domingo, 27 de julho de 2008

Casa das Américas (XLVIII edição do seu Prêmio Literário 2009)

A Casa das Américas convoca para o ano 2009 à XLVIII edição do seu Prêmio Literário. Nesta ocasião poderão concorrer autores do Brasil com livros publicados em português nos anos 2007 e 2008 (primeira edição), nos gêneros de ficção. Os autores brasileiros que concorram este ano deverão reger-se pelas seguintes:

BASES

1. Poderão ser enviados livros nos gêneros de romance, conto e poesia, escritos em português, publicados nessa língua, em primeira edição, durante os dois últimos anos (2007-2008).

2. Poderão participar autores brasileiros, naturais ou naturalizados.

3. Os autores deverão enviar um exemplar do livro concursante. Não poderão enviar mais de um livro por gênero, nem participar em um gênero no qual tenham obtido o Prêmio Casa das Américas depois de 2000.

4. Se outorgará um prêmio único e indivisível, que consistirá em 3000 dólares ou seu equivalente na moeda nacional, e a publicação da obra pela Casa das Américas, se não estiver comprometida com outra editora de língua espanhola. Serão concedidas menções se o jurado as considerar necessárias, sem que isso implique recompensa ou comprometimento editorial por parte da Casa das Américas.

5. A Casa das Américas se reserva o direito de publicação daquela que será considerada a primeira edição em espanhol da obra premiada, até um máximo de 10 000 exemplares, ainda que se trate de uma co-edição. Tal direito compreende não apenas evidentes aspectos econômicos, mas também todas as características gráficas e outros aspectos da mencionada primeira edição.

6. As obras deverão ser enviadas à Casa das Américas (3ra. y G, El Vedado, La Habana 10400, Cuba), ou a qualquer das Embaixadas de Cuba, até 31 de outubro de 2008.

7. Os jurados se reunirão em Havana em fevereiro de 2009.

8. A Casa das Américas não devolverá os originais concursantes. A Casa das Américas anuncia, uma vez mais, a convocatória para seus prêmios de caráter honorífico. Os referidos prêmios (José Lezama Lima, de poesia; José María Arguedas, de narrativa; e Ezequiel Martínez Estrada, de ensaio) serão outorgados a uma obra relevante nos referidos gêneros, publicada em espanhol, por um autor de nossa América, nos anos 2007 e 2008. As obras concursantes, em lugar de serem enviadas pelos autores, serão indicadas por um Comitê de nomeação criado para essa finalidade.

Prêmios Casa de las Américas (literatura brasileira)

2001- Walter Galvani: Nau Capitania. Pedro Álvares Cabral, como e com quem
começamos (biografia)

2003- João Almino: As cinco estações do amor (romance)
Fabio Weintraub: Novo endereço (poesia) Prêmio Casa de las
Américas-Embaixada do Brasil

2004- José Murilo de Carvalho: Cidadania no Brasil: O longo caminho (ensaio)

2005- Alberto Mussa: O enigma de Qaf (romance)

2006- Ricardo Rezende Figueira: Pisando fora da própria sombra. A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo (ensaio)

2007- Ana Maria Gonçalves: Um defeito de cor (romance)

2008- Carlos Walter Porto-Gonçalves: A globalização da natureza e a natureza da globalização (ensaio)

Mais informações pelo e-mail: cil@casa.cult.cu

Fonte:
http://www.concursosliterarios.com.br/

Jorge de Lima (1893 - 1953)

Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953) foi político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro.

Era filho de um comerciante rico e mudou-se para Maceió em 1902, com a mãe e os irmãos. Em 1909 foi morar em Salvador onde iniciou os estudos de medicina. Concluiu o curso no Rio de Janeiro em 1914, mas foi como poeta que projetou seu nome. Neste mesmo ano publicou o primeiro livro, XIV Alexandrinos.

Voltou para Maceió em 1915 onde se dedicou à medicina, além da literatura e da política. Quando se mudou de Alagoas para o Rio, em 1930, montou um consultório na Cinelândia, transformado também em ateliê de pintura e ponto de encontro de intelectuais. Reunia-se lá gente como Murilo Mendes, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Nesse período publicou aproximadamente dez livros, sendo cinco de poesia. Também exerceu o cargo de deputado estadual, de 1918 a 1922. Com a Revolução de 1930 foi levado a radicar-se definitivamente no Rio de Janeiro.

Em 1939 passou a dedicar-se também às artes plásticas, participando de algumas exposições. Em 1952, publicou seu livro mais importante, o épico Invenção de Orfeu. Em 1953, meses antes de morrer, gravou poemas para o Arquivo da Palavra Falada da Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos da América.

Entre 1937 e 1945 teve sua candidatura à Academia Brasileira de Letras recusada por seis vezes. Para Ivan Junqueira, a Academia cometeu uma imperdoável injustiça com o autor, cujo trabalho literário foi excepcionalmente bem recebido pela crítica e pelo público. O acadêmico não acredita que o poeta tenha transitado à margem da literatura de seu tempo e, afirma, quando se refere ao maior poema do autor - Invenção de Orfeu, "...até hoje, transcorridos mais de 50 anos de sua publicação, não há poeta brasileiro que dele não se lembre."

Os textos de Jorge de Lima abrigam uma colossal possibilidade de leituras (a convivência entre a tradição e o novo, o vulgar e o sublime, o regional e o universal) refletem um artista em constante mutação, que experimentou estilos diversos como o parnasiano, o o regional o barroco, o religioso. Na sua multiplicidade, Jorge de Lima pertence a todas as épocas, mesmo se reportando a um tema ou uma situação específica, ao tocar em injustiças sociais que mudaram pouco desde o início da civilização e quando escreve sobre as grandes dúvidas de todos nós, "...da miséria humana, da tentativa de superação de nossas amarras e de nossas limitações.", explica o poeta e jornalista Claufe Rodrigues, leitor voraz de Jorge de Lima.

Ítalo Moriconi, poeta e professor de literatura brasileira na Uerj, autor, entre outros, de Como e por que ler a poesia brasileira do século XX, ao analisar a obra de Jorge de Lima (contrariamente à Ivan Junqueira quanto a questão de o poeta não ter alcançado fama por conta de sua obra ser, em parte, muitas vezes hermética e comprometida com o catolicismo), não acredita na hipótese de que a questão religiosa tenha atrapalhado a carreira do poeta: "Como poeta religioso Jorge de Lima nunca produziu nada com a qualidade de um Murilo Mendes em "Poesia liberdade". O lugar canônico de Lima vem dos sonetos, da sua primeira poesia modernista e, sobretudo de Invenção de Orfeu.".

Moriconi afirma que a maioria dos professores de letras não conhece bem nem Murilo Mendes nem Jorge de Lima e toca num ponto fundamental para a pouca visibilidade do poeta: "...como levar um poeta tão complexo a um currículo básico de graduação? "(...)Quem os conhece, mesmo quando os amam, como é o meu caso, hesitam em substituir um daqueles quatro por esses dois.", referindo-se aos poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana e João Cabral de Melo Neto.

A obra de Jorge de Lima apresenta múltiplas facetas. A temática de suas principais obras poéticas pode ser assim resumida:

a) XIV alexandrinos apresenta versos ainda ligados ao Parnasianismo. Nesse livro aparece o poema "O acendedor de Lampiões", de grande aceitação popular.

b) O mundo do menino impossível e Poemas registram recordações da infância ao lado de poemas de cunho regionalista.

c) Novos poemas tem o negro e o folclore como assuntos principais. O poema analisado - "Essa negra Fulô" - está neste livro.

d) Tempo e eternidade, obra em que Jorge de Lima contribuiu com 45 poemas, aponta na religião a solução para uma realidade injusta, conturbada e excessivamente materialista.

e) Poemas negros, de 1947, reúne dezesseis poemas já editados em livros anteriores e 23 novos poemas, estes apresentando, através de deuses africanos, uma espécie de história do negro no Brasil.

f) Invenção de Orfeu é um longo poema que procura interpretar simbolicamente a ligação entre o homem e o universo. Nessa obra o poeta utiliza fragmentos de epopéias clássicas, como a Divina comédia, a Eneida e Os Lusíadas, ou ainda O paraíso perdido e a própria Bíblia. Ligando trechos dessas obras através do processo da colagem, Jorge de Lima produziu um poema de linguagem extremamente complexa, de compreensão difícil para quem não conhece as obras de onde foram extraídos os fragmentos que compõem o poema.

