quinta-feira, 12 de março de 2009

Fernando Pessoa (O baú do poeta)


Nova edição revela facetas de Fernando Pessoa e ilumina pontos de sua discreta biografia

O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) é um sucesso de público e crítica. Considerado unanimemente o melhor da língua ao lado de Luís de Camões, Pessoa hoje é também saudado como um dos maiores de todos os tempos, em qualquer idioma. Ele é o único português que aparece entre os grandes em O Cânone Ocidental elaborado pelo crítico americano Harold Bloom. Nas últimas décadas, Pessoa também virou ídolo popular no Brasil e em Portugal. Ao lado de Che Guevara e Gandhi, é campeão de vendas daquelas camisetas que trazem frases impressas. As dele são sempre as mesmas: "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena" e "O poeta é um fingidor". Pessoa, no entanto, é muito mais do que isso. Mesmo os fãs do poeta português conhecem pouco, proporcionalmente, de sua obra. Fernando Pessoa publicou apenas um livro em vida, Mensagem, e alguns versos em jornal. Boa parte de sua literatura ficou guardada numa arca de madeira escura, grandalhona, contendo exatamente 27.543 textos. Nos anos 40, uma parcela desse legado foi lançada numa primeira edição de sua obra completa, mas ficou faltando muita coisa. Os novos inéditos começaram a vir à tona há cerca de quinze anos, em livros que só circularam entre especialistas. Apenas no ano passado, em Portugal, atingiram o grande público numa edição comercial da obra de Pessoa que saiu pela casa Assírio & Alvim de Lisboa. Essa nova edição, que deverá ter ao todo 23 volumes, começa a ser publicada agora no Brasil pela Companhia das Letras. Os livros trarão muitas surpresas mesmo para o leitor habitual de Pessoa.

A Ofélia ­ IV

Porque o olhar de quem não merece
O meu amor para outro olhou,
Uma dor fria me enfurece,
Decido odiar quem me insultou.

Vil dor, vil causa e vil remédio!
Quanto melhor não fora achar-se
No antigo sem-amor, com tédio,
Mas sem dor de que envergonhar-se!

Retirado do livro Pessoa por Conhecer, de Teresa Rita Lopes

Como todo mundo aprendeu na escola, o poeta português é famoso pelas personalidades literárias que criou. As mais famosas são o clássico Ricardo Reis, o pagão Alberto Caeiro e o atormentado Álvaro de Campos, chamados heterônimos porque tinham estilo próprio e até temperamentos diferentes. Mais alguns poucos eram conhecidos: o guarda-livros Bernardo Soares e os ingleses Charles Anon e Alexander Search. Estudos recentes demonstraram que chegam a 72 as personalidades literárias de Pessoa. Os inéditos também trazem subsídios para iluminar a discreta biografia do poeta. Ele, que jamais teve emprego fixo, viveu apertado com dívidas e acossado pela pobreza. Agora, pode-se entender melhor suas posições políticas e até sua sexualidade. Por último, as pesquisas restabelecem o texto original de alguns poemas de Pessoa que haviam sido publicados anteriormente de forma errada.

Machista — Talvez os dados mais impressionantes que emergem dos textos recém-descobertos sejam os relativos às novas personalidades literárias do autor. Muitos merecem leitura, como Antônio Mora e o Barão de Teive. O primeiro é filósofo. Ele teoriza sobre um certo neopaganismo e mostra o lado provocador de Pessoa, com passagens polêmicas que levariam o poeta à execração pública em tempos politicamente corretos. Num fragmento encontrado pela professora portuguesa Teresa Rita Lopes, flagra-se o machista Mora dizendo o seguinte: "As três classes mais profundamente viciadas, na sua missão social, pelo influxo das idéias modernas, são as mulheres, o povo e os políticos. A mulher, na nossa época, supõe-se com direito a ter uma personalidade; o que pode parecer 'justo', 'lógico' e outras coisas parecidas; mas que infelizmente foi de outro modo disposto pela natureza". Já o Barão de Teive é um pouco parecido com Bernardo Soares, o autor do famoso Livro do Desassossego. Pessoa inventou a história de que teria encontrado "o único manuscrito" do barão numa gaveta. A Assírio & Alvim pretende publicar livros com textos de Mora e de Teive. Segundo Teresa Rita Lopes, que há mais de três décadas se dedica ao estudo de Pessoa e já produziu alguns ensaios marcantes, como os dois volumes de Pessoa por Conhecer, as várias personalidades literárias inventadas por Pessoa eram como figuras de um romance, ou diário, que ele foi "escrevendo para viver e vivendo para escrever".

Os novos textos já publicados em Portugal revelam facetas inusitadas do talento de Pessoa. Ele gostava, por exemplo, de escrever poemas infantis para as sobrinhas. Esses poucos textos já estão reunidos num volume, O Melhor do Mundo São as Crianças. Em A Língua Portuguesa, o poeta reflete longamente sobre o idioma dando a entender que, hoje, seria um opositor feroz da reforma ortográfica. Existe ainda o Pessoa ficcionista, autor da novela A Hora do Diabo, que tinha inclusive planos de redigir contos policiais. Há o criador de chistes e piadas e o inventor de charadas e jogos. Note-se, aliás, que boa parte dos trabalhos mencionados é em prosa. Pouca gente sabe, mas a obra em prosa de Fernando Pessoa é mais extensa que a poética.

Sem título

De leste a oeste comandamos,
Onde o sol vai, pisamos nós.
Ao luar de ignotos fins buscamos
A glória, inéditos e sós.
Hoje a derrota é a nossa vida
Doença o nosso sono brando.
Para quando é a nova lida,
Ó mãe Ibéria, para quando?

Dois povos vêm da mesma raça
Da mãe comum dois filhos nados,
Hispanha, glória, orgulho e graça,
Portugal, a saudade e a espada,
Mas hoje... clama no ermo insulso
Quem fomos por quem somos, chamando.
Para quando é o novo impulso
Ó mãe Ibéria, para quando?
Fernando Pessoa

Sexualidade "branca" — Pessoa namorou uma única mulher, Ofélia Queiroz, que parece ter-lhe inspirado uns poemas ruins e várias cartas ("todas as cartas de amor são ridículas" é outra de suas frases estampadas em camisetas). Não se sabe de outras aventuras sexuais, de qualquer tipo, que possa ter tido. Foi ele homossexual? Ou teve uma sexualidade "branca", inexistente? Só há especulações. Ele sempre se achou feio. E triste. Normalmente é lembrado como um homem tímido, dado a devaneios metafísicos (algo que está bem documentado em sua poesia) e a explorações místicas. Pessoa, que pensou em ser astrólogo profissional, usando o pseudônimo Rafael Baldaya, guiava-se por seu horóscopo. Certa vez, deixou a poetisa brasileira Cecília Meireles aguardando em um café porque os astros lhe diziam que o dia não era propício para conhecer novas pessoas.

Ao contrário do que se pensava, Pessoa escreveu sobre sexo. Há no espólio diversos poemas e textos a respeito de amor e de mulheres, no sentido bíblico. Freqüentemente eles são surpreendentes. "O desdobramento do eu é um fenômeno em grande número de casos de masturbadores", escreveu Pessoa, certamente pensando em seus próprios heterônimos. Um deles, o já citado Antônio Mora, defende que a mulher deve ter experiências sexuais antes do casamento, em contraste com o que rezava o costume da época. Em outra passagem desconhecida, Pessoa joga com a idéia da homossexualidade: Álvaro de Campos faz insinuações a respeito de Ricardo Reis, que teria tentado disfarçar, "pela sintaxe", o fato de que uma de suas odes é dirigida a um rapaz. Segundo Teresa Rita Lopes, o mais provável é que Pessoa fosse casto, não gay. "Se não assumiu, é porque não tinha de assumir. Ele não teria problemas quanto a isso, já que defendeu sem preconceitos seus amigos homossexuais, como o escritor Antônio Botto".

