domingo, 22 de março de 2009

Gesson Álvares de Magalhães (1934)



Cadeira n.2 da Academia de Letras de Rondônia, cujo patrono é Ary Macedo.

Gesson nasceu na cidade baiana de Santana dos Brejos, no dia 12 de outubro de 1934, o último dos nove filhos do casal Propércio Álvares Pereira e Francisca Flora de Magalhães. Aprendeu a ler aos quatro anos de idade, com sua cunhada, que era professora.

Sempre curtiu verdadeira paixão pelas letras, tendo feito seu primeiro poema aos onze anos de idade, quando estava na quarta série, em Goiânia, estado de Goiás, para onde a família se mudou no ano de 1946.

Iniciou o curso primário na Bahia, tendo ainda de esperar alguns anos, pois era muito novo quando chegou o momento de ir para a escola oficial, tendo concluído em 1946, em Goiânia, na Escola Adventista, cuja professora chamava-se Edy Souza.

Depois de concluir o primário, parou por alguns anos, tendo voltado a estudar no Ginásio Adventista Campineiro, (hoje Unasp III), localizado em Hortolândia, Estado de São Paulo. Fez ali, o curso de Admissão ao Ginásio, iniciando a primeira série ginasial no ano de 1950. Em 1953, concluiu o curso ginasial, ocasião em que foi orador da turma de formandos.

É Adventista do Sétimo Dia de berço, tendo sido batizado no dia 3 de dezembro de 1949, no Ginásio Adventista Campineiro, aos 15 anos de idade.

Em 8 de dezembro de 1955, casou-se com a senhorita Ivete Gomes, natural de Arapongas, Estado do Paraná, depois de um namoro que se iniciou no Ginásio Adventista Campineiro. Desse consórcio, nasceram três filhos: Íverson, que vive hoje em Porto Velho, Sonete, que é cantora gospel e mora em Washington, nos Estados Unidos e Soníver, que também reside nesta capital. Tem oito netos, três bisnetos e uma filha adotiva, Joice.

Iniciou o Curso Médio em Goiânia, no Instituto de Educação de Goiás, tendo sido, naquele ano, o único aluno do sexo masculino. Isso o fez desistir de fazer o curso Normal, (hoje Magistério).

Residiu em 1956 em Araguari, Minas Gerais, onde nasceu seu primogênito, Íverson.

Em 1957, reiniciou o Curso Médio de Contabilidade no Colégio Adventista Brasileiro, (hoje Unasp I), localizado na capital paulista, tendo concluído no Colégio Doze de Outubro, em Santo Amaro, também na capital paulista.

Residiu e trabalhou em São José dos Campos e em Registro, no Estado de São Paulo e na Capital, São Paulo, onde nasceram sua filha e seu filho caçula.

Em 1967, mudou-se para o Paraná, tendo residido na cidade de Goioerê por um ano e depois na cidade de Mariluz, onde residiu por treze anos.

Nesse ínterim, fez faculdade de Letras em Jandaia do Sul, no Estado do Paraná, tendo concluído no ano de 1972.

Em 1980, exatamente no dia 31 de julho, chegou a Porto Velho, onde vive até hoje.

Aqui, iniciou sua vida profissional como Vice-Diretor do Colégio Estudo e Trabalho, tendo sido depois nomeado como diretor da Escola Carmela Dutra, que foi transformada em Instituto de Educação no ano de sua gestão. Foi Chefe de Gabinete da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, quando era secretário o Dr. Vitor Ugo. Quando se iniciaram os trabalhos da Assembléia Legislativa, foi assessor do Deputado Amizael Silva, que foi relator da Constituição do Estado, tendo sido presidente da Comissão de Sistematização da Constituinte, tanto da primeira como da segunda.

Foi também presidente da comissão que revisou as duas versões da Constituição do Estado, (1982 e 1989). Atuou como assessor na elaboração da lei orgânica dos seguintes municípios: Guajará-Mirim, Cerejeiras, Pimenta Bueno e Nova Brasilândia do Oeste, tendo participado da revisão da lei orgânica de Porto Velho. Em 1991, saiu da Assembléia Legislativa e retornou à Secretaria de Estado da Educação, onde exerceu os cargos de Revisor, Assessor e Chefe de Gabinete.

