sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Adelino Fontoura (1859 - 1884)

(id:MCCXXVII)

A MÃO

Quando meu lábio trêmulo te oscula
A pequenina mão delgada e fina,
Como uma pomba trêmula que arrula
Minha vida, mal sabes! — canta e pula
Na rósea palma dessa mão divina!

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.

CELESTE

É tão divina a angélica aparência
e a graça que ilumina o rosto dela,
que eu concebera o tipo de inocência
nessa criança imaculada e bela.

Peregrina do céu, pálida estrela,
exilada na etérea transparência,
sua origem não pode ser aquela
da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
e a luminosa auréola sacrossanta
de uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
inundados de mística doçura,
nem parece mulher - parece santa.

OHS! E AIS!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os "Subsídios" o Filinto.

O RETRATO

Vou fazer-te, leitor, o seu retrato:
— É pálida, gentil, encantadora,
tem a doce atração fascinadora
das cristalinas águas dum regato.

O chic do dizer nervoso inato
tive-o voz vibrante, sedutora,
brilham nessa loquaz criança loura
a graça, a distinção, o fino trato.

É olhá-la uma vez e sentir presa
a vontade ao seu todo de burguesa
que conversa em francês e sabe história.

Mas o reverso da medalha espanta.
Tangendo o violão, lânguida, canta:
— Quis debalde varrer-te da memória!

O NINHO

És como a doce juriti da mata,
Ligeira, esquiva, tímida e medrosa:
Foges de mim tremente e suspirosa,
Como quem de um perigo se recata.

Mas não sei, afinal, criança ingrata,
Porque foges: não sei porque amorosa
Tua alma casta, angélica e bondosa,
Com tão doce esquivança me maltrata.

Abre as asas à luz serenamente
E vem fugindo aos gelos do deserto
Buscar o sol do meu amor ardente.

Dirige para mim teu voto incerto,
Pois tens meu coração, pomba inocente,
Como um tépido ninho sempre aberto.

PÁGINA DESCONHECIDA

À brisa, ao sol, à serra, à flor silvestre
Ao ribeiro que corre cristalino,
Ao canto alegre e doce, matutino,
Das aventuras no arvoredo agreste;

À campina que do orvalho a manhã veste,
Eu, sem de Homero for o alto destino,
Um conto fui pedir áureo, divino,
Radiante dessa luz alva e celeste!

Com ele ornar quisera, alegremente,
O teu álbum mimoso — onde o talento
Do teu gênio se curva ao foto ingente;

Mas, não tenho de Dante o pensamento,
Não acho inspiração na luz fulgente
Pra um canto te ofertar com sentimento.
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Adelino da Fontoura Chaves nasceu em Axixá/MA, 30/03/1859 e faleceu em Lisboa/Portugal, 02/05/1884.

Ainda muito pequeno começa a trabalhar e trava contacto com Artur Azevedo – amizade que perduraria.

Mudando-se para o Recife, onde alista-se no Exército, colaborando numa publicação chamada “Os Xênios”, de teor satírico. Inicia, também a carreira de actor, voltando ao Maranhão natal para uma apresentação – cujo papel rendeu-lhe a prisão. Após este fato, decide mudar-se para o Rio de Janeiro, para onde se mudara o amigo Artur Azevedo, anos antes.

Pretendia seguir carreira teatral e no jornalismo, falhando na primeira. Colaborou nos periódicos “Folha Nova” e “O Combate”, de Lopes Trovão e em “A Gazetinha”, onde Azevedo escrevia (1880). Participara junto a outros jovens talentos do jornal “A Gazeta da Tarde” – que seria aziago, no dizer de Múcio Leão, pois, em menos de 3 anos de sua fundação, os seus criadores haviam todos morrido.

Tendo sido o “Gazeta da Tarde” comprado por José do Patrocínio, e estando Adelino doente, vai à Europa como correspondente em Paris e pensando tratar-se mas, com o rigor do inverno, piora. Vai a Lisboa onde, apesar das instâncias de Patrocínio para que volte ao Brasil, tem seu estado agravado e vindo prematuramente a falecer. Tinha apenas vinte e cinco anos, e nenhuma obra publicada.

Sua obra, esparsa, constitui-se em cerca de 40 poesias, reunidas pela primeira vez na Revista da Academia (números 93 e 117).
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Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/

Vespasiano Ramos

(id:MCCXXVI)

CRUEL

Ah, se as dores que eu sinto ela sentisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse;
talvez nunca um momento me negasse
tudo que eu desejasse e lhe pedisse!

Talvez a todo instante consentisse
minha boca beijar a sua face,
se o caminho que eu tomo ela tomasse,
se o calvário que eu subo ela subisse!

Se o desejo que eu tenho ela tivesse,
se os meus sonhos de amor ela sonhasse,
aos meus rogos talvez não se opusesse!

Talvez nunca negasse o que eu pedisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse
e se as dores que eu sinto ela sentisse! . . .

SAMARITANA

Piedosa gentil Samaritana:
Venho, de longe, trêmulo, bater
À vossa humilde e plácida cabana,
Pedindo alívio para o meu viver!

Sou perseguido pela sede insana
Do amor que anima e que nos faz sofrer:
Tenho sede demais, Samaritana
Tenho sede demais: quero beber!

Fugis, então, ao mísero que implora
O saciar da sede que o consome,
O saciar da sede que o devora?

Pecais, assim, Samaritana! Vede:
- Filhos, dai de comer a quem tem fome,
Filhos, dai de beber a quem tem sede.

ÂNSIA MALDITA

Ninguém mais do que tu saberá quanto
Padeço, agora! e, em lágrima, advinha
A minha'alma apagar-se, neste pranto,

Beatriz! Alma em flor! Suave encanto,
Que me salvar, pensei, dos altos, vinha:
O quanto peno, o quanto sofro, enquanto
Imagino que nunca serás minha!

Foram, por ti, as lágrimas que os olhos
Meus derramaram! só por ti, somente
Que minh'alma, do Amor contra os escolhos,

Há de, convulsa, soluçar, um dia,
A derradeira lágrima pungente
E o derradeiro grito de agonia!

(Cousa Alguma, 1916)

SONETO
( fatalidade )

Desde esse instante, sem cessar, maldigo,
aquele instante de felicidade!
Para que tu vieste ter comigo,
meu amor, minha luz, minha saudade?!

Dês que te foste, foram-se contigo
todos os sonhos desta mocidade...
A tua vinda - fora-me um castigo;
a tua volta - uma fatalidade!

Dês que te foste, dentro em mim plantaste
a ânsia infinita dos desesperados
porque voltando, nunca mais voltaste...

Correm-me os dias de aflições, cobertos:
eu entrei para o amor de olhos fechados
e saí para a dor de olhos abertos!
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O poeta maranhense Joaquim Vespasiano Ramos, nascido em Caxias no dia 13 de agosto de 1884, passou seus últimos dias na então vila de Porto Velho, Comarca de Humaytta, Estado do Amazonas, hoje município de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia no início de dezembro de 1916 e faleceu no dia 26 do mesmo mês.

Nasceu nas condições mais humildes, desde cedo começou a trabalhar no comécio local, no entanto buscando sempre o saber tornou-se um viajante compulsivo, que levaria o conhecimento a outros povos, durante a sua vida viajou por quase toda a região norte e tambem o sul do Brasil.

Publicou sua obra poética em diversos jornais e revistas de seu tempo. É considerado o precusor da literatura em Rondônia.

Em sua homenagem foi contruído um grande centro recreativo, em Rondônia,e no Maranhão, uma das mais belas praças da capital recebe o seu nome.

É patrono da cadeira n° 32 da Academia Maranhese e da cadeira n°40 da Academia Paraense de Letras.
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Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Sintepe abre inscrições para 1º Concurso de Poesia

( id:MCCXXIII)
.
O Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe) abre inscrições, a partir desta sexta-feira (22) até o dia 22 de setembro, para o 1º Concurso de Poesia da instituição, com tema livre. Nesta primeira edição, o Sintepe homenageia o poeta Solano Trindade. O edital pode ser encontrado no site do Sintepe e do Interpoética.

Cada interessado pode inscrever até dois poemas. A premiação, um total de R$ 4 mil, será distribuída em categorias específicas, formadas por educadores da rede estadual de ensino ou por pessoas do público em geral. O resultado será divulgado no dia 15 de outubro, no qual se comemora o Dia do Professor.

O objetivo do concurso é homenagear o poeta Solano Trindade e incentivar as produções literárias de pernambucanos, em especial dos trabalhadores em educação. Fazem parte da comissão organizadora o Setor de Políticas Sociais, Cultura e Comunicação do Sintepe e a equipe do Interpoética. Para mais informações, o telefone é (81) 2127-8850.

O edital se encontra publicado no http://www.interpoetica.com/ e http://www.sintepe.org.br/.

Se estivesse vivo, Solano Trindade, conhecido como "o poeta negro", teria completado 100 anos no último dia 24 de julho. Também pesquisador, teatrólogo e pintor, ele dedicou-se à luta do negro pela igualdade racial e social no país. Solano, que faleceu no ano de 1974, notabilizou-se por seus poemas afro-brasileiros.

REGULAMENTO

Das inscrições

Art. 1º – Podem participar do Concurso todos os Trabalhadores em Educação da Rede Estadual de Pernambuco e o público em geral.

Parágrafo único – Só poderá participar brasileiro nato ou naturalizado brasileiro, maior de 16 anos, com texto em língua portuguesa.

Art. 2º – As inscrições estarão abertas no período de 22 de agosto a 22 de setembro de 2008, no horário das 9 às 17 horas, no SINTEPE - Rua General Semeão, 39 - Santo Amaro - Recife/PE - Brasil – CEP 50050-120 – Fone (81) 2127 8850.

Parágrafo único – Para o material enviado pelo correio vale a data de postagem, que não pode ultrapassar à estabelecida neste artigo (22 de setembro de 2008).

Art. 3º – Cada participante pode se inscrever com até 02 (dois) poemas. Os poemas devem ser inéditos, ou seja, poesias que ainda não foram publicadas em livros, jornais ou outros meios.

§ 1º – Os poemas devem ser apresentados em 03 (três) vias, sob pseudônimo, em envelope grande, dentro do qual deve ser anexado envelope menor, lacrado, contendo folha de identificação com nome, pseudônimo, endereço residencial completo, telefone, cópia da identidade e título(s) do(s) poema(s) obedecendo aos seguintes critérios:

a) Os poemas devem ser digitados em editor de texto eletrônico (Word, Open Office, Star Office etc.);
b) Fonte (letras) tamanho 12;
c) Cada poema não deve exceder o limite de 03 (três) laudas;
d) O participante deverá indicar nos envelopes se está concorrendo na categoria de público em geral ou na categoria de Trabalhadores em Educação da Rede Estadual de Pernambuco.

