quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Livros de Yasunari Kawabata

A DANÇARINA DE IZU

A dançarina de Izu, lançado originalmente em 1926, é uma novela baseada em anotações autobiográficas e tem como temas o amor impossível, a solidão e a sexualidade velada, recorrentes na extensa e brilhante obra de Yasunari Kawabata.

Neste livro, primeira obra de destaque do autor, um jovem de dezenove anos, da elite japonesa, viaja até a península de Izu, região que fica a oeste da capital Tóquio, e lá trava contato com artistas viajantes, com quem faz amizade, e se encanta com uma artista da trupe: a pequena dançarina Kaoru, de treze anos.

A viagem tem início nas termas de Shuzenji, seguindo depois para as de Yugashima. Cruzando as cidades de Oginori e Nashimoto, o estudante chega a uma hospedaria em Yugano. Em companhia dos saltimbancos, na melhor tradição nômade japonesa, segue ao longo do rio Kawazu. Passam a noite na hospedaria Koshuya e finalmente chegam até Shimoda.

Em cada ponto percorrido uma modulação diferente, percepções, por parte do jovem estudante, de coisas que tornam a vida maior e mais intensa. Kawabata queria ser pintor e talvez por isso seus cenários sejam meticulosamente descritos e possuam cores inesquecíveis. Como um pintor, cria o fundo e insere nele os personagens que darão intensidade ao conjunto.

As personagens femininas, sempre melhor compostas que os masculinos, representam papel importante na obra de Kawabata, talvez como antídoto para uma solidão perene que o acompanhou durante toda a vida — o autor teve a trajetória costurada por mortes seguidas e precoces, o que marcou profundamente sua infância. Em A dançarina de Izu a situação não é diferente, pois se trata de um amor platônico, consumado nas profundezas do coração lírico do protagonista.

Nesta novela, a viagem do estudante, a sexualidade guardada e sua solidão são marcas que se sobressaem. A figura do outro (como a do personagem Eikichi, com quem o jovem troca experiências) é de extrema importância. Em muitas passagens do livro, o protagonista se emociona com situações alheias, e estas são necessárias para a apreensão do mundo que o cerca.
A dançarina de Izu é um livro muito lido até hoje no Japão. Teve várias versões cinematográficas, sendo a primeira de 1933, sob a direção de Heinosuke Gosho. Ganha sua versão brasileira traduzida do japonês por Carlos Hiroshi Usirono. Este volume também traz um competente estudo feito pela professora Meiko Shimon, especialista na obra de Kawabata, que traça um panorama crítico da trajetória do autor, tocando em pontos centrais de sua vida e escrita, além de se debruçar sobre algumas de suas importantes obras, como Kyoto ou Contos da palma da mão.

Trechos

“Ele apontou em direção ao banho público, no outro lado do rio. Sete ou oito figuras surgiram vagamente em meio ao vapor. Pude ver então o vulto de uma mulher nua sair correndo da sala de banhos mal iluminada. Em frente ao vestiário, postou-se na ponta dos pés, parecendo que iria pular no rio. Com as mãos e braços bem esticados, parecia dizer algo. Não trajava sequer uma toalha. Era ela, a pequena dançarina. Observando suas pernas, que eram como tenros caules, e seu corpo alvo e bem torneado, senti meu coração mergulhar em êxtase. Por final, soltei um profundo suspiro e sorri maliciosamente.” (p. 25-26)

“Era uma criança. Uma criança que ao nos descobrir em sua alegria, exibia seu corpo aos raios do sol, equilibrando-se e esticando-se completamente. Tomado por um caloroso prazer, continuei a sorrir, e minha mente purificou-se inteiramente.” (p. 26)

“Suas lindas e intensas pupilas negras encerradas em seus grandes olhos eram de rara beleza. Suas sobrancelhas também eram belas. Lembrava uma flor sorrindo. Exatamente: uma flor sorrindo era a melhor definição.” (p. 37)

“Ao me aproximar do píer, meu coração deu um sobressalto ao ver a pequena dançarina agachada perto da borda. Enquanto me aproximava, ela olhava o mar fixamente. Em silêncio, permitiu minha aproximação. A maquiagem era a mesma da noite anterior, deixando-me mais emocionado. O carmim que contornava seus olhos revelava uma certa ira, um ar de valentia infantil.” (p. 54)
==============
O PAÍS DAS NEVES

Obra máxima de Kawabata, O País das Neves é considerada um marco da literatura intimista e neo-sensorialista que deu destaque mundial ao Prêmio Nobel de 1968

A primeira versão desta obra foi publicada originalmente em 1937, mas foi apenas dez anos depois, já influenciado pelos acontecimentos da Segunda Guerra, que o escritor japonês terminou a versão final deste romance sobre o amor espontâneo e sem nenhuma esperança de retribuição.

Neste livro, de grande repercussão no Japão e no exterior (inclusive com adaptações para o cinema), Kawabata expõe a densidade e as contradições das relações humanas por meio do encontro entre Shimamura, um culto senhor de posses, Komako, uma gueixa das montanhas, e Yoko, uma bela jovem provinciana, trazendo ao leitor um texto comovente e lírico ao extremo.

Em vez de provocantes paixões, o desperdício do amor e o sacrifício pessoal dos personagens conduzem-nos a uma atmosfera gélida, com pinceladas de forte afetividade, em que o branco da neve e o frio penetrante contribuem para dar o tom melancólico da narrativa. Não à toa: a estação termal de Yusawa, que o escritor visitou pela primeira vez em 1934, serviu de inspiração para a criação do cenário onde a história se passa.

* * * * *

Em mais um hino dedicado à beleza e à alma femininas, Yasunari Kawabata literalmente nos transporta para uma região mágica do Japão, o País das Neves, onde ruídos, sentimentos, embates amorosos assumem contornos irreais abafados por densas camadas brancas, cenário ideal para os paralelos que tanto aprazem o Prêmio Nobel de 1968, ao cotejar a pele de suas onipresentes jovens com a tradicional cerâmica japonesa, igualmente perfeitas ao toque.

Shimamura, escritor ora refinado ora diletante, sobre o qual pouco sabemos — qualquer desprezo de Kawabata por seus personagens masculinos não será mero acaso —, deixa para trás casa e família e parte com o rigor de uma missão a cumprir rumo ao reencontro com seus anos jovens (“no final das contas, só esse dedo guardava a memória crua da mulher com a qual estava indo se encontrar”).

Entre casas termais, gueixas aprendizes e paisagens gélidas, revela-se uma insistente busca do eu em um correr do tempo estancado desde que o protagonista desceu do trem após longo trecho de narrativa antológica retomando, via reflexos em janelas, o constante tema do espelhamento na obra de Kawabata. E logo de início, ainda no longo túnel levando de Tóquio ao famoso País das Neves, travessia simbólica que conduz de um Japão do Pacífico ao mundo mais irrequieto do Mar da China, o autor nos leva a um magistral mergulho nos mistérios do relacionamento humano. No caso, um velado triângulo amoroso cujos contornos parecem jamais fechar, mas que inevitavelmente alcançarão um fogoso ponto de ruptura.

O País das Neves pode — e deve — ser visto como ponto crucial na obra de Kawabata, e não é por acaso que Shuichi Kato, o papa japonês da história da literatura, escreve que esta é “claramente a obra-prima de Kawabata” — não por outro motivo que pela construção e caracterização dos personagens. Ao contrário do que ocorre no mundo de Kawabata em geral, no qual os personagens femininos são inteiramente inventados, a gueixa Komako existiu na vida real — e mesmo para um autor deste calibre, alguma diferença parece ter havido.

Trechos

“Como o interior do trem não era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. Ele não refletia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer.

Foi nesse momento que os raios de sol, já tênues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta, forte o bastante para ofuscar a imagem refletida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para iluminá-lo. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno de sua pequena pupila foi se iluminando, como se os olhos da moça e a luz se sobrepusessem, seus olhos se tornaram um vaga-lume misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde.” (p. 15)

“... sob a sombra de um beiral, cinco ou seis gueixas conversavam em pé. Shimamura pensou que Komako — nome artístico que ficara conhecendo graças à empregada da hospedaria naquela manhã — poderia estar por ali; de fato, parecendo perceber que ele se aproximava, seu semblante sério a distinguia das outras. Sem que houvesse tempo para Shimamura pensar que ela ficaria ruborizada, desejando que um vento desinteressado a refrescasse, o rosto de Komako já estava vermelho até o pescoço. Já que era assim, ela deveria ter ficado de costas, mas desviando o olhar, visivelmente incomodada, movia aos poucos o rosto na direção em que ele andava.” (p. 48)

“No entanto, ao pensar que Yoko estava naquela hospedaria, Shimamura, sem saber por que, sentiu receio de chamar Komako. Embora o amor de Komako fosse destinado a ele, sentia um vazio como se isso fosse mais um belo esforço em vão. Ao mesmo tempo, também sentia a vida que Komako tentava viver roçar nele tal qual uma pele nua. Compadecendo-se dela, também se compadeceu de si mesmo. Julgou que Yoko era possuidora de um olhar semelhante a uma luz que pungia tal situação, e, por algum motivo, se sentiu atraído por ela também.” (p. 114)

O livro teve duas adaptações para o cinema, em 1957 e 1965, ambas chamadas Yukiguni.
=================
MIL TSURUS

Tradicional cerimônia do chá serve de cenário para autor expor a complexidade das relações humanas

Publicado originalmente em capítulos por revistas japonesas, este romance foi escrito entre os anos 1949 e 1951, período de reconstrução de um Japão devastado pela Segunda Guerra. Nesse contexto em que a sociedade japonesa se reestruturava e também se defrontava com valores culturais vindos do Ocidente, Kawabata resgata valores tradicionais de seu país, fazendo da cerimônia do chá o pano de fundo para a história de Mil tsurus.

Kikuji Mitani é um jovem que, durante uma cerimônia do chá, reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai, Chikako Kurimoto e a viúva Ota, e de repente se vê profundamente envolvido com elas. Enquanto Chikako tenta arranjar um casamento para Kikuji, este inicia um inesperado romance com a senhora Ota, que por sua vez tem uma filha chamada Fumiko, de quem Kikuji também irá se aproximar. Mas há ainda Yukiko, a delicada jovem pretendente a se casar com Kikuji, personagem que representa serenidade num ambiente repleto de ressentimentos e intrigas. Não é por acaso que a moça é descrita usando um lenço de seda ilustrado com tsurus, ave que simboliza nobreza e felicidade na tradição japonesa.

Nessa história em que o passado, através da figura do pai do protagonista, desperta sentimentos em conflito, Kawabata demonstra, mais uma vez, seu profundo conhecimento da antiga cultura de seu país e enaltece a importância da arte oriental, representada nas cerâmicas seculares do ritual do chá. Ao mesmo tempo em que discorre sobre a permanência da arte no decorrer dos séculos, sobrevivendo a gerações, o autor nos mostra o lado efêmero da vida e das relações humanas.

No Brasil, a obra foi publicada pela primeira vez no início dos anos 70, sob o título Nuvens de pássaros brancos (Ed. Nova Fronteira), emprestando-se o título da edição francesa (Nuée d'oiseaux blancs). Preferimos nos reportar ao título original japonês, Senbazuru correspondendo a Mil tsurus.