A carreira poética de Jorge de Lima apresenta uma evolução contínua, fazendo que se possa dividi-la em três momentos ou fases. A primeira – e a de menor importância – se estabelece a partir de rígidos princípios parnasianos. A segunda é a fase nordestina por se vincular ao universo regional alagoano. E a terceira é a fase religiosa, já que o autor impregna seus poemas de conteúdos místicos e metafísicos.
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A FASE NORDESTINA
Esta fase resulta, no plano formal, da aproximação de Jorge de Lima das conquistas técnicas dos modernistas paulistas, em especial da adoção do verso livre, o que ocorreu em meados da década de 1920. No plano temático, o poeta entre em sintonia com as proposições do Manifesto regionalista, elaboradas por Gilberto Freyre, que defendia uma arte mais localista, voltada para expressão da velha realidade rural do Nordeste. Assim, os poemas que escreve nesta época tem como assunto nuclear a realidade existencial, cultural e histórica das camadas populares do Nordeste.

O universo popular aparece envolto em certo tom nostálgico, identificado de alguma maneira com o mundo dos engenhos decadentes ao qual o poeta historicamente pertencia. Algo similar ao que ocorreria, alguns anos depois, na ficção memorialista de José Lins do Rego. Em geral, Jorge de Lima registra liricamente o saber, as crenças e os aspectos pitorescos de um universo ainda não homogeneizado pelo avanço da modernização capitalista. Um universo onde ainda há lugar para entidades míticas como se vê no poema Diabo brasileiro:
Enxofre, botija, galinha preta!
Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!
Diabo brasileiro, dente-de-ouro, botija, onde está?
Credo, capeta, pé-de-pato!
Diabo brasileiro quero saber quando dá

a dezena do carneiro?
Enxofre, botija, galinha preta!
Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!
Capeta, dente-de-ouro, tome galinha preta,
quero dormir com a Zefa!
Capeta, bode preto, quero dormir com a Zefa! (...)
....
Dentro desta fase nordestina pode-se inserir ainda um conjunto de poemas afro-brasileiros em que o poeta celebra a cultura negra, seus ritmos, sua religiosidade, seus costumes e até mesmo sua história através da evocação, por exemplo, de Zumbi dos Palmares: “Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos! / Aqui é Zumbi! / Barriga da África.” Estes motivos associados à poderosa musicalidade e à capacidade de criação de imagens de Jorge de Lima fazem com que tais criações tenham um significativo encanto, ainda que a ótica que embasa os referidos poemas seja sempre a de um homem branco.

Entre todos os textos do autor alagoano há um que se tornou antológico: Essa negra fulô. Mesclando a lembrança dos engenhos com a violência do escravismo e com a sensualidade de algumas escravas, Jorge de Lima produz o retrato (ao mesmo tempo cruel e erótico) de uma época.

Poesias
XIV Alexandrinos (1914)
O Mundo do Menino Impossível (1925)
Poemas (1927)
Novos Poemas (1929)
Tempo e Eternidade (1935)
A Túnica Inconsútil (1938)
Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943)
Poemas Negros (1947)
Livro de Sonetos (1949)
Obra Poética (1950)
Invenção de Orfeu (1952)

Romances
O anjo (1934)
Calunga (1935)
A mulher obscura (1939)
Guerra dentro do beco (1950)

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://www.culturatura.com.br/
http://educaterra.terra.com.br
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Jorge de Lima (Anjo Daltônico - O Acendedor de Lampiões - Caminhos de Minha Terra - Essa Negra Fulô - Invenção de Orfeu XXIX)

Anjo daltônico

Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.


Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.


Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.


Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.
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O Acendedor de Lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!
Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.
Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.
Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!
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Caminhos de Minha Terra

Caminhos inventados por quem não tem pressa de ir-se embora,
Pelos que vão à escola.
Pelos que vão à vila trabalhar.
Pelos que vão ao erto.
Pelos que deixam a terra como eu deixei um...
Pelos que levam quem se despede da vida que é tão bela...
À minha terra ninguém chega: ela é tão pobre...
Dizem que tem bons ares para os tísicos —
mas os tísicos não vão lá: é tão difícil de ir-se lá...
Caminhos de minha terra onde perdi
os olhos e os passos da meditação...
Caminhos em que os ceguinhos e aleijados podem
ir sem os olhos e sem pernas: eles não atropelam
os pobrezinhos.
Alguém quer partir e eles dizem:
uma pitanga, uma ingá e dão tudo,
cajus, pitombas araças a todos os meninos do lugar.
Caminhos que ainda têm orvalhos e sonâmbulos bacuraus,
e tem ninhos suspensos nas ramadas.
Ali perto, na Curva do Encantado
onde mataram de emboscada um cangaceiro,
há uma cruz de pitombeira...
Quem passa joga uma pedra,
reza baixinho: "Padre nosso que estais no céu
santificado seja o vosso nome
venha a nós...
Aquela cruz do cangaceiro é milagrosa
já me curou dum puxado que
eu peguei na escola da professora —
minha tia Bárbara de Olivedo Cunha Lima —
Mundaú ! — soube depois
que quer dizer rio torto.
Quem te inventou Mundaú, das minhas lavadeiras seminuas,
dos meus pescadores de traíras? —
Mundaú! — rio torto — caminho de curvas,
por onde eu vim para a cidade
onde ninguém sabe o que é caminho.
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Essa Negra Fulô
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Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô
ficou loco pra mucama,
para vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô
Ó Fulô! Ó Fulô !
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou."
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?
— Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô
Ó Fulô ? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Essa negra Fulô!
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Invenção de Orfeu XXIX

Não há atividade mais fiel
Que a de pintar em cores a ilha.
Como os efeitos não persistem
Devo chorar muito depressa.
A espátula corre sobre a tela,
Nascem raízes sobre a terra,
Os corpos ficam cor-de-barro,
Vou enterrá-los sem pincel.
Composição desordenada
Fica ao crepúsculo colossal;
E tudo agora se encorpora
Ao horizonte vegetal.
Há todavia luz nas cores
Para que as veja saturadas
Nesse crepúsculo verde-negro.
Musgos nascendo de repente,
Eras passando nesse espaço.
A proporção é desmedida,
Enche as distâncias desoladas
Cobre as estrelas nunca fixas,
Muda a paisagem cada tarde,
A luz informa fósseis vivos,
Vulcões mastigam rochas neutras
Pondo lacunas nas criaturas.
Meu crescimento é sem limites,
Há conseqüências tenebrosas
Mas já não bastam nostalgias
Pois sobem asas assombradas,
Predecessores exilados
Jazem de borco em marés baixas.
Essa maneira é mais contínua,
Mais luxuriante e mais devassa;
Novos rigores instalados,
Climas diversos sublevados,
Outros tetardos massacrados,
Vários "cromagnons" enforcados,
Particularmente danados.
Ó dura legenda incendiada,
Ó palimpsestos humanados!
Esse o imensíssimo poema
Onde os outros se entrelaçaram,
Datas, números, leis dantescas,
Início, início, início, início,
Poema unânime abrange os seres
E quantas pátrias. Quantas vezes.
Poema-Queda jamais finado
Eu seu herói matei um Deus
Genitum non factum Memento.
Não sou a Luz mas fui mandado
Para testemunhar a Luz
Que flui deste poema alheio. Amen.
==================
Fontes:
COUTINHO, Afrânio (org.). Jorge de Lima. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, vol. I.
BECKER, Idel (org.). "Humor e Humorismo", Editora Brasiliense - São Paulo, 1961.

http://www.nilc.icmc.usp.br/
http://www.releituras.com

Antonio Carlos Secchin (1952)

Sétimo ocupante da Cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 3 de junho de 2004, na sucessão de Marcos Almir Madeira e recebido em 6 de agosto de 2004 pelo acadêmico Ivan Junqueira.

Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro em 10 de junho de 1952. Filho de Sives Secchin e de Victoria Regia Fuzeira Secchin. Até os 6 anos morou em Cachoeiro de Itapemirim. Desde 1959 reside no Rio de Janeiro.

É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999) e da Faculdade de Letras da UFRJ, onde foi aprovado (1993), por unanimidade, com nota máxima, em concurso público para professor titular.