I - Quando o candidato não indicar a categoria a qual está concorrendo, concorrerá na categoria de público em geral.

§ 2º – As inscrições serão gratuitas.

§ 3º – Ao se inscreverem, todos os candidatos aceitarão automaticamente as cláusulas e condições estabelecidas no presente regulamento.

Da premiação

Art. 4º – O concurso terá dois tipos de premiação. Uma para o público em geral com prêmio em dinheiro e outra para os Trabalhadores em Educação da Rede Estadual de Pernambuco, que contará com prêmio em dinheiro e publicação em livro dos poemas vencedores.

§ 1º – Os participantes não poderão acumular as premiações, ou seja, será premiado apenas um poema de cada participante.

§ 2° – Premiação para os participantes do público em geral:
1º colocado – R$ 1.000,00 (mil reais)
2º colocado – R$ 600,00 (seiscentos reais)
3º colocado – R$ 400,00 (quatrocentos reais).

§ 3° – Premiação para os participantes Trabalhadores em Educação da Rede Estadual de Pernambuco:

a) Premiação em dinheiro:
1º colocado – R$ 1.000,00 (mil reais)
2º colocado – R$ 600,00 (seiscentos reais)
3º colocado – R$ 400,00 (quatrocentos reais).
b) Publicação de livro contendo as 20 (vinte) melhores poesias dos participantes, com edição de 1.500 (mil e quinhentos) livros em brochura, cabendo a cada autor uma cota de 10 (dez) exemplares.

Da comissão julgadora

Art. 5º – A Comissão Julgadora será escolhida pela Comissão de Organização do Concurso e composta por 03 (três) membros.

Parágrafo único – A Comissão Julgadora terá autonomia no julgamento, que será regido pelos seguintes princípios: originalidade e linguagem poética.

Do resultado

Art. 6º – O resultado do Concurso será divulgado no dia 15 de outubro no local da inscrição e a premiação será entregue em evento próprio do SINTEPE no dia 17 de outubro de 2008.

Das disposições finais

Art. 7º – Os casos omissos serão decididos, em comum acordo, pela Comissão Julgadora e pela Comissão de Organização do Concurso.

Art. 8º – Do julgamento apresentado pela Comissão Julgadora quanto à qualidade dos poemas selecionados não caberá qualquer recurso, ficando esta medida adstrita às condições extrínsecas do concurso, dispostas nas cláusulas deste Regulamento, que será julgado pela Comissão de Organização do Concurso.

SERVIÇO:
Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe)
Telefone: (81) 2127-8850
Site: http://www.sintepe.org.br/

Fontes:
JC on-line. http://jc.uol.com.br/ . Publicado em 21.08.2008
http://www.sintepe.org.br/

Batista de Lima (Os Três Tradicionais Gêneros Literários)

(id: MCCXXII)

(Analogias)

1. O lírico sente.
O épico mostra.
O dramático prova.

2. O lírico recorda.
O épico torna presente.
O dramático projeta.

3. O lírico se emociona.
O épico admira.
O dramático se espanta.

4. O lírico expõe.
O épico narra.
O dramático dialoga.

5. O lírico confessa.
O épico historia.
O dramático representa.

6. O lírico é o “eu”.
O épico é o “ele”.
O dramático é o tu .

7. O lírico é sílaba.
O épico é palavra.
O dramático é frase.

8. O lírico é sedentário.
O épico é nômade.
O dramático é evoluído.

9. O lírico é adolescente.
O épico é jovem.
O dramático é velho.

10. O lírico é emotivo.
O épico é referencial.
O dramático é conativo.

11. O lírico é expressivo.
O épico é narrativo.
O dramático é exortativo.

12. O lírico é o início.
O épico é o meio.
O dramático é o fim.

13. O lírico é o amanhecer.
O épico é o entardecer.
O dramático é o anoitecer.

14. O lírico é fala.
O épico é língua.
O dramático é linguagem.

15. O lírico é particular.
O épico é social.
O dramático é universal.

16. O lírico é subjetivo.
O épico é objetivo.
O dramático é a síntese de ambos.

17. O lírico é emocional.
O épico é figurativo.
O dramático é lógico.

18. O lírico é feminino.
O épico é neutro.
O dramático é masculino.

19. O lírico é arrebatamento.
O épico é força.
O dramático é indecisão.

20. O lírico é cantado.
O épico é recitado.
O dramático é dialogado.

21. O lírico é sentimental.
O épico é narrativo.
O dramático é representativo.

22. O lírico é abstração.
O épico é ausência.
O dramático é presença.

23. O lírico espera-se (pela inspiração).
O épico recolhe-se (da humanidade).
O dramático arranca-se (à força).

24. O lírico é do mundo interior.
O épico é do mundo exterior.
O dramático é do mundo conflituoso.

25. O lírico é das emoções.
O épico é das grandes ações.
O dramático é das ações em conflito.

26. O lírico centra-se no autor.
O épico centra-se no autor e no auditório.
O dramático centra-se no auditório.

.27. O lírico, o autor é protagonista.
No épico, o autor é expectador.
No dramático, o autor é coordenador.

28. No lírico, o sujeito e o objeto juntam-se.
No épico, o sujeito e o objeto observam-se.
No dramático, o sujeito julga o objeto.

29. No lírico, beija-se o mundo.
No épico, somos beijados pelo mundo.
No dramático, entrebeijamo-nos (nós e o mundo).

30. No lírico, a linguagem está na fase da expressão sensorial. No épico, a linguagem está na fase da expressão figurativa. No dramático, a linguagem está na fase da expressão do pensamento conceitual.
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Sobre o autor:
BATISTA DE LIMA, nascido em Lavras da Mangabeira (1949), embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza. Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. De poesia publicou os livros Miranças (1977), Os Viventes da Serra Negra (1981), Engenho (1984) e Janeiro da Encarnação (1995). Na área do ensaio literário deu a lume, em 1993, Os Vazios Repletos e Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e, em 2000, O Fio e a Meada – Ensaios de Literatura Cearense. Membro da Academia Cearense de Letras.

Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/

Nilto Maciel (Sobre Livros e Escritores)

(id: MCCXXI)

Publicam-se todo ano no Brasil milhares de livros de poesia e prosa de ficção, quase sempre às custas dos próprios autores e em pequenas tiragens. A maioria desses livros não chega às livrarias, que hoje se dedicam a vender obras científicas (literatura médica, por exemplo), jurídicas, religiosas, filosóficas, infantis, ao lado de livros de auto-ajuda, política, amenidades, romances norte-americanos de segunda categoria e os clássicos da literatura universal e nacional.

O fim da editora tradicional talvez já tenha chegado. A literatura já estaria praticamente fora dos interesses dos editores e livreiros. A exceção a esta regra seriam os clássicos, que têm, como leitores, estudantes e escritores. A literatura nova (presente e futura) será editada por conta dos próprios autores ou pequenas editoras.

Para alguns escritores, as editoras não investem em literatura (daqui em diante empregarei o termo literatura apenas para me referir à poesia e à prosa de ficção), a mídia não dá a mínima importância ao livro, não há editoras e livrarias em número suficiente para acolher todas as obras escritas etc. E aí estaria o grande problema do escritor. No entanto, críticos e jornalistas acreditam mais na incapacidade de comunicação da maioria dos escritores com o leitor, uns por serem pobres de talento e conhecimento, outros por terem muito talento e conhecimento e se isolarem na torre de marfim da poesia para poetas, do romance para romancistas etc. Muitos escreveriam para si mesmos ou para outros escritores. Seria uma literatura para iniciados, como se a literatura fosse a linguagem de uma sociedade secreta, com seus símbolos próprios. Seria a literatura fora de mercado, não-mercantil, em contraposição à subliteratura e a uma literatura “popular”, do gosto das massas.

Edgar Morin, em Cultura de Massas no Século XX (O Espírito do Tempo), teoriza: “A corrente média triunfa e nivela, mistura e homogeneíza, levando Van Gogh e Jean Nohain. Favorece as estéticas médias, as poesias médias, os talentos médios, as inteligências médias, as bobagens médias. É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve sua humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio.”

E acrescenta: “Um exemplo de vulgarização ininterrupta esclarecerá esse propósito: O Vermelho e o Negro de Stendhal se torna um filme adaptado aos padrões comerciais; desse filme nasce O Vermelho e o Negro, folhetim em quadrinhos publicado num diário.”

Esses escritores não-mercantis não estariam voltados para o leitor, para o outro, mas para si mesmos. Segundo Emanuel Medeiros Vieira, “escrevemos para perdurar, para vencer a poeira do tempo, para despistar a morte, para regar nossos fantasmas e obsessões, para nos comunicar”. Porém como vamos os escritores nos comunicar com os leitores? Se escrevermos para nós mesmos, não haverá comunicação, e escrever será apenas catarse, psicoterapia, auto-análise.

Haveria, então, uma literatura sem mercado ou fora dele e uma literatura produzida especialmente para o mercado. Os livros produzidos para o mercado têm cotação: os mais vendidos, os best-sellers, os que interessam diretamente às editoras, aos livreiros e à mídia. Segundo Juan Liscano, em entrevista a Floriano Martins, no livro Escritura Conquistada: “Enquanto o best-seller, um produto para o mercado, constitui hoje em dia a meta da literatura, a poesia situa-se no extremo contrário, representando, portanto, o não mercantil literário, o trabalho nobre artesanal, o ofício tradicional, mesclado com as funções xamânicas de expressar o humano em transe de universalização arquetipal (a tribo de que falou Mallarmé).” Não está descartada a hipótese de uma obra literária tornar-se best-seller. Porém isto se dará quase que por acaso ou dependendo do merchandising do editor. Assim, um grande romance pode em determinado tempo tornar-se o mais vendido em algum país ou em parte do mundo. Foi o caso dos Versos Satânicos, de O Nome da Rosa e outros.

São ainda de Edgar Morin as seguintes observações: “Em certo sentido aplicam-se as palavras de Marx: “a produção cria o consumidor... A produção produz não só um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”.

De fato, a produção cultural cria o público de massa, o público universal. Ao mesmo tempo, porém, ela redescobre o que estava subjacente: um tronco humano comum ao público de massa.