Trechos

“Da janela do trem, avistava uma larga avenida com altas árvores que despontava logo após a estação Yurakucho e se estendia até a estação de Tóquio, cruzando de leste a oeste a linha do trem. Naquele momento, o asfalto refletia o pôr-do-sol tal qual um cinturão de metal radiante. Contudo, as árvores estavam à contraluz e apenas insinuavam-se suas silhuetas. As sombras pareciam frescas. Os galhos se expandiam para todos os lados, cobertos de folhas. Em ambas as calçadas, havia sólidas mansões de estilo ocidental. Estranhamente, poucas pessoas passavam por ali. Não havia viva alma até bem próximo do fosso do Palácio Imperial. Nem carros havia no asfalto que refletia a luminosidade. Observando de dentro daquele trem lotado, o lugar parecia estar suspenso no entardecer de algum mundo além da imaginação. Havia uma atmosfera estrangeira em tudo.” (p. 63)

“O verniz arranhado daquele vaso antigo deixava semi-aparente a assinatura da peça, ‘Soutan’, que também estava presente na caixa onde ele era guardado. Caso fosse autêntica, a cabaça teria cerca de trezentos anos. Kikuji não conhecia as flores usadas na cerimônia do chá, tampouco sua criada o sabia. Apesar disso, aquela bela-da-manhã parecia ideal a uma cerimônia das primeiras horas do dia. Ficou a observar o arranjo por algum tempo. Que fascinante era ver aquele ramo de vida tão efêmera dentro de uma cabaça tão antiga! Aquela singela flor combinaria melhor com o mizusashi de Shino que o ramalhete de estilo ocidental que comprara? Quanto tempo poderia durar num vaso uma bela-da-manhã? Kikuji sentiu certa inquietude ao pensar na sua fugacidade.” (p. 112)

“A peça era exatamente como Fumiko havia descrito ao telefone naquela manhã. Seu esmalte branco apresentava um leve toque avermelhado. Observando-o por algum tempo, parecia que aquela tonalidade rubra emergia de dentro do branco. Toda a borda era ligeiramente amarronzada, havendo apenas uma faixa mais escura. Seria ali onde a boca tocava? A bebida bem podia ter-lhe tingido a borda, ou então, seriam os lábios de alguém que a maculara. Aquela suave mancha marrom, à medida que era olhada, começava a parecer rosa. Seria mesmo a marca de batom da viúva impregnada na cerâmica, como Fumiko lhe contara? Kikuji também reparou numa coloração marrom-avermelhada nas trincas naturais da cerâmica. Era um tom parecido com o de um batom desbotado, uma rosa vermelha murcha... Mas quando o associou a uma mancha seca de sangue, sentiu-se enjoado. Tinha a sensação de um embrulho no estômago mesclado a uma certa sedução que o fascinava.” (p. 128-9)

“Ele só havia visto Yukiko duas vezes. A primeira, na cerimônia do chá no templo Engakuji, quando Chikako levara a jovem a fazer uma demonstração, com a função de exibi-la a ele. Durante o preparo do chá, seus gestos eram simples e elegantes. Kikuji ainda trazia fresca na memória a imagem dos ombros e das mangas do quimono de Yukiko, bem como de seus cabelos, iluminados sob a divisória de papel-arroz por onde se projetavam suavemente as sombras das árvores próximas. Só não conseguia recordar-se muito bem de suas feições. Já o fukusa vermelho e o lenço de tsurus brancos que a jovem levava quando se dirigia à sala de chá eram-lhe vivas lembranças.” (p. 144)
============================

A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS

Obra serviu de inspiração para o recém-lançado e aclamado Memória de mis putas tristes, de Gabriel García Márquez

Imbuída de um erotismo inusitado, esta obra, escrita em 1961, demonstra a maturidade estilística do autor, que se utiliza de sua virtuose descritiva para contar a história de Eguchi, um senhor de 67 anos que freqüenta a “casa das belas adormecidas”, uma espécie de bordel onde moças encontram-se em sono profundo, sob efeito de narcóticos. Apesar da idade avançada, o protagonista parte em busca dos prazeres perdidos e se depara com moças virgens, que os visitantes podem tocar, mas são proibidos de corromper. Daí derivam passagens antológicas de rememorações pessoais e fantasia.

Kawabata procura desvendar o enigmático universo do corpo feminino em um culto ao belo e ao inalcançável, investigando as dores da solidão a partir da sutileza de um erotismo expressivo, constantemente atravessado por passagens de fina ironia e perturbadora consciência da passagem do tempo, do vazio existencial que permeia as relações humanas.

* * * * *

É objeto de consenso na crítica literária mundial que Yasunari Kawabata descreveu com meticulosa concisão as profundezas da alma feminina e revelou o corpo da mulher em seu mais sutil esplendor. Dono de uma capacidade de observação única, nenhum detalhe, nenhuma verdade escapam de seu olhar incomum. Em A casa das belas adormecidas, Kawabata dedicou-se obsessivamente a esta marca de sua literatura. Imbuído do matsugo no me, que talvez pudéssemos traduzir por “o olhar derradeiro”, Kawabata nos dá a impressão de pintar em cores vivas as últimas imagens de quem vai partir deste mundo.

A sexualidade na idade madura aflora nua e crua num cenário composto para o deleite de quem não mais pode procurá-lo por conta própria. Contrapartida mais fantasiosa e ao mesmo tempo mais radical, apresenta um inegável parentesco com Diário de um velho louco, de Jun’ichiro Tanizaki, outro grande mestre da literatura japonesa moderna. Se este último trata da sensualidade a priori contida que acomete um idoso no cotidiano, Kawabata nos leva aqui em singela exploração sensorial do corpo feminino oferecido em estado de torpor controlado. Os meandros da sexualidade — assim como a inexistência dela — em situações limite, da repressão do desejo e do autocontrole exacerbado compõem um jogo perverso que assume todo seu significado quando o protagonista tem de lidar com a noção de virgindade em seu sentido mais amplo. Temos aqui um indício de até que ponto Kawabata, sempre fiel a si mesmo, foi deliberadamente aos alicerces das estruturas mentais. Yukio Mishima, que louvava Kawabata, escreveu de forma reveladora em seu prefácio à edição norte-americana desta obra: “E será que a impossibilidade de obtenção não coloca definitivamente o erotismo e a morte no mesmo nível? E se nós romancistas não estamos do lado da ‘vida’ (se estamos confinados a uma abstração de certo tipo de neutralidade perpétua), então ‘a radiação da vida’ somente pode aparecer onde morte e erotismo caminham juntos.”

Trechos

“Uma mulher mergulhada no sono, que não fala nada, que não ouve nada: não seria, por outro lado, o mesmo que falar tudo, escutar tudo de um velho que já não tem virilidade para fazer companhia a uma mulher? Para Eguchi, entretanto, essa era sua primeira experiência com uma mulher desse tipo. A garota, por certo, já devia ter experiência de deitar-se com velhos como ele. Entregava-se totalmente e ignorava tudo, mergulhada no sono letárgico tal como uma morte aparente, deitada com um rosto quase infantil e respirando com tranqüilidade.” (p. 22)

“A decrepitude hedionda dos pobres velhotes que procuravam aquela casa ameaçava atingi-lo dentro de alguns anos. Quanto da imensurável amplitude do sexo, da insondável profundidade do sexo ele teria tocado na sua vida de 67 anos? Além disso, em volta dos velhotes nasciam incontáveis peles renovadas de mulheres, peles jovens, de garotas bonitas. Os desejos de sonhos impossíveis, o lamento pelos dias que lhes escaparam e que estavam perdidos para sempre não estariam impregnando os pecados daquela casa secreta? Eguchi já havia pensado que as garotas adormecidas o tempo todo seriam uma eterna liberdade para os velhotes. As garotas adormecidas e mudas certamente lhes falavam tudo que eles gostariam de ouvir.” (p. 43)

“Eguchi afrouxou o braço que apertava a garota com força, abraçou-a com carinho e ajeitou seus braços nus de modo que ela o enlaçasse. E ela o abraçou docilmente. O velho manteve-se nessa posição e permaneceu quieto. Fechou os olhos. Aquecido, sentia-se num deleite. Era quase um êxtase inconsciente. Parecia compreender o bem-estar e a felicidade sentidos pelos velhotes que freqüentavam a casa. Ali eles não sentiriam apenas o pesar da velhice, sua fealdade e miséria, mas estariam se sentindo repletos de dádiva da vida jovem. Para um homem no extremo limite da sua velhice, não haveria um momento em que pudesse se esquecer por completo de si mesmo, a não ser quando envolvido por inteiro pelo corpo da jovem mulher.” (p. 53-4)

“Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo do seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida. Talvez houvesse neles também certo arrependimento pelos pecados cometidos, ou pela infelicidade no lar, coisa muito comum nas famílias dos vencedores. Decerto os velhotes não possuíam seu Buda, diante do qual pudessem ajoelhar-se e orar. Por mais que abraçassem fortemente a bela desnuda, derramassem lágrimas frias, se desmanchassem em choro convulsivo ou berrassem, a garota nada ficaria sabendo e jamais acordaria.” (p. 80)
===============================
CONTOS DA PALMA DA MÃO

Produção que acompanhou praticamente toda a vida do autor — o mais antigo data de 1923 e o mais recente, de 1964 —, esses brevíssimos contos, gênero literário dileto de Kawabata, foram reunidos pela primeira vez em 1971. Eram, então, 111, de acordo com a seleção acompanhada pelo próprio escritor, que, na época, declarou: “A maioria dos escritores, quando jovens, escreve poemas, enquanto eu escrevia ‘contos da palma da mão’”. Dez anos mais tarde, numa edição já póstuma, e que se tornaria corrente, acrescentaram-se outros onze. É essa, da editora Shinchosha, a referência para a edição lançada agora no Brasil. Quantos são, de fato, os “contos da palma da mão”, é difícil saber ao certo: há pesquisadores que afirmam existirem 175; outros falam em 146.
Em cada uma das narrativas chama a atenção, em primeiro lugar, o poder de concisão. Ao tratar de uma rica variedade de temas — na qual, aqui e ali, identificam-se recorrências que voltaremos a encontrar também nos romances do autor —, Kawabata sabe escolher o essencial, a palavra precisa, e descartar tudo o que não é absolutamente necessário. As imagens são fortes, a escrita é sinestésica e não há lugar para sentimentalismo, divagações e explicações. Muitas vezes encerra-se a leitura de um conto — que contém, numa média de duas a quatro páginas, tamanho que “cabe na palma da mão”, todo um universo dramático — sem a noção exata de seu significado. Paira no ar uma impressão, algo que, a um só tempo, é capaz de impregnar a imaginação do leitor e ficar além do seu entendimento. E então, em algum momento posterior, essa sensação difusa pode vir a se transformar em revelação plena de sentido.

A morte, o amor, a infância, a cegueira, a sensualidade, os laços de família, os sonhos, as expectativas são alguns dos temas que perpassam os contos, e que muitas vezes nascem da observação do que há de mais cotidiano — e, nesse sentido, invisível — na existência. “[...] entre eles há algumas peças não muito razoavelmente fabricadas, mas há algumas boas, que jorraram de minha pluma naturalmente, de seu próprio aval. [...] Vive neles o espírito poético de meus dias jovens”, disse o autor certa vez.