Orientou 19 dissertações de mestrado, 12 teses de doutorado e 2 pesquisas de pós-doutorado. Participou de 115 bancas de pós-graduação, no país e no exterior.

Conferências, palestras, mesas-redondas e comunicações: Total de 234, em 16 estados brasileiros e nos seguintes países: Argentina, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Israel, Itália, México, Portugal e Venezuela.

Membro de 33 editorias ou conselhos, no Brasil e no exterior, sobretudo de periódicos de investigação literária.

Total de 15 prêmios nacionais, destacando-se:
1.o lugar, categoria “ensaio”, do Instituto Nacional do Livro (1983);
Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras, 1985, ambos para João Cabral: a Poesia do Menos;
Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional (2002);
Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2003);
Prêmio Nacional do PEN Clube do Brasil (2003), atribuídos a Todos os Ventos como melhor livro de poesia.
Membro titular de PEN Clube do Brasil, eleito em 1995:
Medalha Cruz e Sousa, do Governo de Santa Catarina (1998);
Medalha João Ribeiro, da União Brasileira de Escritores (1999);
Medalha Carlos Drummond de Andrade, da União Brasileira de Escritores (2002);
Membro Honorário da Academia Cachoeirense de Letras, Cachoeiro de Itapemirim (2004);
Medalha do Mérito da Imprensa de Pernambuco, da Associação da Imprensa de Pernambuco (2005).
Na ABL foi eleito Diretor Tesoureiro (8.12.2005) para a Diretoria de 2006 e nomeado Diretor da Comissão de Publicações (sessão de 4.5.2006).

Bibliografia

Crítica e Ensaio

- João Cabral: a Poesia do Menos. São Paulo: Duas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
- Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
- Cruz e Sousa, o Desterro do Corpo. Florianópolis: Assembléia Legislativa, 1998.
- Um Mar à Margem: o Motivo Marinho na Poesia Brasileira do Romantismo. Florianópolis: Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 2000.
- Escritos sobre Poesia & Alguma Ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
- Memórias de um Leitor de Poesia. Rio de Janeiro: Setor Cultural/Faculdade de Letras da UFRJ, 2004.
- A Interminável Música. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Setor Cultural / Faculdade de Letras da UFRJ, 2004.

Poesia

- A Ilha. Rio de Janeiro: edição do autor, 1971 (plaquete fora do comércio).
- Ária de Estação. Rio de Janeiro: São José, 1973.
- Elementos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
- Diga-se de Passagem. Rio de Janeiro: Ladrões do Fogo, 1988.
- Poema para 2002. Rio de Janeiro: Cacto Arte e Ciência, 2002 (livro-objeto fora do comércio, tiragem de 50 exemplares).
- Todos os Ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
- Movimento (novela). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1975.

Divulgação cultural
- Guia dos Sebos. 4.a ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/SABIN/FBN, 2003.

Participação em antologias

- 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Labor, 1976, pp. 101-105. 2.a ed. 1998, Aeroplano.
- A Poesia Fluminense no Século XX. Rio de Janeiro: FBN/Imago; Mogi das Cruzes: UMC, 1998, pp. 252-255.
- 41 Poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998, pp. 103-114.
- 100 Anos de Poesia. Rio de Janeiro: O Verso Edições, 2001, vol. II, pp. 194-195.
- Seleção de Meus Poemas Líricos Favoritos, org. K. Tadokoro. Osaka: Kinjydo, 2004, pp. 37-8.
- Poesia Portoghese e Brasiliana, org. Luciana Stegagno Picchio. Roma: La Biblioteca di Repubblica, 2004, p. 777-9.
- Poesía Brasileira Hoxe. Santiago de Compostella: Danú Editorial, 2004, pp. 257-264.
- Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 29.

Artigos, ensaios, resenhas, prefácios, crônicas, contos e poemas
Mais de 322 publicações, em livros e nos principais periódicos do país (O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) e do exterior (Colóquio Letras e IberoRomania).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras
http://www.academia.org.br

Antonio Carlos Secchin (A ainda pouco lida poesia de Jorge de Lima)

Quando duas pessoas falam do escritor Jorge de Lima, é certo que estejam se referindo à mesma pessoa, mas dificilmente estarão falando do mesmo poeta. Com efeito, o artista alagoano, cujo centenário de nascimento passou quase despercebido em 1995, representa, na literatura brasileira, a imagem do poeta em contínua mutação. Parnasiano medíocre e bem-comportado nos XIV alexandrinos (1914), regionalista na primeira onda do modernismo com Poemas (1927), Novos poemas (1929) e Poemas escolhidos (1932), místico-universal a partir de Tempo e eternidade (1935, co-autoria de Murilo Mendes), cosmogônico e barroco em Invenção de Orfeu (1952), Jorge de Lima - falecido em novembro de 1953 - sobreviveu a todas as transformações a que submeteu a própria obra e permanece hoje como um dos poucos poetas fundamentais da literatura brasileira do século 20.

Seu valor, no entanto, esteve longe de constituir consenso. Quatro vezes bateu à porta da Academia Brasileira de Letras e quatro vezes saiu de lá como simples mortal. Só no ano de 1937 tentou duas vezes: na primeira, perdeu de Barbosa Lima Sobrinho. Na segunda, por acabrunhantes 18 x 5, o vencedor foi outro poeta de constantes metamorfoses, o paulista Cassiano Ricardo. Àquela altura, Jorge de Lima há muito (desde 1930) deixara Alagoas, de onde viera ungido pelo epíteto de ''príncipe dos poetas'', e se estabelecera no Rio com fama de bom médico e de bom escritor. Já contabilizava dez títulos publicados, de poemas, ensaios e romances - dentre esses a tentativa surrealista de O anjo (1934) e a incursão engajada de Calunga (1935), texto que Otto Maria Carpeaux definiu como ''neonaturalista'' e que representou o namoro de Jorge de Lima com os princípios estéticos e ideológicos do ''romance de 30'', merecendo o livro, et por cause, intensos elogios de Jorge Amado.

Academia à parte, não foram poucos os louvores ao vate alagoano, provindos de nomes da expressão de um Mário de Andrade, de um Gilberto Freyre, de um Roger Bastide. Em 1939 veio a lume A poesia de Jorge de Lima, do crítico português Manuel Anselmo, entusiasmada leitura de Jorge com ênfase no arcabouço cristão que atravessava sua obra desde Tempo e eternidade. A partir daí, sucedeu um fenômeno curioso: avolumou-se a fortuna crítica do poeta, mas continuou rarefeita a circulação de sua poesia, confinada em edições quase clandestinas (algo análogo ocorreria com o grande ''amigo em Cristo'' Murilo Mendes).

Somente em 1949 foi publicada sua Obra poética (editora Getúlio Costa), organizada por Otto Maria Carpeaux e englobando dez livros em alentadas 659 páginas. Outra compilação de tal porte surgiria apenas em 1958, através da Obra completa (editora Aguilar), anunciada em dois volumes, dos quais apenas o primeiro, contendo a poesia e alguns ensaios, foi efetivamente impresso. Contos, teatro e romance continuam à espera de quem os reúna.

Aquilo que, para alguns, poderia soar como oportunismo - as metamorfoses do poeta, de acordo com o ar dos tempos - parece corresponder, em Jorge, a efetivas mutações de foro existencial, a partir de contínuas reflexões acerca do papel da arte e do artista. Isso, evidentemente, não isenta o poeta de certos equívocos, como bem assinalou Antônio Rangel Bandeira no arguto Jorge de Lima - o roteiro de uma contradição (São José, 1959). O ensaio, fugindo do tom laudatório, assinala como determinadas ambigüidades surgem não pelo confronto das fases do poeta, mas no interior de cada uma das etapas. Assim a representação do negro: intensíssima no período regionalista, oscilaria, no entanto, entre pólos de atração e repulsa, entre o endosso da miscigenação e o registro de certas reservas mais ou menos veladas a esse mesmo processo.

