quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Casa do Poeta de Canoas/RS (Convocação)

Convocamos os associados e colaboradores da Casa do Poeta de Canoas para a reunião mensal, que realizar-se-á em:

3/10/2008 - sexta-feira, às 18h30min
na Fundação Cultural de Canoas
Av. Victor Barreto, 2301

Na pauta desta reunião estará o Regulamento da
IV COLETÂNEA DA CASA DO POETA
Poesia, conto e crônica

Contamos com a presença de todos.

Maria Rigo
Presidente da Casa do Poeta de Canoas

Mais informações pelos fones:
(51) 3476.4431 / 9669.4615
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Fonte:
E-mail enviado pela Casa dos Poetas de Canoas.
Maiores informações sobre a mesma, visite http://www.casadospoetas.com.br/

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Raul Pompéia (Como Nasceu, Viveu e Morreu a Minha Inspiração)

Página arrancada ao livro de lembranças de um futuro Esculápio.

Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplendida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chic. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramigas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toilette, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para, o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... Eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos buffetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja de... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no pára-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu.

Era por uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feitas vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... qualquer cousa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a macieza de uma face. Um ideal realizado. Uma cousa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

- Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha papel! venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma cousa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... foi a minha perdição...

Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas conseqüências me desesperavam.

- Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer cousa...

- Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis...

Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum desses bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá...

Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que lembrei-me do meu soneto...

- Soneto para onde tu foste?...

Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...

Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negregada lembrança de poetar.

Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.

A Comédia. São Paulo, n.0 28 e 29, 4 e 5 abr. 1881.

Fonte:
http://www.biblio.com.br

Jaderson Bellan (Joaninha fazedora de jarro)

A vizinhada do bairro Olaria conhecia a senhora grisalha por Dona Joaninha. Até aí, nada demais: sua graça era Joana mesmo. O que mais encasquetava era a semelhança dela com o insetinho coleóptero: muito dócil, terna. Caminhava curvadinha e ostentava uma ampla coleção de casacos de bolinha.

Um tanto monossilábica, é verdade. Não era lá muito afeita às palavras. Joaninha acreditava em suas mãos, apenas. Por isso era das mais respeitadas oleiras das redondezas: seus jarros e moringas encantavam legiões de turistas que vinham de longe, não apenas pelas formas suaves e abauladas de encher os olhos, mas também pelos desenhos de valor artístico inestimável. Quando os filhos questionavam-na porque era tão calada, ela respondia:

— Boca mente o tempo todo. Mão não. Quando acarinha, é que ama; se bate tá com raiva.

Jamais dizia "eu te amo". Só chegava com a mão gordinha de dedos grossos, que se embrenhava pela cabeleira desalinhada das cinco crianças, e começava um feitiço de cafuné. Tão feitiçoso que logo a meninada toda se punha a dormir.

Bem de manhãzinha, quando o céu era só clarão mas o sol ainda se encorujava pra baixo da terra, Joaninha, já de pé, passava o café. Mais preto que noite. Fortíssimo. Pra agüentar o mais um dia de trabalho no torno. Sobre a mesa de toalha desbotada de muitos quadradinhos, Joaninha colocava, além das cinco xícaras das crianças, uma outra, que lá ficava até o anoitecer.

— Pro pai?

Perguntava a terceira menina, que já amocinhava e se metia a entender das coisas, empinando os peitinhos mal nascidos.

Era pra Jeremias, marido ido. Já havia quase quatro anos. O homem, logo depois de emprenhar Joaninha pela quinta vez, fugira com Analice, a filha da vizinha. Um espanto de moça, de tanta boniteza. Tez alva, olhos muito negros, um pouco desviados. Discretamente estrábica. Nunca se sabia ao certo pra onde a mocinha estava olhando.

No dia da fuga, depois de girar o torno o dia inteiro, Joaninha chegara em casa exausta. Procurava Jeremias para lhe mostrar o dinheiro do dia, com a venda dos jarros. Chamava. Chamava. Nada do homem. Quando pegara o pote da economia de dez anos de trabalho, o susto! Susto brusco de boi preto que enfia a cara brava pra dentro da janela. O pote vazio que era só ar. Na manhã seguinte chegara a notícia: Jeremias havia comprado um jegue na cidade, colocara Licinha no lombo e saíra galopando pela estradica de terra que cruzava horizontes, sem destino.

Passados quatro anos, estava Joaninha fincada firme na cozinha. Café feitinho. Dia diferente dos outros: decidiu deixar as crianças dormindo mais um bocadinho, antes de despertá-las pra labuta. De repente, uma pontada violenta no peito. Como das outras vezes, pensou "hoje não". Mas dessa vez a dor vinha metida a besta. Teimosa. Fisgou de novo, ainda mais forte, no coraçãozinho cansado. E ela, insistente:

— Já disse! Hoje não!

Apressou-se. Tinha de entregar uma encomenda de quinze jarros para uns turistas alemães. Era dinheiro que chegava pro pão da prole por uns dias. Saiu de casa com a bacia e começou a descer o barranco que dava no ribeirão. Precisaria de muito barro. Novas fisgadas e Joaninha caiu de joelhos, prostrada no lamaçal. Enfiou os dedos gordinhos na lama. Ah! Era deliciosa a sensação do barro fresquinho e cheiroso penetrando atrás das unhas.

As vistas embaçavam. Na outra margem do ribeirão, avistou um homem esguio. Por um instante, uma certeza esfumaçada invadiu Joaninha. Jeremias! Tinha de ser Jeremias! Logo, a miragem já sorria o sorriso protetor de Jeremias. Ah, Jeremias! E sumiu, feito corisco! Outra pontada. E outra. Joaninha subia o barranco com a bacia cheinha de barro, resfolegando. Em vão resistia, repetindo com insistência de herói — "hoje não", "hoje não".

Já no terreiro dos tornos, sentou o corpo cansado no primeiro torno. Um punhado de barro começava a girar. Aos poucos a massa amorfa ganhava personalidade, mais e mais imponente. As mãozinhas hábeis forjavam o mais belo de todos os jarros. Uma última fisgada. Fulminante. O torno parando, parando. O vaso se entortando lento, molenga. O pescoço já não suportava o peso. A cara redondinha de lua despencando no barro. O barro invadindo a boca entreaberta. Ainda procurou força pra cuspir. Inútil.

Joaninha virou ligeiramente a cabeça. Diante dela, o mais novinho, garnisezinho, miudinho de dar dó, encarando-a com olhos secos, agrestes. Peladinho, ranhento, barrigão d'água. Deformado pelo calor que subia da terra, era mais fantasma que gente. Ficaram assim, mãe e filho, se espiando por instantes. E, assim, Joaninha fechou os olhos.
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Sobre o Autor
Jaderson Bellan é paulista, nascido em 1978. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo (USP)
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Fonte:
http://www.releituras.com

Pequena história do Samba: Do Batuque à Batucada

Da mesma forma que o jazz nos Estados Unidos e a salsa (derivada do mambo e da rumba) em muitos dos países caribenhos, o samba é indiscutivelmente o gênero musical que confere identidade ao Brasil. Nascido da influência de ritmos africanos para cá transplantados, sincretizados e adaptados, foi sofrendo inúmeras modificações por contingências das mais diversas - econômicas, sociais, culturais e musicais - até chegar no ritmo que conhecemos. E a história é mais ou menos a mesma para os similares caribenho e americano.

Simbolizando primeiramente a dança para anos mais tarde se transformar em composição musical, o samba - antes denominado "semba" - foi também chamado de umbigada, batuque, dança de roda, lundu, chula, maxixe, batucada e partido alto, entre outros, muitos deles convivendo simultaneamente!

Do ritual coletivo de herança africana, aparecido principalmente na Bahia, ao gênero musical urbano, surgido no Rio de Janeiro no início do século XX, muitos foram os caminhos percorridos pelo samba, que esteve em gestação durante pelo menos meio século.

Samba : palavra de bamba

É quase consenso entre especialistas que a origem provável da palavra samba esteja no desdobramento ou na evolução do vocábulo "semba", que significa umbigo em quimbundo (língua de Angola). A maioria desses autores registra primeiramente a dança, forma que teria antecedido a música.

De fato, o termo "samba" - também conhecido por umbigada ou batuque - designava um tipo de dança de roda praticada em Luanda (Angola) e em várias regiões do Brasil, principalmente na Bahia. Do centro de um círculo e ao som de palmas, coro e objetos de percussão, o dançarino solista, em requebros e volteios, dava uma umbigada num outro companheiro a fim de convidá-lo a dançar, sendo substituído então por esse participante. A própria palavra samba já era empregada no final do século XIX dando nome ao ritual dos negros escravos e ex-escravos.

Assim se pronuncia Henrique Alves:
"Nos primeiros tempos da escravidão, a dança profana dos negros escravos era o símile perfeito do primitivo batuque africano, descrito pelos viajantes e etnógrafos. De uma antiga descrição de Debret, vemos que no Rio de Janeiro os negros dançavam em círculo, fazendo pantomimas e batendo o ritmo no que encontravam: palmas das mãos, dois pequenos pedaços de ferro, fragmentos de louça, etc.. "Batuque" ou "Samba" tornaram-se dois termos generalizados para designarem a dança profana dos negros no Brasil."

Há no entanto vozes discordantes, que dão margem a outras versões etimológicas:

A autora de São Ismael do Estácio menciona a possibilidade de o vocábulo ter-se derivado da palavra "muçumba", uma espécie de chocalho.

Também Mário de Andrade assinala outras origens possíveis para o termo e para a dança. Segundo ele, bem poderia vir de "zamba", tipo de dança encontrada na Espanha do século XVI, além de mencionar o fato de que "zambo" (ou "zamba") significa o mestiço de índio e negro.