Trechos

“E, por fim, quando chegar o dia em que seu coração nublado e ferido fizer com que veja um gafanhoto como um autêntico suzumushi, ou se vier a sentir que o mundo está repleto de gafanhotos, então, nesses momentos, sentirei pena de você por não possuir meios de recordar esta noite; a brincadeira das luzes verdes de sua bela lanterna que desenhavam seu nome no peito daquela menina.” (p. 43)

“Atraído pelo olhar da moça, o homem também me olhou. Esboçou um sorriso safado, por um instante, e logo voltou à expressão séria de antes. No mesmo instante, fiquei sem graça. Então, a moça também corou um pouco e, como se ajeitasse os cabelos, levantou a mão esquerda para seu momoware. Seu rosto ficou oculto atrás da manga do braço erguido. Tudo isso aconteceu num instante, que se seguiu depois que ela tentou arrebatar a vara da mão do homem pela segunda vez. Sentindo ligeira revolta por aquele quê de maldade lançado pelo vendedor de óculos, e com um pouco de remorso por ter espiado os segredos dos outros, retomei a minha caminhada.” (p. 189-90)

“Quando vira o garoto passar na frente da lojinha, ela saíra voando, sem ter tempo de ajeitar o cabelo. Como se acabasse de tirar a touca de banho de mar, seus cabelos estavam em desalinho, deixando-a ansiosa. No entanto, na frente dele, ela era uma menina inibida que não conseguia arriscar um gesto para ajeitar os fios rebeldes de seus cabelos. O garoto, por sua vez, temia que pudesse ofendê-la se lhe pedisse para ajeitá-los.” (p. 334)

“Ela, que vivera sempre perseguindo amores intensos, mesmo agora que estava enferma, não conseguia conciliar o sono sossegado sem sentir, no seu pescoço ou no peito, o braço de um homem. Entretanto, quando seu estado se agravou, ela implorava:
— Segure meus pés! Não posso suportá-los tão tristes.
[...]
No entanto, inesperadamente, as mãos dele tremeram. Sentiu a sensualidade da mulher vinda dos pequenos pés. Aqueles pequenos e frios pés nas palmas de suas mãos suscitaram nele o mesmo prazer de tocar nos pés quentes e úmidos dela. Envergonhou-se das próprias sensações que pareciam profanar os momentos sagrados da morte da namorada. Mas aquele pedido para ele segurar os pés dela não teria sido seu último recurso da arte do amor? Ao pensar nisso, ficou aterrorizado ante a exacerbada feminilidade daquela mulher.” (p. 348-9)
========================

KYOTO

Obra que deu reconhecimento internacional ao escritor japonês e foi uma das três citadas pela comissão quando este recebeu o Nobel em 1968

Rico em descrições da cidade que foi a capital do Japão por cerca de mil anos (794-1868), Kyoto, de 1962, foi uma das últimas obras finalizadas pelo autor antes de sua morte dez anos mais tarde. Ambientado no período pós-guerra, o livro narra a trajetória de Chieko, filha adotiva de Takichiro, um comerciante de quimonos, e de sua esposa, Shige.

Chieko é uma jovem que trabalha na loja da família e a vê em processo de falência, assim como vários outros pontos comerciais da antiga capital japonesa, em razão de mudanças nos valores culturais, agora fortemente influenciados pelo Ocidente. Durante um passeio pela aldeia de Kitayama, região montanhosa na periferia de Kyoto onde são cultivados cedros, Chieko acidentalmente conhece sua irmã gêmea, Naeko. Separadas ainda quando bebês, criadas em ambientes hierarquicamente distantes entre si, as irmãs agora tentam se aproximar, e se deparam com a inevitabilidade do destino, o afloramento da sexualidade e o surpreendente curso do acaso.

Kawabata desenvolveu uma extensa e profunda pesquisa para mergulhar na cultura, nos costumes e no dialeto da cidade mais tradicional do Japão, revelando na obra aspectos da região de Kyoto desconhecidos mesmo de japoneses, provenientes de localidades distantes, como o próprio autor, nascido em Osaka. As líricas descrições de Kawabata sobre a cidade, sua mescla de antigas e modernas construções, suas datas festivas e belezas naturais, inspiraram duas versões para o cinema, uma do diretor Noboru Nakamura, indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1964, e outra de Kon Ichikawa, de 1980.

Trechos

“A maioria das casas de Nakagyo tinha virado cinzas na conturbada época que precedera a Restauração Meiji, em 1867, em decorrência de incêndios, os quais ficaram conhecidos como ‘das Espingardas’ e ‘dos Canhões’. A loja de Takichiro tampouco escapara do mesmo destino. Por isso, mesmo que tenha sido preservado o estilo tradicional das lojas da antiga Kyoto, com as portas frontais gradeadas e pintadas de bengara e janelas do tipo mushiko, na realidade, nenhuma delas tinha mais de cem anos. Dizem, contudo, que o grande depósito nos fundos da loja de Takichiro havia escapado daqueles incêndios... Seu estabelecimento praticamente não fora modernizado, em parte devido ao caráter de seu proprietário, mas também por ser um atacado cuja administração não prosperara.” (p. 47-8)

“A beleza das árvores era sem dúvida proporcionada pela beleza da cidade, pelos cuidados com a limpeza em todos os recantos. No bairro de Gion, até mesmo as ruelas mais recolhidas, onde há muitas casas antigas, pequenas e mal iluminadas, são asseadas. O mesmo pode ser dito de Nishijin, bairro conhecido por seus quimonos. Nas imediações, onde se espremem minúsculas lojas que só de olhar causam pena, as ruas são relativamente limpas. Mesmo as pequenas grades de madeira nunca estão empoeiradas. Assim também é no Jardim Botânico, onde não se vêem papéis espalhados no chão. O exército de ocupação norte-americano havia construído ali casas para seus militares e, naturalmente, a entrada fora proibida aos japoneses. Mas, desde a retirada das tropas, o Jardim Botânico voltara a ser como antes.” (p. 63-4)

“Os cedros da aldeia de Kitayama eram todos administrados por pequenos empresários. Contudo, nem toda família era dona de terra. Pelo contrário, poucos o eram. Chieko cogitava se seus pais também teriam sido empregados de alguma família proprietária. A própria Naeko dissera: ‘Estou trabalhando para...’ Tudo havia acontecido vinte anos antes. Chieko teria sido abandonada porque, na época, ter filhos gêmeos era considerado uma vergonha, além do que se acreditava na dificuldade de criá-los com saúde. Era possível que tivessem se preocupado também com os escassos rendimentos da família. Chieko esquecera de perguntar três coisas a Naeko. Por que abandonaram a ela e não a irmã? Quando ocorrera o acidente do pai, sua queda do alto do cedro? Naeko dissera ser ‘recém-nascida’ na época, no entanto... Havia dito também ter nascido na casa do avô materno, um lugar bem mais remoto do que a aldeia dos cedros. Nesse caso, qual seria o nome do lugar?” (140-1)

Fonte:
http://www.estacaoliberdade.com.br/

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

José Rubem Fonseca (A Grande Arte)



Parte I

O narrador - protagonista Mandrake e seu sócio judeu Wexler mantêm um escritório de advocacia. Às vezes perdem suas causas, outras ganham (exemplo: o caso da cafetina Miriam). Recebem a visita da prostituta Gisela, ameaçada de morte por Roberto Mitry (tentara chantageá-lo com uma fita de vídeo). Não aceitam o caso por se tratar de chantagem. R. Mitry tenta contratá-los em seguida, para recuperar a fita; paga qualquer preço. No dia seguinte, Gisela aparece morta. Dois dias depois, sua amiga massagista Danusa - ambas estranguladas e com letra P desenhada a faca na bochecha.

Alfredo (marido de Danusa) conta a Mandrake sobre a relação das moças com Cila (ou Laura Lins, dona da butique Messina e de um bom apartamento), aventureira que chegara do NE para "subir na vida". Na casa de Laura Lins, alertado pela empregada do "sumiço da patroa", o detetive chama o delegado e amigo de faculdade, Raul. Arrombam a porta e acham Laura morta. Ao sair, Mandrake leva uma carta recém-chegada, através da qual descobre que ela tem um amante e uma amante: Rosa Leitão, casada com o vice-presidente do Banco Aquiles, mas não consegue localizá-la. Raul procura-a inutilmente na boate Lesbos, do anão preto José Zakkai, o "Nariz de Ferro", inescrupuloso, vaidoso e falador (cita constantemente pensamentos próprios, que atribui a escritores ou pessoas de renome).

Mandrake e Wexler conversam sobre o passado de Mandrake e a situação do escritório (ausências contínuas do primeiro), quando chega Bebel, filha de Rosa Leitão, propondo-se a levar Mandrake até a mãe, que se escondera num sítio em Itaipava. Apesar de Wexler ser contra a idéia de Bebel para o tal sítio acabam indo. Passam a noite juntos e encontram Rosa no dia seguinte. Ela conta a história de Cila e o estabelecimento da relação entre ambas. Mostra ressentimento contra a amante morta e diz que não imagina quem a matou. Talvez o amante "coronel". Rosa conversa com a filha Bebel. No jardim, Mandrake pensa em Ada, que quer casar-se com ele e ter filhos, e na gata Elizabeth, a "dona" do seu apartamento (o mundo precisa mais de gatos que de gente). Ele ama Ada, mas não consegue ser-lhe fiel.

No Rio, sai com Ada para jantar. Na volta, são surpreendidos no apartamento por dois homens à procura da fita de vídeo. Um deles esfaqueia Mandrake no abdômen e sevicia (violenta) Ada com o cabo da faca. Os dois vão parar no hospital. Mandrake quer vingança. Pede a Hermes (ex-sargento do exército, que livrara da prisão) especialista no manejo de armas brancas, que lhe ensine a arte do Percor ("perfurar" e "cortar"). Ficam quites. Lê e treina muito. Deixa a barba crescer. Ada volta para a casa dos pais, em Pouso Alto. Uma semana depois, o namorado vai atrás dela. Volta sozinho, chamado por Raul. Identifica Camilo Fuentes (boliviano bruto, forte, que odeia brasileiros e é matador profissional) como o homem que os feriu (usava um cordão de ouro com um unicórnio, presente de Berta). Sem provas concretas, Camilo é libertado e viaja para a Bolívia. É seguido pela polícia federal, que pretende flagrá-lo traficando cocaína.

Mandrake resolve segui-lo disfarçado. No trem Mandrake encontra Camilo no restaurante com duas prostitutas, Zélia e Mercedes. Aproxima-se da Mercedes, a mais velha, quando os outros dois se retiram para a cabine. Apresenta-se como comprador de gado. Mercedes finge que acredita. Começa a informá-lo sobre o boliviano e acabam ficando juntos. Camilo Fuentes odeia os brasileiros, pois seu tio Miguel lhe contara que um deles havia assassinado seu pai. Desconfia de Mandrake e de Mercedes (bebe, mas nunca se embriaga). Odeia Rafael (o outro matador de aluguel, que o chama de China), mas vai encontrá-lo para tratarem de "negócios" em Quijarro e depois em Puerto Suárez. Encontram-se todos no "Dancing Days". Sentindo-se seguidos, adiam os negócios: Mateus manda Fuentes matar Mandrake e volta com Rafael para o Rio. Mandrake, após segui-los até o aeroporto, vai ao restaurante de Alberto e fica conhecendo sua história. De volta ao quarto, encontra Mercedes com o pescoço quebrado: ela fora descoberta por Fuentes, lutaram e ela o cegara, sendo morta. Chama a polícia e depois acompanha o enterro. No cemitério, fica sabendo que Mercedes era agente federal e que ele, com sua bisbilhotice, estragara o plano da captura de Fuentes.

De volta a São Paulo, antes de entrar no apartamento, na Av. São João, Camilo Fuentes procura o jornaleiro Benito, que o avisa que ele está sendo vigiado. Decide ir ao Rio e combinam um encontro no cine Marabá, daí a quinze dias. No Rio procura um oftalmologista, que lhe recomenda um transplante de córnea, pois não enxerga mais com o olho ferido. Conhece Míriam em um supermercado e gosta dela. Apesar de brasileira e ex-cafetina. Volta a São Paulo, mas encontra Benito morto no apartamento. Vai ao cine Marabá, onde percebe uma armadilha para pegálo.