As primeiras incursões no espólio literário de Fernando Pessoa ocorreram na década de 40. Ligados à editora portuguesa Ática, esses exploradores desentranharam do baú escritos fundamentais. As edições da Ática têm o mérito do pioneirismo e tornaram-se canônicas pelos cinqüenta anos seguintes. Serviram de base, por exemplo, para as edições brasileiras mais utilizadas, a da Nova Aguilar e a da Nova Fronteira. Esses pioneiros, contudo, fizeram certa bagunça remexendo a papelada, que só voltou a ter ordem em 1968, quando foi catalogada. Também mandaram para a gráfica poemas em que havia dúvidas, deixando para os tipógrafos a responsabilidade de "acertar" o texto. Até hoje isso compromete a boa leitura de alguns clássicos. É o caso de "Passagem das horas", extenso poema assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. Em 1990, a pesquisadora brasileira Cleonice Berardinelli, membro da Equipa Pessoa, uma comissão nomeada pelo governo português para fazer edições críticas da obra do poeta, descobriu que a edição da Ática simplesmente invertia o posicionamento de dois grandes trechos do poema, alterando sua interpretação. Em outros casos, havia erros de grafia que modificavam completamente o sentido, como no verso Assim sou a máscara — que durante cinqüenta anos foi lido como Assim sem a máscara.

Íbis, ave do Egito

O Íbis, ave do Egito,
Pousa sempre sobre um pé
(O que é
Esquisito).
É uma ave sossegada
Porque assim não anda nada.

Quando vejo esta Lisboa,
Digo sempre, Ah quem me dera
(E essa era
Boa)
Ser um íbis esquisito
Ou pelo menos estar no Egito.

Estrofes de poema de Fernando Pessoa

No caso das edições da Assírio & Alvim, a responsabilidade pelo texto cabe a Teresa Rita Lopes e seus colaboradores. "Não estamos fazendo edições críticas, mas edições criteriosas", diz a pesquisadora. "Os versos de Pessoa costumam ter muitas variantes, sem indicação de qual era a opção final. Para dar conta disso, redigimos as notas necessárias, mas evitando que esse aparato técnico se transforme num problema para o leitor comum." Existe, porém, uma questão jurídica em torno dessa nova edição que começa a sair no Brasil. A obra de Pessoa, que havia caído em domínio público em 1985, voltou a ser patrimônio dos herdeiros do poeta no ano passado, graças a uma mudança na legislação européia. Esses herdeiros concederam exclusividade de publicação à Assírio & Alvim e, em razão disso, as outras edições de Pessoa que existiam em Portugal (algumas boas, outras muito ruins) estão saindo aos poucos de circulação. A pergunta é: será que essa legislação vale também no Brasil? O assunto dá pano para mangas. Segundo o diretor da Assírio & Alvim, Manuel Hermínio Monteiro, a expectativa é de que os livros lançados por outras editoras, que não a Companhia das Letras, também deixem o mercado, sem que para isso seja necessária ação na Justiça. Tudo indica, porém, que uma nova pendenga judicial vem aí.

Uma descrição dos heterônimos

Em torno do meu mestre Caeiro havia, como se terá depreendido destas páginas, principalmente três pessoas ­ o Ricardo Reis, o Antônio Mora e eu. O Ricardo Reis era um pagão latente, desentendido da vida moderna e desentendido daquela vida antiga, onde deveria ter nascido. Caeiro, reconstrutor do Paganismo, ou melhor, fundador dele no que eterno, trouxe-lhe a matéria da sensibilidade que lhe faltava. O Antônio Mora era uma sombra com veleidades especulativas. Encontrou Caeiro e encontrou a verdade. Por mim, antes de conhecer Caeiro, eu era uma máquina nervosa de não fazer nada. Logo que conheci Caeiro, verifiquei-me. Mais curioso é o caso do Fernando Pessoa, que não existe, propriamente falando. Ouviu ler o Guardador de Rebanhos. Foi para casa com febre, e escreveu, num só lance ou traço, a Chuva Oblíqua.

Fonte:
Artigo de Carlos Graieb. Revista Veja. 11 de novembro de 1998. Disponível em
http://veja.abril.com.br/111198/p_204.html

Plano de Aula para o Ensino Médio (A poesia multiplicada em Pessoa)


Se o português Fernando Pessoa fosse apenas um poeta, já teria seu lugar na galeria dos grandes literatos do planeta. Mas Pessoa foi ainda mais.

Objetivos

Refletir sobre as possibilidades da criação literária; Discutir o conceito de heteronímia na obra de Fernando Pessoa.

Introdução

"É raro um país e uma língua ganharem quatro grandes poetas em um só dia. Foi o que aconteceu em Lisboa a 8 de março de 1914". Dessa forma o crítico George Steiner descreveu no jornal americano The New York Times o surgimento dos quatro principais heterônimos de Fernando Pessoa (veja o quadro). Esse inusitado nascimento quádruplo é apenas um dos marcos do fascinante universo literário criado por esse poeta português, morto em 1935, e receptáculo de nada menos que 72 heterônimos. Juntos, eles escreveram a obra de Pessoa, cada um no seu estilo literário, cada um com sua visão de mundo, seus sonhos e idiossincrasias. A genialidade do poeta está nessa rara capacidade de enxergar o mundo, e dele fazer poesia, incorporando profundamente tantas visões diferentes. Este plano de aula tem como conteúdos a despersonalização, a criação literária e a literatura portuguesa moderna.

TEXTO DE APOIO

Muitas têm sido as explicações propostas para a heteronímia. A melhor delas é a do próprio Fernando Pessoa, que escreveu que "o ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro - eis tudo. (...) Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão".

Fernando Pessoa fornece nesse trecho a "chave" para a análise de seu trabalho. O poeta tem a capacidade de "voar outro", ou seja, é capaz de construir uma pessoa inexistente que sente realmente outras emoções e sensações. Processo semelhante acontece quando um ator representa personagens.

A criação dos heterônimos é, portanto, um processo artístico consciente e não deve ser encarada como algo "estranho". Na origem de tudo está a capacidade de despersonalizar-se. Com inteligência e imaginação consegue-se viver analiticamente um personagem que acaba por ser um novo escritor, "com estilo próprio", formado por um "grupo de estados de alma mais aproximados".

Um drama feito de gente

Fernando Pessoa transforma a despersonalização dramática em processo de criação literária tão perfeitamente que muitas vezes temos dificuldade de entender quem eram realmente os heterônimos. Como, afinal, ele conseguia criar tantos personagens? De novo o próprio poeta esclarece: "O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortônimas e heterônimas. Não se poderá dizer que são anônimas e pseudônimas (...). A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu. (...) Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Cada uma forma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama. (...) É um drama em gente, em vez de em atos".

A palavra pseudônimo é formada pelos radicais gregos pseudo, "falso", e onimo, "nome" e designa o nome falso adotado por um escritor para publicar seus textos. Heterônimo (do grego hetero, "outro", "diferente", e onimo, "nome") indica uma "individualidade literária completa", ou seja, um escritor e sua forma pessoal de expressão - criados do mesmo modo como se criam personagens e falas no processo teatral (ou dramático, que é a palavra preferida por Pessoa).

Fernando era também heterônimo

Os principais heterônimos criados por Fernando Pessoa foram Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, a cujas obras se deve somar a de Fernando Pessoa ortônimo (do grego orto, correto e onimo, nome). Entre esses principais heterônimos existe, segundo Pessoa, uma relação importante: a obra poética de Alberto Caeiro influenciou os poemas dos outros três. Nesse "conjunto dramático" deve-se incluir a obra de Fernando Pessoa ortônimo - que, no jogo criado pelo poeta, não deve ser visto como o "verdadeiro" Fernando Pessoa, mas como mais um heterônimo. À obra dos quatro principais heterônimos deve ser somado o trabalho de outros 68 personagens, muitos deles apenas esboçados, entre eles Alexander Search, Antônio Mora, Antônio Seabra, Barão de Teive, Bernardo Soares, Carlos Otto, Coelho Pacheco, Faustino Antunes e Henry More.

Atividades

1. Peça aos alunos que criem outros "eus", indivíduos que tenham opiniões, valores e visões diferentes. Eles podem elaborar biografias, descrições físicas e espirituais das pessoas que vão tentar viver. Sugira que produzam um texto que essa pessoa inventada escreveria.