Em outro sentido, a produção cultural é determinada pelo próprio mercado. Por esse traço, igualmente, ela se diferencia fundamentalmente das outras culturas: estas utilizam também, e cada vez mais, as mass-media (impresso, filme, programas de rádio ou televisão), mas têm um caráter normativo: são impostas, pedagógica ou autoritariamente (na escola, no catecismo, na caserna) sob forma de injunções ou proibições. A cultura de massa, no universo capitalista, não é imposta pelas instituições sociais, ela depende da indústria e do comércio, ela é proposta. Ela se sujeita aos tabus (da religião, do Estado etc.), mas não os cria; ela propõe modelos, mas não ordena nada. Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável como a de se dobrar à lei do mercado, da oferta e da procura. Sua lei fundamental é a do mercado.”

Em outra página o filósofo francês acrescenta: “No entanto, se nos colocarmos do ponto de vista dos próprios mecanismos do consumo e do ponto de vista do tempo, podemos considerar que ao longo dos anos, os temas que desabrocham ou desfalecem, evoluem ou se estabilizam no cinema, na imprensa, no rádio ou na televisão, traduzem uma certa dialética da relação produção-consumo.

Não se pode colocar a alternativa simplista: é a imprensa (ou o cinema, o rádio) que faz o público, ou é o público que faz a imprensa?

A cultura de massa é imposta do exterior ao público (e lhe fabrica pseudo-necessidades, pseudo-interesses) ou reflete as necessidades do público? É evidente que o verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores. Essa dialética é muito complexa, pois, por um lado, o que chamamos de público é uma resultante econômica abstrata da lei da oferta e da procura (é o “público médio ideal” do qual falei) e, por outro lado, os constrangimentos do Estado (censura) e as regras do sistema industrial capitalista pesam sobre o caráter mesmo desse diálogo.

A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade
.”

Na verdade, o grande problema do livro não está na distribuição, ao contrário do que afirmam algumas pessoas. Porque mesmo que as livrarias * que são poucas no Brasil * aceitassem os livros de todos os escritores, ou de grande parte deles * mesmo assim não estaria garantida a comercialização dos livros editados. Não há leitor para literatura, especialmente poesia e prosa de ficção. A circulação das obras literárias é e deverá ser sempre restrita a outros escritores, estudiosos, pesquisadores, críticos, estudantes etc. Livros com distribuição garantida a todas livrarias e bancas de revistas são aqueles livros produzidos com os ingredientes da violência, cenas de sexo, drogas etc. Os best-sellers norte-americanos são o melhor exemplo desse tipo de “literatura”.

As livrarias não aceitam livros editados por pequenas editoras, geralmente criadas por um escritor para editar os próprios livros. E quem são os escritores que têm leitores? Os melhores? E quem são os melhores? Geralmente os melhores são eleitos pelos professores de literatura e pelos críticos. Os primeiros, talvez por falta de tempo, já chegam às cátedras das Faculdades de Letras com os mesmos nomes de sempre, os escritores que leram e estudaram: Fernando Pessoa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Manuel Bandeira e poucos outros. Mesmo grandes poetas e prosadores são esquecidos, como Jorge de Lima. Dirão: daqui a 50 anos outros nomes serão incluídos nessa lista dos melhores. Será a sua vez * dizem, como consolo ao escritor de hoje. O grande público, porém, não conhece esses bons escritores. Isto é, um pequeno número de pessoas, ilustres leitores e estudiosos, seleciona os melhores.

Moacyr Scliar resumiu a questão escritor-leitor, valendo-se de palavras de outros grandes escritores: “Quem não espera um milhão de leitores não deveria escrever, dizia Goethe, mas desde então as expectativas têm sido mais modestas. Stendhal: “Escrevo para apenas cem leitores, e desses seres infelizes, amáveis, encantadores, conheço apenas um ou dois”. Arthur Koestler levou mais adiante a fórmula dos “cem leitores”: uma centena, sim, mas que possam ser trocados por dez ao cabo de uma década e por um único no fim de um século.” (Revista Literatura n.º 3, dezembro, 1992).

O público de jornal, de revista semanal e de televisão não tem interesse por literatura. Mesmo a literatura mais banal, mais popularesca, mesmo essa não tem grande público. Daí a mídia não ter interesse nela. Ora, a política, nacional e internacional (agora mais do nunca, com a globalização da informação), os esportes, o crime, a música pop têm público, grande público. Daí as muitas páginas nos jornais. E os melhores horários na televisão.

Eloésio Paulo, em seu recente Teatro às Escuras - Uma Introdução ao Romance de Uilcon Pereira, afirma: “A propósito das relações entre o texto literário e o padrão de comunicação estética estabelecido pelos veículos de comunicação de massa, o poeta João Cabral de Melo Neto já apontava em 1954 para a necessidade de um comércio maior entre as formas poéticas e novos meios de difusão. Cabral destacava principalmente as virtualidades do rádio como difusor da poesia; apresentava, como uma direção inevitável para o poeta moderno, reformular sua posição enquanto agente de um processo de comunicação, ao mesmo tempo mantendo a alta elaboração estética na base de seus objetivos e procurando abrir-se à possibilidade de atingir o grande público. Via-se o poeta, portanto, diante de um impasse representado pela concorrência dos mass media, que por outro lado encerrava, dialeticamente, a própria saída ou solução, já que o tornar a poesia capaz de “entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida moderna oferece” era, para Cabral, a “contraparte orgânica” da luta pela expressão poética desobstruída do tom oratório característico do lirismo tradicional.”

E diz mais: “Se a ficção do período (anos 50 e 60) não ignorava a cultura de massas, é certo que encerrou a problemática em outros termos, distanciando-se do mundo racionalmente administrado da sociedade em industrialização para mergulhar nos impasses da consciência individual e nas indagações metafísicas, coincidindo os escritores mais importantes numa pesquisa estética em nada dirigidas para a massificação da literatura.”

Há alguns anos os jornalistas eram, antes de tudo, escritores, como Machado de Assis e outros. Os donos dos jornais ou os editores-chefes precisavam desses escritores. Sem eles, não teriam como editar seus periódicos. Daí também os suplementos literários, que certamente nunca ressurgirão. Não havia ainda os cursos de comunicação. Mesmo assim, ainda hoje temos os artigos assinados, sim. Porém seus autores geralmente são políticos profissionais, sociólogos ou economistas. Que eventualmente podem ser escritores.

Edgar Morin cita um trecho de Robert Musil, em O Homem sem Qualidades, quando o personagem Arnheim pergunta: “Você não notou que nossos jornalistas ficam sempre melhores e nossos poetas sempre piores?” E tira sua conclusão: “Efetivamente, os padrões se enchem de talento, mas sufocam o gênio. Um copy desk do Paris-Match escreve melhor que Henri Bordeaux, mas não saberia ser André Breton.”

Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/
Figura:
http://pequenos-jornalistas.blogs.sapo.pt

Batista de Lima (Só)

(id: MCCXX)

O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta

O que faz doer a solidão
é sua sede
é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de pedridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina

O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma

O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher

O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio

O que mais dói na solidão
é perder de mim
os outros que carrego
o segundo contra o primeiro
o terceiro que instiga
o quarto que dorme
o quinto que inicia
uma infinidade de outros

O que dói na solidão
é essa batalha que não acaba mais
entre guerreiros invisíveis
enquanto um boi passeia nas nuvens
e uma bicicleta muge
já que os verdes anos foram nulos
para quem nasceu maduro
para quem perdeu o ciso
na primeira dentição
e o cordão umbilical
nos bicos de um galo cego
lá pras bandas da Cipaúba

Quanto dói
ver a velha mangueira se desfazendo
Velha! Velha mangueira
por quanto tempo roerei
teus nós
por quanto tempo aguardarei
a manga que os passarinhos
bicam
no último dos galhos

O que dói na solidão
é o vira-lata sozinho
revirando o deserto
da cidade esquecida nas ruas
é ter um pai com muitas capas
todas com seus mistérios
se desfazendo em barro
por um caminho que mespera
O que mais dói na solidão
é ter na mão uma chave
que nada abre
que nada abre

O que mais dói na solidão
é não se poderem conter
os fantasmas que teimam
em saltar das sombras
de cada canto
São essas cobras
passeando em nossa cabeça
serpentário infindável

Difícil conviver
com a inesgotável solidão
mas difícil mesmo
é compor o verso
sem a vaca no divã
triste luna
rodonoite
áspera/mente

Só mesmo a roda grande
sescondendo em menor roda
Só mesmo a bicicleta
pendurada no trem noturno
Só mesmo a melancia
no rio em cheia
boiando
E os carneiros na mesa grande boiando
os teus olhos boiando na bandeja
os teus seios boiando no cuscus
os teus sais boiando nas iguarias
os teus ais boiando na rememória

O que mais dói
não é tua ausência
mas tua presença
estando longe

Lembra-te pois do açude
onde as águas ainda nos guardam
e os peixes nos carpem
em lágrimas de cumplicidade

Lembra-te da porta marcada
pelos mistérios de estar fechada
da casa retendo a mesa onde
saboreávamos os silêncios familiares
e escrevíamos a história da solidão
no livro branco do cotidiário

A solidão mora lá e é manca
e usa bengala preta
e óculos no nariz
e se veste de uma veste que nunca muda
e tem na mão fechada a chave da
nossa libertação

Solidão solidão
meu coração é uma cidade
entre muralhas
esperando tuas chaves

Solidão solidão
certa vez em Mombaça
pedia esmolas p’ra São Sebastião
e desenhei teu corpo num surrão de mangas
e em bandas de coité de brejo

Desenhei teu corpo
num portão de vidro
éramos dois
que não eram dois
Éramos dois e só um sol
a claridade e seu dorso
a clara idade e sua dor

Solidão solidão
estamos em pleno mar e não
há mar nenhum
Estamos em pleno sono
e não há qualquer sonho
só minha mão como um rosto
cortando em muitos
o luar de agosto

O que dói na solidão é ter
Ter é estar preso
pesar pesadamente fixo
Não ter
é poder voar
Leve
levo-me às alturas
lavo-me candura
com o vôo esculpido
no azul azul
o azul está no prato
servido e sorvido
seres vivos
estamos nele
e ele em nós
pasto de pasto
repasto
solitariamente circular
rondando em torno da roda
A solidão eixa e deseixa
em roda
quanto mais vemos
menos vivemos
coração coração

Tenho ossos e mais ossos
a rodear
Que tenho feito senão rodear
nunca quebrei o fêmur do que está posto
nem a tíbia das situações sem jeito
Rodear é fugir
Solidade
quando chegamos ao trem
não havia trilho
No açude não havia água
só a dor do pesca/dor
dois meninos
engolindo uma duna
e uma duna engolindo um astro
uma foto de uma foto partida
onde o instante enterrou-se
A solidão é uma foto em que se retorce
um inconformado instante