Mata dois homens, mas antes fica sabendo que foram contratados por Mateus ("queima de arquivo"), a mando do Chefe. Mandrake é procurado por José Zakkai ("Nariz de Ferro"), o anão negro, que lhe conta sua história: "Já cuspiram e cagaram em mim. Ou eu morria ou virava essa maravilha que sou" (pg. 151). Por dever favores a Raul, o anão procura Mandrake e o avisa sobre a lista de "queima de arquivo" da Organização (tóxicos, diversões eletrônicas, mulheres, rede de fast-food e de pornografia). Fazem o jogo do "sim" e do "não", mas Mandrake deixa a última pergunta para outra oportunidade e não aceita a aliança proposta.

Zakkai vai em busca de Camilo Fuentes e os dois se unem para enfrentar o Escritório Central (Org. Aquiles). Começa a "briga" entre Ada e Bebel por Mandrake.

Parte II
Inicia-se com um "flash-back" para explicar a origem da família Lima Prado e da Organização Aquiles. 1845: José Joaquim de Barros Lima nasce no Rio, filho de imigrantes portugueses. O pai é carvoeiro, mas o filho vira bacharel em Coimbra. Aos 42 anos casase com Vicentina Cintra, filha do senador Abelardo Cintra. Sua banca de advogado prospera com a abolição e a república. Trava amizade com políticos e escritores ilustres, mas tem uma frustração literária: não consegue ser reconhecido como grande poeta. Também se frustou como político: morre na véspera de tomar posse como ministro do S.T.F. (Supremo Tribunal Federal). Sua maior frustração provém das duas filhas, que não o amam: Maria do Socorro leva vida dupla: à noite veste-se de homem, chama-se Mário e freqüenta prostitutas em bordéis. Acaba assassinada por uma delas. A outra filha, Laurinda, casa-se grávida aos 16 anos com José Prescilio Prado, de dezessete anos e sobrenome próspero. Após a morte do pai sustenta a mãe no Rio. Laurinda vive em São Paulo e tem três filhos - Fernando, Maria Augusta e Maria Clara.

Torna-se patronesse das artes, recebe escritores, artistas e amantes, patrocina revistas literárias. O marido perde fortunas no pôquer e no vício (drogas), suicidando-se no aniversário de casamento (31 anos de casados). Laurinda vende sua mansão na Av. Paulista e muda para o Rio, com os três filhos: Maria Augusta casa-se com um "nobre" francês, Bernard Mitry, que a abandona e ao filho Roberto; Maria Clara era doente mental, uivava feito lobo e vivia presa no porão; Fernando, casado com Luísa Montillo, vive de um emprego modesto na prefeitura do Rio. Seu filho, Thales Lima Prado, guarda cioso um livro de 500 páginas sobre a vida da família Prado (Retrato de família, de Basílio Peralta, 1949) e sonha tornar-se escritor famoso. Enquanto isso, torna-se banqueiro famoso e presidente da Organização Aquiles. Desde os 19 anos, a avó Laurinda, que o adora, dissera-lhe não ser ele filho de Fernando, mas de Bernard Mitry. Segundo ela, só Thales teria escapado do destino trágico da família Prado. Como presidente da poderosa organização, corrompe políticos, "lava" dinheiro proveniente do tráfico de drogas e outros serviços escusos.

Mantém hábitos estranhos e defende as idéias de Hitler e do nazismo. Ordena a Mateus a "queima de arquivos": o primo Roberto Mitry (fita de vídeo), Mandrake, Fuentes e o anão Zakkai, que ameaça seu poder. Rafael inicia o "trabalho" com R. Mitry, Titi e Tatá, duas ninfetas com quem este dormia depois de uma festa pesada" em seu apartamento. O crime triplo repercute na imprensa muito mais que as matanças nas favelas. No clube, Lima Prado conversa com um senador sobre "negócios" e sai para encontrar-se com Mônica, com quem faz sexo. Tornam-se amantes. Na verdade, Thales (ou Ajax) é filho de Fernando com a irmã louca. Daí a preferência da avó por ele. Pensa na loucura. Fuentes e Miriam querem começar nova vida. Ela conta a ele sobre o advogado Mandrake. Camilo e Zakkai encontram-se em um circo. O casal muda para uma casa na ladeira Madre de Deus (tentando fugir).

Camilo e Zakkai encontram Rafael em seu sítio. Torturam-no (comer barata) e o anão o mata com uma tesoura. Acham a fita. Zakkai assiste ao vídeo e liga para Thales Lima Prado, que combina um encontro: Hermes vai buscar a fita, mas é morto por Camilo Fuentes. Thales, acuado, suicida-se enfiando uma faca na axila. Deixa seus cadernos de anotações na mesa da cozinha, ao lado de uma garrafa de álcool. Mandrake é abandonado pelas três mulheres. Lilibeth, Bebel e Ada (que viaja com Wexler). Miriam visita o advogado para contar sobre a morte de Camilo Fuentes e para devolver-lhe o unicórnio de ouro. Mandrake decifra os cadernos de Lima Prado, que a polícia não conseguira entender, e soluciona a trama: Thales, em busca da fita, matou as prostitutas e marcou-as com o P. Rosa Leitão, que ascendera socialmente até se casar com o vice-presidente do banco e tornar-se amante do presidente da Organização, assassinou Cila por ciúme, ao flagrá-la com outra mulher. Todos os outros crimes foram atribuídos à "queima de arquivos". Zakkai assume o controle da Holding que controlava a Pleasure, a Fun e a Fastfood, separando-se do banco. Procurado por Mandrake, responde à terceira pergunta de Mandrake (O que havia na fita? - Nada, só risquinhos). Bebel volta para Mandrake. Falam de amor.

Personagens

Mandrake: narrador-personagem. Advogado com tendências a detetive, solteirão irresistível às mulheres, extremamente sedutor. Aprecia vinhos finos e charutos. Foi menino introvertido e solitário. Embora tenha fobia a sangue, inicia-se na arte do PERCOR (perfurar e cortar), mas não consegue encontrar-se na arte do amar ("amo aqueles que me amam"). Cinismo disfarça insegurança.

Ada: namorada "oficial" de Mandrake, corpo bonito e atlético, acaba desencantando-se e optando pela serenidade de Wexler.

Wexler: advogado judeu, sócio de Mandrake. Apaixonado por Ada, mantém-se ético até o final, quando sai de viagem levando Ada junto.

Thales Lima Prado: Chefe da Organização criminosa "Escritório Central", constitui-se no grande vilão do livro. Foi militar. Ao tentar escrever um livro sobre a família Prado, descobre-se filho incestuoso e sua personalidade começa a desintegrar-se na loucura. "Patrocina" a grande maioria dos assassinatos do livro, suicidando-se no final (como o Ajax mitológico).

José Zakkai (o Nariz de Ferro): Anão negro, feio e inescrupuloso. Sai do esgoto para tornar-se "uma maravilha". Vive citando pensamentos e atribuindo-os a escritores e filósofos, para simular erudição.Ambicioso, torna-se o principal adversário de Thales, a quem trai para conseguir a direção dos braços da organização ligados ao tráfico, jogo e prostituição.

Roberto Mitry: primo de Thales, que o usava para desviar recursos ao exterior. Cultivava aberrações sexuais (sado-masoquismo). É assassinado na "queima de arquivos".

Camilo Fuentes: matador boliviano que odeia brasileiros. Esfaqueia Mandrake e sevicia Ada com o cabo de sua faca. Frio e cuidadoso, bandeia-se para o lado de Zakkai. Morre fuzilado (queima de arquivo).

Hermes: professor na arte do PERCOR, quando militar, assassinou um superior e foi defendido por Mandrake, a quem dá aulas para livrar-se da dívida. É morto por Camilo Fuentes.

Rafael: membro da Organização, é assassino cruel. Ao mesmo tempo, cultiva rosas. É assassinado por Zakkai, com uma tesoura. namoradas de Mandrake: Ada, Bebel, Lilibeth, Berta.

prostitutas: Miriam (cafetina), Gisela, Danusa, Cila, Titi e Tatá...

mulheres arrivistas: Rosa Leitão, Laura Lins (Cila) a família Lima Prado (avós, filhos e netos), de trágica linhagem.

Tempo

Embora procure seguir certa cronologia, apresenta vários cortes: em função das informações fragmentárias que o narrador vai recolhendo sobre os crimes; apresenta cortes cinematográficos e simultaneidade de cenas; há um grande "flash-back" no início da Parte II para que a genealogia da família Prado seja conhecida.

Espaço
Rio de Janeiro: a alta e a baixa sociedade, convivendo violentamente em busca de riqueza e poder. São Paulo - Cuiabá - Bolívia - Pouso Alto (MG).

Sobre o autor postagem em 14/04/08

Fonte:
Digerati CEC 003. (CD Rom)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Colar de Pérolas Culturais



Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio.

O nervo ótico transmite idéias luminosas ao cérebro.

O vento é uma imensa quantidade de ar.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

Péricles foi o principal ditador da democracia grega.

O problema fundamental do terceiro mundo e a superabundância de necessidades.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d'água.

A principal função da raiz é se enterrar.

O sol nos dá luz, calor e turistas.

As aves têm na boca um dente chamado bico.

A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem que realizar em um metro da unidade de tempo, no sentido contrario.

Lenda é toda narração em prosa de um tema confuso.

A harpa é uma asa que toca.

A febre amarela foi trazida da China por Marco Pólo.

Os ruminantes se distinguem dos outros animais porque o que comem, comem por duas vezes.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

A insônia consiste em dormir ao contrário.

A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais.

A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país.

O Chile é um país muito alto e magro.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

O batismo é uma espécie de detergente do pecado original.

Na Grécia a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

A prosopopéia é o começo de uma epopéia.

Os crustáceos fora d'água respiram como podem.

As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite.

Os hermafroditas humanos nascem unidos pelo corpo.

As glândulas salivares só trabalham quando a gente tem vontade de cuspir.

A fé é uma graça através da qual podemos ver o que não vemos.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O objetivo da Sociedade Anônima é ter muitas fabricas desconhecidas.

A Previdência Social assegura o direito a enfermidade coletiva.

O Ateísmo é uma religião anônima.

A respiração anaeróbia é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos.

O calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo.

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.

Fonte:
"Jornal do Brasil". Rio de Janeiro: 21/10/84

Machado de Assis (A Desejada das Gentes)

— Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.

— Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? É porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...

— Vamos andando.

— Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que por aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

— Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

— Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

— Isso. Que fim levou?

— Morreu em 1859. Vinte de Abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

— Se foi em 1855..

— Em 1855.

— Devia ter vinte anos.

— Tinha trinta.

— Trinta?

— Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava de vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

— Mau, nada de ironias; olhe que ironia não faz boa cama com a saudade.

— Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

— Mas se os olhos não tinham mistérios...

— Tanto não tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante e da primeira roda. Mas um dia, no antigo teatro Provisório, entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dous confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessaram tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

— Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

— No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando calado. —Aposto que a namoras? perguntei-lhe. —Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério?

— Muito sério. — Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

— Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...?

— Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

— Brigados?

— Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que tinha nos enfeitiçado a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco nos falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

— Começo a ver uma pontinha do drama...

— Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falava das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

— Menos a pistola.

— Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

— Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

— Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali a tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luvas das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, um receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

— Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

— Vai ver que não.

— O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

— ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

— Mas conversavam de quê?

— De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou que parecia ser.