Membro do Conselho Estadual de Educação, tendo exercido os cargos de Vice-Presidente e Presidente daquele órgão. Professor de Língua Portuguesa na Escola Estudo e Trabalho, na Unir e na Faculdade de Tecnologia e Ciências – Fatec, onde ministrou a aula inaugural, em 1995. Enquanto lecionava na Unir, fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica em Belo Horizonte - MG. e em Metodologia do Ensino Superior, na própria UNIR, em Porto Velho.

Membro da União Brasileira de Escritores, seção de Rondônia, da Academia Rondoniense de Educação e fundador da Academia de Letras de Rondônia, onde exerceu o cargo de Secretário-Geral.

Eleito como Conselheiro do Conselho Fiscal da Academia de Letras de Rondônia, cujo mandato expirou em janeiro de 2009.

Obras publicadas:
- Adejos de minh’alma – livro de poesias, publicado em Rondônia.
- Alguma Cousa – ganhador do Concurso realizado por ocasião do centenário de nascimento de Vespasiano Ramos, 1º lugar dentre 49 obras concorrentes.
Publicou ainda diversos artigos e crônicas em jornais e revistas e colaborou em antologias, tais como: Porto Velho em Prosa e Verso e outras.

Títulos

Membro Efetivo da Casa do Poeta – São Paulo
Membro da União Brasileira de Escritores-Seção de Rondônia
Membro da Academia Rondoniense de Educação
Cidadão Constituinte de Guajará-Mirim
Amigo da Educação, concedido pelo Conselho Estadual de Educação de Rondônia.
Constituinte Emérito, concedido pela Assembléia Constituinte de Rondônia.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia. http://acler.josevaldir.com/

Sylvia Plath (Teia de Poesias)



OVELHAS NO NEVOEIRO

As colinas descem sobre a brancura.
Pessoas ou estrelas
Olham-me tristemente, desaponto-as.

O comboio deixa o traço da sua respiração.
Oh lento
Cavalo cor da ferrugem,

Cascos, guizos de dor —
Toda a manhã a
Manhã tem vindo a escurecer,

Uma flor posta de lado.
Os meus ossos ganham imobilidade. Campos
Distantes suavizam o meu coração.

Ameaçam
Deixar-me entrar para um paraíso
Onde não há estrelas, não há pais, secreta água.
In “Ariel”
Tradução de Fernanda Borges

EU QUERO, EU QUERO

De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos estalaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.

(In “Pela Água” - Assírio & Alvim)
(Tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

PELA ÁGUA

Um lago negro, um barco negro, duas pessoas negras em papel recortado.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras devem cobrir o Canadá.

Das flores aquáticas sai filtrada uma luz tênue.
As suas folhas não querem que nos apressemos:
São circulares e sem relevo, cheias de conselhos obscuros.

Mundos frios agitam se com os remos.
O espírito da escuridão está em nós, está nos peixes.
Um ramo submerso ergue uma mão pálida em despedida;

as estrelas abrem se entre os lírios.
Não ficas cego com a mudez de tais sereias?
Este é o silêncio das almas já perturbadas.

CONTUSÃO

A cor aflui ao local, púrpura e baça.
O resto do corpo está sem cor,
a cor da pérola.

Numa cavidade da rocha
o mar sorve obsessivamente,
uma concavidade, o centro de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
a marca do destino
rasteja pela parede.

O coração fecha se,
o mar retira se,
os espelhos estão velados.

PAPOULAS EM JULHO

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês não fazem mal?

E tremeluzem. Não posso tocar vos.
Ponho as minhas mãos entre as chamas. Nada queima.

E fico exausta ao olhar vos
A tremeluzir assim, pregueadas e de um vermelho vivo, como a pele de uma
boca

Uma boca que acabou de sangrar.
Pequenas bainhas ensaguentadas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde está o vosso ópio, essas cápsulas que dão náuseas?

Se eu pudesse esvair me em sangue, ou dormir –
Se a minha boca pudesse casar com uma ferida assim!

Ou se os vossos venenos pudessem penetrar em mim, nesta cápsula de vidro,
Para me entorpecerem e aquietarem.

Mas sem cor. Sem cor nenhuma.

NÓDOA NEGRA

A cor converge para esse sítio, de um arroxeado mortiço.
O resto do corpo fica todo descolorido,
De cor pérola.

Numa gruta cavada na rocha
O mar suga obsessivamente
Uma cavidade, o ponto central de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca
A marca do destino
Arrasta se pela parede abaixo.