Solidão é desencontrar-se nos próprios passos
nos próprios ossos
perder o azul do firmamento
deixar de extrair gerânios
das pedras e de suas raízes
deixar de pentear os raios do sol
desarredondar a lua em luares
atravessados

Uma casa é uma caixa
se de apenas portas
e abertas todas
uma casa é um avesso
um delírio espesso
vasto berro de barro
vagido e gozo
vôo espargido
de sonho e suspiro

Minha solidão é nódoa grudada
no ombro esquerdo do corpo
onde jaz a mala
das minhas desventuras

Minha mãe é a terra
e cumpro seu estatuto
em retornar ao seu ventre
meus filhos todos me seguirão
vastíssimos sonhos
de/verão

Tarde tarde
a solidão me salga as horas
a mulher que retém o homem
suas asas e águas
rio seco
areia de leito
íngua cortada
ferida tratada a urina
caborge
no meu pescoço levo teu pescoço
teus passos laçados
teu poder de vôo
teu grito guardado

Solidão é Laura de costas
Laura láurea loura
minha querida Laura
chorarei lágrimas douradas
quando tua nudez
se esculpir no relâmpago

Querida Laura
recupera aquele instante
em que nossos dedos se tocaram
e nos perdemos

Recupera o instante anterior ao toque
quando a correnteza era mais forte em mim
o despencar mais vertical
retendo aqui esse abismo
que me engole

Recupera teu pai
e a cuia
que enchíamos de esperanças
antes do leite

Recupera tua mãe
e a chuva fina
no telhado

Recupera as águas
que nos levaram
e lavaram
nossos sais
o céu azul
o curto mundo
onde só o coração era vasto
Recupera as curvas
dos caminhos

Recupera o fogo de
monturo em nós
Se não me queimo
não posso iluminar
se não te firo
não extraio de ti o coração
“rosa vermelha
do meu bem querer ”

Na noite tarde
o que resta é meu corpo lá
e eu daqui
olhando sua/minha posição fetal
e essa angustia de perdê-lo de vista
Não sei quando perderei
essa dor
de perder a casca
a casa do ser não importa tanto
se tantas se erguem
Só o ser é uno
solitariamente nu
e eu molusco
a vida inteira tenho construído essa casca
que me expele e me retém
escravo da construção
construir é viver
terminar a casa é terminar-me
é expulsar-me da casca construída

Foi fácil colocar a flor
atrás da flor
e ficar de uma só flor
reinventando pomares

Foi fácil reverter a manhã
colocando alvoreceres
de sol a pino
Foi fácil engatinhar
pelas galáxias
semeando brancas nuvens
Houve no entanto
um momento difícil
mudar o destino da tarde

Solidão solidade
quando procurei no bolso
o poema
encontrei aberta uma artéria
e teu rosto de fada
tua avó morrente
uma floresta escura

Quando procurei no bolso
o poema
encontrei um mistério esculpido
algumas lavadeiras
oito bicicletas
e uma tia puxando um terço
solitária

Quando procurei no bolso
o poema
te vi mais uma vez
prima/vera/ndo
Vi também uma dor sangrando
solitária

Nos nossos bolsos pulsam
os meninos que enxotam o demônio
escondido num cupim
e uma mulher de tarrafa
tentando pescar o mar
nas entranhas de um peixe

Nos nossos bolsos
pulsa o destino do poetar o
revirar cada coisa para desvendar seus mistérios
enquanto meus mistérios
para traz vão ficando
cada vez mais distantes.

Nilto Maciel (Pescoço de Girafa na Poeira)

(id: MCCXIX)

Mal o dia amanheceu, Fátima arregalou os olhos, assustada. Que horas já eram? Conteve-se. Todos ainda dormiam. Até seu pai. Se pulasse da rede, despertaria a mãe, as irmãs, os irmãos. E seu plano poderia gorar. Melhor dormir mais um pouco. Afinal, talvez tenha permanecido acordada grande parte da noite. Não se lembrava de nenhum sonho. E sentia sono.
***
O circo havia se instalado na cidade há quase um mês. Fátima não se interessou logo por ele. Conhecia outros circos, desde menininha. Os mesmos palhaços, os mesmos trapezistas, os mesmos acrobatas, os mesmos animais amestrados. Não, não iria ver o novo circo. A menos que arranjasse ingresso gratuito ou as amigas insistissem muito.
***
Durante o café Dona Zita percebeu sonolência nos olhos da filha. Preocupada com os estudos? Se não fosse ao circo toda noite não precisaria estudar a tarde inteira. Ainda bem que aquele circo miserável já havia ido embora. Não, não fora até então. Alguém mentira. Não lembrava quem.
***
O acrobata chamava-se Igor. As roupas coloridas realçavam sua musculatura, as formas vigorosas. A cabeleira loura voava ao compasso de suas piruetas. E Fátima suspirava, roía as unhas, esfregava as mãos, amassava o vestido.
Terminado o espetáculo, insistia com as amigas para ver os leões. Ora, os leões, aqueles bichos fedorentos? Melhor passear na praça, ver os rapazes fumando e contando vantagens.
***
A aula de português não acabava nunca. A freira gritava ciclos. E girava ao redor da sala: Ciclo Carolíngio, Carlos Magno, Ciclo Bretão, rei Arthur, Ciclo Clássico. Por que não ia rezar baixinho na capela? E relógio, quem tinha relógio? Precisava ver os ponteiros girando, quase parados, talvez parados, quebrados. E o sol? A pino, a pino, a pino. A freira repetia os ciclos. “O sol é grande, caem co’a calma as aves, do tempo em tal sazão, que soe ser fria”...
Fátima suspirava, absorta, os olhos no soneto de Sá de Miranda.
***
Uma noite Fátima desgarrou-se das amigas e escondeu-se no circo. Queria ver Igor de perto, falar-lhe. Nas noites seguintes viram-se frente a frente, conversaram, beijaram-se. No entanto, uns olhos azuis os espreitavam. E pertenciam à trapezista Catarina.
***
Durante o almoço Fátima apenas beliscou a comida. Dona Zita reclamou. Talvez a filha estivesse com vermes. Não, apenas preocupada com o dever de casa. Precisava ler muito o Ciclo Carolíngio e decorar uma poesia de um tal Sá de Miranda. Se não fosse toda noite ao circo... Ainda bem que já iam todos embora: palhaços, animais, trapezistas.
***
Sob os olhares de Catarina, acertaram Igor e Fátima a fuga dela. Escondida num dos caminhões. Tornar-se-ia trapezista. Ao meio-dia ela deveria estar no acampamento. O circo desmontado e pronto para a viagem.
***
Mal tiraram os pratos da mesa, saiu Fátima à rua. Ao longe avistou a caravana do circo. O pescoço da girafa atingia as nuvens. O palhaço fazia graças na carroceria de um dos carros. Fátima correu ao encalço dos veículos. Quis gritar o nome do acrobata. Meninos aplaudiam tudo. A poeira tornava o sol mais amarelo. Os caminhões embalavam. Fátima corria junto aos meninos. Catarina ria numa das cabines. As últimas casas da rua pareciam mais pobres. Surgia a estrada de barro. Fátima só conseguia ver o pescoço da girafa. Tudo era poeira, longe.

Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.20-22.

Enéas Athanázio (O Guardamento do Último Viganó)

(id: MCCXVIII)

A notícia estourou na bodega do Zé Maria e não se sabe como se espalhou com o vento: morreu o temporão do velho Viganó. Num instante estava cruzando as cercas, levada pela língua das comadres. Circulava pelos botecos e rodas de jogo, invadia as casas de família e corria livre pelas ruas poeirentas. Num repente, até os guapecas pressentiam que o moço estava morto e esturricado, lavado e estirado num caixão de imbuia preta. E morto de morte matada, quem diria, ele que foi o cuéra da Coxilha Chata, o touro do rodeio, índio que não enjeitava parada. Furado de bala, quem diria, logo no povoado dos Fritz, vila de gente pacata. Quem diria.

Não tardou e o povo, em grupo de três e quatro, pegou a se movimentar devagar para o guardamento. Bem devagar, saboreando no caminho a falação, o diz-que-diz-que, a tramelagem de um e outro. Sem pressa de chegar na casa achatada e larga da Rua da Saída, onde o quebra descansava na sala, num caixão cercado de coroas e castiçais altos, com o rosto macilento representando na morte a calmaria que nunca teve em vida.

Em pouco tempo a grande sala foi se enchendo, cada visitante procurando os parentes do falecido para os pêsames, num toque de pontas de dedos com murmúrio de palavras inaudíveis. Depois ficavam uns instantes observando as feições do falecido, recordando talvez alguma de suas tropelias, persignando-se num gesto ligeiro e automático. Sentavam-se por ali, tentando se pôr a cômodo para a comprida noite que mal principiava.

Muito abombados, trajando luto fechado, alinhavado às pressas, os pais do vítimo sentavam-se num canto. Dona Arvíria, gordona e baixota, chorava alto, as lágrimas rolando pelas bochechas que ela enxugava num lenção carijó. Suas lamúrias e clamações, recortadas de soluços doídos, fugiam pela janela sem vidraça para a noite. Ao lado, seu Maneco, com olhos enxutos e estanhados, curtia em silêncio a perda do único filho homem, nascido temporão depois de uma récua de meninas – o derradeiro Viganó. Seu olhar esgazeado, fixe num ponto do teto, refletia perplexidade diante da desgraça daquele próximo meio aloprado e injiquento, sempre metido em escaramuças desnecessárias, mas temido pela valentia.

Homem velho e vivido, avaliava as conseqüências de chefiar dali por diante uma familiagem só de mulheres. Qualquer pelepré ressentido, sem tê nem porquê, iria agora se provalecer, pois em família de pouco macho ninguém põe respeito. No entanto, o coitado morreu sem saber como, baleado na nuca por um caipora que, pela frente, haverá de aprontar carreira com uma simples careta do falecido. De vingança, porém, não excogitava, deixando o causo nas mãos da Justiça, embora disposto a se empenhar na condenação do traiçoeiro. A lembrança do filho morto, como lhe entregaram, encolhido e embarrado que nem porco mal carneado, numa tarimba de pau, não lhe saía da cabeça e machucava fundo o seu coração de velho orgulhoso e cheio de si. Mas vingança, isso não.