— A razão é clara: achava a sua conversação menos ensossa que a dos outros homens.

— Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada; tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

— Mas que era isso senão amor?

— Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

— Enfim!

— No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa, me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada, impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

— E então?

— Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficámos sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos; não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora diz isso, porque não sente a mesma cousa. — Mas então é um delírio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma cousa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocámos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

— Treme-lhe ainda ...

— E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha , que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

— Oh!

— Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos , e dizia cousas meigas e graves . Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; como a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbulo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

— Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

— Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

— Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correu à casa dela.

— Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui e voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois o demônio da esperança veio outra vez pousar no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. As boatos de nosso casamento correram o mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei quê, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

— De que moléstia padecia?

— Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegámos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito, teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir; ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lho. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

— Casou com o senhor, aposto?

— Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusa nem pedidos; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de Abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de Abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez, feita cadáver.

— Tudo isso é bem esquisito.

— Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meia defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte:
Biblioteca Virtual da USP.

Eça de Queirós (O Tesouro)


I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril — os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferio. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

— Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até á fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

— Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
— Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto...

II

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água. brotando entre rochas: caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

— Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia connosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

— Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado. se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
— Vês tu? — gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma ideia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

— E para quê — prosseguia Rui. — Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até ás outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...
— Pois que morra, e morra hoje! — bradou Rostabal.
— Queres?

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:

— Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de «cerdo» e de «torpe», por não saberes a letra nem os números.
— Malvado!
— Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos — e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o roo, recomeçou a bocejar, com tome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto...

Rui murmurou: — Na ilharga! Mal que passe! — O chouto da égua bateu o cascalho. uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada — e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua — Rostabal. caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

— A chave! — gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda — Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor do sangue que lhe espirrara para a boca: Rui, atrás, puxava desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela. não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada — e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse urna estaca num canteiro, enterrou a folha toda na largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo — e um sangue mais grosso forrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III

Agora eram dele. só dele, as três chaves do cofre! E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de Dezembro. alguns ossos sem nome. ele seria u magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos — a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges — e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo — nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia — destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de urna ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa. tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente. limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

— Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava — sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água. que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou. caiu para cima da relva. que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu. com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente; esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:

— É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando. lavava o outro morto. Meio enterrado na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.

Fontes:
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestre21.htm
Imagem =
http://leninazz.wordpress.com

Aluisio de Azevedo (O Japão Cronica - Capitulo 1)



Graças à recente vulgarização das crônicas japonesas, dantes inacessíveis a todo e qualquer estranho, poucos segredos haverá de virgindade inteira sobre o Japão remoto, e nenhum absolutamente a respeito dos fatos políticos que no moderno determinaram a restauração micadoal, podendo-se num punhado de capítulos despretenciosos dar exata notícia do que foi aquele passado, outrora tão misterioso e sem fundo, e do que vem a ser ao justo essa famosa revolução que num momento de frenesi histórico derrocou, em nossos dias, um mundo insondável de tradições acumuladas durante vinte e dois séculos de sigilo nacional. Isto, conquanto um pouco fora do meu programa, faz-se indispensável para clareza do resto desta singela obra de impressões pessoais; sem contar que o caso é de si bonito e novo, pois começa poeticamente por uma lenda maravilhosa e risonha, palpitante de quimeras e ficções divinas, e acaba na mais engravatada e burocrática monarquia constitucional, com os seus ministérios de casaca bordada, com as suas secretarias de Estado e os seus competentes amanuenses de calças puídas, e até, acreditai se quiserdes! com o pálido bacharel apenas desabrochado da academia sem outro ideal na vida além de apanhar por empenho qualquer emprego público.

JIMMU TENNÓ
JINGÓ KOGÓ - YORITOMO

Um dia, o tonante Izanangui, que habitava com a formosa e divina Izananmi o empíreo celeste, indiferentes ao mundo ainda descampado, teve a fantasia de sondar com a ponta ciclópica da sua lança de deus as profundezas do oceano e, ao recolhê-la d'agua, as gotas que escorreram e pingaram no mar viraram-se numa ilha esmeraldina, Awaji, da qual os dois altos amantes, cansados do céu impassível, fizeram o éden dos seus amores terrestres e sensuais. Izananmi, meiga e fecunda, deu deles então a luz da vida as oito mais bonitas ilhas de Dai-Nipão e logo, para as não deixar tristes e desertas, produziu do seu ventre trinta e cinco kamis ou deuses já humanizados pelo amor sexual feito por ela na terra. Dentre esta nova sucessão de Izananmi surtiu Amateras, deusa do sol, a dona do divino espelho de Shinto, em cuja luz a sua futura descendência mortal e sensitiva poderia, e nos escassos tempos e dias aziagos do porvir, contemplar-lhe o rosto amigo e ler-lhe nas benignas feições os desígnios providenciais. Amateras, cônscia do que lhe reservava o destino, queria também ser fecundada, mas, orgulhosa dos seus incompensáveis encantos, não achava entre deuses e kamis varão assaz luzido e belo para o amor do seu corpo, e então, num singular enlace, concebeu um filho com os ardentes carbúnculos do seu próprio diadema de princesa celestial. O filho, da têmpera rija e cristalina das gemas que o geraram, foi posto na ilha de Kiuciu, que ele povoou de heróis, vindo dois de seus descendentes, guiados pelo divino falcão de oito cabeças, a atravessar o Mar Interior e a cair sobre o Japão central, de pronto por ambos conquistado contra o poder dos maus deuses e homens rebeldes que o ocupavam.

Um desses dois conquistadores, Iware Hito, foi o primeiro soberano do Japão e morreu, com mais de um século de idade, 585 anos antes de Jesus Cristo. Seu nome póstumo é Jimmu Tennô, como está na História e com o qual abre o almanaque de Gotha a lista cronológica e genealógica dos Micados e Shoguns de Dai-Nipão; ocupa hoje o trono o seu descendente em linha reta Mutsu Hito, que e o 122o da divina série micadoal.

Assim, o atual Imperador, apesar da sua constituição parlamentar, apesar do seu prosaico uniforme de General de Divisão, é nada menos do que descendente direto da formosa Deusa do Sol e tem com certeza na augusta fíbrina centelhas das luzes cambiantes do ilustre diadema seu antepassado; sacrossanta procedência donde lhe deriva indiscutível supremacia sobre todos os seus compatriotas terrestres e logo o direito absoluto de ser, nem só obedecido e cegamente respeitado por eles como soberano, mas adorado como divindade que é e como foram todos os seus consubstanciais antepassados.

O espelho por Amateras transmitido carinhosamente a seus filhos, representa o símbolo da religião shintoísta, à qual não pode o Micado renegar sem com ela renegar também a qualidade divina da sua própria essência. O Shintoísmo é pois no Japão ainda hoje a religião do Estado; mas a religião popular e verdadeiramente querida, talvez por mais folgada e vistosa, é o Budismo, introduzida no país pelos coreanos no século sexto da era cristã.

Esta tão negativa preferência do Japonês pela religião alheia levou hábeis casuístas, zelosos da divina procedência do trono, a tecerem em épocas hoje longínquas sutis relações entre os dois cultos, aliás bem divergentes na forma externa como no íntimo espírito; laços de origem e de doutrina estabeleceram-se engenhosamente entre o letárgico Buda e a palpitante deusa do sol, permitindo assim aos fiéis de ambas as seitas queimarem o seu incenso e os seus papéis dourados facultativamente aos pés do altar de uma como da outra divindade. E destarte conseguiu o trono, sem abrir luta com a nação, ou antes sem insistir na luta começada, guardar íntegro o seu caráter divino e permitir que o povo conservasse o seu culto pueril pelo espetaculoso Budismo, alegremente exercido em paz ao lado da pobre e desguarnecida religião do Estado. Buda no Japão ganhou um nome japonês: chama-se "Ammiddah".

De Jimmu Tennô até duzentos anos depois de Jesus Cristo (860 da era japonesa) o Japão pouco mais seria do que uma extensa região completamente bárbara e desconhecida, em luta constante entre as suas tribos de caráter nômade e guerreiro, cujos vestígios ainda hoje se encontram puros ao extremo norte da ilha de Yezo onde se refugiaram e habitam os cabeludos Amos e os quase extintos selvagens Koropukgurus; mas por aquela época, a célebre imperatriz Jingô Kogô, divinizada hoje com o nome de Hachiman Daibosatsu no seu templo de Otokoiama, resolveu, sob inspiração do céu, organizar e ela própria conduzir, acompanhada do seu fiel valido Take-no-utschi, uma grande expedição contra a Coréia, então tributária da China que florescia à sombra da dinastia dos Thsin.

A expedição obteve o melhor resultado possível: ao fim de três anos volvia à pátria a gloriosa imperatriz, senhora da vassalagem de três reis vencidos com a submissão da Coréia. Logo porém ao partir para a guerra, Jingô Kogô notara-se pejada e, como esta imprevista circunstância lhe podia estorvar os planos militares, ela, invocando a proteção dos deuses, amarrou uma pedra no ventre. Produziu ótimo efeito o talismã: o céu atende às suplicas da guerreira e a gestação esperou miraculosamente os três largos anos da campanha. Ao fim desse tempo a imperatriz, de volta aos seus penates, recolhe-se apressada ao castelo sem atender a aclamação nem parabéns, corre ao quarto, desaperta-se, lançando fora couraça e capacete, e deixa-se cair por terra nos braços do marido a quem, entre gemidos de mulher, explica o caso maravilhoso. O feliz cônjuge prosterna-se, agradecendo aos céus a graça e o benefício, e ela entrementes dá à luz o príncipe Ojin, mais tarde divinizado com o título de Deus da Guerra, a cuja alta influência foi logo, nem era de esperar coisa melhor, atribuída toda a honra da vitória.

Com esta vitória sobre a Coréia, entra no Japão a civilização chinesa, que no continente vizinho tinha já nessa época chegado ao seu máximo desenvolvimento, assim nas artes, como na literatura e na moral filosófica de Kang, conhecido no Ocidente pelo ilustre nome de Confúcius. E a imigração, que logo se fez caudalosa, vem espontaneamente favorecer a ação da corrente civilizadora; chamados pelos japoneses ou puxados uns pelos outros, começam os chins a instalar-se no arquipélago fronteiro; "de uma só vez, diz a crônica por intermédio de Georges Bousquet, dezessete distritos do sul do Celeste Império arribam em massa para os verdejantes portos de Kiuciu"; o erudito Wang Ien, maior poço de ciência que possuía a Coréia, é atraído às cortes do micado Ojin para iluminá-lo de perto, e com ele atravessa o Mar do Japão um fator decisivo —o alfabeto chinês. O Japão começa a ler e a escrever e não se forra a sacrifícios para aumentar o seu cabedal de luzes; acumula de garantias e favores os artistas, artesãos e operários de valia, que logo acodem avidamente da outra banda asiática de ferramenta em punho; chama a si cabalísticos astrólogos, facultativos e alquimistas, carregados de misteriosas retortas e alfarrábios. E com esta gente da sabedoria do tempo vem o segredo da porcelana; vem a bússola; vem a indústria da seda; vem a arte de construir casas de mais de um andar; vem, com as primeiras noções de astronomia, a organização cronográfica e o calendário; vem a fabricação do papel e da tinta de Nankin; vem o moinho de pilar o arroz, e as rodas hidráulicas substituem a mó girada a braço vivo; vem o relógio com o seu maquinismo movido pela água; vem a metalurgia, e descobrem-se minas preciosas e cunha-se a primeira moeda de metal na terra dos micados; e finalmente vem a imprensa, e estampa-se as literárias primícias japonesas, entre as quais o mítico "Kodziki", a mais remota história escrita do Japão. Foi ditada esta história por uma mulherzinha de fenomenal retentiva, a quem o Imperador Jimmu no século sexto ordenara de guardar na memória todos os passos e episódios da vida pública japonesa, transmitidos até aí de geração em geração pela voz dos trovadores e menestréis ambulantes.