A tese defendida por Teodoro Sampaio de que a gênese pudessem advir de termos como "çama" ou "çamba" significando corda (ou a dança da corda) e de que este pudesse ser um ritmo gêmeo do brasileiro samba é totalmente refutada por Henrique Alves "dada a falta de consistência de influências indígenas no teor da música e da dança, cuja característica é eminentemente africana".

Ainda de acordo com Mário de Andrade, a palavra "samba" viveu um verdadeiro período de "ostracismo" no início do século, conhecendo variantes coreográficas cultivadas por "brancos rurais" (o coco), para depois ser ressuscitada com vigor pelos fãs do maxixe.

Geografia do samba: no tabuleiro da baiana samba também tem

Rio de Janeiro, então capital federal: a transferência da mão-de-obra escrava da Bahia (onde se cultivava a cana, o algodão e o fumo) para o Vale do Paraíba (onde se plantava o café), a abolição da escravatura e o posterior declínio do café acabaram liberando grande leva de trabalhadores braçais em direção à Corte; além disso, a volta dos soldados em campanha na Guerra de Canudos também elevou o número de trabalhadores na capital federal.

Muitos desses soldados trouxeram consigo as mulheres baianas, com as quais haviam se casado. Essa comunidade baiana - formada por negros e mestiços em sua maioria - fixou residência em bairros próximos à zona portuária (Saúde, Cidade Nova, Morro da Providência), onde havia justamente a demanda do trabalho braçal e por conseqüência, a possibilidade de emprego. Não demorou muito para que no quintal dessas casas as festas, as danças e as tradições musicais fossem retomadas, incentivadas sobretudo pelas mulheres.

De acordo com José Ramos Tinhorão, "mais importante do que os homens, foram essas mulheres" - quituteiras em sua maioria e versadas no ritual do candomblé - as grandes responsáveis pela manutenção dos festejos africanos cultivados naquela redondeza, onde predominavam lundus, chulas, improvisos e estribilhos.

Entre essas doceiras estavam tia Amélia (mãe de Donga), tia Prisciliana (mãe de João de Baiana), tia Veridiana (mãe de Chico da Baiana), tia Mônica (mãe de Pendengo e Carmen do Xibuca) e a mais famosa de todas, tia Ciata, pois justamente de sua casa, à rua Visconde de Itaúna 117 (Cidade Nova), é que "viria a ganhar forma o samba destinado a tornar-se, quase simultaneamente um gênero de música popular do morro e da cidade" .

Se por um lado o samba como dança e festa coletiva explodia nos quintais, tomava as ruas e se exibia nos desfiles de cordões, por outro, o samba como música e composição autoral dava os seus primeiros passos em casa de tia Ciata. O elemento comum eram os estribilhos, cantados e dançados tanto num lugar como no outro.

"Assim nasceu o samba carioca, após longa gestação, da África à Bahia, de onde veio para ser batucado nos terreiros da Saúde e finalmente, tomando nova forma rítmica a fim de adaptar-se ao compasso do desfile de um bloco carnavalesco."

De fato, nos quintais da casa de tia Ciata reuniam-se bons ritmistas, compositores e verdadeiros mestres da música popular, muitos deles profissionais como Sinhô, Pixinguinha, Donga, Caninha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Hilário Jovino Ferreira e outros. Não foi à toa que de lá saiu o primeiro samba da música popular brasileira.

Assim se pronuncia José Ramos Tinhorão:

"Ao contrário do que se imagina, o samba nasceu no asfalto; foi galgando os morros à medida em que as classes pobres do Rio de Janeiro foram empurradas do Centro em direção às favelas, vítimas do processo de reurbanização provocado pela invasão da classe média em seus antigos redutos."

Samba: o que foi, o que é...
"Pergunta: Qual é o verdadeiro samba?
Donga: Ué, samba é isso há muito tempo:

O chefe da polícia
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta para se jogar...

Ismael: Isso é maxixe!
Donga: Então o que é samba?
Ismael:
Se você jurar
Que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é
Para fingir, mulher
A orgia, assim não vou deixar

Donga: Isso é marcha!"

O samba não nasceu por acaso. A sua aparição se deve à acomodação de diversos gêneros musicais que se sucederam ou se "complementaram" ao longo do tempo. O exemplo da discussão acima ilustra claramente o tipo de confusão gerada pelos novos ritmos populares (a maioria binários) que emergiram nas primeiras décadas do século XX.

Para se conhecer um pouco de sua trajetória é necessário que se faça uma viagem por esses estilos que acabaram dando no que deu, ou seja, no próprio samba.
Lundu

Originária de Angola e do Congo, o lundu é um tipo de dança africana - na época considerada até obscena - , que tinha como passo coreográfico a própria umbigada. Apareceu no Brasil por volta de 1780. Alguns autores o comparam com o batuque praticado nas senzalas. No final do século XVIII, surgiu como canção, tanto no Brasil, quanto em Portugal.

José Ramos Tinhorão, citando o maestro Batista Siqueira, distingue as duas manifestações (coreográfica e musical), afirmando que até hoje não foi possível "saber se, de fato, a dança lundu inspirou o tipo de cantiga do mesmo nome, e de como se deu essa passagem daquilo que era ritmo e coreografia - para o que viria a ser canção solista."

Acolhido por todas as camadas sociais, inclusive os aristocratas, o lundu acabou ganhando a simpatia dos centros urbanos a partir de 1820, invadindo os teatros do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, onde seus números eram apresentados no entremez, espécie de quadro cômico e musical realizado durante os entreatos de dramas e tragédias. Em 1844, porém, o país foi tomado de assalto por outro tipo de ritmo - também de compasso binário e dançado em pares - que na Europa estaria causando um tremendo furor: este ritmo nada mais era do que a polca.

Polca

De acordo com definição contida no Dicionário de Música Popular Brasileira: erudita, folclórica e popular, a polca é um tipo de dança rústica originária da região da Boêmia (parte do império austro-húngaro), tendo chegado à cidade de Praga em 1837, quando se transformou em dança de salão. De ritmo alegre e saltitante, espalhou-se rapidamente pela Europa, tornando-se a coqueluche dançante da época. No Brasil veio trazida por companhias teatrais francesas, fazendo sua estréia oficial em 3 de julho de 1845 no Teatro São Pedro. Tornou-se tão popular que uma agremiação foi fundada em seu nome: A Sociedade Constante Polca. Segundo José Ramos Tinhorão, o gênero obteve o sucesso que o lundu, sozinho, jamais havia conseguido realizar:

"... a semelhança de ritmo com o lundu permite uma fusão que poderia às vezes ser nominal, mas que garante ao gênero de dança saído do batuque a possibilidade de ser, afinal, admitido livremente nos salões sob o nome mágico de polca-lundu."

Chula

A chula é um gênero de dança ou de canção de origem portuguesa surgida no final do século XVII. Também herdeira da umbigada - com seus requebros, volteios e sapateados - adquire entre nós uma forma maliciosa e erótica. O termo reapareceu entre os sambistas no início do século. Assim o define João da Baiana:

"Antes de falá samba, a gente falava chula. Chula era qualquer verso cantado. Por exemplo. Os versos que os palhaço cantava era chula de palhaço. Os que saía vestido de palhaço nos cordão-de-velho tinha chula de palhaço de guizo. Agora, tinha a chula raiada, que era o samba do partido alto. Podia chamá chula raiada ou samba raiado. Era a mesma coisa. Tudo era samba de partido-alto. E tinha samba corrido".

Maxixe

Primeira dança considerada autenticamente brasileira, tendo como ancestrais diretos a umbigada, o batuque e o lundu, o maxixe tem sua origem nos bairros de contingentes negros e mestiços do Rio de Janeiro, como Saúde e Cidade Nova.

Sua aparição, por volta de 1870, deveu-se principalmente à vontade de se dançar, de forma mais livre, os ritmos em voga na época, principalmente a polca. O maxixe, na opinião de José Ramos Tinhorão, foi sobretudo obra do "esforço dos músicos de choro em adaptar o ritmo das musicas à tendência dos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão".

Para Mário de Andrade , no entanto, o maxixe seria a síntese do tango e da habanera (pelo lado rítmico) com o andamento da polca, aliado a síncopa portuguesa. E ainda, na interpretação de Tinhorão, a "transformação da polca via lundu".

Aliás, como o lundu, apresentado nos intervalos de peças teatrais 50 anos antes, o malicioso maxixe, com o passar do tempo e com a popularidade alcançada pelos chorões, ganhou os palcos do Rio de Janeiro, sendo saboreado pelos freqüentadores das revistas teatrais:

"Não é de se estranhar que num palco e com o incentivo da platéia, o lundu tivesse o seu aspecto erótico exacerbado. Mais curioso é que esse mesmo processo de teatralização de uma dança de origem negra se repetiu meio século depois no Rio de Janeiro, com o maxixe."

O polêmico "Pelo telefone"

Um dos primeiros comentários que se pode adiantar sobre a música Pelo telefone diz respeito à questão dos direitos autorais da composição, ainda hoje objeto de discussão não totalmente esclarecido.

Maria Theresa Mello Soares , revela-nos o seguinte:

"Historicamente o primeiro caso - que foi muito comentado no Rio de Janeiro - de posse indébita de composição musical teve como protagonista Ernesto dos Santos, ou melhor, o Donga, violonista que tocava de ouvido, 'nem sabia traçar as notas de música'. Pelo telefone - tango, maxixe ou samba, nunca ficou bem definida a sua classificação - foi a composição que gerou polêmica ruidosa no meio artístico carioca, provocando atritos e discussões, principalmente pela imprensa que tomou partido de um jornalista envolvido no 'affaire'".