2. Proponha aos alunos que analisem a letra da canção Língua, de Caetano Veloso. Comente com eles as várias referências a Fernando Pessoa: "Minha pátria é minha língua", "E quem há de negar que esta (a prosa) lhe é (à poesia) superior", um conceito extraído do Livro do Desassossego (de Bernardo Soares, outro heterônimo de Pessoa), além da referência textual ("A pessoa do Pessoa na rosa do Rosa"). Que importância atribui Caetano Veloso à obra de Fernando Pessoa?

3. Peça à turma que simule uma sala de bate-papo na internet: cada um assume um apelido e começa a conversar com os outros. Aquilo que se diz nessas situações corresponde à realidade ou começam a surgir "heterônimos"? Discuta com eles esse processo de despersonalização, comparando-o com o de construção de personagens de teatro, cinema e TV.

PERSONAGENS

Fernando Pessoa ortônimo é, entre os heterônimos, o que mais se prende à tradição formal da poesia portuguesa. Isso não impede, entretanto, que o ortônimo escreva sobre questões atualíssimas, como a relação entre o que se pensa e o que se sente, a dificuldade de se conhecer e de se identificar, a sinceridade do fazer poético.

Nasceu em 1889, em Lisboa, mas desde cedo viveu no campo. Morreu em 1915. A pouca escolaridade e a vida no interior resultaram a simplicidade estilística de sua obra. Ele viveu a contradição de usar as sensações para relacionar-se com a natureza sem conseguir abandonar sua racionalidade. Esse drama íntimo revelado em sua obra mostra que a personalidade de Caeiro, afinal, não era tão simples assim.

Nascido em 1890, Álvaro de Campos era engenheiro naval e vivia em Lisboa. Considerava Alberto Caeiro seu mestre. Utilizando versos livres e um fluxo verbal intenso e vigoroso, o autor expõe em seus poemas uma forte inadaptação social e um profundo sentimento de inapetência e impotência em relação à vida. Seu cansaço existencial é profundo e conduz a uma atitude niilista.

Ricardo Reis é, segundo ele mesmo, um pagão: acredita nos deuses antigos e adota formas de comportamento baseados na mundividência dos antigos gregos e romanos. Por meio desse médico nascido no Porto em 1887 e auto-exilado no Brasil, Fernando Pessoa produziu obras-primas classicizantes, melancólicas, sóbrias e desencantadas com a civilização cristã do século XX.

Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.

Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instinta e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o "via". E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos (...)".


(Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, 1935)

Bibliografia
Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho, Ed. Verbo/Edusp, fone: (11) 3091-4156
Fernando Pessoa - Coleção margens do texto, José de Nicola e Ulisses Infante, Ed. Scipione, fone (11) 3990-2100
Fernando Pessoa multimédia, CD-Rom da Texto Editora e da Casa Fernando Pessoa

Fontes:
artigo de Ulisses Infante. http://revistaescola.abril.com.br/

quarta-feira, 11 de março de 2009

Dia Nacional da Poesia (14 de Março)



A poesia ganhou um dia específico, sendo este criado em homenagem ao poeta brasileiro Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), no dia de seu nascimento, 14 de março.

Castro Alves ficou conhecido como o “poeta dos escravos”, pois lutou grandemente pela abolição da escravidão

Justamente por conta das ideias do escritor, que morreu com apenas 24 anos, o Brasil elegeu seu aniversário para comemorar a poesia.

Quando surgiu, a apresentação dos textos era acompanhada por um instrumento musical chamado lira, por isso a inclusão da poesia no chamado gênero lírico, independentemente do texto retratar tragédias.

Poesia é uma arte literária e, como arte, recria a realidade. O poeta Ferreira Gullar diz que o artista cria um outro mundo “mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado – por cima da realidade imediata”.

Para outros, a arte literária nem sempre recria. É o caso de Aristóteles, filósofo grego que afirmava que “a arte literária é mimese (imitação); é a arte que imita pela palavra”.

Declamando ou escrevendo, fazer poesia é expressar-se de forma a combinar palavras, mexer com o seu significado, utilizar a estrutura da mensagem. Isto é a função poética.

A poesia sempre se encontra dentro de um contexto cultural e histórico. Os vários estilos poéticos, as fases de cada autor, os acontecimentos da época e tantas outras interferências muitas vezes se misturam à obra e lhe dão novos significados.

Fontes:
http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/poesia/home.html
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u69278.shtml

Castro Alves (1847 – 1871)


Antônio Frederico de Castro Alves, poeta, nasceu em Muritiba, BA, em 14 de março de 1847, e faleceu em Salvador, BA, em 6 de julho de 1871. É o patrono da Cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Valentim Magalhães.

Era filho do médico Antônio José Alves, mais tarde professor na Faculdade de Medicina de Salvador, e de Clélia Brasília da Silva Castro, falecida quando o poeta tinha 12 anos. Por volta de 1853, ao mudar-se com a família para a capital, estudou no colégio de Abílio César Borges, futuro barão de Macaúbas, onde foi colega de Rui Barbosa, demonstrando vocação apaixonada e precoce para a poesia. Mudou-se em 1862 para o Recife, onde concluiu os preparatórios e, depois de duas vezes reprovado, matriculou-se na Faculdade de Direito em 1864. Cursou o 1º ano em 65, na mesma turma que Tobias Barreto. Logo integrado na vida literária acadêmica e admirado graças aos seus versos, cuidou mais deles e dos amores que dos estudos. Em 66, perdeu o pai e, pouco depois, iniciou a apaixonada ligação amorosa com Eugênia Câmara, que desempenhou importante papel em sua lírica e em sua vida.

Nessa época Castro Alves entrou numa fase de grande inspiração e tomou consciência do seu papel de poeta social. Escreveu o drama Gonzaga e, em 68, vai para o Sul em companhia da amada, matriculando-se no 3º ano da Faculdade de Direito de São Paulo, na mesma turma de Rui Barbosa. No fim do ano o drama é representado com êxito enorme, mas o seu espírito se abate pela ruptura com Eugênia Câmara. Durante uma caçada, a descarga acidental de uma espingarda lhe feriu o pé esquerdo, que, sob ameaça de gangrena, foi afinal amputado no Rio, em meados de 69. De volta à Bahia, passou grande parte do ano de 70 em fazendas de parentes, à busca de melhoras para a saúde comprometida pela tuberculose. Em novembro, saiu seu primeiro livro, Espumas flutuantes, único que chegou a publicar em vida, recebido muito favoravelmente pelos leitores.

Daí por diante, apesar do declínio físico, produziu alguns dos seus mais belos versos, animado por um derradeiro amor, este platônico, pela cantora Agnese Murri. Faleceu em 1871, aos 24 anos, sem ter podido acabar a maior empresa que se propusera, o poema Os escravos, uma série de poesias em torno do tema da escravidão. Ainda em 70, numa das fazendas em que repousava, havia completado A cascata de Paulo Afonso, que saiu em 76 com o título A cachoeira de Paulo, e que é parte do empreendimento, como se vê pelo esclarecimento do poeta: "Continuação do poema Os escravos, sob título de Manuscritos de Stênio."

Duas vertentes se distinguem na poesia de Castro Alves: a feição lírico-amorosa, mesclada da sensualidade de um autêntico filho dos trópicos, e a feição social e humanitária, em que alcança momentos de fulgurante eloqüência épica. Como poeta lírico, caracteriza-se pelo vigor da paixão, a intensidade com que exprime o amor, como desejo, frêmito, encantamento da alma e do corpo, superando completamente o negaceio de Casimiro de Abreu, a esquivança de Álvares de Azevedo, o desespero acuado de Junqueira Freire. A grande e fecundante paixão por Eugênia Câmara percorreu-o como corrente elétrica, reorganizando-lhe a personalidade, inspirando alguns dos seus mais belos poemas de esperança, euforia, desespero, saudade. Outros amores e encantamentos constituem o ponto de partida igualmente concreto de outros poemas.

Enquanto poeta social, extremamente sensível às inspirações revolucionárias e liberais do século XIX, Castro Alves viveu com intensidade os grandes episódios históricos do seu tempo e foi, no Brasil, o anunciador da Abolição e da República, devotando-se apaixonadamente à causa abolicionista, o que lhe valeu a antonomásia de "Cantor dos escravos". A sua poesia se aproxima da retórica, incorporando a ênfase oratória à sua magia. No seu tempo, mais do que hoje, o orador exprimia o gosto ambiente, cujas necessidades estéticas e espirituais se encontram na eloqüência dos poetas. Em Castro Alves, a embriaguez verbal encontra o apogeu, dando à sua poesia poder excepcional de comunicabilidade.