E o Japão acerta afinal o passo do seu progresso com o da China e entra, por diante, a caminhar tão seguro e firme, que em breve já não se contenta só com imitar os translados da mestra e vai por conta própria modificando alguns deles para melhor e mais bonito; e já em 643 manda à metrópole da sua civilização o primeiro embaixador que veio ao mundo, o Adão dos diplomatas — Onono-Imokô, encarregado de regular a favor da sua pátria os tributos de guerra, que a Coréia começava a saldar, e de estabelecer a permanência de uma comissão japonesa na China para estudar ciências ocultas e reveladas.

Todas essas maravilhas, perfeitas pelos nipons entre o ano 284 e o 703 da nossa era, só muitos séculos depois foram sabidas e exercidas pela então agreste Europa, onde todavia por tal modo se desenvolveram e apuraram que é agora a cultura ocidental, hoje rematada e extrema, que, refluindo, vem civilizar de novo a velha terra do Oriente, de cujo seio abundante Árias nasceu para gerar novas e mais formosas raças.

Rezam entretanto as crônicas indígenas que não foi por mero espírito de generosidade que o governo chinês cedeu ao vizinho oriental a sua civilizadora emigração; sobre a primeira leva de emigrados corre uma lenda que não resisto ao desejo de contar:

A certo imperador da China, notável só pela assombrosa estupidez e tartárica dureza de entranhas que o distinguiam, meteu-se em cabeça escapar à lei fatal da morte e pôs logo em ação toda a sua autoridade para que lhe descobrissem o segredo de perpetuar a vida. Imaginai daí o sangue que não correu por causa disto! Mas Jokufu, médico e astrólogo da corte, propôs-se afinal realizar o desejo do tirano, contanto que lhe facultasse este os meios de obter um misterioso filtro para isso indispensável, e o qual consistia no extrato de certa flor só existente nas ilhas vulcânicas de Nipão, flor de tal melindre que, para nada perder da sua amaviosa virtude, tinha que ser colhida por mãos juvenis de imaculada pureza. O imperador estava por tudo, autorizou o médico a organizar o pessoal de que houvesse mister e abriu a régia bolsa para todos os custos; pôs-se então o astrólogo em diligência e escolheu) um por um, cuidadosamente, entre a parte melhor do povo, trezentos rapazes e trezentas e uma raparigas que, de corpo e alma, lhe pareceram os mais perfeitos do país, e com esta alegre companhia fez-se de velas para as plagas do Sol Nascente. O monarca, se conseguisse afinal realizar por outro meio o seu sonho de vida perpétua, ainda agora estaria à espera do facultativo, cujo fim era só escapar à crueldade do déspota a quem servia, e tentar vida nova em país novo no meio de uma alegre colméia de patrícios por ele escolhidos a dedo.

Fosse este ou não o ponto inicial da emigração chinesa, o fato é que só com esta começa verdadeiramente a história do Japão, como é também daí que começa e se vai estendendo pelos séculos novos a lenta e surda elaboração homogênica da raça, até conseguir fixar o seu tipo, depois da eterna luta etnológica, em que os elementos contrários se repelem entre si e os de afinidade eletiva se combinam e se fundem para sempre. E assim, pouco a pouco, de século a século, se vão destacando e acentuando as castas em volta de um centro comum, espiritual e supremo, que é o micado; começam então as agrupações sociais, a formação das classes: de um lado condensa-se o lavrador, que nunca mais deixará os campos produtores e será o passivo e silencioso lastro da nação inteira; de outro lado constitui-se o militar, a quem o agricultor sustenta, confiando-lhe a guarda das suas terras lavradas, e o qual há de ser no futuro o "Samurai", suscetível de enobrecimento pelas armas, e em que o feudalismo vindouro encontrará cavaleiresco esteio para a sua violenta expansão; de outro lado concentra-se a aristocracia de sangue, criada e mantida tranqüilamente pelos fidalgos da família micadoal, parentes do imperador ou da imperatriz, e de cujo núcleo privilegiado se formará a classe principesca dos "Kugês", que serão conselheiros áulicos e pares do trono, gozando da prerrogativa exclusivíssima de fornecer da sua descendência as mulheres do soberano, legítimas como ilegítimas, com direito qualquer delas a dar herdeiros à coroa. E desta nobreza consangüínea dos kugês, combinada com a outra militar dos samurais, resultará o "Daimo", que já é o puro chefe feudal, com senhorio e rendas territoriais e faculdade autoritária para lançar impostos, estabelecer tenças, fortificar castelos, construir navios e ferir batalhas. E uma vez retalhado o país em principados autônomos, começarão estes em viva guerra a disputar entre si a supremacia, até que uma família triunfe, aniquilando as outras, e crie o poder suserano do "Shogun", isto é, o chefe dos chefes feudais, o generalíssimo dos príncipes militares, só dos militares, porque quanto aos do conselho áulico, esses continuarão exclusivamente sob a alçada espiritual do micado.

A original instituição do Shogunato, que redundou em cisão do governo soberano é, a contar depois da conquista da Coréia, o marco mais saliente da antiga história política japonesa. Até essa época, 1185, os micados governaram unitariamente; oitenta e um se sucedem no trono, por hereditariedade, sem interrupção, desde Jimmu Tennô até Antoku; dai para cá a série continua firme e seguida, mas já ladeada pelo shogunato que se apossou do poder militar e civil, deixando ao imperador apenas o espiritual e convertendo-o num simulacro de Papa privativo do Estado, embastilhado por uma etiqueta ainda mais inexpugnável que as muralhas do seu gocho imperial; verdadeiro ídolo, que o povo devia adorar, mas sem ver, sob pena de morte ou do esvazamento dos olhos, e para quem as estradas públicas eram rigorosamente veladas, "Porque —diz o primeiro shogun na sua proclamação —a terra vulgar e rasa é indigna de pôr-se em contato com os divinos pés do filho dos deuses".

O primeiro shogun foi o grande Yoritomo, príncipe inteligente e bravo, celebrizado em prosa e verso na literatura japonesa. Era ele então o último vestígio da família Minamoto, cruamente exterminada pelos Taíras. De todos os feudos, inimigos irreconciliáveis, que procuravam firmar, cada um de per si, a sua hegemonia pelo aniquilamento dos rivais, só essas duas casas haviam resistido, e o duelo final e decisivo que se travou entre elas deixou os Taíras inteiramente senhores do campo. Yoritomo escapou miraculosamente à carnificina; teria dez ou doze anos quando o resto de sua família, sobejado à sanha das pelejas, fora passada pelas armas inimigas; fizeram-no prisioneiro e iam matá-lo, apesar da tenra idade, quando uma mulher compassiva intercedeu por ele, obtendo dos Taíras deixarem-no viver.

O último descendente dos Minamotos cresceu pois entre os destruidores da sua estirpe, afagado pelas mesmas mãos que o fizeram órfão; mas posto homem casou-se calculadamente com a filha de Hojô, de cuja influência militar contava ele tirar partido. Recolhe-se com a mulher às províncias mais remotas do Japão, organiza em sigilo como o herói do Rubicon uma coorte de bravos e, depois de algumas vitórias fáceis, alcançadas só com o fim de engrossar as suas hostes, arroja-se sobre os Taíras, bate-os em terra, cerca-os por todos os lados, sem dar quartel a nenhum, e acaba por exterminar o que deles resta em um decisivo combate naval nas águas de Daneira. Feito isto e repelida uma invasão de mongóis que abalançava a independência do país, Yoritomo, declarando-se Primeiro Vassalo do Imperador, a quem rende pública homenagem e em cujo poder espiritual, só espiritual, jura defender de qualquer pretensão externa ou interna, assume o posto de comandante em chefe das armas com o título de Bakufu ou Shogun. Estabelece a sua corte em Kamakura, guarnece-a de artistas, poetas e aprazíveis sábios, fundando nesse distrito uma segunda capital do Estado, sede do poder civil e ao mesmo tempo o centro de operações das forças militares do norte, em flagrante oposição à de Kioto, ao sul, onde, na imperial custódia do espiritualismo sacro, ostraceava o pobre Micado com o seu conselho de mãos finas e perfumadas, muito feitas à difícil execução da música religiosa, mas de todo alheias ao manejo das armas de combate.

E eis aí como se deu a estranha cisão no poder soberano do monarca, criando-se quase ao nível do trono a suserania shogunal, que aliás só atingiu ao auge da sua autoridade anômala quatro séculos depois quando Ieiás fundou de vez a sua dinastia e tornou a função hereditária, fazendo desde essa época a Europa acreditar até há bem pouco tempo que o Japão mantinha dois imperadores, como se vê pelos seus ajustes internacionais com ele firmados dentro já do nosso século. Naquela época é já com efeito o shogun quem governa, mas ainda é o imperador quem reina, pois que teoricamente nada pode decidir o chefe militar sem a sanção do micado.

Yoritomo fez da sua capital uma cidade relativamente importante e poderosa, cidade todavia de madeira e bambu que, depois dele e da sua curta descendência direta, desapareceu substituída por infinitos arrozais e canteiros de hortaliça; a estrada de ferro passa hoje por ela ligando-a a Yokohama e Tókio; do seu passado fausto só perduram alguns ídolos e reconstruídos templos. É aí, nesse ameno canto mal povoado, que está o famoso Buda de bronze "Daibutsu" de que em lugar competente darei a descrição. O fundador do Shogunato morreu em 1199, com cinqüenta e três anos de idade, depois de quatorze de indiscutido e absoluto poder.

Com a sua morte desencadeia-se o feudalismo militar que ele sistematizara, e desde essa época até 1573, tendo tido vinte e seis micados e vinte e quatro shoguns, o Japão mal encontra alguns momentos de refolga entre as implacáveis guerras civis que o dilaceram. O militarismo degenera em paixão e invade às raias da vesânia, lavra por todas as classes, apodera-se de todos os espíritos, e a nação inteira desfalece moralmente arriscando retroceder as tontas para o barbarismo primitivo; desaparecem os artistas, desaparecem os obreiros, a gleba corrompe-se e pega em armas; os poetas arribam da pátria com as asas sujas de sangue, e até os sacerdotes, os meigos bonzos de crânio raspado e túnica branca, dantes fechados na sua fé sinistra que lhes vedava comer carne, beber licores e tocar em mulheres, endurecem de alma e fazem-se guerrilheiros; os santuários do budismo convertem-se em fortalezas e arsenais; o monastério de Higeizen, maior de todos, às margens quietas do formoso lago de Biwa, com os seus quinhentos templos boscarejados de sagradas cliptomérias, transforma-se em reduto inexpugnável, onde as súplicas do próprio Micado são repelidas com duras blasfêmias e pedradas. Alguns japoneses, caindo de fome, vendem-se então como escravos para as Filipinas e para a China, levando olhos e alma consumidos de fitarem inutilmente o frio espelho de Amateras, a deusa-mãe degenerada.