Com a sala se enchendo, foi o povo se espraiando pela área, a cozinha, os quartos e os corredores. O silêncio respeitoso do começo era violado pelo arrastar de botas nas tábuas do chão, tosses e espirros, e até algumas risadas disfarçada. Um murmúrio indistinto se espalhava, aumentando aos poucos de volume. Lá fora, atados na cerca, os cavalos encilhados se alinhavam e, mais adiante, os carros, caminhões e caminhonetes atopetavam a rua de costume vazia. Eram as conduções da parentalha e dos amigos chegados de longe.

Pelas tantas, começou a correr o chimarrão. Uma cuia trabalhada, com bomba de bocal dourado, e a chaleira requeimada do fogo-de-chão. Circulava de mão em mão, enquanto um piazote esperto vigiava para não faltar água bem quente, substituindo a chaleira sempre que esvaziava. Pouco depois aparecia a cachaça, legítima cana do Uruguai, numa bandeja cheia de copos, oferecida por uma moça muito séria. A pinga branca e forte animou os espíritos e a bulha aumentou. Em alguns cantos proseavam e riam como se o morto não existisse.

Aos poucos o povo minguava. Uns saíam de mansinho, outros faziam questão da despedida. Dona Arvíria, muito entregue, foi recolhida ao quarto, depois de uns chás para dormir. Na sala iluminada, passava a última noite do falecido na face da terra, e ele quase solito, esquecido antes do tempo. Só alguns gatos pingados lhe faziam companhia.

Na cozinha, porém, o mulherio se movimentava. Galinhas crioulas e lingüiça fresca frigiam na graxa e o cheiro forte inundava a casa. Depois de tudo pronto, os persistentes iam sendo convidados, de quatro em quatro, para jantar na grande mesa de pinho arrumada no canto da varanda. Voltavam palitando e chupando os dentes, reforçados para a travessia noturna.

A noite implacável seguia seu rumo, aproximando a hora trágica da despedida definitiva. Os primeiros clarões do dia se esboçavam no horizonte e os rostos tresnoitados revelavam cansaço, com as barbas se mostrando nos queixos. Os galos cantavam e algum quero-quero já gritava nas canhadas e nos banhados.

No seu canto, quase no mesmo lugar, Maneco Viganó nem parecia ter se mexido. Esmagado pela desgraceira, mudo e teso, tinha os olhos vermelhos estanhados e presos num ponto do teto. Mas estavam secos, porque homem-macho não chora.
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Sobre o autor:
ENÉAS ATHANÁZIO, contista, crítico, biógrafo com extensa bibliografia, é um dos escritores mais publicados e conhecidos de Santa Catarina. Reside em Balneário Camboriú. No gênero conto tem editados O Peão Negro (1973), O Azul da Montanha (1976), Meu Chão (1980), Tapete Verde (1983), Erva-mãe (1986), Tempo Frio (1988), O Aparecido de Ituy (1991), Rosilho Velho (1994), A Gripe de Barreira (1999), O Cavalo Inveja e a Mula Manca (2001) e muitos outros, além de novelas, ensaios, artigos, biografias. Um dos fundadores de Literatura – Revista do Escritor Brasileiro, na qual tem colaborado assiduamente.
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Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/

Enéas Athanázio (Meu Compadre)

(id: MCCXVII)

Encontrei um dia destes o meu afilhado. Magrinho e moreno, é o retrato do pai naquela idade. Conversamos um pouco e ele me disse que tinha achado nos papéis do pai falecido uma carta minha, de mais de vinte anos, onde eu pedia emprestados alguns livros para pesquisa e que só ele possuía por ali. Assustei-me com o tempo passado. Para mim aquilo era coisa de ontem!

– Nas suas mãos – foi dizendo o afilhado – esses livros serão mais úteis que nas minhas. Vou lhe oferecer a coleção como lembrança do papai. Tenho certeza de que ele vai gostar.

No outro dia os volumes chegaram à minha casa e agora estão diante de mim com suas encadernações luxuosas e antigas. Fiquei comovido ao folhear aquele autor que o meu compadre tanto admirava e conhecia. Comecei a lembrar, sem qualquer ordem, momentos que vivemos juntos e como essas lembranças ameaçassem entristecer-me, lutei para conservar a alegria, não apenas porque o bom humor era um dos seus traços permanentes, mesmo nas piores ocasiões, como porque aprendi com um amigo muito vivido que as pessoas queridas devem ser lembradas pelo prazer de tê-las conhecido e com elas convivido.

Meu compadre! Quantas vezes recordo seus gestos largos, sua gargalhada franca, seu vozeirão animado e cheio de convicção. Em nossos encontros ríamos à toa, como dois bobos alegres, e atropelávamos conversas sobre tudo. Era um desabafo para ambos. Por azar da sorte moramos quase sempre em cidades diferentes.

Esses encontros começaram muito cedo, creio que andávamos pelos 16 ou 17. Eu tinha que ir com freqüência à cidade onde ele morava. A viagem era feita de trem – o misto – e durava umas duas horas. Nem bem eu desembarcava e já corria para a sua casa, numa rua próxima, de onde saíamos para a cidade, envergando os chapéus e casacões exigidos pelo frio constante. Não me lembro de quando eu cuidava dos negócios da família, coisas de bancos, repartições e documentos. Mas não esqueço que palmilhávamos as ruas, íamos ao cinema, e o dia terminava, até a hora do trem de volta, num boteco onde se jogava bilhar e bebia alguma coisa – que não fosse alcoólica. A conversa mesmo era sobre livros e autores – já naquele tempo! Lembro muito bem que o dinheiro era curto, como sempre, ou quase. Ele me levava à estação e comigo ficava até a partida do misto. Sempre atrasado, ou quase. Eu o vejo em pé, na plataforma da gare, abanando num gesto de despedida. Magrinho, alto e moreno, usava um bigodinho fino, conforme a moda da época. O chapéu e o casacão cinzentos lhe davam o ar de detetive de cinema.

Passam-se os anos, rápidos, implacáveis.

Depois... bem, depois veio o período da boêmia. Mais maduros, ainda solteiros, nosso enlevo eram a boate e o cabaré, especialmente o cabaré, com as mesinhas de toalhas vermelhas e o conjunto musical instalado no canto do salão. A luz baça, as músicas descornadas, a cerveja cara e quente. Ali ele parecia em casa, num à-vontade de causar inveja. Conhecia donas e gerentes, “bailarinas”, maestros, músicos e freqüentadores. Também estava informado sobre o forte do repertório e tinha admirável olho para um novo “avião” que chegasse. Em troca era alvo das atenções: o Turco pra cá, o Turco pra lá, tapinha nas costas, abraços, cumprimentos, segredinhos de pé de ouvido.

Mas, apesar da familiaridade, fugia aos enrabichamentos, não queria compromisso. Queria mesmo a liberdade para perambular pela noite, de cabaré em cabaré, de boteco em boteco, conversando, discutindo, declamando, dançando.

Tinha paixão pelo tango e muito me fez andar para conhecer castelhanos que tocassem bandonéon ou milongas numa cordeona. Mesmo que fossem músicos medíocres ou decadentes, emigrados para nosso interior em busca da sobrevivência. Também Noel Rosa o apaixonava. Sabia tudo sobre ele e a qualquer pretexto se punha a fazer comícios sobre o “Poeta da Vila”. Entre meus guardados tenho a raridade que me ofertou: o disco em que Noel canta suas próprias músicas.

Ainda que contido pelas circunstâncias, meu compadre foi boêmio até o fim. Era um boêmio bissexto, como tantos poetas, mas quando tirava para a farra não conhecia hora ou limite. A boêmia enchia-lhe a vida, dava o toque de aventura e liberdade que equilibrava a rotina do funcionário exemplar. Para isso contou com a compreensão e a tolerância da mulher, com quem casou jovem e que faleceu cedo, deixando os filhos pequenos – inclusive o afilhado.

Foi um homem alegre e apesar dos tropeços da vida difícil nunca o vi taciturno. Não perdia ocasião para a piada ou o trocadilho, tinha uma presença de espírito admirável.

Numa das muitas visitas, foi levar-me à estação. Enquanto o trem não saía, um rádio encheu os ares com uma rancheira de limpar banco.

– Então vai mesmo, compadre velho – como me tratava –, vai embora mesmo?

– Claro, claro! Não vê que o trem já vai sair?

– Ora, ora, compadre velho! – disse ele. – Vamos dançar mais esta...

A caboclada caiu na gargalhada.

E o Aberlado, nosso companheiro de andanças, que desapareceu no mundo e declamava páginas do Buriti Perdido de fôlego, queixava-se duma mulher. Ela era bonita, um “avião”, mas não se acertava com ela.

– Pois é – comentou o compadre muito sério, balançando a cabeça com jeito de muita pena – pra mau comedor até os colhões atrapalham !

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/

Enéas Athanázio (Não Teve Jeito)

(id: MCCXVI)

Mal Janary Messias saiu do comitê e a moça rumou na sua direção. Alta e espigada, tinha olhos verdes e cabelos aloirados que desciam sedosos até os ombros. Vestia se bem e se movia com elegância em cima dos saltos altos, exibindo vaidosa as curvas do corpo. Quando o perfume que exalava lhe chegou às narinas, o advogado sentiu que estava diante de uma mulher de virar a cabeça de qualquer vivente. Brilhavam os olhos do solteirão no momento em que ela chamou com voz rouca:

– Dr. Janary! Dr. Janary!

Sorridente, estendia a mão morena, prendendo com firmeza a dele e procurando afastá lo das pessoas que o envolviam. Com alguma dificuldade o rapaz se livrou e seguiu a até a sombra da aroeira folhuda do outro lado da rua.

– Sou a Letícia Bridon, professora no Caxambu – foi ela dizendo. – O senhor não me conhece, mas preciso de um favor seu.

Surpreso com aquilo, ele imaginava o que poderia fazer pela moça cheirosa. Esperou que não fosse algum desses pedidos impossíveis, feitos às vésperas das eleições. Não gostaria de desapontar uma pessoa assim. Ansiosa, a moça o fitava com os olhos incríveis, como se lesse nas faces sua inquietação.

– Não é nada de mais – explicou, manifestando com um gesto o receio de que fossem outra vez cercados pelos eleitores que se aproximavam. – Nada que o senhor não possa fazer!

– Muito bem, Letícia, vamos ver do que se trata.

– É que eu queria ser apresentada ao candidato – disse a moça meio nervosa, rindo sem jeito e olhando em redor para verificar se ninguém ouvia. – Sou apaixonada por ele, não posso perder a ocasião! – E repetiu, escandindo as sílabas: – A pai xo na da...

E agora? – cogitou o advogado. O candidato tinha fama de marica, não gostava de mulher, vivia rodeado de homens. É verdade que não aparentava, trajava se com discrição e tinha uma fala grossa de fazer inveja.