Num outro plano, também poderíamos apontar a discrepância entre o hermetismo de seu testamento poético, a Invenção de Orfeu, e o juízo condenatório da incomunicabilidade artística proferido por Jorge meses antes de publicar o poema. Mas, para além dessas incoerências (e será a coerência o melhor critério para avaliar a poesia?), importa ressaltar a contribuição radical de Jorge de Lima para a formação e a consolidação da linguagem poética de nossa modernidade. Minimizemos a fase parnasiana, cuja luz só nos chega, esmaecida, através dos versos do famoso soneto O acendedor de lampiões; detenhamo-nos na deliciosa exuberância rítmica de Essa negra Fulô; apreciemos, na guinada do plano telúrico para o místico, a inventividade lírica de peças como Distribuição da poesia e Amada, vem, de Tempo e eternidade; admiremos o exemplar domínio e a revitalização da forma fixa no Livro de sonetos (1949), antes de nos abeirarmos desse turbilhão de altíssimos e baixíssimos que é Invenção de Orfeu - texto de mais de 11 mil versos com enorme dispêndio verbal para, às vezes, alcançar culminâncias de expressão poética, a exemplo de navios que, como disse em outro contexto o próprio Jorge de Lima, gastam uma tonelada de carvão para recolher dois ramos de orquídeas.

Deve o leitor, portanto, preparar-se para uma árdua travessia, caso se disponha a percorrer toda Invenção de Orfeu, obra recém-reeditada com excelente prefácio do escritor Cláudio Murilo. Mas, se de um lado, o poeta adverte ''Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados'', de outro - o lado de quem embarca na aventura da poesia - sua voz ressoa em suave comunhão: ''Irmão que vindes, se sois também poeta/ eu tenho para vós inda uma rosa''.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 03/08/2005

Fontes:
Academia Brasileira de Letras.
http://www.academia.org.br
http://www.bmsr.com.br (foto)

Antonio Carlos Secchin (Poesia Completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário)

Quando, em 2002, comecei a organizar a edição de poesia comemorativa do centenário de nascimento de Cecília Meireles, julgava que seria uma boa oportunidade para enfrentar certos problemas que há bastante tempo persistiam nas diversas reuniões de sua obra poética já a partir da primeira delas, de 1958, da José Aguilar, a única publicada em vida de Cecília, e provavelmente supervisionada pela própria escritora.

Reza a boa norma que a melhor lição textual é a da última publicação em vida do autor; por esse critério, bastaria reimprimir a obra de 1958, a ela acrescentando algum material inédito, postumamente localizado. Mas já neste primeiro passo nos defrontamos com várias dificuldades: Cecília excluiu da coletânea seus três primeiros livros (voltaremos ao assunto mais tarde), incluiu um (Giroflê Giroflá) escrito em prosa e, muito provavelmente, não fez a revisão do texto, que, embora em geral correto, em alguns casos introduz erros inexistentes nas edições princeps.

Esclareço, de início, que não tive acesso a originais manuscritos ou datiloescritos de Cecília; de acordo com depoimento de familiares, a escritora costumava bater a maquina seus poemas e não se preocupava em conservar o registro deles em arquivo pessoal. Assim, fui levado a valer-me unicamente de material impresso, a saber, as edições originais, suas reedições, e uma série de textos esparsos em periódicos. Por outro lado, em auxílio de minha tarefa, logo percebi que, diversamente do que ocorre com boa parte dos poetas, Cecília não modificava seus textos: uma vez publicados, ela já os considerava em versão definitiva. Por isso as discrepâncias textuais podem, sem grande risco, ser atribuídas a erros de impressão, alguns evidentes, como a presença de uma “quadra” de três versos, outros mais sutis, como a troca de um vocábulo por um substituto que também faz sentido. Mas, uma vez que várias alterações se deram somente nas edições post-mortem, apenas uma intervenção mediúnica poderia respaldá-las, e preferi permanecer na esfera terrena, não obstante Cecília definir-se como uma “pastora de nuvens”…

Retornemos à edição de 1958. Era composta de 12 livros de poesia, de Viagem (1939) ao Romance de Santa Cecília (1957), um livro de prosa (o citado Giroflê Giroflá) e de uns poucos inéditos, vários dos quais viriam a integrar, pouco depois, obras avulsas lançadas ainda em vida da autora. Abria o volume um alentado ensaio de Darcy Damasceno, que foi dos mais devotados estudiosos da poeta. Uma sucinta fortuna crítica, além de bibliografia ativa e passiva da autora, também integrava a edição. Apesar da colaboração de Cecília, patente, por exemplo, no fato de lhe haver sido atribuída a seleção de inéditos, a coletânea, como dissemos, registrava erros, que se foram tornando mais graves e numerosos nas edições subseqüentes, quando então, após a morte da escritora, no melhor dos casos as novas compilações apenas repetiriam os equívocos pregressos, e no pior, conforme acabou ocorrendo, elas aumentariam o rosário de equívocos.

Em 1967, vem a público a segunda edição da Obra poética, em formato menor, com a eliminação do texto em prosa e o acréscimo dos títulos que a autora publicara entre 1958 e o ano de seu falecimento, 1964. Em meio a esses títulos foi inserido um conjunto de dispersos e, na seção final, abrigaram-se 21 poemas inéditos. É de se indagar por que, na organização do volume, o bloco de dispersos se intrometeu entre as obras editadas autonomamente em livro.

A terceira edição, de 1972, repete a estrutura da anterior, suprimindo, todavia, a seção de inéditos, que fora sensivelmente ampliada em 1967.

O maior acréscimo de textos deu-se a partir de 1973, quando, pela Civilização Brasileira, Darcy Damasceno começa a editar em 9 volumes as Poesias completas de Cecília, num notável esforço de pesquisa, sem que, todavia, houvesse ganho análogo na qualidade textual ou no critério de organização. Os 5 primeiros volumes seguiram uma seqüência cronológica que se inicia em 1939, com Viagem, e finda em 1964, com a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro. O número 6, porém, retrocede aos anos 20, misturando material nunca publicado (Morena, pena de amor) a 2 livros lançados, respectivamente, em 1923, Nunca mais, e 1925, Baladas para El-Rei, e nessa edição de 1973 pela primeira vez reeditados. Nos volumes 7 e (parcialmente) 8, desfila, sem informação de procedência, uma longa série de poemas não incluídos em livro. Tais textos se agrupam em tripartição cronológica algo arbitrária: I) bloco de 1942/1949; II) de 1950/1959; III) de 1960/1964. Ora, o único marco temporal explicitamente consignado por Cecília refere-se ao ano de 1939, tendo como baliza a publicação de Viagem: o período anterior seria, digamos, de textos “preparatórios” à sua maturidade artística. Ainda no volume 8, após o bloco 1960/1964, surge um livro em esboço, Sonhos, com poemas datados desde 1950, espraiando-se até 1963. O volume 9 congrega outros projetos que não receberam os retoques finais da poeta, a exemplo dos Poemas de viagem, que se abrem com texto de 1940. Portanto, assistimos nesta edição a um substancial crescimento do corpus poético de Cecília, mas não suficientemente valorizado pelos critérios (ou, et pour cause, pela ausência deles) no modo de ordená-lo. Igualmente a registrar a supressão do ensaio crítico e da informação bibliográfica que acompanhavam as coletâneas precedentes.

Em 1994, surge, sob responsabilidade de Walmir Ayala, a quarta edição da Aguilar, incorporando todo o material coligido por Damasceno. Walmir optou por uma divisão em duas partes: na primeira ficaram os livros publicados a partir de Viagem; na segunda entraram os textos enfeixados nos volumes finais da série de Darcy, ou seja, os poemas avulsos, os primeiros livros e os não concluídos, com o acréscimo de Cânticos, que, escrito nos anos 20, só veio a lume tardiamente, em 1982.

Por fim, em 1997, a Nova Fronteira lança, em 4 volumes, a Poesia completa de Cecília Meireles, valendo-se basicamente da lição textual de Damasceno, endossada por Ayala.

Passo, agora, a expor, de modo sintético, algumas das características da nova edição, a do centenário.

O texto foi minuciosamente revisto. Detectei nas compilações anteriores mais de 300 erros, desde os mais simples, como os ortográficos, até os menos óbvios, como a inversão de estrofes, além de certas “atualizações” que mascaravam a historicidade dos poemas; por exemplo: a utilização de maiúsculas no início de verso era a prática de Cecília nos anos 20, e não há registro dela nas reedições desses primeiros livros. A voz límpida da poeta vez por outra era turvada pela intervenção de revisores e tipógrafos distraídos.