E nesse largo e negro período de decomposição geral que os militantes samurais, homens d'armas, com direito a usar duas espadas e direito a deixar crescer a barba, se desenvolvem e consubstanciam numa classe privilegiada e turbulenta, podendo comer, beber e dormir pelas locandas e hospedarias de todo o país sem obrigação de pagar os gastos, pronto sempre a qualquer deles a castigar com a morte o kuli ou plebeu que ousasse contrariá-lo no meio das suas correrias e aventuras soltas. Como desdobramento espúrio dessa classe de fundo cavaleiresco em que, seja dito com justiça, havia por vezes mau grado a dura escuridão dos tempos, altruísmo nacional e nobreza de sentimentos, esgalhou a facção fragueira dos roninos, homens que não são já soldados, mas nem por isso menos ardidos e belicosos; gente de arma encoberta e arbitrária, mas com quem podiam os príncipes senhoriais contar em caso de guerra, transformando em instrumento de ação política o que era desclassificado produto do meio corrompido; fatores e auxiliares inconscientes, ora do bem, ora do mal, vigoroso elemento étnico, cujo naturalismo heróico se dispersava à toa numa exaltação brigalhona e constante, às vezes generosa, quase sempre porém inconfessável e perversa, porque lhes faltava, a esses como aos seus originadores, o sustinente ideal piedoso que continha na mesma época os seus congêneres ocidentais, pondo ao lado da espada ensangüentada desses tempos cruéis o lírio místico da fé cristã. Mas, nos curtos intervalos da guerra, dessa guerra civil que durou perto de quatro séculos; o ronino volvia-se salteador e pirata, ao passo que o samurai, depostas transitoriamente as duas espadas, ia para o campo administrar a própria fazenda e criar os filhos para dá-los depois ao seu príncipe e senhor, ensinando-lhes desde o berço que os deveres da vida militar são carga pesada como as armas e que a morte nas batalhas é leve como a pluma.

Esta desoladora situação, em que o país esteve prestes a desfazer-se em sangue, e em que apenas prosperaram os artefatos e produtos industriais concernentes à arte da guerra, só veio a ceder, esbarrando de encontro à ação bravia de três grandes vultos consecutivos: Nobunaga - Taiko Sama - Ieiás, e dissolvendo-se enfim de todo contra a maquiavélica resistência do último destes, que é incontestavelmente o maior homem do Japão medieval, como por si mesmo julgará o leitor, se tiver a paciência de ler o seguinte capítulo.

continua...cap.2= NOBUNAGA - TAIKO~SAMA - IEIAS

Fontes:
http://www.biblio.com.br

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dúvida de uma leitora

Mensagem Recebida:
Meu professor recomendou o livro "A saga de Antônio João", sobre a guerra do Paraguai.
Ocorre que, pesquisando na internet, não encontrei o título, mas a referência existe, como expressa o texto acima.
Saberia dizer o nome exato do livro?
Agradeceria muitíssimo.

========================================
Autor: Mello, Raul Silveira de
Título: Epopéia de Antônio João
1969, 554p., Biblioteca do Exército
=========================================
Tomada da Colônia de Dourados -
Os paraguaios em número de 300 homens, atacaram Dourados, que era defendida pelo bravo e brioso Tenente de Cavalaria Antônio João e quinze homens. Resistiu até a morte esse herói. A queda de Dourados se deu a 29 de Dezembro de 1864. Antes do combate, Antônio João escreve para Urianda comunicando a presença do inimigo e assim termina:
"Sei que morro mas o meu sangue e de meus companheiros servirá de protesto solene contra a invasão do solo de minha Pátria".
===================================

Na Biblioteca do Exército não há e nem em livrarias virtuais.
Recomendo procurar na Estante Virtual, aqui no blog, no lado esquerdo, é só colocar o nome do livro que entra no site. Existem 30 sebos com o livro, com os preços entre R$10,00 e R$ 40,00.


Boa Sorte e Boa Leitura!

“Caravana da Leitura” e palestras do escritor Laé de Souza na Expo Literária de Sorocaba



Durante a realização da segunda edição da Expo Literária de Sorocaba, o escritor Laé de Souza fará palestras nos dias 30 e 31 de outubro para 600 estudantes da rede pública que participaram do projeto “Ler é Bom, Experimente!”, no decorrer do mês de setembro. Cada aluno recebeu gratuitamente um exemplar do livro Nos Bastidores do Cotidiano para leitura e desenvolveu diversas atividades pedagógicas que compõem a aplicação do projeto sob a coordenação dos professores.

Na palestra Encontro com o Escritor, Laé falará da importância da leitura, do seu processo de criação, da composição dos personagens, as histórias mais marcantes dos seus livros e responderá questões dirigidas pelos estudantes.

Em mais uma ação de incentivo à leitura do “Projetos de Leitura”, o público que for prestigiar a Expo Literária terá acesso aos livros do autor pelo preço simbólico de R$1,00 na tenda Caravana da Leitura, localizada na área externa da Biblioteca Municipal "Jorge Guilherme Senger", nos dias 30 e 31 de outubro e 1º de novembro.

Estarão expostos os livros Nos Bastidores do Cotidiano, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Acontece..., Espiando o Mundo pela Fechadura, crônicas que retratam o cotidiano, e o infantil Quinho e o seu cãozinho – Um cãozinho especial que narra aventuras de um garoto e seu inseparável cãozinho, apresentando conceitos éticos para o pequeno leitor, publicados pela Editora Ecoarte.

Será distribuído material informativo dos outros projetos de fomento à leitura de Laé de Souza em execução há dez anos, subsidiados pelas leis de incentivo à cultura, aplicados em escolas, parques, praças, hospitais, transportes coletivos, hipermercados e outros, com o intuito de formar leitores de todas as etnias, faixas etárias, credos e classes sociais.

Palestra – Ler é Bom, Experimente!
Data: 30 de outubro de 2008 – quinta-feira
Local: Tenda Machado de Assis
Horário: 13h30

Palestra - Encontro com o Escritor
Data: 31 de outubro de 2008 – sexta-feira
Local: Auditório da Biblioteca
Horário: 8h

Caravana da Leitura
Preço de venda dos livros: R$ 1,00
Data: 30, 31/10 e 01/11 – quinta-feira a sábado
Horário: 8h às 18h

Fonte:
E-mail enviado por Douglas Lara (www.sorocaba.com.br/acontece)

Entrevista com José Saramago



Saramago conversa sobre o ofício do escritor

O escritor português José Saramago esteve na Folha de São Paulo dia 27 de abril para uma conversa informal sobre o trabalho do escritor. Como um escritor escreve? Por que escreve? Há vocação, não há vocação, há livros mais ou menos fortes, os autores projetam seus livros? Saramago, um homem afável e elegante de 65 anos respondeu a todas as perguntas, "sem fintas". Estavam presentes também a escritora Lygia Fagundes Telles, o poeta e tradutor Horácio Costa, o escritor José Silvério Trevisan e as professoras Maria Aparecida Santilli e Wilma Arêas. Falou-se de livros, máquinas de escrever, transverberação e enfartes, da crítica e da relação entre os comunistas e os escritores. A reunião durou duas horas.

Folha — Como o sr. escreve? Começa o livro escrevendo à caneta e passa à máquina de escrever, usa o computador direto, dita em um gravador?

José Saramago — Eu escrevia numa máquina de escrever. Depois de ter começado numa caneta, há muitos e muitos anos, quando não havia sequer esferográficas - nunca usei esferográfica, porque é um tipo de escrita que nunca me agradou, uma escrita sempre igual - passei a escrever diretamente à máquina, a partir de uma experiência jornalística que tive em 72/73. Por circunstâncias alheias à minha vontade eu estava a trabalhar numa editora e tive de ir trabalhar para um jornal. Evidentemente eu nunca tive uma formação jornalística, nem uma vocação jornalística, digamos; foi alguma coisa que tive de fazer contra vontade. E aí a regra mandava que se tinha de escrever à máquina. Devo algumas coisas ao jornalismo. Com certeza, do ponto de vista tecnológico devo isso. Como estava obrigado a escrever à máquina, habituei-me de tal forma a isso que depois e até hoje, seria completamente incapaz de escrever, enfim, com a velha caneta a tinta permanente, e tampouco com a esferográfica, porque me dá a idéia de que tudo escreve mais depressa - ou que tudo escreve mais devagar do que aquilo que eu necessito. A minha máquina era uma máquina velhíssima, que tinha pelo menos 30 anos, uma Hermes Média, toda ela metálica, que já não se fabrica mais, evidentemente. Chegou a um tal estado de depauperamento físico, que quando se avariava, o mecânico, por duas ou três vezes, teve de fabricar peças para que ela pudesse continuar a funcionar. Essa máquina de escrever deu o último suspiro com o final da história do cerco de Lisboa.

Folha — E agora?

José Saramago — Neste momento tenho um processador de texto, atualizei-me tecnologicamente e estou diante duma inquietante dúvida: do que serei capaz de escrever com essa figura nova, que já não tem aquele ar familiar da minha máquina de escrever e é uma coisa que tem umas luzes que acendem e apagam e tudo o mais? Enfim, eu já me habituei e penso que vou continuar com ele. Eu sempre tive a preocupação de folha limpa, sem correções. Agora com as novas tecnologias isto já não é assim, porque o texto está sempre limpo. Eu levava tão longe esta preocupação, que se me enganava, por exemplo com um erro de digitação - em vez de pôr um "m" metia o "o", por exemplo, na primeira, segunda ou terceira linhas -, minha dificuldade em aguentar o texto sujo ia ao ponto de arrancar a folha e tirá-la fora. A partir da décima linha ou coisa que o valha, já admitia que me pudesse enganar, mas normalmente, e isso verificou-se muito neste último livro. Se ao fim de um dia de trabalho escrevia três ou quatro páginas, por exemplo, vinha um segundo tempo, digamos, desse mesmo trabalho: corrigir essas três ou quatro páginas e limpá-las de forma que quando fossem juntar-se às outras já estivessem limpas. Isto significa que quando eu cheguei ao fim do livro tinha praticamente o livro escrito e revisto, apenas com algumas emendas que eram necessárias. Tanto assim que nem foi preciso passar outra vez a limpo para o entregar ao editor. Tenho, de fato, a mania da página higiênica, embora ache perfeitamente fascinante olhar para uma prova vista pelo Eça de Queiroz, por exemplo, ou por Balzac, que são coisas perfeitamente alucinantes. Há provas do Eça de Queiroz, e são já as provas tipográficas, em que aquilo que ficou de 20 linhas, por exemplo, é uma linha e meia, porque o resto foi todo destruído, modificado. Eram tempos em que a mão-de-obra era barata e o compositor tipográfico podia fazer e desfazer e tornar a fazer, que o livro nunca saía caro.

Folha — Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta de lá de dentro?

José Saramago — Eu penso que sofro apenas de um tipo de condicionamento: sou incapaz de escrever fora de casa. Escrever num hotel ou coisa assim. Há, realmente, colegas meus que vão acabar um livro em um hotel. Sou um homem que tem uma rotina, sou muito rotineiro a trabalhar. Não atuo por impulso, tenho consciência de que a primeira coisa necessária para escrever é sentar-se uma pessoa na cadeira e esperar. Eu não vou sentar porque tenho o impulso de escrever, eu sento-me para que esse impulso venha. É como quem tem que se pôr a jeito para que as coisas sucedam. Provavelmente isto desilude, vai decepcionar aquelas pessoas que têm do ofício do escritor uma visão romântica, arrebatada, byroniana, se quisermos. Eu não sou, quer dizer, não me vejo como um funcionário da escrita.

Folha — Você projeta os seus romances? Ou seja, você projeta a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você concebe os romances? Eu sei, por exemplo, que essa história do cerco de Lisboa já vem de alguns anos.