O coração fecha se,
O mar recua,
Os espelhos são tapados.

PALAVRAS
Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
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Alfred Lichtenstein (Poeta do Expressionismo Alemão)

Crepúsculo

Um rapaz gordo brinca com um lago.
O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.

Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,
Arrastam se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta.
Um cavalinho tropeça num seio.

O gordo está colado ao guarda vento.
Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bebé grita.

(1911)

O PASSEIO

Tu, não aguento mais
esses quartos imóveis e as áridas ruas,
e o rubro sol das casas,
a infame repugnância de todos
os livros há muito folheados.

Vem, precisamos sair da cidade
para bem longe.
Vamos deitar-nos na
grama suave.
Vamos, ameaçados e sem ajuda,
contra o absurdamente grande,
mortalmente azul, brilhante céu,
levantar olhos encovados e apáticos,
desencantadas e desgastadas mãos."
(1913)

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Sobre o Autor
Alfred Lichtenstein, um dos vultos do expressionismo alemão, nasceu em 1889 em Berlim. Fez o curso de Direito em Berlim e se doutorou em 1913 com um trabalho sobre legislação teatral. No mesmo ano, foi enviado como miliciano, por um ano, para Munique e pouco tempo depois partiu para a frente da guerra. Morreu em combate em Vermandevillers, perto de Reims, em 25 de Setembro de 1914, com apenas 25 anos.

Os poemas póstumos de Lichtenstein, confiados a Kurt Lubasch em Berlim, foram destruídos durante a segunda guerra mundial, à exceção de 4 cadernos manuscritos, de oleado, que foram doados à Universidade de Berlim pela mulher de Lubasch, depois da morte deste e por desejo do mesmo.

Lichtenstein gritava na sua poesia a desproporção do mundo em tempo de guerra. No meio de um mundo de quotidiano cinzento e amarelado, de cenas de família e tardes de domingo, entravam as perversões, os manicômios, as anatomias. E mostrava a sua raiva entrechocando esses dois mundos nos seus poemas.
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Fontes:
Luís Gaspar. http://www.truca.pt/ouro.html
http://www.expressionismo.pro.br/cita.html
Foto = http://www.ebooks-library.com/
Imagem = http://www.baixaki.com.br/

Expressionismo

Kirchner (Natureza Morta)
Até onde se sabe, a palavra "expressionismo" foi empregada, pela primeira vez, em 1850, pelo jornal inglês Tait's Edinburgh Magazine evocando, em artigo anônimo, uma "escola expressionista" de pintura moderna.

Em 1880, Charles Rowley pronunciou em Manchester uma conferência sobre a pintura contemporânea, identificando uma corrente "expressionista" de artistas que procuravam exprimir suas paixões.

Em 1878, no romance The Bohemian, de Charles de Kay, um grupo de artistas referiam-se a si próprios como "expressionistas". Mais tarde, em 1901, o pintor Julien-Auguste Hervé expôs no Salão dos Independentes em Paris oito quadros seus, nada expressionistas, sob o título Expressionnismes. Em 1910, o marchand Paul Cassirer declarou, diante de um quadro de Max Pechstein, que aquilo não era mais impressionismo, mas "expressionismo".

Em 1911, durante a 22ª sessão da Berliner Sezession ("Secessão de Berlim"), Wilhelm Worringer chamou de "expressionista" a vanguarda estrangeira ali exposta - Braque, Dérain, Dufy e Picasso, entre outros -, e o termo "expressionismo" passou a ser associado à nova pintura belgo-francesa. Logo os teóricos e críticos Herwarth Walden, Walter Heymann, Louis de Vauxcelles, Paul Fechter e Paul Ferdinand Schmidt, assim como o poeta Kurt Hiller, passaram a chamar de "expressionista" toda arte moderna oposta ao impressionismo.

Com a verificação de que o verdadeiro expressionismo disseminava-se na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Tchecoslováquia, o termo tornou-se uma referência para a arte cujas formas não nasciam diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade. Atualmente, é considerada "expressionista" qualquer arte onde as convenções do realismo sejam destruídas pela emoção do artista, com distorções de forma e cor. De fato, a deliberada deformação das formas, o sacrifício do discurso ao essencial, a captação de um mundo em frangalhos, a preocupação com a doença e a morte, a sublimação da loucura em contrastes e dissonâncias, o gosto pelo insólito e a visão de um absurdo que tira para sempre a alegria de viver são comuns a todos os escritores modernos que atingiram os limites da expressão, desde Georg Büchner, August Strindberg, Franz Kafka, Arthur Schnitzler e Frank Wedekind, até Elias Canetti, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Dario Fo.