Por mais que se esforçasse, Janary não encontrava na memória um episódio em que o candidato se envolvesse com mulher, não lhe constava que tivesse namorada ou mesmo caso passageiro. Por via das dúvidas, na convenção realizada na Capital, votara contra, mas fora vencido e agora, como chefe do Partido em São Simão, não podia deixar de apoiá lo. Os caboclos da terra, campeiros desconfiados, trabalhavam contrariados e observavam atentos os gestos do candidato. Janary torcia para que não escapasse algum trejeito suspeito. Seria o fim.

Mas isso não podia ser dito àquela moça e a solução era entrar no jogo e apresentá la ao homem, mesmo que tivesse que desenvolver uma operação de cerco.

– Está bem – concordou ele. – Não vai ser fácil, com tanta gente, mas vamos chegar no homem até você falar com ele. Quando isso acontecer, não desgrude. Você tem que ajudar.

Trocaram um olhar cúmplice e o advogado se envolveu com os outros, nos preparativos da recepção e do comício. Não demorou e alguns foguetes estouraram para os lados do campo, anunciando a chegada da comitiva. Uma caravana barulhenta de carros e caminhões entrou levantando poeira pela rua principal. Gritos, buzinas, foguetes e até alguns tiros formavam uma zoeira infernal, espantando as vacas nos potreiros e os guapecas vadios que chispavam arrepiados e ganiçando para baixo dos soalhos. Nas casas, irritadas, as mulheres acalmavam crianças alvorotadas com a bulha incomum.

Em pouco a caravana atingiu a praça e estacou. Muito teso e aprumado, o candidato desceu e foi recebido por Janary e outros partidários. Fecho-se um círculo em torno do grupo e as pessoas procuravam cumprimentar o candidato, estimulá-lo, trocar palavras. Ali perto, muito atenta, a professora tentava furar a roda e se aproximar, enquanto o visitante apertava mãos suadas e nem sempre limpas. Não parecia perceber e tinha uma palavra simpática para todos, segurando um tempão cada mão calosa que lhe estendiam. Notando, afinal, uma brecha no povaréu, Janary fez sinal à moça e ela se aproximou com grande agilidade, no maior sorriso, esbanjando beleza. Sua figura esguia e suave destoava no meio áspero daquela gente mal ajambrada e quando chegou perto provocou um ligeiro silêncio ou, pelo menos, reduziu o volume da zoada.

– Professor! – apressou-se Janary. – Quero apresentar lhe a nossa companheira Letícia. Quer conhecer o senhor.

A moça se colocou na frente do homem, mostrando se inteira, exibindo se como num desfile. O rosto se iluminava, olhos, dentes e cabelos rebrilhavam ao sol ardente quando ela estendeu o braço para o cumprimento. Embora seus lábios esboçassem um ligeiro sorriso profissional, o candidato não conseguiu esconder a contrariedade que lhe passou pela face e um leve enrugamento da testa. Ao cumprimento caloroso da mulher, respondeu com um toque rápido, enrolou palavras murmuradas e se integrou outra vez no magote de caboclos.

Desconcertada, a mestra do Caxambu reprimiu o sorriso e olhou com desalento para o advogado. Sem revelar surpresa no olhar divertido, Janary encolheu os ombros e fez um gesto que significava: “Não desista!” Ela entendeu de pronto, grudou-se nas pegadas do candidato e se dispôs a segui-lo sem descanso. Não lhe daria sossego!

Dali em diante não o largou mais. Por bem ou por mal, teria que notar sua presença, mesmo que se transformasse na lembrança mais desagradável daquela visita ao São Simão. E assim foi. Acotovelando e empurrando, pisando e sendo pisada, mantinha se firme ao seu lado, disputando o espaço com eleitores, cabos, chefes e chefetes, às vezes sujeitos mal encarados de assustar criança. Virando se para a direita, o candidato deparava com ela, solícita, sorridente; voltando se para a esquerda ou para trás, lá estava ela, ágil, passando o copo de água, apresentando quem chegava, lembrando algum nome esquecido, esclarecendo detalhes. E assim foi na andança pelas ruas poeirantes, nas visitas às figuras gradas e à igreja, na inspeção às obras públicas, em todos os lugares, enfim. Até no comício achou jeito de ficar a seu lado no palanque armado na praça.

Emburrado, não podendo mais esconder a irritação, o candidato tudo fazia para evitar a moça e fugir do assédio. Janary acompanhava tudo com ar divertido, as pessoas mais próximas notaram o que acontecia e aos poucos todas acompanhavam com interesse aquele jogo estranho e engraçado. As risotas, as caçoadas e as insinuações se espalhavam e muitos dos presentes afirmariam mais tarde que o visitante tratou de abreviar o programa e ver São Simão pelas costas, incluindo a apaixonada insistente. No momento em que cruzou as divisas do município, era visível o alívio que sentia e um suspiro nascido nas profundas escapou sem disfarce.

Enquanto isso, na bodega do Nhô Gué, a caboclada se divertia a la grande com o acontecido. Aquela cidade, com justa fama de valente, já tinha feito correr juiz, delegado, inspetor e autoridades menores. Até sujeitos temerosos e cueras foram postos para fora, jamais se atrevendo a voltar. Mas essa era a primeira vez que um candidato saía de São Simão corrido de mulher bonita.

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/

Batista de Lima (A Casa - Pregador de Botões - Verbo - Olhos)

(id: MCCXV)

A CASA

A casa
não cabe
na casa

Sua saga
vastafunda
fala

em salas
corredores
muito além

A casa
não se importa
se sala ou cozinha
ela fala
nos arredores
vasta se funda
Nos alicerces

construção construção
******************************

O PREGADOR DE BOTÕES

Ensina teu irmão
a pregar botões
não lhe dê linha
nem agulha
a verdadeira arte de pregar botões
não necessita de botões

Ensina teu irmão a fazer casas
tão belas e abertas casas
que os botões brotem de satisfação
como botões regados
por mãos que só fabricam
portas abertas
e janelas escancaradas
******************************

VERBO
no principio era o verso
e o verso se fez verbo
e o verbo se fez húmus
daí surgiram borboletas
e o branco livre
dos voares azuis

mas o verbo também
se fez homem
e o homem se fez mãos
para tudo desfazer
******************************

OLHOS

Lânguidos
ou mágicos
oceanos dos meus mergolhos
onde te vejo me vendo
e me rendo
às lacriamorosas gotas
dos teus sentires

Grandes
ou ocelos
só o plural
instaura-me
nos vastos e sempiternos
marolhos
que da tua face emergem

Olhos que me afogam
para que o luar?
para que a paisagem?
se tudo se me mostra
nas multicores do teu olhastro?
******************************

Nilto Maciel (Literatura Fantástica no Brasil - parte I)

(id: MCCXIV)

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Para Tzvetan Todorov, "a expressão ‘literatura fantástica’ refere-se a uma variedade da literatura ou, como se diz comumente, a um gênero literário”.

Segundo ele, “o fantástico teve (grifo nosso) uma vida relativamente breve. Ele apareceu de uma maneira sistemática por volta do fim do século XVIII, com Cazotte; um século mais tarde, encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero.” E pergunta: “...por que a literatura fantástica não existe mais?”

Todorov estudou, basicamente, a literatura européia, com ênfase na francesa. Poe apenas estaria “muito próximo dos autores do fantástico”. Suas novelas se prenderiam quase todas ao estranho (sobrenatural explicado) e algumas, ao maravilhoso (sobrenatural aceito). As Mil e uma Noites se situariam numa das sub-divisões do maravilhoso – o hiperbólico. Bierce e Carr são pouco citados.

Teríamos, então, o gênero fantástico e alguns sub-gêneros dele: o fantástico-estranho, o fantástico-maravilhoso, o estranho puro e o maravilhoso puro. Todorov não os denomina sub-gêneros, embora afirme: “O estranho não é um gênero bem delimitado, ao contrário do fantástico.” E dá como exemplos dele os romances de Dostoievski. O maravilhoso seria, ainda, subdividido em hiperbólico, exótico, instrumental e científico (a science fiction).

Além disso, o fantástico teria dois importantes gêneros vizinhos: a poesia e a alegoria.

Os autores estudados por Todorov são “criativos”, para usarmos uma expressão de Freud. Ou escritores singulares. Não se enquadravam nos limites do Romantismo nem do Realismo, salvo uns poucos: Balzac, Mérimée, Hugo, Flaubert e Maupassant. Há, ainda, aqueles que os manuais de literatura incluem quase que arbitrariamente nesta ou naquela escola. Gautier é tido como romântico e parnasiano. No entanto, foi um rebelde, ao lançar o movimento estético da “arte pela arte”. Mérimée é tido como simplesmente realista. Nerval é posto ao lado dos grandes românticos, embora tenha sido um precursor do simbolismo e do surrealismo. Nodier, também chamado de romântico, é precursor do próprio Nerval e do surrealismo.

Alguns nem sequer são lembrados, como Jacques Cazotte, o autor de Le Diable Amoureux. E veja-se que ele é muito anterior a Balzac. Quando morreu (1792), o fundador do Realismo nem havia nascido.

De análise em análise, Todorov chegou a outra conclusão: a de que a literatura fantástica nada mais é do que a má consciência do século XIX positivista. E como interpretar ou explicar Kafka? Assim: “as narrativas de Kafka dependem ao mesmo tempo do maravilhoso e do estranho, são a coincidência de dois gêneros aparentemente incompatíveis.”

Com o aparecimento de Tirano Banderas, de Valle-Inclan, seguindo-se O Senhor Presidente, de Astúrias, e depois as obras de García Márquez, Juan Rulfo, Scorza, Cortázar, Fuentes e outros, os críticos necessitavam cunhar essa nova tendência da literatura. Para uns o nome deveria ser “realismo fantástico”; para outros, “realismo mágico”.

E no Brasil?

Durante o século XIX poucos foram os escritores brasileiros que enveredaram pelo fantástico. Álvares de Azevedo, em Noite na Taverna, e Machado de Assis, em alguns contos, são os mais conhecidos. Apesar disso, historiadores como Sílvio Romero e José Veríssimo não se detiveram na análise dessas páginas enquanto literatura fantástica. O primeiro, na monumental História da Literatura Brasileira, embora se refira, aqui e ali, a Poe, Gautier, Perrault e outros cultores do gênero, mesmo nesses momentos fala apenas de “imaginação ardente” e “fantasia”. Edgar Allan Poe é um “desequilibrado”.