Dele ressalta a figura do bardo que fulmina a escravidão e a injustiça, de cabeleira ao vento. A dialética da sua poesia implica menos a visão do escravo como realidade presente do que como episódio de um drama mais amplo e abstrato: o do próprio destino humano, presa dos desajustamentos da história. Encarna as tendências messiânicas do Romantismo e a utopia libertária do século. O negro, escravizado, misturado à vida cotidiana em posição de inferioridade, não se podia elevar a objeto estético. Surgiu primeiro à consciência literária como problema social, e o abolicionismo era visto apenas como sentimento humanitário pela maioria dos escritores que até então trataram desse tema. Só Castro Alves estenderia sobre o negro o manto redentor da poesia, tratando-o como herói, como ser integralmente humano.

Escreveu:

"Espumas Flutuantes", escrita em 1870; "Gonzaga ou a Revolução em Minas", (1875); "Cachoeira de Paulo Afonso", (1876); "Vozes, D'África" e "Navio Negreiro", (1880); "Os Escravos", (1883), etc. Em 1960 publicou-se sua Obra Completa, enriquecida de peças que não figuram nas Obras Completas de Castro Alves, editadas em 1921.

Castro Alves foi um discípulo de Victor Hugo a quem chamava "mestre do mundo, sol da eternidade". Poeta social, lírico, patriótico, foi um dos primeiros abolicionistas e, ao poetar sobre a escravidão, inflamava-se eloqüentemente, chegando a elevar-se pelo arrojo das metáforas, pelo atrevimento das apóstrofes, pelas idéias do infinito, amplidão, pelo vôo da imaginação, o que motivou o título dado por Capistrano de Abreu de "condoreiro", que comparou sua poesia ao vôo de um condor.

Castro Alves amou o oprimido com sentimento de justiça sendo este o traço básico da sua personalidade. A desarmonia da alma romântica não é produzida, segundo ele, por conflitos do espírito mas por conflitos entre o homem e a sociedade, o oprimido e opressor. É uma nova forma da existência da dualidade romântica do bem e do mal. A sua tese social é trazida muito abstratamente e será o primeiro exemplo de literatura "engage" que se vê no Brasil.

O ideal para Castro Alves é o gênio (homem) símbolo das lutas pela justiça e pela libertação. Vive seu espírito em constantes conflitos à procura de soluções. Esse ideal faz com que o poeta busque na retórica a sua forma de expressão que muitas vezes se apresenta vazia e sem nexo, apoiada apenas em combinações sonoras. Esse abuso é uma influência da época que muito prestigiava a oratória. Um defeito a ser apontado no seu estilo é o abuso e a superposição de imagens e de aposições. Porém, alcança um belo sublime, bem distante das banalidades românticas.

Enquanto outros poetas como Gonçalves Dias, tomam o índio como herói, tomou Castro Alves o negro, nada estético, tido como de casta inferior na sociedade, sem nenhum valor mítico. O índio foi um herói bem mais fácil de ser forjado, pois existia apenas como mito, não participava da sociedade e tinha valor heróico, por causa da sua tradição guerreira. Assim, o negro, em Castro Alves, é quase sempre um mulato com feições e sensibilidade de um branco. O amor será tratado como um encantamento da alma e do corpo e não mais como uma esquivança ou desespero ansioso dos primeiros romances.

Fontes:
http://www.casadobruxo.com.br/
Imagem = http://democratasdigitais.blogspot.com

As marcas do estilo de Castro Alves

Poucos poetas utilizaram, na Língua Portuguesa, tantas reticências, travessões e pontos de exclamação quanto Castro Alves. A cada página do livro, os exemplos se sucedem:

Pesa-me a vida!… está deserto o Forum!
E o tédio!… o tédio!… que infernal idéia!

Através destes recursos gráficos, o poeta procura reproduzir a oralidade do discurso exaltado da praça pública ou das declamações nos palcos. As reticências apontam as pausas dramáticas que reforçam a ênfase discursiva marcada pelos pontos de exclamação. Já os travessões têm dupla função. Por vezes aparecem, como as reticências, como marcas de pausa da elocução:

- Ave – te espera da lufada o açoite.
- Estrela – guia-te uma luz falaz.
- Aurora minha – só te aguarda a noite,
- Pobre inocente – já maldito estás.

Em muitos outros momentos, aparecem como marca do discurso direto, apresentando uma fala que se dirige a um interlocutor específico:

- “Olhai, Signora…além dessas cortinas,
O que vedes?…” -- “Eu vejo a imensidade! …”
- “E eu vejo… a Grécia… e sobre a plaga errante
Uma virgem chorando…” – “É vossa amante?…”
- “Tu disseste-o, Condessa!” É a Liberdade!!!…

O estilo retórico condoreiro se traduz na linguagem escrita através dos sinais de pontuação, como as reticências, os travessões e os pontos de exclamação!...

Ênfase Social

Castro Alves, o maior representante da última geração romântica, diferente dos seus predecessores, como Junqueira Freire e Álvares de Azevedo, projeta o drama interior do escritor (o eu), sua intensa contradição psicológica, sobre o mundo. Enquanto que, para a geração anterior, o conflito faz o escritor voltar-se sobre si mesmo, pois a desarmonia é resultado das lutas internas (ultra-romantismo), para Castro Alves, são as lutas externas (do homem contra a sociedade, do oprimido contra o opressor) que provocam essa desarmonia. É outro modo de representar o conflito entre o bem e o mal, tão prezado pelos românticos.

Portanto, a poética deve se identificar profundamente com o ritmo da vida social e expressar o processo de busca da humanidade por redenção, justiça e liberdade. O poeta "condoreiro" tem um papel messiânico e afinado com o seu momento histórico. Esse comprometimento faz a poesia se aproximar do discurso, incorporando a ênfase oratória e a eloqüência.

Nos poemas de Os Escravos, a poesia é suplantada pelo discurso político grandiloqüente e até verborrágico. Para atingir o alvo e persuadir o leitor e, muito mais, o ouvinte, o poeta abusa de antíteses e hipérboles e apresenta uma sucessão vertiginosa de metáforas que procuram traduzir a mesma idéia. A poesia é feita para ser declamada e o exagero das imagens é intencional, deliberado, para reforçar a idéia do poema. Os versos devem ressoar e traduzir o constante movimento de forças antagônicas, como se nota logo no primeiro poema, “O Século”:

O séc’lo é grande… No espaço
Há um drama de treva e luz.
Como o Cristo – a liberdade
Sangra no poste da cruz.
Um corvo escuro, anegrado,
Obumbra o manto azulado,
Das asas d’águia dos céus…
Arquejam peitos e frontes…
Nos lábios dos horizontes
Há um riso de luz… É Deus.

Ou no célebre “O Navio Negreiro”:

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar! por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…

A poesia social de Castro Alves é caracterizada: pelo discurso retórico, declamativo; uso exagerado de hipérboles e antíteses; acúmulo sucessivo de metáforas; movimento, com o objetivo de demonstrar concretamente o ritmo da luta da humanidade em busca da liberdade; e impressionante capacidade de comunicação. A poesia, portanto, perde terreno para a propaganda política. Pragmático, o poeta usa a poesia para levar o leitor à ação, para transformar e não só para deleitar. Trata-se de uma arte engajada no marketing das idéias sociais e políticas:

Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele - uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
P’ra cobrir os ombros nus.

Convite à senzala

Para convencer o ouvinte/leitor, Castro Alves convida-o a descer à senzala e conhecer o terrível drama humano que lá se encena:

Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcouce cruel,
Vem comigo, mas… cuidado…
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.
(…)

Vinde ver como rasgam-se as entranhas
De uma raça de novos Prometeus,
Ai, vamos ver guilhotinadas almas
Da senzala nos vivos mausoléus.