Na pintura, já os chamados românticos idealistas, como o suíço Arnold Böcklin e o alemão Franz von Stuck, criavam naturezas carregadas de mistério, pathos e simbolismo; nos quadros de Caspar David Friedrich, a paisagem parece esmagar o homem, fixado como uma figurinha perdida na vastidão da natureza - campo, mar, geleiras, montanhas.

Precursor direto do expressionismo, Vincent Van Gogh criou plantas que expressavam seu atormentado mundo interior. Antes de tornar-se pintor, via-se como o figueiro estéril da parábola bíblica. Mais tarde, para dar forma à sua luta contra "as pequenas misérias da vida", projetou-se na imagem de uma planta cujas raízes agarram-se ao solo, enquanto o vento as vai arrancando. No máximo de sua arte, quando descobriu o sol "em toda sua glória", identificava-se com um girassol, fixando velas acesas no chapéu, para pintar à noite, desenhando girassóis murchos quando caía em depressão.

Por fim, depois de romper com Gauguin, seu melhor amigo, pintou ciprestes contorcidos como tochas vivas. Outro anunciador do movimento foi o norueguês Edvard Munch, com uma visão de horror: "Eu caminhava com dois amigos - o sol se pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue - eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde, de um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus amigos continuaram seu caminho - eu fiquei no lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza". Reconhece-se, nessa visão, a origem de O Grito ("Der Schrei", 1893), onde um homem, deformado pelo próprio espasmo, expressa em seu corpo uma angústia que envolve a paisagem, enquanto ao fundo dois homens de fraque e cartola afastam-se, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo. E não apenas nessa imagem, como em toda a obra de Munch, que estropiou dois dedos da mão esquerda com um tiro, depois de romper com a noiva, a angústia da morte que percorre toda sua obra antecipa os horrores que destruiriam, para sempre, a belle époque instalada sobre o vulcão dos nacionalismos que se acirravam.

O grito de Munch ecoou na Alemanha, onde o expressionismo floresceu por uma série de condições propícias. Como o país industrializava-se rapidamente dentro de estruturas sociais conservadoras, os jovens artistas reagiam pelo exagero e a deformação contra códigos morais anacrônicos e repressivos. A ordem do mundo afigurava-se diabólica aos intelectuais e artistas mais sensíveis, que se reuniam, em Berlim, no Café des Westens ("do Ocidente") ou no Grössenwahn ("Megalomania"), "locais de debates, leituras e desavenças que poderiam durar minutos ou anos". O grito também ecoou em Dresden e Munique, e em Viena, Praga e Budapeste: nessas cidades onde a velha cultura se dissolvia rapidamente junto com as estruturas imperiais, literatos, pintores e gravuristas fundaram um sem-número de revistas, cabarés e grupos de nomes bombásticos.

Uma das primeiras associações foi a Die Neue Gemeinschaft ("A Nova Comunidade"), da qual participavam os filósofos Gustav Landauer e Martin Buber, adeptos da filosofia romântica do retorno à natureza como condição para o nascimento do Novo Homem, exercendo forte influência nos poetas Else Lasker-Schüler e Ludwig Rubiner. Em 1904, Herwarth Walden criou o grupo Verein für die Kunst ("Sociedade pela Arte"), que organizava animados saraus, dos quais participava o escritor Alfred Döblin.

Em 1905, em Dresden, um grupo de artistas - Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff, entre outros - fundaram Die Brücke ("A Ponte"), partilhando o interesse pela arte primitiva - ligada à vida coletiva e ao trabalho anônimo - exposta no Museu Etnográfico daquela cidade: até 1913, quando o grupo se dissolveu, os artistas da Brücke não assinavam suas obras, repartindo estúdio e material de trabalho, vivendo a guilda anônima sonhada por Van Gogh. Suas obras chocavam pelas formas contrastantes, contornos simplificados, dissonância tonal e textura dinâmica. O manifesto do grupo conclamava a jovem geração a criar e viver com liberdade. Procurando perder-se numa força exterior transcendente, opunham às potências dominantes entidades abstratas com as quais se identificavam: a natureza, o infinito, o além. A procura do imaterial, do outro mundo que se escondia por trás das aparências, era sustentada por um sentimento religioso levado às raias do misticismo.