Problemas à parte, 1917 é de fato considerado um ano-chave para a história da música brasileira de raízes populares e urbanas, justamente devido ao lançamento de Pelo telefone, considerado o primeiro samba oficialmente registrado no Brasil. A partir de então, o samba - que já se prenunciava anteriormente através de formas variantes como o lundu, o maxixe, a polca e a habanera - individualizou-se, adquiriu vida própria, tornando-se definitivamente um gênero musical:

"Um fato até então inédito acontece: os clubes carnavalescos, que nunca tocavam a mesma música em seus desfiles, entraram na Av. Central tocando Pelo telefone".
Outra grande dúvida mencionada por pesquisadores recai sobre a data da composição. Embora tenha sido lançada no carnaval de 1917 com êxito extraordinário, o registro da partitura para piano, feito por Donga na biblioteca nacional, é de 16 de dezembro de 1916.

A questão sobre a autoria, levantada anteriormente, é também outro aspecto importante nessa discussão. Sabe-se que muitas reuniões de samba de partido alto ocorriam no terreiro de tia Ciata, freqüentado por sambistas, músicos, curiosos e jornalistas, tais como: Donga, Sinhô, Pixinguinha, João da Mata, Mestre Germano, Hilário Jovino e Mauro de Almeida. Este último - Mauro de Almeida - teria escrito os versos para a música de criação coletiva intitulada Roceiro, executada pela primeira vez como tango em um teatro da rua Haddock Lobo, em 25 de outubro de 1916. Valendo-se da repercussão imediata da música, Donga não hesitou em registrá-la com o título de Pelo telefone, aparecendo então como o único autor, omitindo a letra do jornalista Mauro de Almeida. Houve reações e protestos, principalmente daqueles que se sentiram diretamente atingidos. Assim comenta Edigar de Alencar:

"O registro do samba (nº 3295) não teve a repercussão que teria hoje. Música de muitos não era de ninguém. Não tinha dono, como mulher de bêbado..."

Renato Vivacqua é quem afirma:

"Mesmo assim, o Jornal do Brasil de 04.02.1917 trazia o seguinte comentário:
'Do Grêmio Fala Gente recebemos a seguinte nota: Será cantado domingo, na av. Rio Branco, o verdadeiro tango Pelo telefone, dos inspirados carnavalescos, o imortal João da Mata, o mestre Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível bom Hilário; arranjo exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado ao bom e amigo Mauro, repórter da Rua, em 6 de agosto de 1916, dando ele o nome de Roceiro'.

Pelo telefone
A minha boa gente
Mandou me avisar
Que o meu bom arranjo
Era oferecido
Para se cantar.

Ai, ai, ai
Leva a mão na consciência, meu bem.
Ai, ai, ai
Mas pra que tanta presença, meu bem?

Ó que cara dura
De dizer nas rodas
Que este arranjo é teu!
É do bom Hilário
É da velha Ciata
Que o Sinhô escreveu

Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso,
Escrever o que é dos outros
Sem olhar o compromisso"

Tudo indica que a composição seja mesmo de caráter coletivo, cantarolada com versos variados em alguns pontos da cidade, tendo sido mais tarde reformulados por Donga e Mauro de Almeida.

Teria sido "Pelo telefone" o primeiro samba realmente registrado no Brasil?

Há contestações e controvérsias. Hoje não mais se acredita que este tenha sido o primeiro registro do gênero samba no selo de um disco. Alguns pesquisadores, entre eles Renato Vivacqua, mencionam pelo menos três outras composições designando o gênero: Um samba na Penha (interpretado por Pepa Delgado e lançado pela Casa Edison em 1909); Em casa da Baiana (de 1911); e por último A viola está magoada (de autoria de Catulo da Paixão Cearense, composto em 1912 e gravado em 1914). Edigar de Alencar também menciona um outro samba denominado Samba roxo (de Eduardo da Neves, de 1915).

Afinal, qual a verdadeira letra de "Pelo telefone"?

Uma outra polêmica até hoje não totalmente desvendada diz respeito à letra original do samba - que teria recebido inúmeras alterações e paródias ao longo do tempo, gerando confusões.

Donga chegou a afirmar que a verdadeira letra da 1ª estrofe seria iniciada pelo verso O chefe da folia, mas por diversas vezes caiu em contradição, dizendo que o 1º verso da música era de fato O chefe da polícia.

Sobre essa estrofe, comenta Edigar de Alencar:
"Os versos expressivos e bem feitos eram uma glosa sutil a um fato importante. O então chefe da polícia Aurelino Leal determinara em fins de outubro daquele ano (1916), em ofício publicado amplamente na imprensa, que os delegados distritais lavrassem auto de apreensão de todos os objetos de jogatina encontrados nos clubes. Antes de qualquer providência, porém, ordenara que lhe fosse dado aviso pelo telefone oficial."

Portanto, duas hipóteses são aceitas para esta primeira estrofe:

O chefe da folia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que com alegria
Não se questione
Para se brincar
Para se brincarO chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar

A Donga se deve pelo menos o fato de ter percebido que o samba, ainda em seu nascedouro, surgiria a partir daquela data não mais como uma dança ou festa coletiva, mas como um bem cultural digno de ser comercializado e divulgado no rádio, então único meio de comunicação de massa, ávido para ter o que tocar. Os últimos comentários a esse respeito são de Almirante, citado no livro de Edigar de Alencar:

"Em resumo, o Pelo telefone teve um autor indiscutível: Mauro de Almeida, criador de seus versos e cujo nome permaneceu sempre sonegado. Jamais recebeu quaisquer direitos autorais, como seria justíssimo. Mauro de Almeida, com 74 anos de idade, morreu a 19 de junho de 1956. E quais foram os parceiros da melodia do Pelo telefone? Segundo a imprensa, conforme citamos: João da Mata, mestre Germano, tia Ciata, Hilário Jovino, Sinhô e Donga. Mas todos eles..."

Cabe assinalar ainda que a música recebeu uma versão teatral de Henrique Júnior com o mesmo título, que teve sua estréia em 7 de agosto de 1917 no Teatro Carlos Gomes, ficando menos de uma semana em cartaz.

Apenas música para se brincar no carnaval

Assim como a marcha, o "samba anônimo" - batucado e gingado coletivamente - surgiu com o desenvolvimento do carnaval, para atender às camadas subalternas que ainda não possuíam um tipo de música própria que as representasse durante os desfiles e comemorações do Rei Momo. Aos poucos, foi atraindo músicos da classe média que tinham acesso à "mídia" da época - o rádio, também em sua fase inicial - e acabou perpetuando-se no tempo graças aos foliões de rua.

A origem das escolas de samba

"O estilo (antigo) não dava para andar. Eu comecei a notar que havia uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí a gente começou a fazer um samba assim: bumbum paticumbumpruburundum."

A primeira escola de samba nasceu no Estácio - portanto no asfalto e não no morro - fez a sua primeira aparição oficial no desfile da Praça Onze em 1929, chamava-se Deixa falar e surgiu como um "ato de malandragem".

Até essa data o que se via nas ruas durante o carnaval era o desfile das Grandes Sociedades, dos ranchos carnavalescos (também conhecidos como blocos de cordas, pois possuíam um cordão de isolamento e proteção) e dos blocos propriamente ditos (mais modestos em sua administração). A diferenciação entre esses dois últimos é pequena. De acordo com a autora Eneida Moraes, citando Renato de Almeida, "os ranchos eram cordões civilizados e os blocos, mistos de cordões e ranchos".

A tradição da brincadeira de rua já existia há muito tempo no Distrito Federal (desde o entrudo e mais tarde, o Zé Pereira), mas sem nenhum tipo de organização musical. Foram justamente os blocos, ranchos e cordões que deram unidade musical a um desfile até então caótico.

"As escolas de samba surgiram no Rio de Janeiro por volta de 1920. A crônica do carnaval descreve o cenário então existente na cidade de forma nitidamente estratificada: a cada camada social, um grupo carnavalesco, uma forma particular de brincar o carnaval. As Grandes Sociedades, nascidas na segunda metade do século XIX, desfilavam com enredos de crítica social e política apresentados ao som de óperas, com luxuosas fantasias e carros alegóricos e eram organizadas pelas camadas sociais mais ricas. Os ranchos, surgidos em fins do século XIX, desfilavam também com um enredo, fantasias e carros alegóricos ao som de sua marcha característica e eram organizados pela pequena burguesia urbana. Os blocos, de forma menos estruturada, abrigavam grupos cujas bases se situavam nas áreas de moradia das camadas mais pobres da população: os morros e subúrbios cariocas. O surgimento das escolas de samba veio desorganizar essas distinções."

De todas as agremiações populares, o Rancho era o mais aceito pelas autoridades, pela sua forma de organização. Nascido no bairro suburbano da Saúde, tradicional região de imigrantes nordestinos, o Rancho carnavalesco, derivado do Rancho de Reis, existente em sua forma pagã desde 1873, foi a grande fonte inspiradora para as primeiras escolas de samba. Lembrando ainda as procissões religiosas, a sua música, voltada para as tradições folclóricas, principalmente o maracatu, trazia um andamento dolente, arrastado, nada adaptado para a euforia dos primeiros sambistas que também despontavam nesses mesmos espaços culturais:

"Essa lentidão, que permitia um desfilar sem vibração, quase monótono, causava irritação aos carnavalescos da nova geração, que se mostravam desejosos de dançar com um ritmo mais alegre e de acordo com a folia do carnaval. Esse foi o motivo que levou sambistas - como Ismael Silva e seus companheiros - compositores que viviam no Estácio e periferia, a criar um novo ritmo que permitisse cantar, dançar e desfilar, ao mesmo tempo."

E por que no Estácio?