No que tange ao aparato crítico, a nova edição vem enriquecida de três excelentes contribuições: o longo estudo introdutório de Miguel Sanches Neto, o resumo biográfico a cargo de Eliane Zagury e a seleta fortuna crítica comentada por Ana Maria Domingues de Oliveira. No denso e inédito ensaio de abertura, “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”, Miguel analisa toda a produção poética da autora, demonstrando como lhe foi possível ser moderna sem necessariamente ser “modernista”. Eliane tece um quadro preciso e abrangente da vida de Cecília. Ana Maria, meticulosa e competente pesquisadora da bibliografia crítica ceciliana, fornece um precioso roteiro do que de melhor se escreveu sobre a poeta.

Resta abordar uma questão, talvez a mais polêmica: que tratamento dispensar aos livros iniciais, excluídos por Cecília da edição de 1958? E como lidar com as obras planejadas, mas que não chegaram à estampa durante a vida da autora? Vimos que, até aqui, esse material era enfeixado no segmento final dos volumes que passaram a abrigá-lo, desde 1973. Optamos por outra solução: na parte 1 da nova edição, comparecem todas as coletâneas – publicadas ou esboçadas – na seqüência tanto quanto possível rigorosa da cronologia de sua escrita, o que não corresponde necessariamente à cronologia de publicação: basta que se recorde o citado Cânticos, produzido na década de 20 e lançado mais de 50 anos depois...Assim, o leitor poderá acompanhar, com clareza, o início e o desdobramento do processo criador de Cecília, sem que sejam suprimidos ou aninhados numa espécie de apêndice-limbo os primeiros passos dessa longa caminhada através de 26 obras. Na parte 2, entrou apenas, ordenada temporalmente, a matéria dispersa, de natureza assistemática, não concebida pela autora como peça integrante de livro. Em suma: parte 1, Cecília em livros (editados ou projetados); parte 2, Cecília fora de livros; em ambos os casos, a poeta em sua historicidade de escrita.

Quanto a Espectros, sua obra de estréia em 1919, há mais de 80 anos dela não se tinha notícia. Publicada (provavelmente às custas da autora e em diminuta tiragem) após Cecília formar-se pela Escola Normal do Rio de Janeiro, trazia um prefácio de Alfredo Gomes, professor de português da instituição e à época prestigioso gramático. Fazendo jus ao nome, a obra tornou-se fantasmagórica: nunca reeditada ou sequer localizada, sobre ela correu a lenda de que, afinal, nem teria existido. Contra essa suposição depõe um breve artigo de João Ribeiro, bastante simpático ao livro, e publicado em O Imparcial, de 18 de novembro de 1919, em que vaticina um belo futuro para a jovem estreante. Mas o fato é que já em Nunca mais, de 1923, inexiste qualquer menção a Espectros, e em nenhum outro momento, ao que se saiba, Cecília voltou a referir-se a seu primeiro livro, diversamente do tratamento reservado às obras de 23 e 25, que, mesmo excluídas da coletânea de 1958, sempre figuraram como itens “autorizados” da bibliografia da autora. Nunca mais e Baladas para El-Rei revelam uma poeta de qualidade, mas ainda sem timbre individualizado, e bastante afeita à ortodoxia do simbolismo – uma artista, sem dúvida, aquém do salto qualitativo que se materializaria em Viagem (1939) , a ponto de a autora, em 1958, abrir com esse livro sua Obra poética. Mas, se a história “oficial” e “ideal” de Cecília começa em Viagem, o pesquisador e o leitor curioso hão também de indagar por sua “pré-história”. Desses primórdios, duas peças (Nunca mais e Baladas) já estavam disponíveis, com a vantagem adicional, na edição do centenário, de se estamparem com a reprodução das capas originais desenhadas por Fernando Correia Dias, primeiro marido da escritora. Talentoso e requisitado artista plástico de origem portuguesa, foi o responsável pelas ilustrações de vários livros da primeira fase de Cecília, e sua importante parceria com a esposa e com outros autores do período ainda não foi suficientemente enfatizada pelos historiadores.

Ainda faltava, todavia, o elo perdido, o texto primordial, verdadeiro espectro a povoar a insônia dos bibliófilos e dos arqueólogos literários. Finalmente, após numerosas buscas nos sebos e em bibliotecas públicas e particulares, tanto no Brasil quanto em Portugal, consegui, graças à generosa colaboração de um bibliófilo, localizar um exemplar do livro, que a nova edição restituirá à memória da poesia brasileira, décadas após seu – supostamente irreversível - desaparecimento. Com Espectros, será revelada uma nova e insuspeitada face de Cecília, de acentuada fatura parnasiana. A obra é formada por um conjunto de 17 sonetos rimados, em decassílabos ou alexandrinos, e que, em sua maioria, evocam celebridades da história universal e da religião católica. Vejam, a seguir, como a estreante Cecília elaborou sua versão da figura mítica de Joana d’Arc:

Firme na sela do ginete arfante,
Da coorte na vanguarda, ei-la às hostis
Trincheiras que galopa, delirante,
Fronte serena e coração feliz.

Sob os anéis metálicos do guante,
Os dedos adivinham-se viris,
Que sustêm o estandarte palpitante,
Onde esplende a dourada flor-de-lis.

Rica de sonhos, crença e mocidade,
A donzela de Orléans, no seu tresvário,
De mística, na indômita carreira

Sorri. Nenhum tremor a alma lhe invade!
E, entanto, o olhar audaz e visionário
Já tem clarões sinistros de fogueira!...

Eis um poema bem construído, em nada inferior à média do que produziam os nossos neoparnasianos no ambiente cultural pré-1922. Os demais sonetos de Espectros mantêm esse nível. Porém, a satisfação com a descoberta do livro fez-se acompanhar de uma dúvida: seria lícito reeditar uma obra que a autora, segundo tudo leva a crer, preferiu omitir de seu trajeto? A solução, quem sabe, poderia ser sua inclusão em apêndice, mas tanto a editora quanto os descendentes de Cecília foram favoráveis a que Espectros, ao contrário, abrisse a edição do centenário, não apenas pela importância da redescoberta de um livro dado como perdido de um de nossos maiores poetas, mas para que se mantivesse o critério de ordenação cronológica do material. Além disso, não se tratava de versos refugados em fundo de gaveta, mas de uma coletânea efetivamente publicada – e que em algum momento, portanto, correspondeu à “verdade literária” de Cecília, mesmo que essa verdade tenha mudado, e para melhor. Assim, a opção foi, de um lado, não sonegar a obra ao conhecimento público, e, de outro, enfatizar que Espectros deve ser lido em seu devido contexto e com as ressalvas aqui expostas – obra de juventude, sob vários aspectos ante(ou anti)ceciliana, mas de extraordinário valor documental.

Essas foram as linhas gerais do trabalho. Agora, é esperar que o esforço despendido tenha sido capaz de restituir do modo menos imperfeito possível a grandeza poética de Cecília Meireles.
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Fonte:
Revista Agulha. Revista de Cultura # 37 - Fortaleza, São Paulo - janeiro de 2004. Disponível em http://www.secrel.com.br/

sábado, 26 de julho de 2008

João Ubaldo Ribeiro ganha hoje o Prêmio Camões 2008

O escritor João Ubaldo Ribeiro ganhou hoje o Prêmio Camões 2008, o mais importante concedido a autores da língua portuguesa, informou o ministério da Cultura português. O anúncio foi feito em Lisboa.

João Ubaldo, de 67 anos, é o oitavo brasileiro a receber este prêmio. O primeiro brasileiro a ganhar o prêmio foi João Cabral de Melo Neto, em 1990, seguido por Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003) e Lygia Fagundes Telles (2005).

"Olha, eu acho que eu ganhei porque eu mereço." Foi essa a frase usada pelo escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro ao comentar a conquista do prêmio.

João Ubaldo recebeu a notícia de sua vitória por um interlocutor não usual: a secretária eletrônica. "Eu estava passando por perto dela e ouvi a voz do meu amigo, (o escritor) Eduardo Portela, acadêmico (da Academia Brasileira de Letras) e baiano, e era um recado dizendo que eu tinha ganho o prêmio", disse, contando que tentou chegar a tempo à secretária, mas o amigo já havia desligado.

Questionado sobre como se sentia ao ganhar, o escritor foi honesto: "Para ser sincero, eu não acho nada demais. Eu acho que eu ganhei porque eu mereço. Olha eu poderia dizer agora toda uma hemorragia verbal, dizendo o quanto estou surpreendido por ter ganho, mas não vou fazer isso. Mas eu ganhei porque eu mereci", disse.