Desde 1906 morando num pequeno castelo que havia adquirido, Alfred Kubin criava composições a partir de faíscas luminosas, fragmentos de cristais e conchas, pedaços de carne e pele, folhas e outros objetos, em pinturas abstratas que materializavam suas lembranças e seus pesadelos. Repercutiam entre os jovens artistas as idéias bergsonianas que Wilhelm Worringer defendeu em Abstraktion und Einfühlung (1907), de que a subjetividade é a base da arte e a intuição o elemento fundamental da criação; seguindo esse caminho, eles suprimiam as formas instituídas para atingir "as coisas que estão por trás das coisas", em efusões selvagens, demoníacas.

Em 1909, inaugurando o teatro expressionista, o pintor Oskar Kokoschka montou sua peça Mörder, Hoffnung der Frauen ("Assassino, Esperança das Mulheres") no Wiener Kunstschau, provocando violento tumulto; era o primeiro texto teatral a distorcer radicalmente a linguagem tal como os artistas plásticos distorciam as formas e reinventavam as cores, com omissão de trechos de sentenças e embaralhamento arbitrário da ordem das palavras. Logo os novos poetas passaram a evocar imagens sinistras, entre gemidos lancinantes e exclamações sincopadas.

Ainda em 1909, Wassily Kandisnky, Franz Marc e Gabrielle Münter, dissidentes da Sezession, fundaram a Neue Künstlervereinigung.

Em 1910, o escritor Herwarth Walden lançou o periódico Der Sturm ("A Tempestade"), pretendendo "destruir a estrutura lógica da língua, que encobre a verdade das coisas para exprimir em gritos profundos a substância do Universo". Em Berlim, Kurt Hiller fundou o Neopathetisches Kabarett ("Cabaré Neopatético").

Em 1911, formou-se a Neue Sezession; contra a onda revolucionária, Carl Vinnen publicou o manifesto chauvista Protesto dos artistas alemães, assinado por 120 artistas, todos medíocres. Não se podia mais deter a expressão da nova sensibilidade: em Munique, a Neue Künstlervereinigung promoveu a primeira exposição do grupo Der Blaue Reiter ("O Cavaleiro Azul"), fundado por Kandinsky, Marc e Paul Klee, que com cores luminosas, planos dinâmicos e contornos suaves, tentavam recriar os pontos de vista da criança, do primitivo, do paranóico, do camponês, do animal. O escritor Kurt Hiller fundou Der Neue Club ("O Novo Clube"), e pela primeira vez aplicou o termo "expressionismo" associado à literatura; decretando a inferioridade dos estetas tradicionais, afirmou: "Nós somos expressionistas".

Em 1912, Ludwig Rubiner, evocando o poder subversivo do poeta e sua capacidade de fazer explodir as estruturas, atacou a política em nome da Santa Ralé: "Não. Eu não estou sozinho. Embora isto não seja uma prova. Quem somos nós? Quem são os camaradas? Prostitutas, poetas, gigolôs, colecionadores de objetos perdidos, ladrões de ocasião, mandriões, amantes em meio a um abraço, loucos de Deus, bêbados, fumantes inveterados, desempregados, comilões, vagabundos, assaltantes, chantagistas, críticos, dorminhocos. Biltres. E, por instantes, todas as mulheres do mundo. Somos os rejeitados, os restolhos, os desprezados. Somos aqueles que são sem trabalho, inaptos ao trabalho, aqueles que recusam o trabalho. Não queremos trabalhar, porque é devagar demais. Somos imunes à doutrina do progresso; para nós, ele não existe. Acreditamos no milagre... acreditamos que nossos corpos, de repente, sejam devorados em chamas pelo espírito ardente... Procuramos raios de fogo na nossa memória, a vida toda... atropelamo-nos atrás de toda cor, queremos invadir espaços alheios, queremos penetrar em corpos estranhos... O que importa, agora, é o movimento. A intensidade e a vontade de catástrofe".

Werner Haftmann aconselhou os artistas a se tornarem homens psiquicamente desequilibrados. Por toda parte testemunhavam-se arrebatamentos, derramamentos; em toda parte ressoavam "incontroláveis gritos de dor".

Em 1913, formou-se a Freie Sezession como alternativa à agonia dos conservadores e as manifestações expressionistas começaram a multiplicar-se na Alemanha.