O Estácio, tradicional bairro de bambas, boêmios e tipos perigosos - o índice de vadiagem na região era grande devido ao excesso de mão de obra e a escassez da oferta de trabalho - situava-se geograficamente perto do morro de São Carlos e também da Praça Onze, local dos desfiles, o que facilitava a troca cultural.

"Esses bambas, como eram conhecidos na época os líderes dessa massa de desocupados ou trabalhadores precários, eram, pois, os mais visados no caso de qualquer ação policial. Assim, não é de estranhar que tenha partido de um grupo desses representantes típicos das camadas mais baixas da época - Ismael Silva, Rubens e Alcebíades Barcellos, Sílvio Fernandes, o Brancura, e Edgar Marcelino dos Santos - a idéia de criar uma agremiação carnavalesca capaz de gozar da mesma proteção policial conferida aos ranchos e às chamadas grandes Sociedades, no desfile pela Avenida, na terça-feira gorda."

De fato, foi um drible de craque, ou, como queiram, um verdadeiro golpe de bamba nas autoridades, realizável apenas por aqueles que cedo aprenderam a conviver com a repressão, tendo que buscar soluções viáveis para a sua existência cultural. Assim, a Deixa falar do Estácio entrou na avenida naquele ano de 1929 como um "bloco de corda", totalmente legitimada e protegida pela polícia, ao som de um ritmo saltitante e uma nova batida, capaz de provocar a euforia de qualquer folião: a batucada. Um ano mais tarde, cinco outras escolas apareceram para o desfile da Praça Onze: a Cada ano sai melhor (do Morro do São Carlos); a Estação primeira de Mangueira; a Vai como pode (mais tarde, Portela), a Para o ano sai melhor (também do Estácio) e a Vizinha faladeira (das imediações da Praça Onze).

Surgida no Largo do Estácio, a novidade repercutiu rapidamente para vários morros e subúrbios. Desta forma, as escolas foram se espalhando e a cada ano nasciam outras agremiações carnavalescas que faziam suas evoluções na Praça Onze, cantando sambas com temáticas que abordavam acontecimentos locais ou nacionais, tanto no domingo quanto na terça-feira gorda. Estava definitivamente consolidado o samba carioca.

"Criou um território, pequeno, mas só dele. Mandava num quadrilátero que ia da Saúde ao Estácio, e da Praça da Bandeira à Onze. Esta sempre servindo de sede para os acontecimentos mais importantes de sua vida. Na praça a aglomeração cresceu, sempre em torno dele. Era o pessoal descendo o morro para brincá-lo no carnaval, eram os ranchos, blocos e cordões se chegando para a festa. Samba fora da Praça Onze não tinha graça. Não podia ser. A praça-mãe devia ter calor maior. Enfim, feitiço de berço."

O samba e suas variações

Samba carnavalesco : designação genérica dada aos sambas criados e lançados exclusivamente para o carnaval. Os compositores tinham uma certa queda por este "gênero" (neste incluem-se as marchinhas) por visarem os gordos prêmios oferecido pela Prefeitura em seus concursos anuais de músicas carnavalescas.

Samba de meio-de-ano : qualquer samba despretensioso aos festejos carnavalescos.
Samba raiado: uma das primeiras designações recebidas pelo samba. Segundo João da Baiana, o samba raiado era o mesmo que chula raiada ou samba de partido-alto. Para o sambista Caninha, este foi o primeiro nome teria ouvido em casa de tia Dadá.

Samba de partido-alto: um dos primeiros estilos de samba de que se tem notícia. Surgiu no início do século XX, mesclando formas antigas (o partido-alto baiano) a outras mais modernas (como o samba-dança-batuques). Era dançado e cantado. Caracterizava-se pela improvisação dos versos em relação a um tema e pela riqueza rítmica e melódica. Cultivado apenas pelos sambistas de "alto gabarito" (daí a expressão partido-alto), foi retomado na década de 40 pelos moradores dos morros cariocas, já não mais ligado às danças de roda.

Samba-batido: variante coreográfica do samba existente na Bahia.

Samba de morro: tradicionalmente conhecido como o samba autenticamente popular surgido no bairro do Estácio e que teve na Mangueira, um dos seus redutos mais importantes a partir da década de 30.

Samba de terreiro: composição de meio de ano não incluída nos desfiles carnavalescos. É cantado fora do período dos ensaios de samba-enredo, servindo para animar as festas de quadra, durante as reuniões dos sambistas, festas de aniversário ou confraternizações.

Samba-canção: estilo nascido na década de 30, tendo por característica um ritmo lento, cadenciado, influenciado mais tarde pela música estrangeira. Foi lançado por Aracy Cortes em 1928 com a gravação Ai, Ioiô de Henrique Vogeler. Foi o gênero da classe média por excelência e a temática de suas letras era quase sempre romântica, quando não assumindo um tom queixoso. A partir de 1950, teve grande influência do bolero e de outros ritmos estrangeiros.

Samba-enredo: estilo criado pelos compositores das escolas de samba cariocas em 1930, tendo como fonte inspiradora um fato histórico, literário ou biográfico, amarrados por uma narrativa. É o tema do samba-enredo que dá o tom do desfile em suas cores, alegorias, adereços e evoluções, pois este é o assunto que será desenvolvido pela escola durante a sua evolução na avenida.

Samba-choro: variante do samba surgida em 1930 que utiliza o fraseado instrumental do choro. Entre as primeiras composições no estilo, figuram Amor em excesso (Gadé e Walfrido Silva/1932) e Amor de parceria (Noel Rosa/1935).

Samba carnavalesco: designação genérica dada aos sambas criados e lançados exclusivamente para o carnaval.

Samba de breque: variante do samba-choro, caracterizado por um ritmo acentuadamente sincopado com paradas bruscas chamadas breques (do inglês "break"), designação popular para os freios de automóveis. Essa paradas servem para o cantor encaixar as frases apenas faladas, conferindo graça e malandragem na narrativa. Luiz Barbosa foi o primeiro a trabalhar este tipo de samba que conheceu em Moreira da Silva o seu expoente máximo.

Samba-exaltação: samba de melodia longa e letra abordando um tema patriótico. Desenvolveu-se a partir de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas. Foi cultivado por profissionais do teatro musicado, do rádio e do disco depois do sucesso de Aquarela do Brasil (1939) de Ary Barroso. A ênfase musical recai sobre o arranjo orquestral que deve conter elementos grandiloqüentes, conferindo força e vigor ao nacionalismo que se quer demonstrar.

Samba de gafieira: modalidade que se caracteriza por um ritmo sincopado, geralmente apenas tocado e tendo nos metais (trombones, saxofones e trompetes) a força de apoio para o arranjo instrumental da orquestra. Criado na década de 40, o estilo, influenciado pelas "big-bands" americanas, serve sobretudo para se dançar.

Sambalada: estilo de ritmo lento, surgido nas décadas de 40 e 50, similar ao das músicas estrangeiras lançadas na época (como o bolero e a balada, por exemplo) tido como um produto da manipulação das grandes gravadoras que tinham apenas finalidade comercial.

Sambalanço: modalidade que se caracteriza pelo deslocamento da acentuação rítmica, inventado na metade da década de 50, por músicos influenciados por orquestras de bailes e boates do Rio e de São Paulo que tinham como base os gêneros musicais norte-americanos, principalmente o jazz. Pode ainda ser definido como o estilo intermediário entre o samba tradicional e a bossa-nova, do qual Jorge Ben (Jor) foi o grande expoente.

Sambolero: tipo de samba-canção comercial fortemente influenciado pelo bolero, que teve o seu apogeu também na década de 50. Imposto pelas grandes companhias de disco.

Samba-jazz: gênero comandado por Carlos Lyra e Nelson Luiz Barros e mais tarde cultivado por outros compositores ligados à Bossa-Nova que buscavam soluções estéticas mais populares como resposta ao caráter demasiadamente intimista de João Gilberto. Abriu espaço para o nascimento da MPB, através dos festivais de música promovidos pela TV Record de São Paulo, durante os anos 60.

Sambão: considerado extremamente popular e comercial, o gênero conheceu seu momento de glória a partir dos anos 70, quando se pregava a volta do autêntico samba tradicional. Nada mais é do que uma apropriação muitas vezes indevida e descaracterizada do conhecido samba do morro.

Samba de moderno partido: modalidade contemporânea do gênero liderada pelo compositor Martinho da Vila, que mantém a vivacidade da percussão tradicional do samba aliada a uma veia irônica na temática de suas letras.

Samba de embolada: modalidade de samba entoado de improviso. Segundo Câmara Cascudo, citado no Dicionário Musical Brasileiro de Mário de Andrade, os melhores sambas de embolada estão em tonalidades menores.

Samba-rumba: tipo de samba influenciado pela rumba, ritmo caribenho em voga no Brasil na década de 50.

Samba-reggae : misturado aos ritmos da Bahia, com forte influência da divisão rítmica do reggae.

Fontes:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal. Portal CEN. Enviado por e-maIl
Desenho
http://marcioguilherme.apostos.com

domingo, 28 de setembro de 2008

Nilto Maciel (Leste da Morte)

A trama das narrativas de Nilto Maciel freqüentemente se expressa em linguagem poética: “Abriu a porta e o som do piano inundou o mundo. (...) Tateou espaldares de cadeiras. Tocos os dedos numa orelha. Ouviu um muxoxo feminino. (...) Conhecia a música. Talvez de Haendel. Ou seria de Grieg? (...) As mãos do artista. Não, não podiam ser mãos. (...) Sim, eram garras, jamais mãos humanas. Seriam de lobo?” Atmosfera semelhante pode ser encontrada em vários outros momentos do livro. Trata-se de um cadáver ensangüentado, “levado, às escuras, para os confins do cemitério. (...) E o enterraram numa cova aberta às pressas. A leste da morte” (p. 39). Ao escrever sobre incêndio ocorrido num espigão de cimento armado, o salto de uma pessoa para o abismo é visto deste modo pelo autor: “Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra”. Para espanto da platéia, o suposto cadáver ergueu-se do chão e saiu andando (p. 43).