Como ainda hoje em muitos estudiosos da Literatura, o vocábulo “fantástico” não passa de derivado ou sinônimo de “fantasia” e “imaginação”, que, por sua vez, estão associados aos adjetivos “misterioso”, “sobrenatural” e “grotesco”.

Massaud Moisés se detém neste último vocábulo: “Confundido não raro com o fantástico, o burlesco, o gótico, o cômico de baixa extração, o grotesco ergue-se, no entanto, como categoria estética autônoma...” E relaciona o grotesco aos autores românticos, citando Schlegel, Hoffmann, J.Paul, Poe, Cousin e Victor Hugo.

Em Conto Brasileiro Contemporâneo, Antonio Hohlfeldt dedica um capítulo ao que chama de “conto alegórico”, cujos principais expoentes no Brasil seriam Murilo Rubião, Péricles Prade, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice. E fundamenta por que prefere o termo “alegórico” ao “fantástico”. E assim inicia o capítulo: “A incidência de uma literatura não racionalista, não realista, ao menos em suas aparências, que vem ocorrendo no Ocidente contemporâneo com maior ênfase a partir de Franz Kafka, e no Brasil tem como referencial imediato a publicação de O Ex-Mágico, de Murilo Rubião (1947), tem permitido uma série de polêmicas e contradições sobre as designações a lhe dar. Literatura do absurdo, como se pretendia em referência ao escritor de O Castelo, literatura fantástica, como a chamou Louis Vax, suas possíveis analogias com mitologias primitivas, especialmente após o chamado boom da literatura hispano-americana dos anos 1960 ampliaram os estudos pioneiros de um Propp e outros formalistas russos e todos os que seguiram em suas águas, até a cunhagem do termo composto de “realismo-mágico”, que acabou ganhando status entre a crítica literária. No Brasil, um dos que mais entendeu o assunto certamente terá sido o crítico José Hildebrando Dacanal. No entanto qualquer que seja o posicionamento que se venha a adotar, jamais se alcança esclarecer a gama de variações que tais textos apresentam e, pelo contrário, termina-se por perder aquele momento que os unificaria.”

E prossegue: “Há uma diferença básica a opor-se entre aquela literatura européia praticada em torno do elemento fantástico e a que hoje em dia se realiza entre nós: enquanto naquela o elemento irreal ou não-real apenas serve como ratificação do real como único dado existente, na literatura latino-americana, aí incluída a brasileira, a oposição fica totalmente afastada, de tal sorte que ambos os elementos convivem sem maiores problemas.”

Em outro estudo do conto brasileiro atual, Temístocles Linhares reconhece serem poucos os cultores do conto fantástico no Brasil. E se detém na análise da distinção “que existe entre o ‘fantástico’ no conto e o conto propriamente ‘fantástico’”.Tal distinção se observa também na novela e no romance, isto é, na literatura fantástica como gênero. E há, ainda, que se distinguir os que se dedicaram ou se dedicam a este gênero, como Murilo Rubião, daqueles que apenas vez por outra escreveram ou escrevem contos ou novelas fantásticas.


PRIMÓRDIOS

O primeiro momento notável da literatura fantástica no Brasil se deu em 1855, com a publicação de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo.

Dividido em sete capítulos, o livro bem poderia ser um romance. E então já teríamos em Álvares de Azevedo um precursor das inovações na questão do ponto-de-vista. No entanto, a obra é tida como um conjunto de contos. Mas não importa aqui discutir isso. Carlos Alberto Iannone afirma: “O livro é constituído por uma série de histórias fantásticas e trágicas, impregnadas de vícios e crimes.”

Talvez o melhor adjetivo para as histórias do grande poeta romântico seja “trágicas”. Ora, uma história não é fantástica apenas por não ser reprodução fiel da realidade. Como ensina Todorov, “não é possível definir o fantástico como oposto à. reprodução fiel da realidade, ao naturalismo.”

À época de Sílvio Romero não se falava em literatura fantástica. Pelo menos no Brasil. Álvares de Azevedo “foi um melancólico, um imaginoso, um lírico, que enfraqueceu as energias da vontade e os impulsos fortes da vida no estudo, e enfermou o espírito com a leitura desordenada dos românticos à Heine, Byron, Shelley, Sand e Musset”, segundo aquele historiador. “Um talento lírico”, enfatizou. E concluiu: em Noite na Taverna “há algumas belezas entre muitas extravagâncias e afetações.”

José Veríssimo também dedica apenas duas ou três linhas à prosa de ficção de Álvares de Azevedo. E quase repete as palavras de Sílvio Romero, não tivesse preferido um adjetivo a um substantivo: “Daquele seu teor de vida romântica, a expressão literária é a Noite na Taverna, composição singular, extravagante (grifo nosso), mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo.”

Desde 1862 vinha Machado de Assis publicando contos em jornais e revistas. No entanto, Contos Fluminenses, seu primeiro livro no gênero, só sairia em 1870.

Como já dissemos, os primeiros historiadores e estudiosos da Literatura Brasileira não mencionaram a expressão “literatura fantástica”, embora na Europa já se publicassem contos e novelas fantásticas, até mesmo sob títulos que traziam o vocábulo “fantástico”.

José Veríssimo, que estudou nossa literatura exatamente até Machado, andou perto de descobrir o fantástico. Senão vejamos este trecho de sua História: “Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima realidade. Assim, por exemplo, nesse conto magnífico O alienista ou nessoutra jóia Conto alexandrino, como na admirável invenção de Braz Cubas, e todas as vezes que a sua rica imaginação se deu largas para fora da realidade vulgar, sob os artifícios e os mesmos desmandos da fantasia, sentimos a verdade essencial e profunda das coisas, poderíamos chamar-lhe um realista superior, se em literatura o realismo não tivesse sentido definido.

Sílvio Romero, que é anterior a Veríssimo, também não lograra ver com nitidez o fantástico na obra machadiana. Copiemos um trecho de sua análise: “Há uma nota nas Memórias de Braz Cubas e noutros dos mais recentes livros de Machado de Assis, que deve ser assinalada para completa apreciação de sua personalidade: a coloração de horrível que imprime em alguns de seus quadros.” E prossegue: “Falta neste ponto a Machado um não sabemos quê que é uma espécie de impavidez na loucura, qualidade possuída pelo grande Ed. Poe e de que é um medonho exemplo o seu Gato Preto, ou um certo tomo grandioso e épico que estruge nalgumas páginas da Casa dos Mortos de Dostoievski, capazes de emparelhar com algumas cenas de Dante.”

Mais para cá, entretanto, os críticos têm sido mais argutos no observar o fantástico entre nós. Temístocles Linhares, por exemplo: “Lembro-me do nosso Machado de Assis, que tantas vezes fez uso da temática do maravilhoso, ou seja, da imortalidade, da eternidade, da “segunda vida”, por meio de incursões milagrosas, de personagens ressuscitadas, de diálogos entre Deus a o Diabo, de Santos que descem do altar e vêm conversar entre si...”

Em obra mais próxima de hoje – Enciclopédia de Literatura Brasileira, dirigida por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa –, o verbete "conto" traz o seguinte: “A referência aos dois mestres do conto fantástico (Machado cita Mérimée e Poe na abertura de Várias Histórias) não é casual, fortuita reminiscência de leitura, mas revela, antes, uma evidente preferência por essa espécie de literatura, como é fácil verificar-se pela repetição de páginas como “A igreja do diabo”, “Entre santos”, “A chinela turca” e, acima de tudo, por ser uma verdadeira obra-prima, a admirável narrativa que e “Sem olhos”. Mais ilustrativo ainda é o fato de uma de suas mais antigas produções, ainda hesitante e sem maiores méritos literários, “O país das quimeras”, aparecido no Futuro, em 1862, trazer mesmo o subtítulo de conto fantástico.”

Oliveira Paiva não teve livro publicado em vida. Dona Guidinha do Poço veio a lume 60 anos depois de sua morte. A Afilhada saiu em folhetins e os contos também estamparam-se em jornais quase todos em 1887, reunindo-se em livro somente em 1976. Um delas – O Ar do Vento, Ave-Maria! – “é uma narrativa fantástica, ao mesmo tempo regionalista e folclórica, em que figura uma burra sem cabeça, ou burra de padre”, esclarece Sânzio de Azevedo na apresentação do livro.

F.S. Nascimento, em Três Momentos da Ficção Menor, dedica algumas páginas a Oliveira Paiva, esclarecendo que o conto já referido foi “contemplado com substancioso estudo de Rolando Morel Pinto, filiando-o ao conceito de realismo fantástico e detendo-se nos requintes formais utilizados para estabelecer a atmosfera de apreensão e pavor, que efetivamente se plenifica.”

Ainda no século XIX vamos encontrar outros cultores do fantástico. Pelo menos três deles devem ser aqui mencionados: Inglês de Sousa, Maurício Graco Cardoso e Emília Freitas.

O romancista Inglês de Sousa deixou também um volume de histórias curtas, que intitulou Contos Amazônicos (1893). Um desses contos foi republicado em 1970, na Antologia de Contos Brasileiros de Bichos. Trata-se de “O gado do Valha-me-Deus”. A ele se refere Temístocles Linhares, assim: “Aquele gado procurado interminavelmente e do qual só se percebia o rasto, a sua imensa batida, com as pegadas no chão e que assume proporções fantásticas junto à Serra do Valha-me-Deus, que ninguém tinha subido e impossibilitava qualquer procura, apesar de todo o rebanho ter deixado ali as suas pegadas num caminho estreito que volteava na montanha e parecia sem fim.

Maurício Graco Cardoso é menos conhecido e citado nos compêndios da história da Literatura Brasileira. Nascido em 1874, publicou o livro Contos Fantásticos em 1891.

Entre 1855 e 1908 viveu Emília Freitas, autora do primeiro romance fantástico da Literatura Brasileira. Publicado em 1899, A Rainha do Ignoto só foi redescoberto recentemente, pelo pesquisador e crítico Otacílio Colares, que escreveu o prefácio da 2ª edição, datada de 1980.

Emília nasceu em Aracati, Ceará. Adolescente, mudou-se para Fortaleza, onde estudou francês, inglês e geografia. Anos depois foi morar em Manaus, onda exerceu a profissão de professora. Antes de publicar seus livros – dois romances e um volume de poesias –, colaborou em jornais.

Na opinião de Otacílio Colares, A Rainha do Ignoto apresenta-se “com os apelos ao imponderável, por facilidade de alguns acoimado de espírita, quando mais não foi, nas intenções de sua autora, que uma fuga propositada ao passado, ao que se convencionou denominar – romance gótico, embora partindo do regional mais autêntico.”