Sobre o prêmio em dinheiro, de 100 mil euros, o escritor comentou que a ajuda vai ser boa para complementar sua "aposentadoria de R$ 1.200". "Mas que ninguém pense que eu fiquei milionário", disse, entre risos.

Nascido em 1941, na ilha de Itaparica, Bahia, João Ubaldo Ribeiro é autor de várias obras de sucesso, muitas delas traduzidas para o francês e o inglês, como "Viva o povo brasileiro" (1984) e "O sorriso do lagarto" (1989).

O Prêmio Camões foi criado em 1988 por Portugal e Brasil para distinguir os autores de língua portuguesa que contribuíram para enriquecer o patrimônio cultural e literário das duas nações.
(Com informações da Agência Estado e AFP)

Fonte:
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2008/07/26/joao_ubaldo_ribeiro_ganha_premio_camoes_2008_1473447.html

João Ubaldo Ribeiro (1941)

"Se não entendo tudo, devo ficar contente com o que entendo. E entendo que vejo estas árvores e que tenho direito a minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me envergonhe de minha fala; não diga que minha fala é melhor do que a sua; não diga que eu sou bonito, porque sua mulher nunca ia ter casado comigo; não seja bom comigo, não me faça favor; seja homem, filho da puta, e reconheça que não deve comer o que eu não como, em vez de me falar concordâncias e me passar a mão pela cabeça; assim poderei matar você melhor, como você me mata há tantos anos."
(Vila Real)

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia, em 23 de janeiro de 1941, na casa de seu avô materno, à Rua do Canal, número um, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro. O casal teria mais dois filhos: Sonia Maria e Manoel. Ao completar dois meses de idade, João muda-se com a família para Aracajú, SE, onde passaria a infância.

Em 1947 inicia seus estudos com um professor particular. Seu pai, professor e político, segundo o biografado, não suportava ter um filho analfabeto em casa. Já alfabetizado, em 1948 ingressa no Instituto Ipiranga. A partir daí permaneceria horas trancado na biblioteca de sua casa devorando livros infantis, sobretudo os de Monteiro Lobato. Forçado por seu austero pai, iria se dedicar com afinco aos estudos, procurando ser sempre o primeiro da classe. Sobre essa fase de sua vida leia mais em "Memória de Livros", deliciosa crônica que consta de "Releituras".

No ano de 1951 ingressa no Colégio Estadual de Sergipe. Sempre dedicado aos estudos, prestava ao pai, diariamente, contas sobre os livros lidos, sendo, algumas vezes, solicitado a resumi-los e a traduzir alguns de seus trechos. João era também solicitado a verter para o português canções francesas que o pai ouvia. Não tinha folga nem nas férias, pois nelas praticava o latim e copiava os sermões do padre Vieira, apesar de afirmar que fazia aquilo com prazer. Manoel Ribeiro, seu pai, era chefe da Polícia Militar e, nessa época, passa a sofrer pressões políticas, o que o faz transferir-se com a família para Salvador. Na capital baiana João Ubaldo é matriculado no Colégio Sofia Costa Pinto. Conta ele que era perseguido pela professora de inglês, em virtude de seu sotaque. "Ela não percebeu que eu falava inglês britânico, já que estudara em Sergipe com um professor educado na Escócia", diz o escritor. Desafiado, dedica empenho extraordinário ao idioma, chegando a decorar 50 palavras por dia. Vizinho de engenheiros americanos, faz amizade com seus filhos para aprimorar ainda mais seus conhecimentos da língua inglesa.

Em 1955 matricula-se no curso clássico do Colégio da Bahia, conhecido como "Colégio Central".

1956 marca o início da amizade com Glauber Rocha, seu colega na escola.

Estréia no jornalismo, começando a trabalhar como repórter no Jornal da Bahia, em 1957, sendo que posteriormente se transferiria para A Tribuna da Bahia, onde chegaria a exercer o posto de editor-chefe.

Em 1958 inicia seu curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Com Glauber Rocha edita revistas e jornais culturais e participa do movimento estudantil. Apesar de nunca ter exercido a profissão de advogado, foi aluno exemplar. Lê (ou relê), então, os grandes clássicos: Rabelais, Shakespeare, Joyce, Faulkner, Swift, Lewis Carroll, Cervantes, Homero, e, entre os brasileiros, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Nessa mesma Universidade, concluído o curso de Direito, faz pós-graduação em Administração Pública.

Participa da antologia Panorama do Conto Bahiano, organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, em 1959, com "Lugar e Circunstância", e publicada pela Imprensa Oficial da Bahia. Passa a trabalhar na Prefeitura de Salvador como office-boy do Gabinete e, em seguida, como redator no Departamento de Turismo.

Seu primeiro casamento dá-se em 1960 com Maria Beatriz Moreira Caldas, sua colega na Faculdade de Direito. Separaram-se após 9 anos de vida conjugal.

Com "Josefina", "Decalião" e "O Campeão" participa da coletânea de contos Reunião, editada pela Universidade Federal da Bahia no ano de 1961, em companhia de David Salles (organizador do livro), Noêmio Spinola e Sonia Coutinho.

Em 1963 escreve seu primeiro romance, "Setembro não faz sentido", título que substituiu o original (A Semana da Pátria), por sugestão da editora.

Em plena efervescência política do ano de 1964, João Ubaldo parte para os Estados Unidos, através de uma bolsa de estudos conseguida junto à Embaixada norte-americana, para fazer seu mestrado em Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia do Sul. Conta que, na sua ausência, teve até sua fotografia divulgada pela televisão baiana, encimada por um enorme "Procura-se". Segundo João, o movimento revolucionário não sabia que ele, tido e havido como esquerdista, estava nos Estados Unidos às expensas daquele país.

Volta ao Brasil em 1965 e começa a lecionar Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia. Ali permaneceu por 6 anos, mas desistiu da carreira acadêmica e retornou ao jornalismo.

Com o prefácio de Glauber Rocha, que se empenhou junto à José Álvaro Editores pela sua publicação, João Ubaldo tem seu primeiro romance "Setembro não faz sentido" impresso, com o apadrinhamento de Jorge Amado.

Em 1969 casa-se com a historiadora Mônica Maria Roters, que lhe daria duas filhas: Emília (nascida em fevereiro de 1970) e Manuela (cujo nascimento ocorreria em junho de 1972). O casamento acabaria em 1978.

Em 1971 lança, pela Editora Civilização Brasileira, o romance "Sargento Getúlio", merecedor do Prêmio Jabuti concedido pela Câmara Brasileira do Livro, em 1972, na categoria "Revelação de Autor". O livro é inspirado principalmente num episódio ocorrido na infância de João Ubaldo, envolvendo um certo sargento Cavalcanti, que recebera 17 tiros num atentado em Paulo Afonso, na Bahia; resgatado pelo pai do autor, então chefe da polícia de Sergipe, chegaria com vida em Aracaju. Segundo a crítica, esse livro filiou seu autor a uma vertente literária que sintetiza o melhor de Graciliano Ramos e o melhor de Guimarães Rosa.

Publica, em 1974, o livro de contos "Vencecavalo e o outro povo" (cujo título inicial era "A guerra dos Pananaguás"), pela Artenova.

Com tradução feita pelo próprio autor, o romance "Sargento Getúlio" é lançado nos Estados Unidos em 1978, com boa receptividade pela crítica daquele país.

Em 1979 passa nove meses como professor convidado do International Writting Program da Universidade de Iowa e publica no Brasil, pela Nova Fronteira, que a partir de então seria sua principal editora, um "conto militar", na sua definição, intitulado "Vila Real".

1980 marca seu terceiro casamento, com a fisioterapeuta Berenice Batella, que lhe daria dois filhos: Bento e Francisca (nascidos em junho de 1981 e setembro de 1983, respectivamente). Participa, em Cuba, do júri do concurso Casa das Américas, juntamente com o critico literário Antônio Cândido e o ator e diretor de teatro Gianfrancesco Guarnieri. O primeiro prêmio foi concedido à brasileira Ana Maria Machado.