E, assim, ao longo de Os Escravos e A Cachoeira de Paulo Afonso, Castro Alves vai apresentando ao leitor a vida do cativo, negro ou mestiço, sujeito à crueldade dos senhores, que arrancam os filhos dos braços das mães para os vender, estupram as mulheres, torturam e matam impunemente os “Homens simples, fortes, bravos…/ Hoje míseros escravos/ Sem ar, sem luz, sem razão…” Para isso, Castro Alves não hesita em explorar ao máximo as expressões que apelam aos sentimentos do leitor, abusando dos vocativos, das interpelações e das evocações, como em “Vozes d’África”:

Deus! Ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?

ou em “A Órfã na Sepultura”:

Mãe, minha voz já me assusta…
Alguém na floresta adusta
Repete os soluços meus.
Sacode a terra… desperta!…
Ou dá-me a mesma coberta,
Minha mãe… meu céu… meu Deus…

ou, ainda, em “O Bandolim da Desgraça”, de A Cachoeira de Paulo Afonso:

Assim, Desgraça, quando tu, maldita!
As cordas d’alma delirante vibras…
Como os teus dedos espedaçam rijos
Uma por uma do infeliz as fibras!

Fonte:
http://www.casadobruxo.com.br/

Castro Alves (O Navio Negreiro)



Um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, O Navio Negreiro – Tragédia no Mar foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868. Quase vinte anos depois, portanto, da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos, de 4 de setembro de 1850. A proibição, no entanto, não vingou de todo, o que levou Castro Alves a se empenhar na denúncia da miséria a que eram submetidos os africanos na cruel travessia oceânica. É preciso lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos navios negreiros completavam a viagem com vida.

Composto em seis partes, o poema alterna métricas variadas para obter o efeito rítmico mais adequado a cada situação retratada. Assim, inicia-se com versos decassílabos que representam, de forma claramente condoreira, a imensidão do mar e seu reflexo na vastidão dos céus:

“'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
- Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Note o leitor que o poema se inicia com a supressão da vogal E inicial da palavra Estamos, grafada ‘Stamos para que o poeta forme um verso decassílabo. É um recurso tipicamente romântico: a expressão suplanta o cuidado formal.

Na segunda parte do poema, composta em versos redondilhos maiores (heptassílabos), ao seguir o navio misterioso, pedindo emprestadas as asas do albatroz, o eu lírico escuta as canções vindas do mar. Ao se aproximar, na terceira parte, em versos alexandrinos, o eu lírico se horroriza com a “cena infame e vil”, descrita na quarta parte do poema, através de versos heterossílabos, alternando decassílabos e hexassílabos:

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

Na quinta parte, novamente em heptassílabos, o poeta faz um retrocesso temporal, descrevendo a vida livre dos africanos em sua terra. Cria, assim, um contraponto dramático com a situação dos escravos no navio. Na última estrofe Castro Alves retoma os decassílabos do início para protestar com veemência contra a crueldade do tráfico de escravos:

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Fontes:
http://www.casadobruxo.com.br/
Imagem = http://www.aguiareal.com.br/

Castro Alves (Folhas Avulsas)


A canoa fantástica

Pelas sombras temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que s'escoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa!...

Mas não branqueja-lhe a vela!
N'água o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa!...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa!...
A Tarde

Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam
Como um abrir de bocas inspiradas,
E os angicos as comas espanejam
Pelos dedos das auras perfumadas...
A hora em que as gardênias, que se beijam,
São tímidas, medrosas desposadas;
E a pedra... a flor... as selvas... os condores
Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
... Tu és do céu a pálida donzela,
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela,
Que te rola da espádua refulgente...
E, — prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos!...

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos
Onde infante selvagem me guiavas,
E os ninhos do sofrer que entre os silvedos
Da embaíba nos ramos me apontavas;
Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos
De amor do nenufar que enamoravas...
E as tranças mulheris da granadilha!...
E os abraços fogosos da baunilha!...

E te amei tanto — cheia de harmonias
A murmurar os cantos da serrana, —
A lustrar o broquel das serranias,
A doirar dos rendeiros a cabana...
E te amei tanto — à flor das águas frias —
Da lagoa agitando a verde cana,
Que sonhava morrer entre os palmares,
Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

Mas hoje, da procela aos estridores,
Sublime, desgrenhada sobre o monte,
Eu quisera fitar-te entre os condores
Das nuvens arruivadas do horizonte...
... Para então, — do relâmpago aos livores,
Que descobrem do espaço a larga fronte, —
Contemplando o infinito..., na floresta
Rolar ao som da funeral orquestra!!!
A Duas Flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
O Gondoleiro do Amor

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,

Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.
E como em noites de Itália
Ama um canto o pescador,

Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.
Teu sorriso é uma aurora
Que o horizante enrubesceu ,
— Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.
Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,

Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é-um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa-nas calmarias,
É abrigo-no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor... Rosa!
Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
Canção do Violeiro
(de “Os Escravos”)

Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
Meu coração 'stá deserto,
'Stá deserto o mundo inteiro.
Quem viu a minha senhora
Dona do meu coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

Ela foi-se ao pôr da tarde
Como as gaivotas do rio.
Como os orvalhos que descem
Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
Mais triste é meu coração.

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

E eu disse: a senhora volta
Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores,
Foi o tempo, a flor desmaia.
Colhereira, que além voas,
Onde está meu coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.

Não quero mais esta vida,
Não quero mais esta terra.
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra.
Ai! triste que eu sou escravo!
Que vale ter coração?

Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.
Saudação a Palmares
(de “Os Escravos”)

Nos altos cerros erguido
Ninho d'águias atrevido,
Salve! — País do bandido!
Salve! — Pátria do jaguar!
Verde serra onde os palmares
— Como indianos cocares —
No azul dos colúmbios ares
Desfraldam-se em mole arfar! ...

Salve! Região dos valentes
Onde os ecos estridentes
Mandam aos plainos trementes
Os gritos do caçador!
E ao longe os latidos soam...
E as trompas da caça atroam...
E os corvos negros revoam
Sobre o campo abrasador! ...

Palmares! a ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Que no soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
E provocaste a rajada,
Solta a flâmula agitada
Aos uivos da marujada
Nas ondas da escravidão!

De bravos soberbo estádio,
Das liberdades paládio,
Pegaste o punho do gládio,
E olhaste rindo pra o val:
"Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fronte!"
E riste... O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!...

Cantem Eunucos devassos
Dos reis os marmóreos paços;
E beijem os férreos laços,
Que não ousam sacudir ...
Eu canto a beleza tua,
Caçadora seminua!...
Em cuja perna flutua
Ruiva a pele de um tapir.

Crioula! o teu seio escuro
Nunca deste ao beijo impuro!
Luzidio, firme, duro,
Guardaste pra um nobre amor.
Negra Diana selvagem,
Que escutas sob a ramagem
As vozes — que traz a aragem
Do teu rijo caçador! ...

Salve, Amazona guerreira!
Que nas rochas da clareira,
— Aos urros da cachoeira —
Sabes bater e lutar...
Salve! — nos cerros erguido —
Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido!...
A liberdade... e o jaguar!
A Canção do Africano
(de “Os Escravos”)

Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão ...

De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!

"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!

"0 sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!

"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...

"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".

O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!

O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.

E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
Confidência
(de “Os Escravos”)

Quando, Maria, vês de minha fronte
Negra idéia voando no horizonte,
as asas desdobrar,
Triste segues então meu pensamento,
Como fita o barqueiro de Sorrento
As nuvens ao luar.

E tu me dizes, pálida inocente,
Derramando uma lágrima tremente,
Como orvalho de dor:
"Por que sofres? A selva tem odores,
"0 céu tem astros, os vergéis têm flores,
"Nossas almas o amor".

Ai! tu vês nos teus sonhos de criança
A ave de amor que o ramo da esperança
Traz no bico a voar;
E eu vejo um negro abutre que esvoaça,
Que co'as garras a púrpura espedaça
Do manto popular.

Tu vês na onda a flor azul dos campos,
Donde os astros, errantes pirilampos,
Se elevam para os céus;
E eu vejo a noite borbulhar das vagas
E a consciência é quem me aponta as plagas
Voltada para Deus.

Tua alma é como as veigas sorrentinas
Onde passam gemendo as cavatinas
Cantadas ao luar.
A minha — eco do grito, que soluça,
Grito de toda dor que se debruça
Do lábio a soluçar.