Num conto em que narra as peripécias de um mágico supostamente dinamarquês, a cosmovisão do ficcionista desenha poeticamente as façanhas saídas das mãos do prestidigitador: “Uma pombinha surgia trêmula nas mãos do estrangeiro. Batia as asinhas, voava, voava e sumia no céu. Um coelhinho saltava da cartola, olhinhos vermelhos de espanto, focinho inquieto, e as primeiras mãos do povo o agarraram sangrentas” (p. 67).

“Menino Insone” (p. 76) é outra página com todas as peculiaridades de um poema. Os ritmos da narrativa parecem confundir-se com os ritmos da respiração dos personagens. Não se sabe ao certo se o menino está dormindo ou acordado sob “a luz da lamparina (que) bruxuleia”. O irmão menor do menino levanta-se da rede e perambula pela casa, como se acometido de uma crise de sonambulismo. “Permanece de olhos abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos”. É como se um fantasma, expulso dos subterrâneos de um pesadelo, vagasse por aposentos desertos à procura de reminiscências de vidas passadas em outros planetas.

Contos dessa natureza não são raros na ficção de Nilto Maciel. Levam necessariamente o leitor às raízes da chamada literatura do absurdo, na qual se destacam celebridades da estatura de Kafka e de outros mestres do gênero. “Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. (...) Na rede ao lado, o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar” (p. 77). Em “Chão Pintado de Sangue”, algumas pessoas aplaudiam ou vaiavam “um rapaz de roupas exóticas”, que declamava versos herméticos para uma platéia irreverente: “O poema é um punhal que brilhará na carne dos condescendentes. Seus reflexos parirão estrelas que habitarão o céu. Marinas cintilarão como ametistas nas bocas dos desvalidos. Imensas pérolas de enfeites da grande festa anunciada” (p. 63).

Poderia citar vários outros exemplos da riqueza semântica encontrada no contexto das narrativas de Nilto Maciel. Não o faço por estar convencido de que ao leitor deve caber o privilégio de descobri-los por si mesmo. Até porque, segundo Montaigne, certos leitores são capazes de detectar nos escritos alheios virtudes e perfeições não percebidos pelos próprios autores. Gosto sempre de repetir frase de Drummond, segundo a qual “o romance é a arte de destelhar casas sem que os transeuntes percebam”.

Nilto Maciel é, sem dúvida, um mestre consumado do conto moderno. Não apenas pelo requinte no uso de todas as gradações e alternativas morfológicas da escrita literária. Como também, e sobretudo, pela maneira engenhosa com que disserta sobre tendências e conflitos da subjetividade que navega “a leste da morte”.
Fortaleza, 3 de agosto de 2006.

Narrativa polifônica caracteriza os contos do novo livro de Nilto Maciel
Ronaldo Cagiano • Brasília – DF

Autor de mais de duas dezenas de livros que cobrem diversos gêneros, Nilto Maciel percorre com desenvoltura várias temáticas, sempre se valendo de uma grande flexibilidade de linguagem, técnica e forma e da manipulação de cenários distintos para construir seus personagens e histórias. Em seu novo livro, A leste da morte, ele reúne 47 contos, matizando universos que extrapolam os territórios geográficos, porque são ressonâncias fiéis do psicológico, da memória, das lembranças e imagens ancestrais, que constituem as experiências afetivas, sociais e humanas que habitam a imaginação e são as referências que sustentam o vasto espectro criativo do autor.

Alternando textos breves ou longos com uma prosa que mantém um pé na tradição e outro na modernidade, Maciel consolida sua força narrativa em histórias que filtram a vida, principalmente a vida do interior, onde o autor colhe matéria para uma artesania literária que incorpora, na maioria das vezes, um vezo de surrealismo. Alguns textos têm a duração de um curta-metragem e trazem, nesse breve arcabouço, um mundo coroado de mistério e misticismo, de sagrado ou de profano, de lenda e de folclore, revelando sutilmente a alma sertaneja, distanciando-se dos clichês da escritura regionalista. Não obstante a cor local de seus contos, a dicção niltoniana ultrapassa as fronteiras dessa geografia carregada de mitologias, porque os dramas e acontecimentos retratados são próprios do homem em qualquer circunstância ou lugar, daí a universalidade de seus relatos.

Trem fantasma, texto que nos faz embarcar no conjunto dessas histórias, revela, tanto pela síntese quanto pelo inusitado e pela surpresa, a tendência fabulatória encontrada em muitos textos do autor, que busca na fantasia, no absurdo, na alegoria ou na caricatura um artifício para compreender a realidade. A exatidão minimalista e fotográfica de alguns contos também nos remete a perceber a influência da instantaneidade, peculiar à oralidade e ao coloquialismo encontradiços na rica cultura popular nordestina.

Nilto aproveita a carga metafórica das histórias do mundo anterior que traz no inconsciente e as reinventa, para guiar o leitor por diversas atmosferas. A ambientação da linguagem, embora sem localização territorial, nos faz reconhecer situações presentes no imaginário do homem do interior, em que prevalecem os velhos cacoetes da vida provinciana, dos burgos, do coronelismo e do cangaço, da religiosidade e das crendices, com seus coronéis, suas lutas de poder, em que vida e morte se digladiam em tênue fronteira. Enfim, um esboço típico dos contrastes entre a modernidade e o arcaísmo, aqui amalgamado por um sutil censo de humor e ironia.

O último vôo da rapina, conto em que o personagem principal é o anagrama do abutre, traz como simbologia a luta pela preservação da vida por meio da busca desenfreada da manutenção dos sonhos, num conto de acento hitchcockiano. Outro bom exemplo de tessitura ficcional encontramos em Os urubus e Deus, explícito viés do fantástico. Em outros momentos, Nilto repovoa suas histórias revisitando temas bíblicos, literários e históricos, como em Caim e Abel, O sonho esquecido, O sétimo aniversário de Branca de Neve, Apontamentos para um ensaio e o paradigmático Maneco, futebol e cerveja, reconstrução da decadência de um jogador, numa perfeita analogia sobre a fugacidade da glória e a transitoriedade do infortúnio.

A perícia de Nilto Maciel é marcante na confecção de Águas de Badu, ao utilizar-se da transcriação literária para dialogar com a profundidade narrativa de Guimarães Rosa, invocando os paradigmas de O burrinho pedrês. E no peculiar O livro infinito, uma espécie de conto dentro do conto, transita pela história, pela literatura, pela música, etc., num espectro em que se discute a própria arte. Impende dizer que para atingir o ápice ou convencer o leitor, Maciel não se vale de nenhum recurso estrambótico, como rupturas ou outros artifícios experimentais de linguagem. Sua prosa se revela moderna, mas sua estrutura é clássica, tradicional, porque o que importa para o autor é o domínio do conteúdo e não o extravasamento da forma.

A leste da morte é um caleidoscópio de temas e situações que consolidam a trajetória de Nilto Maciel, um autor que há três décadas vem se dedicando de corpo e alma à literatura e a cada novo livro, com seu timbre, suas vozes e seu sutil censo de observação, se afirma como um habilidoso artista, que conta e reconta as delícias e asperezas da vida, expondo as grandezas e misérias humanas, com inegável destreza literária.

Fontes:
Francisco Carvalho. in http://www.vastoabismo.xpg.com.br
Ronaldo Cagiano in http://www.bestiario.com.br

Nilto Maciel (Paisagem Celeste)

Pé ante pé, mão a roçar a parede, Luís deixou o quarto, passou pelo corredor e alcançou a ante-sala. Em cada mão um sapato. Parou, conteve a respiração, desceu o primeiro degrau e o segundo. Olhou para trás. Tudo calmo. Levou a mão à porta. Nada de barulho ao retirar a trave. Se Maria ou os filhos acordassem, inventaria alguma desculpa: esquecera de trancar a porta. E voltaria à rede. Sondou de novo a retaguarda: a parca luz da lamparina se infiltrava pela brecha da porta e alumiava uma nesga de chão do corredor. Ninguém tossia nem roncava. Dormiam sonos profundos, talvez. Retirou, com cautela, a trave e a pôs no chão, em posição vertical. Se tombasse, todos acordariam. Deu uma volta à chave, mais uma, retirou-a da fechadura e a colocou num bolso. Abaixou-se para levantar o ferrolho, voltou à posição normal, puxou com leveza a tábua da porta, olhou para os dois lados da rua, fez o movimento contrário na madeira e desceu o degrau para a calçada. Meteu no bolso a mão, à cata de cigarros. Não, a fumaça inundaria a casa, pelas brechas da porta. Caminhou a passos largos no rumo da igreja matriz.