Muda-se, com a família, para Lisboa, Portugal, em 1981, graças a uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Edita, no período em que ali viveu, com o jornalista Tarso de Castro, a revista Careta. De volta ao Brasil, passa a residir no Rio de Janeiro, cidade que tanto ama, e lança "Política", livro até hoje adotado por inúmeras faculdades. Lança, também, "Livro de Histórias" (depois republicado com o título de "Já podeis da pátria filhos"), coletânea de contos. Inicia colaboração com o jornal "O Globo", que perdura até hoje, com pequenas interrupções, publicando uma crônica por semana. Sua produção dessa época seria reunida em 1988 no livro "Sempre aos domingos".

Em 1982 inicia o romance "Viva o povo brasileiro", que se passa na Ilha de Itaparica e percorre quatro séculos da história do país. Originalmente o livro se chamava "Alto lá, meu general". Segundo João, o livro nasceu de um desafio de seus editores e da lembrança de uma afirmativa de seu pai, que dizia: "Livro que não fica em pé sozinho, não presta." Como seus livros sempre tiveram poucas páginas, diante da provocação, fez um com mais de 700. Nesse ano participou do Festival Internacional de Escritores, em Toronto, Canadá.

No ano seguinte estréia na literatura infanto-juvenil com "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Seu livro "Sargento Getúlio" chega aos cinemas, num filme dirigido por Hermano Penna e protagonizado por Lima Duarte. O longa-metragem receberia os seguintes prêmios no Festival de Gramado: Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som Direto, Melhor Filme, Grande Prêmio da Crítica e Grande Prêmio da Imprensa e do Júri Oficial. Volta a residir em Itaparica, na casa onde nascera.

"Viva o povo Brasileiro" é finalmente editado em 1984, e recebe o Prêmio Jabuti na categoria "Romance" e o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro. Inicia a tradução desse livro para o inglês, tarefa que lhe consumiria dois anos de trabalho e a partir do qual passaria a utilizar o computador para escrever. Ao lado de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marques, participa de uma série de nove filmes produzidos pela TV estatal canadense sobre a literatura na América Latina.

João Ubaldo é consagrado na Avenida Marquês de Sapucaí: seu livro "Viva o povo brasileiro" é escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval do ano de 1987.

Em 1989 lança o romance "O sorriso do lagarto".

Em 1990 publica "A vingança de Charles Tiburone", sua segunda experiência em literatura infanto-juvenil. A convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, muda-se com a família para Berlim, onde viveria por 15 meses. Publica crônicas semanais no jornal Frankfurter Rundschau, além de produzir peças radiofônicas de grande alcance popular, entre elas, uma adaptação de seu conto "O santo que não acreditava em Deus".

Retorna ao Brasil em 1991, e volta a residir no Rio de Janeiro. Seu romance "O sorriso do lagarto" é adaptado para o formato de minissérie por Walter Negrão e Geraldo Carneiro e estréia na Rede Globo, tendo como protagonistas Tony Ramos, Maitê Proença e José Lewgoy. Volta a escrever no jornal O Globo e inicia colaboração no O Estado de São Paulo, passando a publicar em ambos uma crônica aos domingos.

Em 1993 adapta "O santo que não acreditava em Deus" para a série Caso Especial, da Rede Globo, que teve Lima Duarte no papel principal. No dia 7 de outubro é eleito para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com a morte do jornalista Carlos Castello Branco. Disputavam com ele o piauiense Álvaro Pacheco e o mineiro Olavo Drummond. No terceiro escrutínio João Ubaldo obteve 21 votos contra 13 de Pacheco e um nulo.

Termina, em 1994, a adaptação cinematográfica, feita em parceria com Cacá Diegues e Antônio Calmon, do romance "Tieta do Agreste", de seu amigo e conterrâneo Jorge Amado. O filme teve a atriz Sonia Braga no papel principal e direção de Cacá Diegues. Toma posse na Academia Brasileira de Letras em 8 de junho. Cobre, nos Estados Unidos, a Copa do Mundo de Futebol como enviado dos jornais O Globo e O Estado de São Paulo. De volta ao Brasil é internado numa clínica em Botafogo, com arritmia cardíaca. Participa da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, e lá recebe o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores alemães e latino-americanos.

Recebe o prêmio Die Blaue Brillenschlange -- concedido ao melhor livro infanto-juvenil sobre minorias não-européias -- pela edição alemã de "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Lança o livro de crônicas "Um brasileiro em Berlim", sobre sua estada naquela cidade.

Volta a participar da Feira do Livro de Frankfurt, em 1996. Detém a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha.

Em 1997 é internado novamente no Rio, desta vez com fortes dores de cabeça provocadas por uma queda. Cacá Diegues compra os direitos de filmagem do livro "Já podeis da pátria filhos". Renova contrato com a Nova Fronteira, depois de receber propostas de outras editoras. Publica o romance "O feitiço da Ilha do Pavão".

Participa em Paris do Salão do Livro da França, em 1998. Vende os direitos de "Viva o povo brasileiro" para o cinema; o filme deve ser dirigido pelo cineasta André Luis Oliveira. Lança o livro "Arte e ciência de roubar galinha", seleção de crônicas publicadas nos jornais O Globo e O Estado de São Paulo.

Durante a IX Bienal do Livro - Rio de Janeiro, em Abril de 1999, lança o livro "A Casa dos Budas Ditosos", da série Plenos Pecados, um romance sobre a luxúria publicado pela Editora Objetiva Ltda., que obtém enorme sucesso de vendas.

Ainda em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo mundo para dar um depoimento ao jornal francês "Libération", sobre o milênio que se aproximava. Escreveu, juntamente com Carlos (Cacá) Diegues, o roteiro de um filme baseado em seu conto "O santo que não acreditava em Deus", cujo título para o cinema foi "Deus é brasileiro". Seu romance "O feitiço da Ilha do Pavão" foi publicado em Portugal e em tradução alemã, pela editora C.H. Beck. "A Casa dos Budas Ditosos" torna-se um grande sucesso editorial, permanecendo, por mais de trinta e seis semanas, entre os dez livros mais vendidos. O romance foi publicado na Espanha, França e outros países. Seu lançamento em Portugal se transformou em problema nacional face à proibição, por duas redes de supermercados, de sua venda naqueles estabelecimentos. A primeira edição, de 5.000 exemplares, foi vendida em poucos dias e novas edições também.

João Ubaldo, em janeiro/2000, esteve lá para ser homenageado pelos escritores portugueses com um desagravo a tal procedimento. Nessa oportunidade participou da Semana de Estudos Lusófonos, na Universidade de Coimbra. Foi, também, citado em diversas antologias, nacionais e estrangeiras, inclusive numa sobre futebol, publicada pelo jornal "Le Monde", na França. Saíram várias reedições de seus livros na Alemanha, incluindo uma nova edição de bolso de "Sargento Getúlio". "O sorriso do lagarto" foi publicado na França. "A casa dos Budas ditosos" foi traduzido para o inglês, nos Estados Unidos. Seu livro "Viva o povo brasileiro" foi indicado para o exame de Agrégation, um concurso nacional realizado na França para os detentores de diploma de graduação.

OBRAS DO AUTOR

1. INDIVIDUAIS

Romances:
Setembro não tem sentido - 1968
Sargento Getúlio - 1971
Vila Real - 1979
Viva o povo brasileiro - 1984
O sorriso do lagarto - 1989
O feitiço da Ilha do Pavão - 1997
A casa dos Budas ditosos - 1999
Miséria e grandeza do amor de Benedita (primeiro e-book — livro virtual — lançado no Brasil) - 2000
Diário do Farol - 2002
Miséria e grandeza do amor de Benedita, Dom Quixote - Portugal - 2003
Diário do Farol - Dom Quixote - Portugal - coleção "Grandes Autores de Língua Portuguesa" - 2003

Contos:
Vencecavalo e o outro povo - 1974
Livro de histórias - 1981 (reeditado em 1991, incluindo os contos "Patrocinando a arte" e "O estouro da boiada", sob o título de "Já podeis da pátria filhos").