É que eu escuto o sussurrar de idéias,
O marulho talvez das epopéias,
Em torno aos mausoléus,
E me curvo no túm'lo das idades
— Crânios de pedra, cheios de verdades
E da sombra de Deus.

E nessas horas julgo que o passado
Dos túmulos a meio levantado
Me diz na solidão:
"Que és tu, poeta? A lâmpada da orgia,
"Ou a estrela de luz, que os povos guia
"À nova redenção?"

Ó Maria, mal sabes o fadário
Que o moço bardo arrasta solitário
Na impotência da dor.
Quando vê que debalde à liberdade
Abriu sua alma - urna da verdade
Da esperança e do amor! ...

Quando vê que uma lúgubre coorte
Contra a estátua (sagrada pela morte)
Do grande imperador,
Hipócrita, amotina a populaça,
Que morde o bronze, como um cão de caça
No seu louco furor! ...

Sem poder esmagar a iniqüidade
Que tem na boca sempre a liberdade,
Nada no coração;
Que ri da dor cruel de mil escravos,
— Hiena, que do túmulo dos bravos,
Morde a reputação! ...

Sim... quando vejo, ó Deus, que o sacerdote
As espáduas fustiga com o chicote
Ao cativo infeliz;
Que o pescador das almas já se esquece
Das santas pescarias e adormece
Junto da meretriz...

Que o apóstolo, o símplice romeiro,
Sem bolsa, sem sandálias, sem dinheiro,
Pobre como Jesus,
Que mendigava outrora à caridade
Pagando o pão com o pão da eternidade,
Pagando o amor com a luz,

Agora adota a escravidão por filha,
Amolando nas páginas da Bíblia
O cutelo do algoz...
Sinto não ter um raio em cada verso
Para escrever na fronte do perverso:
"Maldição sobre vós!"

Maldição sobre vós, tribuno falso!
Rei, que julgais que o negro cadafalso
É dos tronos o irmão!
Bardo, que a lira prostituis na orgia
— Eunuco incensador da tirania —
Sobre ti maldição!

Maldição sobre tí, rico devasso,
Que da música, ao lânguido compasso,
Embriagado não vês
A criança faminta que na rua
Abraça u'a mulher pálida e nua,
Tua amante... talvez!...

Maldição! ... Mas que importa?... Ela espedaça
Acaso a flor olente que se enlaça
Nas c'roas festivais?
Nodoa a veste rica ao sibarita?
Que importam cantos, se é mais alta a grita
Das loucas bacanais?

Oh! por isso, Maria, vês, me curvo
Na face do presente escuro e turvo
E interrogo o porvir;
Ou levantando a voz por sobre os montes, —
"Liberdade", pergunto aos horizontes,
Quando enfim hás de vir?"

Por isso, quando vês as noites belas,
Onde voa a poeira das estrelas
E das constelações,
Eu fito o abismo que a meus pés fermenta,
E onde, como santelmos da tormenta,
Fulgem revoluções!...
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Dia Nacional da Poesia em Embú das Artes

Clique na imagem para ampliar

No Dia Nacional da Poesia, 14.03, acontecerá um manifestoso Sarau Litero-Musical no centro de Embú das Artes.

...o evento começa às 16:00 horas no Largo 21 de abril (Coreto, Palhoça) - em Embu das Artes, São Paulo, em uma sucessão de manifestações artísticas das mais variadas.

...às 19:00 horas nos somaremos ao Sarau do Circo do Sô Léo.

...tem ônibus saindo de São Paulo às 14:00 horas (Metrô São Judas), rumo à cidade de Embu das Artes. É bom/necessário confirmar presença até o dia 12.03:

...por e-mail: anselmo.picardi@hotmail.com
ou pelo celular: (11) 82106307
com Anselmo Picardi.

Informe-se nos blogs:
http://anselmo-picardi.blogspot.com/
http://www.circodosoleo.embu.art.br/

Fonte:
http://meiohomem.blogspot.com/2009/03/sarau-em-embu-das-artes-14-de-marco.html

terça-feira, 10 de março de 2009

Resultado do 2º Concurso Estadual de Trovas Une Versos do Rio Grande do Norte



Tema estadual - afeto

Menções Especiais

10º Lugar
Senti o afeto embalando
aquela linda criança...
no abraço da mãe, ninando,
o seu sonho de esperança!
(Mara Melinni – Caicó/RN)

9º lugar
Até num humilde ninho,
sente-se o fato concreto:
um pequeno passarinho,
cobrindo os filhos de afeto.
(José Anchieta – Juca/ Caicó-RN)

8º Lugar
Senti, no aroma da flor,
um doce afeto: a leveza
da mão de Deus, com amor,
perfumando a natureza!
(Eva Yanni – Caicó/RN)

7° Lugar
São tantos afetos, tantos
fervilhando entre nós dois;
que em dores, mágoas e prantos,
só pensaremos depois.
(Professor Garcia - Caicó/RN)

Menções Honrosas

6º Lugar
No meu rancho, pobre teto,
o chão era a cama e a mesa,
mas fui tão rico de afeto,
que nem falava em pobreza.
(José Lucas de Barros - Caicó/RN)

5° Lugar
Por falta de amor... de afeto,
eu vejo a cada segundo:
Viaduto servir de teto
e abrigo, às mágoas do mundo!
(Professor Garcia – Caicó/RN)

4º Lugar
Afeto, palavra amena,
à semelhança do amor,
está sempre em cada cena
da vida do trovador.
(Marcos Medeiros – Natal/RN)

Trova de Bronze

3º Lugar
Ai, meu Deus, que bom seria!...
e como seria doce
ter afeto, todo o dia,
mesmo um pouquinho que fosse...
(Ieda Lima – Caicó /RN)

Trova de Prata

2º Lugar
Ó, mãe... teu afeto é tanto,
tão angelicais teus traços...
que a vida tem mais encanto
na doçura dos teus braços!
(Mara Melinni – Caicó/RN)

Trova de Ouro

1° Lugar
Em minha infância inocente,
teu afeto, mãe querida,
desenhou-me fielmente
o lado belo da vida!
(José Lucas de Barros - Caicó/RN)
---------------
A comissão Julgadora do concurso estadual -Tema Afeto- reuniu os seguintes trovadores: Francisco Pessoa - José Ouverney - Marisa Olivaes – Marina Bruna.

Organização:
Hélio Alexandre S. e Souza / Hélio Pedro Souza / Manoel Dantas / Herbete Felipe.
http://www.trovauneversos.com/ – site do Clube dos Trovadores do Seridó.

Fonte:
E-mail enviado pelo Clube dos Trovadores do Seridó

Resultado do 2º Concurso Nacional/ Internacional de Trovas Une Versos



Tema Abismo

Menções Especiais

10º Lugar
A vida perde o seu brilho
toda vez que tu prorrogas
o amor que clama teu filho
que espreita o abismo das drogas.
(Maurício Cavalheiro – SP)

9º Lugar
Criam mentiras e ofensas
um abismo entre nós dois
que vai minar nossas crenças
num romance sem depois.
(Relva do Egypto Rezende Silveira – MG)


8º Lugar
Há com certeza um abismo
que separa a humanidade:
é quando a lei do egoísmo
supera a lei da igualdade.
(Carlos Alberto de Assis Cavalcanti - PE)

7º Lugar
O tamanho dos abismos
que puzeste em nossas vidas,
não se mede em algarismos
mas em lágrimas vertidas.
(Miguel Russouwsk - SC)

Menções Honrosas

6º lugar
Por que conviver assim,
se não nos queremos mais?!:
Hoje um abismo sem fim
mata os nossos ideais.
(Ialmar Pio Schneider - RS )

5º Lugar
Nosso abismo mais profundo
que no universo se espalma,
são as tristezas do mundo
nas profundezas da alma!
(Dilma Suero - RJ)

4º Lugar
Ter fé, amor, otimismo
e uma inabalável crença
nos faz saltar sobre o abismo
de qualquer indiferença!
(Renato Alves – RJ)

Trova de Bronze


3º Lugar
Pode a noite estar repleta
de trevas, que eu não me oponho:
poeta, quando é poeta,
rasga o abismo... e impõe seu sonho.
(José Ouverney - SP)

Trova de Prata


2º Lugar
A vida nos faz capazes
de viver num dualismo:
ora momentos de oásis,
ora momentos de abismo!
(Francisco Pessoa – CE)