Necessitava caminhar muito, cansar, sentir vontade de dormir. Não suportava mais tantas noites sem sono, a se revirar na rede. Quando a claridade da aurora se anunciava no telhado, mal agüentava espiar os punhos da rede, a cabeça a lhe doer, o corpo quente, febril. Embora assim, carecia se banhar, tomar café, caminhar até a mercearia e passar mais um dia sem ânimo, nem para as conversas sem fim com os amigos de sempre. Ao chegar à pracinha, sentou-se num banco. As luzes dos postes lhe faziam mal. Tossiram numa das casas. Tratou de deixar o banco e se pôs a caminhar entre as árvores, pelas calçadas internas do logradouro. Viu-se diante do coreto. Há quanto tempo não o via! Talvez nunca tivesse passado ao seu interior. Um cachorro dormia debaixo de um banco e se assustou ao ver aquele guarda-noturno estranho. Fez menção de se erguer e correr. Luís o tranqüilizou. Ficasse ali mesmo, não lhe ia fazer mal. O cão mirou os olhos do homem, que deu meia-volta e se retirou. Nada de confusões, fosse com bichos, fosse com gente. Precisava de solidão, paz e silêncio. Para onde iria? Talvez para a mercearia. Não, aquilo não. Os vizinhos acordariam e suspeitariam de arrombamento. Além do mais, já passava os dias enfurnado entre sacos de arroz e fardos de algodão. Tomou o rumo da rua paralela àquela pela qual ia e vinha duas vezes por dia. Na calçada outro cachorro deitado junto à parede. Passou para o meio da rua. Avistou, ao longe, as torres da matriz. O relógio indicava 12 horas e 45 minutos. Se encontrasse a porta entreaberta, ajoelharia diante do altar e rezaria. Talvez não. Há anos não assistia à missa. Até já o chamavam de ateu. E por que não subir a serra? Apressou o passo. Sim, rumar pela estradinha escura e depois se meter no mato, procurar algum riacho, alguma cachoeira. A Lua apareceu atrás do Pico Alto. Pôde ver com clareza o chão coberto de folhas secas e gravetos. Ia necessitar de muito fôlego para subir a ladeira. Daquele jeito, fumando muito, bebendo genebra todo dia, não chegaria longe. Mas precisava daquilo, os negócios iam mal, os filhos mais velhos só lhe davam desgostos, Maria não lhe apetecia mais. Há quanto tempo não se encostavam um no outro? Ela num quarto, ele noutro. Conversavam apenas o necessário, quando muito. Discutiam por qualquer ninharia. Não se miravam nunca. Dormir como qualquer outro – impossível. Estacou diante de uma vereda. Examinou a ribanceira. Chiado de água a escorrer. Apalpou o chão com os pés e se pôs a descer. Rastejariam serpentes por ali? Armou-se de um pedaço de pau. Serviria de cajado. Maria teria despertado? E os filhos pequenos? Quando acordassem e o não vissem... Não, nunca o viam ao amanhecer. Ainda dormiam quando saía para trabalhar. Mesmo assim, prometia voltar antes de o sol raiar.

Sentou-se ao pé de uma rocha. Açoitou o chão com o galho seco. Nada de bichos por perto. Olhou para o alto. A Lua vagava entre nuvens. Acendeu um cigarro. Bater de asas ao seu derredor. Pios de protesto. Jogou fora a ponta acesa e a esmagou com o pé. Deitou-se e se pôs a admirar a Lua, como há muito não fazia. São Jorge num cavalo enfrentava um dragão. Nuvem enorme encobriu soldado e animais. Luís fechou os olhos. Aquela peleja não acabava nunca. Ou não passava de pintura, paisagem celeste? Rodavam no espaço desde o início. E rodariam até o fim.Quando abriu os olhos, uma nesga de sol se filtrava entre as telhas do quarto. Estremeceu na rede e viu Maria a fugir feito fantasma, de volta ao outro quarto. Já voltei da serra?
(Agosto/ 2003)

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre, RS: Ed. Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Livro Infinito: Mensagem)

Como costumava fazer durante as manhãs de sábado, Antônio Sollos, em pé, folheava livros desde cedo, numa livraria. Nada de praias, bares, visitas a parentes. Buscava novidades e antigüidades. O novo contista, o romancista esquecido, o escritor de sua predileção. Agarrou com unhas e dentes um volume de contos de Kafka. Queria conhecer “Durante a Construção da Grande Muralha da China”. Cheirou o livro, como se fosse um charuto, admirou a capa e se pôs a ler um trecho: “O imperador – assim consta – enviou-te, a ti, a ti que estás só, tu, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a ti o imperador enviou do leito de morte uma mensagem.” Desde a chegada, não via freguês. Apenas vendedores. Alguma novidade? Muitas, muitas, Seu Sollos. Ouviu vozes de quem entrava na loja. Voltou ao livro: “Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto”. As vozes e o arrastar de pés calçados o fizeram levantar a vista. Não conseguiu distinguir de quem eram. Vozes de mulher e homem. Um casal, certamente. Gostou da voz dela. Até lhe lembrava uma voz doce de uns tempos passados. O som dos passos se aproximaram dele. Sondou os arredores. O casal só podia estar do outro lado da estante. Ergueu-se nas pontas dos pés. Viu uma testa robusta, corada, de homem, e uns fios de cabelos quase louros, lindos. Abaixou-se e, pela brecha da prateleira, viu uns lábios rubros que parecia sorrirem para ele. Descontrolado, largou o livro e se pôs a caminhar lentamente pelo estreito corredor. Ao fim dele, virou para a esquerda e parou. A dois ou três metros, avistou o homem de lado, mãos erguidas na direção da prateleira. Só podia ser o marido de Ana. A mulher ao lado dele seria, então, Ana. Não queria revê-la. E se voltou, para atravessar a sala pelo corredor perpendicular àquele em que o casal se achava. Saiu apressado, disposto a fugir. No entanto, antes de alcançar a porta, se viu frente a frente com Ana. Quis sorrir, olhou para os lados, cumprimentou-a com duas palavras, contemplou os olhos dela e saiu da loja.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre, RS: Ed. Bestiário, 2006.

Feira de Livros em Maringá



De 29 de setembro a 03 de outubro (segunda à sexta), acontecerá a Feira de Livros, promovida pelo SESC, com apoio da Academia de Letras de Maringá.

PROGRAMAÇÃO:

29 DE SETEMBRO – Segunda-feira
- 9 e 10 horas – Apresentação/contação de histórias
Cia. Fanto Kid's: Na mala há histórias. Contadores: Danilo Furlan e Ro Fagundes.

- 12 horas – Performance literária: Dom Casmurro e o Cortiço
Cia. Célula Adiposa. Produtora: Ligia Souza.

- 13h30 às 17h30 – Oficina de Haicai com a escritora Neide Rocha Portugal, Membro Correspondente da ALM.

- 20 horas – Palestra interativa. Mediadora: Lucia Bittencourt – RJ. Local: SESC-Maringá.

30 DE SETEMBRO – Terça-feira

- 10 e 15 horas – Espetáculo de bonecos: Montando Lobato.
Bonequeiro: Elcio Di Trento – Curitiba – PR

- 20 horas – Seminário de literatura. Tema: Os vários olhares da Literatura.

- 20 horas – Workshop e bate-papo com educadores: Da Narrativa ao Livro – A Arte de Contar Histórias

Mesa redonda 01: Mídia, Literatura e Violência.
.
- Tema: Indústria Cultural como Mensagem à Violência.
Mediador: Professor Dr. Luiz Hermenegildo Fabiano, Doutor em Educação – UEM.

- Tema: Violência Étnica.
Mediadora: Aracy Adorno Reis, Especialista em Cultura Africana e Relações Inter-Étnicas.

- Tema: Um Olhar sobre Produção de Telas.
Mediador: Professor Dr. Raimundo Lima, Doutor em Educação – UEM.

1º. DE OUTUBRO – Quarta-feira

- 9, 10, 14 e 15 horas – Apresentação/contação de histórias: Donas Palavrinhas e Suas Conversinhas – poesia para crianças e o show Contarolando.
Contador: Guga Cidral, artista educador – Curitiba – PR

Mesa redonda 02: Mídia, Turismo e Literatura.
.
- Tema: Santiago de Compostela.
Mediador: Professor Dr. Luiz Giani, Doutor em Educação – UEM.

- Tema: Turismo Cultural.
Mediador: Professor Ms. João Santos, Mestre em Educação, História e filosofia da Educação – UEM.

- Tema: Literatura Indígena.
Mediadora: Professora Ms. Sheilla Dias de Souza, Mestre em Artes Visuais.

02 DE OUTUBRO – Quinta-feira

- 9, 10, 14 e 15 horas – Espetáculo de contação de histórias: Fantasia e Histórias que a Vovó Contava
Cia. Pedras. Contadores: Iara Ribeiro e Adriano Braga – Maringá – PR

Mesa redonda 03: Mídia, Literatura e Ideologia.
.
- Tema: Olhar sobre a Cegueira (José Saramago).
Mediador: Professor Dr. Walter Lúcio de Alencar Praxedes, Doutor em Educação – UEM.

- Tema: Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus).
Mediador: Professor Dr. Fábio Viana Ribeiro, Doutor em Sociologia – UEM.

- Tema: Poesia e MPB.
Mediador. Professor Dr. Marciano Lopes e Silva, Doutor em Letras – UEM.

03 DE OUTUBRO – Sexta-feira.

- 9 horas e 14 horas – Espetáculo de contação de histórias: Chuva de Cores (Espaço Sou Arte).
Contadora: Raquel Cruz – Campo Mourão – PR

Mesa redonda 04: Mídia, Misticismo e Literatura.

- Tema: Literatura e Mídia.
Mediadora: Professora Dra. Mirian Zappone, Doutora em Literatura.

- Tema: Mídia.
Mediadora: Professora Dra. Fátima Maria Neves, Doutora em Educação.

- Tema: Teatro como formação da consciência.
Mediador: Professor Ms. Jorge Henrique Lopes, Mestre em educação para a Ciência.

PARTICIPAÇÃO GRATUITA. INFORMAÇÕES: (44) 3262-3232

Fonte:
E-mail enviado por Olga Agulhon, membro da Academia de Letras de Maringá

sábado, 27 de setembro de 2008

Silmar Bohrer (Trovas)

A vida anda tão restrita,
tão restrita anda a vida
e eu ainda busco guarida
nesta senhora mal-dita.