José Saramago — A idéia inicial da "História do Cerco de Lisboa" é de 72 ou 73. Já é uma idéia, mas não é mais que uma idéia, um cerco de Lisboa. Naquela altura nem sequer tinha algo a ver com um cerco histórico. Era uma situação de cerco um pouco fantástica. Depois deste tempo todo nem sou capaz de ter uma idéia já muito definida disso. Essa idéia foi de 72 ou 73. Desde então eu escrevi sete ou oito livros com esse tema sempre vivendo cá dentro. Já se vê que há um tempo para ter as idéias e há um tempo para que elas possam ser realizadas. Mas como é que as idéias surgem? É um bocado difícil. Eu não tenho um plano, eu não fiz como, digamos, o grande mestre Balzac, que fez um plano, numa certa altura de sua vida e depois resolveu arregaçar as mangas e dizer agora vou fazer isto, realizar este plano. Um livro nasce-me porque tem que nascer e não porque eu tenha decidido antes.

Folha — Na entrevista que o sr. deu à Folha há quinze dias, o sr. comentou a questão da força de dois livros, a Bíblia e o Alcorão. Como escritor, essa força que os livros têm sempre esteve na sua consciência ou de repente foi uma surpresa?

José Saramago — Eu acho que os livros não têm essa força. Os livros não têm força alguma. O que acontece é que um ou dois ou três tenham uma força, que não lhes vêm do fato de ser um livro, mas do fato de serem códigos. De serem códigos, de serem leis, porque no fundo o Alcorão não é outra coisa se não isso, a Bíblia não é outra coisa se não isso e a Torá não é outra coisa se não isso. Representa uma lei que tem duas faces, uma lei que é lei humana, porque a Bíblia sabemos muito bem que no Antigo Testamento é feita por uma sociedade concreta, de homens concretos, que estão ali e que vão ser regidos por aquelas leis. E há o lado que é o da suposta revelação, a face divina. Dois livros ou três tomaram realmente uma força exorbitante. Não há nenhuma razão para que esses livros tenham mais força do que qualquer outro livro. Objetivamente não há, porque foram escritos pelas mãos de homens, não com processadores de textos, nem com máquinas de escrever, mas foram as mesmas mãos de homens que os escreveram. O que pode ser assustador - porque o é de fato - é como é que em nome dum livro se faz o que se faz. Se nós pensarmos, tudo isto é assustador. É evidente que esta súbita revelação, esta revelação do escândalo, eu a chamo assim, é muito recente.

Folha — Você considera escrever um ato de que? Você classificaria como o quê esse gesto extremo, coragem?

José Saramago — Eu diria assim, desta maneira muito simples, um ato de escrever é só um ato. Não é nada mais do que isto. Não lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente, escandalosamente, prosaico. Não acredito em vocação. Só se pode ter - imaginando que a vocação exista - vocação para as profissões que já existem. Na verdade é a própria necessidade social que vai criando as atividades e as profissões e depois nós vamos para elas. Às vezes, dizemos que fomos para elas porque não tivemos outra solução. Mas, também podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha vocação. Mas qual vocação? Ninguém pode ter a vocação para a informática antes de a informática existir. Eu vou dizer uma coisa terrível. A transverberação de santa Teresa de Jesus, santa Teresa D´Ávila, o êxtase dela, e peço desculpas se ofendo os crentes, acho que ela teve simplesmente um enfarte do miocárdio. Quer dizer, a agudíssima dor no coração que ela atribuía a Jesus, que a estava transpassando com o raio fulminante do seu amor, não era mais que um enfarte do miocárdio, porque eu presumo que naquele século já havia enfartes de miocárdio.

Folha — Como você concilia o escritor e o comunista? Como é que a coisa se processa agora no seu cotidiano?

José Saramago — Eu acho extremamente interessante essa pergunta, que é fatal, é uma pergunta que vem sempre: como é que você sendo comunista e escritor, como é sua relação com o partido e tudo isso e tal. Mas, é lamento, uma pergunta feita como se um comunista fosse um caso particular da humanidade. Essa pergunta nunca é feita a um escritor de direita. Nunca. Não há memória de que a um escritor de direita, mesmo que seja um reacionário completo, de alguém perguntar-lhe que relação você tem, sendo escritor, com o partido onde você está, que é a coisa pior que há no mundo, de reacionarismo, fascista e tudo o mais. A esse nunca se pergunta. Mas ao escritor que caiu em comunista ou comunista que caiu em escritor, sempre a pergunta vem. Então, eu direi que, tal como no conjunto dessas coisas já ficou claro que tenho uma relação pacífica com as coisas do meu trabalho e na relação que o meu trabalho tem com os outros, que não há relação mais pacífica que aquela que eu tenho com as minhas convicções, em primeiro lugar, com o partido que consubstancia, digamos, assim, essas mesmas convicções. Sou dentro e fora desse partido - fora quando não estou em relação direta com ele, dentro quando há o momento, quando estou em seu nome -, digamos assim, há uma relação de perfeita lealdade, de perfeita responsabilidade e de perfeita liberdade. Quer dizer, eu escrevo exatamente o que quero, exatamente como quero, sem nenhuma prévia determinação, orientação, conselho, aviso, prevenção, arranjo todas as palavras que quiserem, vindas direta ou indiretamente do meu partido. E por uma razão imediata e simplicissima, é que eu sendo convictamente aquilo que sou, também convictamente acho que o meu partido não é competente em matéria literária.

Folha — Como é o seu diálogo com a crítica, se é que existe ou lhe interessa?

José Saramago — Há, realmente, uma certa crítica, que se comporta, digamos, atravessando os passos às escuras, onde se pode pensar porque não se vê o que lá está, está vazio. Esse tipo de crítica leva archote e escolhe um caminho, vai às escuras. Só vê aquilo que o seu próprio archote vai iluminando. Essa é a crítica que, no fundo, só vê o que está no seu caminho, o que significa que só vê o que está no caminho que escolheu. Se escolheu ignorar o resto, o archote não chega lá. Não vai usar archote. Só falará daquilo que o seu próprio archote iluminará. Bom, isso aplica-se a qualquer país do mundo porque, infelizmente, há muita crítica que se comporta desta maneira. A relação com a crítica em Portugal, neste momento, é bastante boa, provavelmente porque praticamente não existe crítica. Há um outro jornal que faz recensões. Quer dizer, algo que não é o que estamos a falar, da crítica, crítica, crítica. Às vezes, recensões feitas com inteligência, com sensibilidade, feitas por pessoas que, enfim, tem alguma capacidade, mas que não significa, de modo geral uma preparação clara, enfim, quer acadêmica, quer não, mas que justifique exatamente essa espécie de missão, de intermediários entre o autor e o público. Já que, realmente, a grande função da crítica é essa. Não é dar lições ao autor, porque o autor não as quer. Não as quer e ainda que quisesse recebê-las, não pode. Não pode, o autor tem o seu caminho próprio e ficará muito aborrecido se lhe disserem que seu livro é mau. Ele, aliás, vai escrever outro livro mau pelas mesmas suas próprias razões. Enfim, não há que fugir disto. Agora, para o público é indispensável. Então, digamos, o que está a acontecer hoje numa relação, a relação entre o público e o autor em Portugal está a fazer-se diretamente. Não passa pela mediação da crítica. A crítica, enfim, vai falando. Os críticos que há, que —repito— não são muitos, vão, enfim, falando dos livros e tudo o mais, mas é realmente uma relação direta entre público e autor.

Folha — Que é o ideal.

José Saramago — Eu não diria que é o ideal, porque, na verdade, embora eu tenha dito aqui algumas palavras, enfim, não muito lisonjeiras para um certo tipo de crítica, a verdade é que eu considero a crítica necessária. Eu considero a crítica indispensável.

Fonte:
Publicado na Folha de São Paulo, São Paulo, sábado, 6 de maio de 1989.
http://almanaque.folha.uol.com.br/entsaramago.htm

domingo, 26 de outubro de 2008

Francisco José Sobreira de Matos (Poesias Dispersas)



O produto dos meus sonhos

O produto dos meus sonhos
Que agora se concretizou
Tenta me deixar
E as pilastras de minha vida esfacelar
Feito lágrima ao tocar o chão

Depois de violar
Com sentimento tão lindo meu mundo
Como podes, por um segundo,
pensar em abandonar

Proponho um amor diferente
Daqueles que poucas pessoas buscam,
sentem ou querem encontrar
Erguido sobre paredes de virtudes
Que o tempo poupará
Pois seu constituto é permanente
Diferente de que com o tempo irá se desmanchar

O amor não é racional
E sendo assim, não tem que torná-lo banal
Como se a toda hora outro novo fossemos encontrar

E todo mal que me traz
Não se compara a paz
Que seu amor me dá

Abrindo as portas do meu pensamento
Para que todo esse excremento efêmero que nos mandam pensar
Dinheiro, velhice, fama e morte
Não consigam me dominar

E se de alguma forma sou forte
Nas dificuldades da vida
É apenas o produto
Do amor que me remete a verdade
Que está para além dos sentidos
E prossigamos unidos
Pois o amor é mais sutil e verdadeiro
Do que toda essa verdade que juras enxergar.
======================
Sentimentos Calados

Sentimentos calados
Em espaços fechados
Numa luz que se apaga

Do bréu que se anuncia
Minha alma irradia
Uma fagulha de esperança

Em amores latentes
Florescem pungentes
Herança da filosofia

Caminho que se abre
Entre as sombras que já sabem
Que este ser não podem assombrar

Uma razão treinada
Visceralmente incrustada
De uma sutil sensibilidade
É condição para a liberdade
E todo medo enfrentar
===========================
Espelhos

No espelho que nos vemos
Nunca nos reconhecemos
Pois nestas figuras decrépitas que percebemos
Nem de longe são as imagens complexas e difusas
Do que realmente somos

Vemos nossa imagem através de pressupostos
De interpretações que nos sublimam as noções
E naquelas formas projetadas que nos aparecem
São frutos das imaginações
Do acumulo de percepções e interpretações
Que formam as projeções da figura que se expõe

O ser é pensamento,
o ser não é imagem
Imagens, cor, som são tentações
Que nos levam a alçapões de obscuridades
Se assim o desejarmos

Se pensarmos que somos corpos animados
Visivelmente incrustados de falsos baluartes
Prosseguiremos e mataremos em todos os milionésimos momentos
o verdadeiro esplendor do nosso ser
Que é pensamento

O corpo não sente nada
Nunca tocamos em nada
Pois em campos magnéticos
De causas e efeitos,
em repulsões e atrações
É que o mundo empírico se mostra
Muitas vezes entendido de maneira torta
E desprezamos o pensar sem nem tentar conceituar
O mais fundamental “o que sou eu?”

Não somos imagens em espelhos
Somos amálgamas de pensamento
E todo esse excremento que nos mandam pensar
É nosso dever duvidar
E buscar na mais simples dúvida uma certeza
E vislumbrar com clareza a base de onde
A partir daí a tudo, novamente, devemos questionar.
=========================
Francisco José Sobreira de Matos, 23, estudante de filosofia na Universidade Federal do Pernambuco - UFPE, natural da cidade cearense de Juazeiro do Norte, cidade esta, grande expoente da cultura popular nordestina. Procurando unir os conhecimentos obtidos pela temática diversa e profícua dos estudos de filosofia com a forma poética de se transmitir o conhecimento apreendido, produziu uma série poética com temas cotidiano-filosóficos, que buscam angariar o leitor para uma discussão acerca de temas inerentes à questão da formação do sujeito contemporâneo, almejando ser um fomento para auto-reflexão e desenvolvimento da criticidade do leitor
==========================
Fonte:
Poesias enviadas pelo autor.