Trova de Ouro


1º Lugar
Quem vive a vida trancado
na escravidão do egoísmo
carrega um fardo pesado
e cava seu próprio abismo!
(Maria Emília Leitão Medeiros Redi-SP)

Comissão Julgadora:
-Hélio Alexandre S. e Souza - CTS
-Manoel Dantas - CTS
-Hélio Pedro Souza – CTS / ATRN
A festa de premiação com entrega dos diplomas será na cidade de Caicó - Rio Grande do Norte, na presença dos membros do Clube dos Trovadores do Seridó, com data prevista para 18 de abril de 2009 na casa da Amizade;
Os convites serão expedidos via e-mail, confirmando o horário após os preparativos;
Algumas das trovas não premiadas serão também publicadas no site Trova Une Versos e no livro do concurso, com a devida permissão dos respectivos autores;
Qualquer dúvida, entrar em contato pelo e-mail do Site: trovauneversos@gamil.com

Fonte:
E-mail enviado por Clube dos Trovadores do Seridó

segunda-feira, 9 de março de 2009

Machado de Assis (Trio em Lá Menor)



I ADAGIO CANTABILE

MARIA REGINA acompanhou a avó até o quarto, despediu-se e recolheu-se ao seu. A mucama que a servia, apesar da familiaridade que existia entre elas, não pôde arrancar-lhe uma palavra, e saiu, meia hora depois, dizendo que Nhanhã estava muito séria. Logo que ficou só, Maria Regina sentou-se ao pé da cama, com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando.

A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens ao mesmo tempo, um de vinte e sete anos, Maciel — outro de cinqüenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar que se os dous homens estão namorados dela, ela não o está menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suas amigas de colégio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito; mas a imaginação é que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às cousas da vida outras de si mesma; daí curiosidades irremediáveis.

A visita dos dous homens (que a namoravam de pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com eles, e tocou ao piano uma peça clássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco. No fim discutiram música. Miranda disse cousas pertinentes acerca da música moderna e antiga; a avó tinha a religião de Bellini e da Norma, e falou das toadas do seu tempo, agradáveis, saudosas e principalmente claras. A neta ia com as opiniões do Miranda; Maciel concordou polidamente com todos.

Ao pé da cama, Maria Regina reconstruía agora tudo isso, a visita, a conversação, a música, o debate, os modos de ser de um e de outro, as palavras do Miranda e os belos olhos do Maciel. Eram onze horas, a única luz do quarto era a lamparina, tudo convidava ao sonho e ao devaneio. Maria Regina, à força de recompor a noite, viu ali dous homens ao pé dela, ouviu-os, e conversou com eles durante uma porção de minutos, trinta ou quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ela: lá, lá, lá...

II ALLEGRO MA NON TROPPO

NO DIA SEGUINTE a avó e a neta foram visitar uma amiga na Tijuca. Na volta a carruagem derrubou um menino que atravessava a rua, correndo. Uma pessoa que viu isto, atirou-se aos cavalos e, com perigo de si própria, conseguiu detê-los e salvar a criança, que apenas ficou ferida e desmaiada. Gente, tumulto, a mãe do pequeno acudiu em lágrimas. Maria Regina desceu do carro e acompanhou o ferido até à casa da mãe, que era ali ao pé.

Quem conhece a técnica do destino adivinha logo que a pessoa que salvou o pequeno foi um dos dous homens da outra noite; foi o Maciel. Feito o primeiro curativo, o Maciel acompanhou a moça até à carruagem e aceitou o lugar que a avó lhe ofereceu até a cidade. Estavam no Engenho Velho. Na carruagem é que Maria Regina viu que o rapaz trazia a mão ensangüentada. A avó inquiria a miúdo se o pequeno estava muito mal, se escaparia; Maciel disse-lhe que os ferimentos eram leves. Depois contou o acidente: estava parado, na calçada, esperando que passasse um tílburi, quando viu o pequeno atravessar a rua por diante dos cavalos; compreendeu o perigo, e tratou de conjurá-lo, ou diminuí-lo.

— Mas está ferido, disse a velha.

— Cousa de nada.

— Está, está, acudiu a moça; podia ter-se curado também.

— Não é nada, teimou ele; foi um arranhão, enxugo isto com o lenço.

Não teve tempo de tirar o lenço; Maria Regina ofereceu-lhe o seu. Maciel, comovido, pegou nele, mas hesitou em maculá-lo. Vá, vá, dizia-lhe ela; e vendo-o acanhado, tirou-lho e enxugou-lhe, ela mesma, o sangue da mão.

A mão era bonita, tão bonita como o dono; mas parece que ele estava menos preocupado com a ferida da mão que com o amarrotado dos punhos. Conversando, olhava para eles disfarçadamente e escondia-os. Maria Regina não via nada, via-o a ele, via-lhe principalmente a ação que acabava de praticar, e que lhe punha uma auréola. Compreendeu que a natureza generosa saltara por cima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar à morte uma criança que ele nem conhecia. Falaram do assunto até a porta da casa delas; Maciel recusou, agradecendo, a carruagem que elas lhe ofereciam, e despediu-se até à noite.

— Até a noite! repetiu Maria Regina.

— Esperou-o ansiosa. Ele chegou, por volta de oito horas, trazendo uma fita preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir assim; mas disseram-lhe que era bom pôr alguma coisa e obedeceu.

— Mas está melhor!

— Estou bom, não foi nada.

— Venha, venha, disse-lhe a avó, do outro lado da sala. Sente-se aqui ao pé de mim: o senhor é um herói.

Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto generoso, começava a receber os dividendos do sacrifício. O maior deles era a admiração de Maria Regina, tão ingênua e tamanha, que esquecia a avó e a sala. Maciel sentara-se ao lado da velha. Maria Regina defronte de ambos. Enquanto a avó, restabelecida do susto, contava as comoções que padecera, a princípio sem saber de nada, depois imaginando que a criança teria morrido, os dous olhavam um para o outro, discretamente, e afinal esquecidamente. Maria Regina perguntava a si mesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era míope, achou a contemplação excessiva, e falou de outra coisa; pediu ao Maciel algumas notícias de sociedade.

III ALLEGRO APPASSIONATO

MACIEL era homem, como ele mesmo dizia em francês, très répandu; sacou da algibeira uma porção de novidades miúdas e interessantes. A maior de todas foi a de estar desfeito o casamento de certa viúva.

— Não me diga isso! exclamou a avó. E ela?

— Parece que foi ela mesma que o desfez: o certo é que esteve anteontem no baile, dançou e conversou com muita animação. Oh! abaixo da notícia, o que fez mais sensação em mim foi o colar que ela levava, magnífico...

— Com uma cruz de brilhantes? perguntou a velha. Conheço; é muito bonito.

— Não, não é esse.

Maciel conhecia o da cruz, que ela levara à casa de um Mascarenhas; não era esse. Este outro ainda há poucos dias estava na loja do Resende, uma cousa linda. E descreveu-o todo, número, disposição e facetado das pedras; concluiu dizendo que foi a jóia da noite.

— Para tanto luxo era melhor casar, ponderou maliciosamente a avó.

— Concordo que a fortuna dela não dá para isso. Ora, espere! Vou amanhã, ao Resende, por curiosidade, saber o preço por que o vendeu. Não foi barato, não podia ser barato.

— Mas por que é que se desfez o casamento?
— Não pude saber; mas tenho de jantar sábado com o Venancinho Corrêa, e ele conta-me tudo. Sabe que ainda é parente dela? Bom rapaz; está inteiramente brigado com o barão...

A avó não sabia da briga; Maciel contou-lha de princípio a fim, com todas as suas causas e agravantes. A última gota no cálice foi um dito à mesa de jogo, uma alusão ao defeito do Venancinho, que era canhoto. Contaram-lhe isto, e ele rompeu inteiramente as relações com o barão. O bonito é que os parceiros do barão acusaram-se uns aos outros de terem ido contar as palavras deste. Maciel declarou que era regra sua não repetir o que ouvia à mesa do jogo, porque é lugar em que há certa franqueza.

