A que mais se aproximava da provável causa, dizia que a moça era debilóide e por esta razão vivia confinada naquele sótão sombrio, isolada de todos pelos seus pais, por vergonha de expor o nome da família tradicional à tão bisonha doença. Isso era muito comum naquela época onde os recursos da medicina ainda precários não possibilitavam nenhuma espécie de cura para estes tipos de casos.

Muitas gerações da família passaram pela velha mansão, que aos poucos foi se decompondo até o estado de abandono que se achava. Daí, que as lendas e os mistérios se proliferavam em torno do velho prédio, um pouco pelo seu aspecto descuidado, mas em grande parte gerava medo pela morte cruel que teve a filha do Sr. Carpelo, degolada a meia noite. Não se sabe se foi suicídio ou assassinato. A dúvida ainda permanece.

Ainda hoje lá está morando um casal de velhinhos, última geração da família, que contam com voz tremulante sobre o caso que indignou muita gente na época. Dizem eles que o sótão nunca mais foi visitado por ninguém. Nunca alguém ousou por os pés lá, mas que Ana Carpelo ainda perambula por entre as velharias guardadas e empoeiradas como se estivesse viva. Vez por outra arrasta seus móveis e cujo barulho se faz ouvir ecoando por todo o casarão, e que exatamente a meia noite do dia do aniversário de sua morte, o seu sangue goteja por entre as frestas das tábuas de madeira como que avisando a todos de sua eterna existência. O gotejar da vida se confunde com a morte, se mistura com o badalar do relógio e com o passar do tempo que insiste em não parar.

Fonte:
CIUFFI NETO, Alfredo. Contando contos. http://tutomania.com.br/file.php?cod=8165