Escreveu o romancista,
"o homem, poliedro imenso",
milhares de faces a vista
que não chegam ao consenso.

Fazemos versos "a revirias"
eu e o escriba bissexto,
versejando todos os dias
até praticamos incesto.

Ando à procura no mundo
do veio dos ventos uivantes,
aqueles mesmo, ventantes,
os tais ventos giramundo.

Estou com os livros - meu mundo,
embrenhado na biblioteca,
onde o silêncio é profundo
e o grito é baixinho - heureca !

Mesmo atrelado aos tais
ditames da pura Razão
não renunciarei jamais
às doçuras do coração.

Caneta, a pecinha realeza
que pereniza meus versos,
captando comigo a sutileza
na lonjura dos universos.

Tenho tido gostado de ser
assim como tenho sido,
um ser que se passa esquecido
desde a manhã ao anoitecer.

Haverá melhor gostosura
nestes tempos setembrinos
do que os ares assobiolinos
que deixaram a clausura ?

A nuvenzinha no céu
parece não ter intentos
vai graciosa pra dedéu
invadindo os pensamentos

Sendo louco pela vida
minhas idéias se consomem
quando vejo tanta ferida
exposta pelo bicho-homem
-

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ialmar Pio Schneider (Trovas)

Trova vencedora do Concurso de Trovas
Centenário de José Barros Vasconcellos
União Brasileira de Trovadores – UBT Porto Alegre – RS
Âmbito Estadual – Tema TERNURA

Neste mundo de tormentos,
Apesar da vida dura,
Nunca faltem os momentos
Para o culto da ternura !...
Ialmar Pio Schneider (Porto Alegre – RS)

Troféu João-de-Barro, no Piquete da Cavalhada no Acampamento Farroupilha.

Mistura de mágoa e tédio,
Esta carência de amor:
E se tomo algum remédio
Mais aumenta minha dor...
=====================
Poeta, advogado, cronista e bancário aposemntado, nasceu no município de Sertão, RS, em 26/8/1942. Residiu por mais de 20 anos em Canoas, e atualmente reside em Porto Alegre. Entidades a que pertence: Casa do Poeta Rio-Grandense, União Brasileira de Trovadores - Sede de Porto Alegre, Grêmio Literário Castro Alves, Agei - Associação Gaúcha dos Escritores Independentes, Casa do Poeta de Canoas, entre outras.


Ialmar Pio Schneider (Sonetos Avulsos)

Nosso Caminho

Envio-lhe estes versos com saudade
dos momentos felizes
de serenidade
ou deslizes...
Tudo é possível quando nos visita
uma paixão avassaladora,
inaudita
e sedutora...
Um sonho se descortina
em nosso caminho
e nos fascina
pelo carinho...
Quando estivermos juntos e unidos
vamos sempre lembrar
que fomos concebidos
para viver e amar...
=================
Soneto a uma Musa

Simplesmente me olhaste com meiguice
e me disseste: - Como vais, poeta !
Eu respondi com minha voz discresta:
- Vou indo mais ou menos... Assim disse...

Depois te foste como quem partisse
quase infeliz, oh musa predileta,
és tu que minha vida desinquieta
nas horas de incerteza e de crendice.

Hás de viver comigo e nos meus sonhos
serás a inspiração que me seduz
nos momentos amargos ou risonhos.

Vou te guardar pra sempre inalterada
porque quando te vejo surge a luz
que vem clarear a escuridão da estrada.
=======================
Soneto da Angústia

Acendo bruscamente o meu cigarro
e penso no futuro que me esperas...
Oh! sem querer numa ilusão esbarro
e tropeço num mundo de quimeras !

Por que, mísero ser, feito de barro,
hei de sonhar eternas primaveras,
e na vida sem léu a que me agarro,
pensar que tu serias o que não eras ?!

E viverás sorrindo ao gosto amargo
do sonho que me mata noite e dia
e faz-me mal viver neste letargo,

nesta angústia que a alma me excrucia.
Enquanto esta fumaça aos ares largo
te lembro bela, cálida e sadia.
=======================
Soneto

Enquanto a gente cai e se levanta
não há motivo de parar na viagem,
mas quando já nos falta até coragem
para seguir em frente, não adianta.

Feliz daquele que sofrendo canta
e traz ao mundo varonil mensagem,
pois leva sobre todos a vantagem
de amar a mesma mágoa que acalanta.

Jamais encontraremos solução
às coisas desastrosas desta terra,
porque é um combate inglório, louco e vão,

repleto de terror que nos aterra,
de ver o irmão matar ao próprio irmão
numa hecatombe irracional da guerra.
=====================
Soneto Antigo

Cinza a fumaça rolará nos ares
e irá perder-se inutilmente louca
como as notas fatais dos meus cantares,
deixando um amargume em minha boca.

Tento esquecer teus lânguidos olhares
e a tua imagem com calor evoca
paisagens longas de distantes mares
pra onde a sereia meu ardor desloca.

Não é possível te olvidar, querida,
nem tenho culpa de te amar assim
com toda a força do meu triste peito...

Dá-me a alegria de levar a vida
por entre as flores de um taful jardim
e seguirei contente e satisfeito...
====================
Soneto a uma Fada

Fazes de conta que jamais me viste
e eu também finjo que não te conheço;
nossa união terminou sem ter começo
e eu continuo, como sempre, triste.

O que tu prometias não cumpriste;
mas esquece-me, então, pois eu te esqueço;
isto conosco foi mais um tropeço;
vamos saber qual de nós dois desiste.

Quero descrer de ti, não mais te amar;
porém, tudo me leva à tua presença
e por nada te posso condenar.

Foste uma Fada que surgiu voando
e não trouxeste, enfim, a recompensa
ao poeta que vive te adorando...
====================

História do Soneto

Sonetos no mundo

Ao que tudo indica, o soneto - do italiano sonetto, pequena canção ou, literalmente, pequeno som - foi criado no começo do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte de Frederico II da mesma forma que as tradicionais baladas provençais. Alguns atribuem a Jacopo (Giacomo) Notaro, um poeta siciliano e imperial de Frederico, a invenção do soneto, que surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música, possuindo uma oitava e dois tercetos, com melodias diferentes.

O número de linhas e a disposição das rimas permaneceu variável até que um poeta de Santa Firmina, Guittone D'Arezzo, tornou-se o primeiro a adotar e aderir definitivamente àquilo que seria reconhecido como a melhor forma de expressão de uma emoção isolada, pensamento ou idéia: o soneto. Durante o século XIII, Fra Guittone, como era conhecido, criou o soneto guitoniano, padronizado, cujo estilo foi empregado por Petrarca e Dante Aligheri, com pequenas variações. Tais sonetos são obras marcantes, se considerarmos as circunstâncias em que eles surgiram.

O nome mais associado aos primeiros desenvolvimentos da forma do soneto na Itália, é claro, é Francesco Petrarca (1304-1374). Em 1326, após a morte de se pai, ele se mudou de Arezzo na Toscana para Avignon. Ali começou o seu singelo amor por uma mulher conhecida como Laura, a quem ele endereçou seus poemas. Ele é lembrado como o fundador do movimento humanista, acreditando na continuidade entre a cultura clássica e a mensagem de Cristo. Em 1337 ele deixou Avignon por Vaucluse, um lugar de retiro, onde ele produziu muito de seus maiores trabalhos. Em setembro de 1340 ele recebeu convites tanto de Paris quanto de Roma para ser coroado como poeta; ele escolheu Roma. (...) A ele é creditada a primeira forma conhecida do soneto: As catorze linhas divididas em duas estrofes, uma oitava com o posicionamento das rimas abbaabba e um sexteto com o posicionamento variável – cdecde, ou cdcdcd, ou cdcdce, ou qualquer outro arranjo, que nunca termina num par de versos. A oitava apresenta o tema ou problema do poema e o sexteto apresenta uma mudança no pensamento ou a resolução do problema. Seu Canzoniere contém 317 sonetos, coletânea de poesia que exerceu inflência sobre toda a literatura ocidental. As melhores poesias desse livro são dedicadas a Laura de Novaes, por quem possuía um amor platônico. Destacam-se os recursos metafóricos e o lirismo erótico dos sonetos.

Quando estes sonetos foram trazidos para a Inglaterra, junto a outras formas italianas de versos, por Sir Thomas Wyatt (1503-1542) e Henry Howard, conde de Surrey (1517-1547) no século XVI, eles foram modificados para o que hoje é conhecido como a forma Shakesperiana: esta possui três quartetos, cada um com um posicionamento de rimas independente, e termina com um par de versos rimado (abab;cdcd;efef;gg). Mais uma vez, os sonetos geralmente formavam uma uma seqüência de conjuntos independentes mas relacionados de poemas de amor. Um antigo exemplo é a obra Astrophel e Stella (1591) de Sir Philip Sidney. Os próprios 154 sonetos de Shakespeare foram publicados em 1609, embora suas datas de composição sejam desconhecidas.

A outra forma inglesa do soneto é chamada a forma Spenseriana, por causa de Edmund Spenser (1552-1599). Sua obra de mestre foi The Faire Queen, cuja primeira edição foi publicada em 1609. Ele publicou versões inglesas de poemas do poeta francês do século XVI Joachim du Bellay, e de uma versão francesa de um poema de Petrarca em 1569, quando ele entrou no Pembroke Hall da Universidade de Cambridge. (...) Em 1595 ele publicou Amoretti, uma seqüência de sonetos. A forma Spenseriana tem três quartetos e um par rimado ao final, mas o posicionamento das rimas é intercalado: abab;bcbc;cdcd;ee.