Depois fez a estatística da rua do Ouvidor, na véspera, entre uma e quatro horas da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e todas as cores modernas. Citou as principais toilettes do dia. A primeira foi a de Mme. Pena Maia, baiana distinta, très pschutt. A segunda foi a de Mlle. Pedrosa, filha de um desembargador de São Paulo, adorable. E apontou mais três, comparou depois as cinco, deduziu e concluiu. Às vezes esquecia-se e falava francês; pode mesmo ser que não fosse esquecimento, mas propósito; conhecia bem a língua, exprimia-se com facilidade e formulara um dia este axioma etnológico — que há parisienses em toda a parte. De caminho, explicou um problema de voltarete.

— A senhora tem cinco trunfos de espadilha e manilha, tem rei e dama de copas...

Maria Regina ia descambando da admiração no fastio; agarrava-se aqui e ali, contemplava a figura moça do Maciel, recordava a bela ação daquele dia, mas ia sempre escorregando; o fastio não tardava a absorvê-la. Não havia remédio. Então recorreu a um singular expediente. Tratou de combinar os dous homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão eficaz, que ela pôde contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única.

Nisto apareceu o outro, o próprio Miranda. Os dois homens cumprimentaram-se friamente; Maciel demorou-se ainda uns dez minutos e saiu.

Miranda ficou. Era alto e seco, fisionomia dura e gelada. Tinha o rosto cansado, os cinqüenta anos confessavam-se tais, nos cabelos grisalhos, nas rugas e na pele. Só os olhos continham alguma cousa menos caduca. Eram pequenos, e escondiam-se por baixo da vasta arcada do sobrolho; mas lá, ao fundo, quando não estavam pensativos, centelhavam de mocidade. A avó perguntou-lhe, logo que Maciel saiu, se já tinha notícia do acidente do Engenho Velho, e contou-lho com grandes encarecimentos, mas o outro ouvia tudo sem admiração nem inveja.

— Não acha sublime? perguntou ela, no fim.

— Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga.

— Oh! protestou a avó.

— Ou mesmo conhecendo, emendou ele.

— Não seja mau, acudiu Maria Regina; o senhor era bem capaz de fazer o mesmo, se ali estivesse.

Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da fisionomia. Egoísta e mau, este Miranda primava por um lado único: espiritualmente, era completo. Maria Regina achava nele o tradutor maravilhoso e fiel de uma porção de idéias que lutavam dentro dela, vagamente, sem forma ou expressão. Era engenhoso e fino e até profundo, tudo sem pedantice, e sem meter-se por matos cerrados, antes quase sempre na planície das conversações ordinárias; tão certo é que as cousas valem pelas idéias que nos sugerem. Tinham ambos os mesmos gostos artísticos; Miranda estudara direito para obedecer ao pai; a sua vocação era a música.

A avó, prevendo a sonata, aparelhou a alma para alguns cochilos. Demais, não podia admitir tal homem no coração; achava-o aborrecido e antipático. Calou-se no fim de alguns minutos. A sonata veio, no meio de uma conversação que Maria Regina achou deleitosa, e não veio senão porque ele lhe pediu que tocasse; ele ficaria de bom grado a ouvi-la.

— Vovó, disse ela, agora há de ter paciência...

Miranda aproximou-se do piano. Ao pé das arandelas, a cabeça dele mostrava toda a fadiga dos anos, ao passo que a expressão da fisionomia era muito mais de pedra e fel. Maria Regina notou a graduação, e tocava sem olhar para ele; difícil cousa, porque, se ele falava, as palavras entravam-lhe tanto pela alma, que a moça insensivelmente levantava os olhos, e dava logo com um velho ruim. Então é que se lembrava do Maciel, dos seus anos em flor, da fisionomia franca, meiga e boa, e afinal da ação daquele dia. Comparação tão cruel para o Miranda, como fora para o Maciel o cotejo dos seus espíritos. E a moça recorreu ao mesmo expediente. Completou um pelo outro; escutava a este com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a ficção, indecisa a princípio, mas logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça era de burro.

IV MINUETTO

DEZ, VINTE, trinta dias passaram depois daquela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia certa; melhor é ficar no vago. A situação era a mesma. Era a mesma insuficiência individual dos dous homens, e o mesmo complemento ideal por parte dela; daí um terceiro homem, que ela não conhecia.

Maciel e Miranda desconfiavam um do outro, detestavam-se a mais e mais, e padeciam muito, Miranda principalmente, que era paixão da última hora. Afinal acabaram aborrecendo a moça. Esta viu-os ir pouco a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais. As noites foram passando, passando... Maria Regina compreendeu que estava acabado.

A noite em que se persuadiu bem disto foi uma das mais belas daquele ano, clara, fresca, luminosa. Não havia lua; mas nossa amiga aborrecia a lua, — não se sabe bem por que, — ou porque brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que por ambas as razões. Era uma das suas esquisitices. Agora outra.

Tinha lido de manhã, em uma notícia de jornal, que há estrelas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir dormir, encostou-se à janela do quarto, olhando para o céu, a ver se descobria alguma delas; baldado esforço. Não a descobrindo no céu, procurou-a em si mesma, fechou os olhos para imaginar o fenômeno; astronomia fácil e barata, mas não sem risco. O pior que ela tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo que, se a pessoa abre os olhos e eles continuam a fulgurar lá em cima, grande é o desconsolo e certa a blasfêmia. Foi o que sucedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas, davam um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou.

No muro da chácara viu então uma cousa parecida com dous olhos de gato. A princípio teve medo, mas advertiu logo que não era mais que a reprodução externa dos dous astros que ela vira em si mesma e que tinham ficado impressos na retina. A retina desta moça fazia refletir cá fora todas as suas imaginações. Refrescando o vento recolheu-se, fechou a janela e meteu-se na cama.
Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma ilusão, fechou os olhos e dormiu. Sonhou que morria, que a alma dela, levada aos ares, voava na direção de uma bela estrela dupla. O astro desdobrou-se, e ela voou para uma das duas porções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se para outra; igual resultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra das duas estrelas separadas. Então uma voz surgiu do abismo, com palavras que ela não entendeu.

— É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...

Fonte:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. São Paulo: Escala Educacional, 2008.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1896.

Dalton Trevisan (Tio Galileu)



A pobre mãe deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio Galileu, com os dias contados, podia ser o herdeiro.

Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na porta: Entre, meu filho, O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida mãe-d’água. No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os nós do lenço xadrez.

Tio Galileu raramente saía e, ao tirar o paletó, exibia duas rodelas de suor na camisa. Arrastava o pé, bufando, sempre a mão no peito. Afagava o papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: Piolhinho... piolhinho... Subindo a escada, dedos crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta: alegria de contar o dinheiro?

Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, coçando eterno pozinho na perna, vigiava. E não assobiava com alguém no quarto. Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o colchão de palha.

Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina.

Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o café para Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na gaveta.

Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado, luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, a anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir a pessoa e servir-se dela. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento remexia no tesouro.

Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com medo fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que a bicara ali no dedinho. O rapaz inclinou-se para beijar a unha de sangue. Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse.

O rapaz não pôde dormir. Meia hora depois, saltou a janela. Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. Torceu o pescoço do bicho e o enterrou no quintal.

Dia seguinte o homem buscou a papagaio, a assobiar debaixo de cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e, ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um dos piolhos vermelhos da peste.

Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava e desamarrava o cinto. Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono: inteirinha nua.

— Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio. Agora o velho.

Betinho ficou de pé. Tremia tanto, ela o amparou até a porta:

— Vá, meu amor. A vez do velho.

Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela noite nada falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo espalhado no colete de veludo. O último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos imóveis... Olho arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria.

Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou o olho, mais fácil que o papagaio. Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada.

Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara.

Era tarde, abria a janela aos gritos:

— Ladrão. Assassino! Socorro...

Fontes:
TREVISAN, Dalton. Novelas nada exemplares. RJ: Record, 1979.
Capa do Livro = http://www.americanas.com.br

Dalton Trevisan (Em Busca da Curitiba Perdida)



Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes.

Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon. Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja. Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que me viaja.

Dos bailes familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua.

Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.

Curitiba da briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga, eu viajo.

Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água.

Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo.

Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo.

Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.

Fontes:
TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. RJ: Record, 1979.
Capa do Livro = http://www.livrariamelhoramentos.com.br/