Otacílio Colares escreveu também o ensaio “A Rainha do Ignoto, romance cearense, pioneiro do fantástico no Brasil”, onde demonstra que o livro de Emília Freitas deve ser classificado como de legítima literatura fantástica e ainda que se trata do primeiro romance, no Brasil, programado “para entrar no campo da inverossimilhança, pois com igual característica, antes dele e na sua contemporaneidade, outro não houvera.”

No entanto, o nome de Emília Freitas não aparece em Sílvio Romero nem em José Veríssimo. Talvez não tenham ouvido falarem dela, embora ambos se refiram a livros editados já no século XX.

Com toda a certeza, Emília Freitas não deixou discípulos. Primeiro porque seu romance foi publicado no Ceará, não encontrou receptividade na crítica, mesmo local, e, assim, permaneceu no semi-ineditismo. Depois, vivia-se no final do século a febre do naturalismo.

Antes de encerrarmos este capítulo é necessário falarmos duas palavras dos simbolistas, embora atentos ao que nos lembra Alfredo Bosi: "Pela origem e natureza da sua estética, o Simbolismo tendia a expressar-se melhor na poesia do que nos gêneros em prosa, em geral mais analíticos e mais presos aos padrões do verossímil e do coerente.”

O mesmo Bosi nos traz quatro simbolistas, cujas obras em prosa poética apresentam alguns traços do fantástico: Nestor Vítor, Lima Campos, Gonzaga Duque e Rocha Pombo.

Do primeiro assim nos fala: “Signos (1897), de Nestor Vítor, em que o atilado crítico do movimento trabalha uma linguagem expressionista avant la lettre, cujo exemplo mais sério é a novela “Sapo”, história de um rapaz que se alheia radicalmente da sociedade até ver-se um dia transformado em um animal repelente “de malhas amarelas e verde-escuras a cobrirem-lhe o corpo”. Quem não lembrará, ao menos pela alegoria final, a Metamorfose, que Kafka escreveria vinte anos depois?”

Do segundo lembra Confessor Supremo, de 1904, que define como “contos fantásticos ou oníricos”.

De Gonzaga Duque cita Horto de Mágoas, de 1914 – “livro de contos nefelibatas”.

Rocha Pombo é lembrado pelo romance No Hospício, de 1906. E diz: “Os críticos que lhe têm dedicado mais atenção falam de Poe e de Hoffmann como influências prováveis no espírito e na fatura da obra. É observação que se deve tomar cum grano salis, pois desses românticos intensamente criadores o nosso Rocha Pombo herdou apenas o gosto do quadro narrativo excepcional (um hospício onde um jovem sensível foi criminosamente internado pelo pai), mas não foi capaz de imitar-lhes a arte de sugerir atmosferas pesadelares, pois carecia de recursos formais pana tanto.”

continua...

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/

João Carlos Taveira (1947)

(id: MCCXIII)

João Carlos Taveira nasceu em Caratinga-MG, aos 17 de setembro de 1947. Em 1969 mudou-se para Brasília, onde trabalhou na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) e na Viação Aérea São Paulo (VASP). De 1987 a 1989 foi diretor da Divisão de Desporto, Lazer e Turismo, na Administração do Núcleo Bandeirante, no Governo José Aparecido de Oliveira. De 1999 a 2002 trabalhou com o Engenheiro e Físico Paulo Gontijo, na organização de algumas obras literárias e na construção do Templo da Ciência. Com formação em Letras Neolatinas, trabalha como revisor e coordenador editorial.

Publicou seis livros de poesia: O Prisioneiro (1984), Na Concha das Palavras Azuis (1987), Canto Só (1989), Aceitação do Branco (1991), A Flauta em Construção (1993); e Arquitetura do Homem (2005). Tem pronta para publicação toda a sua poesia, reunida de 1984 a 2004.

Já apareceu em importantes antologias no Brasil e no Exterior, entre as quais: Antologia da Nova Poesia Brasileira, 1992, de Olga Savary, Chão Interior, 1992, de Eliseu Mol, Alma Gentil, 1994, de Nilto Maciel, Cronistas de Brasília, 1995, de Aglaia Souza, Caliandra — Poesia em Brasília, 1995, de Mário Viggiano, A Poesia Mineira no Século XX, 1998, de Assis Brasil, Poesia de Brasília, 1998, de Joanyr de Oliveira, A Literatura Brasiliense, 1999, de Wilson Pereira, Antología de la Poesía Brasileña, 2001, de Xosé Lois García (Santiago de Compostela, Espanha), Poetas Mineiros em Brasília, 2002, de Ronaldo Cagiano, Pensamentos da Literatura Brasileira, 2002, de Napoleão Valadares, Trilhos na Cabeça, 2003, de Albert von Brunn (Messina, Itália), Poemas para Brasília, 2004, de Joanyr de Oliveira, Geografia Poética do Distrito Federal, 2007, de Ronaldo Alves Mousinho. Figura no Dicionário de Poetas Contemporâneos, de Francisco Igreja, no Dicionário de Escritores de Brasília, de Napoleão Valadares, na Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, na História da Literatura Brasiliense, de Luiz Carlos Guimarães da Costa. Pertence à Academia de Letras do Brasil, à Associação Nacional de Escritores e ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, de que foi vice-presidente. Foi eleito para a Cadeira XXVI, patrono Cruz e Sousa, da Academia Brasiliense de Letras. Em 1994 recebeu a Medalha do Mérito Cultural de Brasília. É membro do Conselho de Cultura do FAC (Fundo da Arte e da Cultura) na Secretaria de Estado de Cultura do Governo do Distrito Federal.

Fonte:
http://www.thesaurus.com.br/

João Carlos Taveira:(Seleção de Poemas)

(id: MCCXII)

SONATA nº. 44, em mim menor

Tenho nas mãos um vazio,
no peito, mudo, um gemido,
que são as marcas de estio,
de tempo em mim construído.
Traço por traço me lavra,
nervura que já não vibra,
mas teço, fibra por fibra,
dentro da carne, a palavra.

Trago nas mãos, transversal,
ríspida flauta de vento,
em cujas notas, de sal,
construo o meu instrumento.


IMPROVISO PARA FLAUTA E PIANO
Para Ariadne Paixão

Que lábios me sustêm,
em lúcida harmonia
de arpejos e arrepios,
se a voz, em mim, é muda?

Em suave tessitura,
desvelo meus anseios,
sou frágil instrumento,
no vento, sem memória.

Que música desfaz,
no seio do mistério,
o nó da melodia,
o grito na garganta?

Me basto nos martelos,
nos fios invisíveis,
que tecem nas entranhas
meu corpo em oferenda.

BASTIDOR

Fico-me aqui: sozinho, só,
so(l)zinho de tão pouca luz,
que a sombra do meu dia é pus
dentro da vida — eterna mó.

Moída a carne, os ossos nus,
os olhos viram cinza e pó;
só sobra, a cisma sobre o dó
que faz em mim ponto de cruz.

Fico-me só: mas não perdido,
tecendo sonho em vão tecido,
pois que não sou o ser que lavra.

Além de mim, um outro tece
a mesma voz e a mesma prece,
das quais me faço na palavra.

A DUPLA FACE

Dentro do verso,
meu universo:
tudo é possível
e tudo é nada.

Dentro de mim,
dor e cetim:
minha loucura,
meu alicerce.

Sou e não sou,
ao mesmo tempo,
voz e luxúria.

Não basta ao vento
a sua fúria?
Basto-me louco.


IMPROVISO PARA VIOLONCELO

Grave e suave
o ritmo vai
serpenteando
pelo papel
nas rotas notas
de uma canção.

Cresce dos dedos
o acorde torto
e em sonolência
imita o vôo
já sincopado
dentro do pássaro.

Pausa e silêncio
na partitura:
é a voz de um anjo
talvez arcanjo
a brotar trôpega
junto da música.

DESCONCERTO

Ouço tua voz
ao telefone,
na noite insone,
na noite celular.

Áspera música
(cujas notas sangram)
flui de mim, sem mim,
enquanto falas.

Ainda guardas, vivo,
teu dissabor
na dor, na cor,
na pétala da fala.

Entretanto, canto
como aprendiz
o que não fiz
para os teus ouvidos.


ÍNTIMA CANTIGA

Num verso terso
desteço a infância:
do útero ao berço
— em ressonância
de sonho e fome —
refaço o laço
na voz do pássaro
que em mim ressoa
além do nome.

Num verso terso
canto e descanto
secretas fibras
de uma cantiga.

Guardo comigo
frementes sons
de asas, palavras:
ínvias palavras.


BERCEUSE

Para Morgana

Dorme, menina
dos olhos de água,
claros como a lua,
lisos como o mar
sem tormento.

Dorme, minha filha,
o sono do esquecimento,
nas vagas do sangue
sem códigos,
sem nome.

Filha minha,
carne da minha carne,
dorme e esquece
os vestígios do dia,
os sonhos interrompidos
e a sede do teu sorriso
que a noite
plantou em mim.


TESTAMENTO
Para Anderson Braga Horta

Deixa o teu silêncio
e o que restar da voz
impregnados
nos objetos, nas exigências,
nos versos inconclusos
de algum poema.

Deixa – e não te queixes –
amores unilaterais mas puros
para os teus pósteros
rivais
nesta congênere aventura.

Deixa teus livros,
quadros na parede,
os discos de Beethoven,
todos as óperas, inclusive “Aída”:
a tua predileta.

Deixa o teu amor
à música de Mozart,
aos filmes de Carlitos,
ao corpo de Sofia Loren...

Deixa os teus papéis
e até a folha branca
em que não se fixou
a face da palavra
necessária.


TERESA

Quando viste Teresa
pela primeira vez
foi como se a conhecesses
de longo, longo tempo.

Hoje, depois de tanto tempo,
toda vez que vês Teresa
é como se fosse
a primeira vez.


HAICAI

A lua caiu
no chão áspero da rua.
E eu catando estrelas.


NAVIO FANTASMA

Brusca, a barca trafega
nas trevas da existência.
Sem trégua, o timoneiro
avança. E, na dormência

de músculos e artérias,
atinge o magma, o centro
do abismo de existir,
fora de si e dentro.

As velas retorcidas,
a que ventos sucumbes,
nos vendavais da dor,
ao gozo e seus vislumbres?

Há tantos sóis e luas
na árdua travessia
Melhor não fora o porto
que a vida oferecia?

A vida não deságua
em lisos acalantos.
E não floresce a pedra
nas águas de seus prantos?

Ó velas desfraldadas,
de que sonhos se nutrem
a ânsia dos navios,
a fome dos abutres?
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