Crônicas:
Sempre aos domingos - 1988
Um brasileiro em Berlim - 1995
Arte e ciência de roubar galinha - 1998
O Conselheiro Come - 2000
Você me mata, Mãe gentil - 2004
A gente se acostuma a tudo - 2006

Ensaio:
Política: quem manda, por que manda, como manda - 1981

Literatura infanto-juvenil:
Vida e paixão de Pandomar, o cruel - 1983
A vingança de Charles Tiburone - 1990

Antologia:
História Pitorescas - 1977
Obra seleta - 2005

Participação em coletâneas:
"Lugar e circunstância". In: Panorama do conto bahiano - 1959
"Josefina", "Decalião" e "O Campeão". In: Reunião: contos - 1961
"Já podeis da pátria filhos". In: Onze em campo e um banco de primeira - 1998

Televisão
Adaptações:
O santo que não acreditava em Deus (Caso especial) - Do livro "Já podeis da pátria filhos" - Rede Globo - 1993

O compadre de Ogum (minissérie) - Do romance "Os pastores da noite", de Jorge Amado - Rede Globo - 1994

A maldita (Caso especial) - Do conto "Patrocinando a Arte" - Rede Globo - 1995

2. EM PARCERIA

Cinema
Tieta do Agreste (roteiro). De Jorge Amado. Com Cacá Diegues e Antônio Calmon - 1996

Televisão
Adaptações

Danada de sabida (Terça nobre) - Do conto "O artista que veio aqui dançar com as moças". Com Geraldo Carneiro - TV Bahia - 1997

ADAPTAÇÕES
1. PARA O CINEMA

Sargento Getúlio - Direção de Hermano Penna - 1983
Deus é brasileiro - Direção de Cacá Diegues - 2003

2. PARA A TELEVISÃO
O sorriso do lagarto - Adaptação de Geraldo Carneiro e Walter Negrão - Rede Globo - 1991 (ver também "Obras do autor - Televisão/Adaptações")
Ainda de e sobre o autor estão anotados diversos ensaios e apresentações incluídos em livros, artigos de jornais, artigos de revistas e entrevistas.

Fonte:
http://www.releituras.com/

João Ubaldo Ribeiro (Cântico de Argemiro)



Quem sabe do que vivemos?
Sabemos nós, que vivemos.
Quem sabe do sofrimento?
Sabemos nós, que sofremos.
Conheces os lobisomens?
Conhecemos mais que tu.
Falas como te falamos nós?
Achas que falas, maninho.
Tiveste fome em pequeno?
Tivemos nós, ó maninha.
Sabes tu como é meu nome?
Já tiveste em tua vida
Inteira desesperança,
Já sentiste que tua pança
É coisa mais que imoral?
Nunca soubeste ou sentiste,
Sempre pensaste e falaste
E para ti em minha caixa
Trago guardados, maninho,
Remédios feitos de ódio.
Sabes tu como é o meu nome?
Nunca soubeste, irmãozinho.
O meu nome é Meia-Lua
E te quero mal, maninho.
Porque, por ser estrangeiro,
Teu falar não é bem-vindo.
Antes morra eu na terra
Que tu viveres no céu.
Queremos tua mulher
Olhar como as nossas olhas.
Queremos interromper
Teu descanso imerecido.
Se antes tua visita
Era a visita da morte,
Tua jornada hoje é
Tua jornada ao inferno.
Não comas minha comida,
Não arranques minhas plantas,
Não me pegues, não me toques,
Espera que te perdoe
Por seres meu inimigo
E somente te perdôo
Por seres meu inimigo.
Por seres meu inimigo,
Despacho tua alma ao céu.
Por seres meu inimigo,
Quero que tu sejas santo.
Assim, quando tu chegares,
Te beijo e te tiro as tripas,
Te abraço e te assassino.
Mostro como te perdôo,
Te enfiando esta faca.
Mostro que te quero bem
Te humilhando também.
Verás que tenho paixão,
Ao furar teu coração.
Ganharás esta batalha
E tantas outras tu querias,
Tantas quanto teu dinheiro
Possa comprar no mercado.
Mas lembra que o Conselheiro
Não morreu ontem nem hoje,
Nem morreu sua consciência.
Inimigo muito feio,
Feio, feio inimigo,
Por que és tão feio assim?

João Ubaldo Ribeiro em seu livro "Vila Real", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, aborda a problemática central do homem nordestino (e que hoje é a de muitos outros de quase todas as regiões do país): aquele que por força do sistema de propriedade da terra é obrigado a perambular de um lado para o outro.

João Ubaldo Ribeiro (Mesa farta para todos)

Leio no Guinness que o francês Michel Lotito, nascido em 1950, come metal e vidro desde os 9 anos de idade. Um quilo por dia, quando está disposto. Informa-se ainda que, de 1966 para cá, ele já comeu dez bicicletas, um carrinho de supermercado, sete aparelhos de televisão, seis candelabros e um avião Cessna leve — este ingerido em Caracas, embora o livro não revele por quê. Sim, e comeu um caixão de defunto, com alça e tudo, a fim de garantir um lugar na História como o primeiro homem a ter um caixão de defunto por dentro, e não por fora.

Se é chute, não sei, mas não deve ser, levando em conta o rigor do Guinness. E esse tipo de coisa é menos raro do que se pensa. Nunca participei de comilanças de cacos de telha ou de torrões de barro, mas muitos amigos meus, na infância; às vezes traçavam até um tijolinho. E um outro amigo, poeta etíope que conheci nos Estados Unidos, me contou que, na tribo dele, os Galinas, todas as famílias tinham pelo menos um maluco, de quem se orgulhavam muitíssimo, porque maluco é visto como uma pessoa superior. Na sua própria família, havia diversos, embora um primo fosse favorito, pelo seu alto nível.

— Qual é a maluquice dele?

— Ah, ele come qualquer coisa. Você bota um troço na frente dele, ele pergunta se é para comer, você diz que é e ele come. Ele come comida normal também, mas se, depois de ele esvaziar o prato, você diz que pode comer o prato, ele come o prato. Come pneu, chifre, couro, madeira, qualquer coisa, nunca decepcionou.

Um certo Dr. Buckland, inglês do século XIX, ficou, digamos, famoso por sua determinação em comer amostras de todo o reino animal. Morava perto do zoológico de Londres e, quando um animal adoecia, entrava em prontidão. Se o bicho morria, ele comia e dizem que, certa feita, durante uma ausência dele, um leopardo morreu e ele, ao regressar,. não vacilou: desenterrou o leopardo e comeu um filezinho. Afirmava que o pior sabor era o da toupeira, mas depois mudou de idéia, porque achou a mosca-varejeira pior.

Em algum lugar do mundo ou outro (geralmente a China não há quem tenha ido à China e não traga uma história culinária provocante), são itens do passadio, ou finas iguarias, lagartas, larvas, sangue fresco, banha derretida, gafanhotos, ovos de cobra com cobrinhas dentro, caça em decomposição, fígado de foca cru, baba de andorinha, ovo podre e assim por diante. Para não falar nos esforços de cientistas mais ou menos renomados, que se bateram seriamente contra os tabus alimentares. Mero preconceito, manter excelentes fontes de proteína escandalosamente ignoradas, a exemplo de ratos, baratas e gente morta de causas não contagiosas, como propôs outro inglês, cujo nome agora esqueci. Na Bahia, não faz muito tempo, apareceu um japonês com amostras de vinho de — como direi? —, é isso mesmo, vinho de cocô. Segundo ele, era coisa da melhor qualidade, da mesma forma que bife de cocô, cuja tecnologia ele já dominava. Depois de higienizado e processado, o bife, garantia ele, era mais nutritivo e gostoso do que muita picanha aí. Besteira desperdiçar tanta comida boa por causa de uma ojeriza sem fundamento científico.

Por aí vocês vêem as dificuldades que o povo causa. Se fôssemos um povo de mente mais aberta, não existiria o problema da fome, que tantos embaraços traz aos nossos governantes em conferências internacionais. Temos ratos, baratas, piolhos, capim (outro japonês sugeriu capim, que também dá um bife de truz), temos tudo em abundância, notadamente a matéria-prima daquele vinho. Meu único receio é que, se der certo. tabelem o rato, a barata e o capim, cobrem IPI e ICM de todo mundo que for ao banheiro e regulamentem a captura de moscas com fins alimentícios. Mas vamos ter fé nos homens. Talvez eles livrem a cara do pequeno produtor, o que já é um grande passo e mostra sensibilidade para com os problemas da maioria do bravo povo brasileiro. Agora, sem boa vontade para colaborar e aceitar alguns pequenos sacrifícios, não se resolve nada.

Fonte:
Texto publicado na revista “Veja – Paulista”, Editora Abril, São Paulo, edição do dia 21/10/1992, encontrado nos “Arquivos Implacáveis” de João Antônio Bührer, do blog “Grafolalia”. Disponivel em http://www.releituras.com/