A forma Petrarquiana do soneto continuou a ser usada por poetas ingleses; ela também foi revivida em meados do século XIX, por exemplo por Elizabeth Barrett Browning em Sonnets from the Portuguese (1850) (Isto não significa que os 44 poemas são traduções dos originais em português – "The Portuguese" foi o apelido que Robert Browning deu a ela!). William Wordsworth também empregou esta forma, por exemplo em The World is Too Much with Us, como fez John Keats. (...) John Berryman achou esta uma forma tentadora para escrever os seus 115 sonetos eróticos.

A forma do soneto também penetrou em outros idiomas – francês, onde o verso decassílabo foi substituído por uma linha dodecassílaba, porque ela se encaixava melhor com a linguagem; alemão, polonês e outros idiomas eslavos.

Uma das mais modernas seqüências de sonetos é Die Sonnette an Orpheus (Sonetos a Orfeu) escrita por Rainer Maria Rilke (1875-1926). Este ciclo de 55 poemas foi publicado em 1923. A forma que ele usa é de certa forma diferente. As linhas são decassílabas, mas os poemas consistem de quatro estrofes: dois quartetos e dois tercetos, e o posicionamento das rimas varia: abab;cdcd;eff;gge, ou abba;cddc;efg;gfe, ou abba;cddc;efe;gfg, ou abab;cdcd;eef;ggf. Existem outras variações, porém isto depende do tipo de licença poética que o poeta se permite, sem perder a estrutura disciplinada da forma.

Dante Alighieri, o autor da consagrada "A Divina Comédia", e também um seguidor de Guittone, em sua infância já compunha sonetos amorosos. Seu amor impossível por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari) foi imortalizado em vários sonetos em "Vita Nuova", seu primeiro trabalho literário de grande importância.

Anos se passaram até que dois ícones da literatura mundial, um inglês e um português, deram ao soneto, cada um ao seu modo, o toque de mestre: William Shakespeare e Luis de Camões.

Camões freqüentou a nobreza em Portugal, mas foi exilado por suas posições políticas. Passou alguns anos na prisão, de onde saiu com "Os Lusíadas", uma obra que o colocou entre os maiores poetas de todos os tempos. Apesar disso, morreu pobre. Escreveu diversos sonetos, tendo o amor como tema principal.

Luis de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Shakespeare, além de teatrólogo, desenvolveu uma habilidade única na poesia. O seu soneto, o soneto inglês, é composto por três quartetos e um dístico, diferente da composição original de Petrarca. O mais célebre dos escritores ingleses escreveu diversos poemas, alguns deles recheados de metáforas. Curiosamente, sua obra Romeu e Julieta destaca um soneto, bem no início do diálogo entre os seus protagonistas...

William Shakespeare

NUM SALÃO DA CASA DOS CAPULETOS

ROMEU (a Julieta)
Se minha mão profana o relicário
em remissão aceito a penitência:
meu lábio, peregrino solitário,
demonstrará, com sobra, reverência.

JULIETA
Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
que se mostrou devota e reverente.
Nas mãos dos santos pega o paladino.
Esse é o beijo mais santo e conveniente.

ROMEU
Os santos e os devotos não têm boca?

JULIETA
Sim, peregrino, só para orações.

ROMEU
Deixai, então, ó santa! que esta boca
mostre o caminho certo aos corações.

JULIETA
Sem se mexer, o santo exalta o voto.

ROMEU
Então fica quietinha: eis o devoto.

Desde então, o soneto adquiriu importância ao redor do mundo, tornando-se a melhor representação da poesia lírica. Alguns casos são notáveis: o poeta russo Aleksandr Pushkin compôs Eugene Onegin, um poema repleto de sonetos adotado por Tchaikovsky para compor uma de suas óperas; o francês Charles Baudelaire ajudou a divulgar os versos alexandrinos em Les Fleurs du Mal. Até Vivaldi usou-se de sonetos.

Charles Baudelaire

Teu olhar me diz, claro como cristal:
“Bizarro amante, o que há em mim que mais te excita?”
- Sê bela e cala! O meu coração, que se irrita,
Por tudo, exceto a antiga candura animal,
.
Não te quer revelar seu segredo infernal,
Embalo cuja mão a um longo sono incita,
Nem a sua negra lenda a ferro e fogo escrita.
Abomino a paixão e a alma me faz mal!
.
Amemo-nos em paz. Amor, numa guarida,
Tenebroso, emboscado, entesa o arco fatal.
Conheço-lhe os engenhos do velho arsenal:
.
Crime, horror e loucura! - Ó branca margarida!
Não serás tu, como eu, triste sol outonal,
Ó minha branca, ó minha branca Margarida?

E por falar em versos alexandrinos, utilizados por muitos sonetistas, eles remontam - segundo alguns dicionários da língua portuguesa - a uma obra francesa do século XII chamada Le Roman d'Alexandre, e significam versos de doze sílabas poéticas. Porém, os dicionários da língua espanhola - apesar de apontarem para a mesma origem - insistem em afirmar que os versos alexandrinos são aqueles que contêm catorze sílabas gramaticais.

Finalmente, após aderir ao humanismo e ao estilo barroco, o poema dos catorze versos acabou sendo desprezado pelos iluministas. No século XIX, ele voltou a ser cultivado, com mais fervor, por românticos, parnasianos e simbolistas, sobrevivendo ao verso livre do modernismo - que viria em seguida - até os dias atuais.

Sonetos no Brasil

Gregório de Mattos foi um dos primeiros sonetistas em terras brasileiras. Nascido na Bahia, revoltou-se contra o governo e a Igreja e passou a escrever obras satíricas, algumas de caráter pornográfico. Era conhecido como "Boca do Inferno" por seus versos e chegou a ser denunciado à Inquisição. Sua obra "Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado" é uma das que mais aparecem nas provas de vestibular.

A uma dama dormindo junto a uma fonte

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.


Quando o arcadismo apareceu no Brasil, quase ao mesmo tempo que em Portugal, um de seus representantes foi o mineiro Cláudio Manuel da Costa, que em Vila Rica (Ouro Preto) juntou-se a Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga foi outro sonetista de grande importância e autor da obra que o tornou o mais famoso dos árcades brasileiros: "Marília de Dirceu". Ambos foram presos acusados de terem participado da Conjuração Mineira.

Cláudio Manuel da Costa

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.


Tomaz Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu
Soneto 5

Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.

Tiro um papel e lio - céu sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do fado:

"Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania."

Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença,
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.

O romantismo em seguida viria a conhecer diversos imortais da poesia. Compuseram sonetos Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, Castro Alves entre outros. Suas obras ilustram as três fases da era romântica, período cuja importância literária promoveu uma verdadeira revolução na cultura brasileira.

Gonçalves Dias

Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem d'ar, de perfumes, d'ambrosia?
Que vagando por mares d'harmonia
São melhores que as próprias borboletas?

Não creias que eles sejam tão patetas.
Isso é bom, muito bom mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas!

Talvez mesmo que algum desses brejeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.

Eu que sou pecador, - que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,
Julgo um beijo sem fim cousa excelente.

Álvares de Azevedo

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Fagundes Varela

Desponta a estrela d'alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh'alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo encantador, tu és medonho!

Augusto dos Anjos

A Árvore da Serra

- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Castro Alves
.
Aqui, onde o talento verdadeiro
Não nega o povo o merecido preito;
Aqui onde no público respeito
Se conquista o brasão mais lisonjeiro.

Aqui onde o gênio sobranceiro
E, de torpes calúnias, ao efeito,
Jesuína, dos zoilos a despeito,
És tu que ocupas o lugar primeiro!

Repara como o povo te festeja...
Vê como em teu favor se manifesta,
Mau grado a mão, que, oculta, te apedreja!

Fazes bem desprezar quem te molesta;
Ser indif'rente ao regougar da inveja,
"Das almas grandes a nobreza é esta."

Olavo Bilac introduziu o parnasianismo em seus sonetos grandiosos pela devoção ao culto da palavra e ao estudo da língua portuguesa. É o autor do "Hino à Bandeira". Juntos a ele escreveram sonetos Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraes, esse último representante do simbolismo e um dos autores que apresentaram maior misticismo em nossa literatura.

Olavo Bilac

I
Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando...

Cruz e Souza

Sonho Branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido...

As aves sonorizam-te o caminho...
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado...

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!

Alphonsus de Guimaraes

II
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

Do pré-modernismo e do modernismo, estilo que perdura até hoje, surgiram escritores célebres. Alguns exemplos de sonetistas são Machado de Assis (com sua maravilhosa obra "A Carolina"):

Machado de Assis

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Fernando Pessoa

Há um poeta em mim que Deus me disse...

Há um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice...

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo...

Carlos Drummond de Andrade

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

Manuel Bandeira

Sonho Branco

Não pairas mais aqui. Sei que distante
Estás de mim, no grêmio de Maria
Desfrutando a inefável alegria
Da alta contemplação edificante.

Mas foi aqui que ao sol do eterno dia
Tua alma, entre assustada e confiante,
Viu descender à paz purificante
Teu corpo, ainda cansado da agonia.

Senti-te as asas de anjo em mesto arranco
Voejar aqui, retidas pelo aceno
Do irmão, saudoso de teu riso franco.

Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho - um sonho branco!

Vinícius de Moraes

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Os sonetos atravessaram a história, vencendo prisões e guerras, cantando o amor e a arte. Tornaram-se o vício de uma geração. Rimando ou não, tocaram (e tocam) corações por todas as culturas e países, principalmente o Brasil. Ao mesmo tempo curtos e elaborados, eles são sem dúvida a expressão maior da dedicação de escrever versos. Tal dedicação cantou Olavo Bilac em sua obra "Profissão de fé":

"Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que êle, em ouro, o alto-relêvo
Faz de uma flor..."


Fontes:
Bernardo Trancoso. In http://www.sonetos.com.br/
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/
Desenho http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/