No inverno de 1916, Conrad Felixmüller organiza expressionistischen Soiréen ("saraus expressionistas") em seu ateliê. O mundo das artes debate as novas tendências: futurismo, cubismo, abstracionismo e expressionismo, este já difamado como um "negroidismo primitivo". O pacifismo é sua principal bandeira política. As idéias humanistas de Tolstói, reverberadas nos romances de Berta Lask e Leonhard Frank, artigos anti-guerra de Franz Pfemfert e Franz Mehering e panfletos do Spartakus lidos por Alfred Kurella causavam sensação. As idéias deviam ser transformadas em ações. Exigia-se que as idéias se transformassem em ações, que a poesia e a pintura se engajassem. Hermann Bahr populariza o movimento com seu livro Expressionismus. E já desencantados com o mundo, os expressionistas radicalizam sua busca de sentimentos universais, o sentido internacionalista, o sonho de uma Europa unida e fraterna e as idéias de vida comunitária, optando pela revolução socialista.

Em abril de 1917, um grupo da tendência revolucionária Liga Espartaquista do SPD, entre cujos líderes encontravam-se Haasse e Kautsky, fundaram o USPD (Unabhängige Sozialdemokrätische Partei Deutschlands - Partido Social Democrata Independente da Alemanha), criando organismos culturais, à maneira dos comitês de operários e soldados, agindo através de conferências, manifestos, panfletos e exposições. A rebelião dos filhos contra os pais eclodiu no drama expressionista Der Sohn ("O Filho", 1914), de Walter Hasenclever, onde o Filho, por ter apenas preocupações metafísicas, fracassava nos exames que lhe prometiam um futuro; em punição, o Pai cortava-lhe a mesada, prendendo-o em casa até os 21 anos. A peça, contudo, não ia muito longe: a revolta do Filho impotente contra o Pai que detinha o poder conservava um fundo edipiano; levado pelo Amigo a um baile onde a juventude protestava contra o mundo dos adultos e ameaçava levar os pais aos tribunais, o Filho descobria o sexo com uma mulher, sentindo-se potente a ponto de ameaçar o Pai com um revólver. O drama só tirava sua força da apresentação do conflito.

Mas o expressionismo radicalizou-se rapidamente, e logo os artistas voltaram-se contra os mestres, o exército, o imperador, todas as autoridades estabelecidas, prestando solidariedade a todos os oprimidos. Lutavam para restaurar a plenitude do ser humano, propondo uma transformação substancial de valores. Muito desse impulso libertário e apocalíptico do expressionismo devia-se à ascendência judaica de boa parte de seus artistas e escritores. A vivência de uma condição minoritária levava-os a questionar os próprios fundamentos da sociedade. Segundo Heinrich Berl, "para o judaísmo, o expressionismo foi a hora de seu renascimento espiritual".

O humanismo subversivo do expressionismo assustava os liberais, que não conseguiam desfazer-se de seu nacionalismo atávico: depois de encontrar-se com o expressionista Carl Sternheim, Romain Rolland registrou em seu Journal ("Diário", 1915): "É ouvindo falar de tais pessoas que se dá conta de que os judeus são bem um perigo nacional: tanto os piores quanto os melhores; os piores, destruindo a pátria, os melhores querendo nela reconstruir uma cidade mais ampla".

Se essa reação íntima vinha de um escritor que publicamente combatia o anti-semitismo, pode-se imaginar a virulência das reações às reivindicações do expressionismo por parte dos nacionalistas mais ferrenhos.

Em 1912, o filósofo francês Alain cantava a guerra como uma mística, uma epopéia, uma juventude e uma embriaguez, afirmando que são os justos, os sábios e os poetas que melhor a fazem. Decretada a Primeira Guerra Mundial, ele se alistou como voluntário, escolhendo o posto da artilharia pesada. Mesmo depois da guerra, Alain preservou um alto conceito da carnificina, declarando: "A guerra é a missa do homem... a celebração do humano no homem, já que os animais mais ferozes só atacam para preservar suas vidas", razão pela qual "todos os homens dignos deste nome correm para a guerra ao primeiro chamado".

Também em 1914, Thomas Mann afirmou ser a guerra "uma purificação da cultura"; recordando a posição de seu criador à época, Hans Castorp partia alegre e saltitante para o campo de batalha no final de A Montanha Mágica ("Der Zauberberg", 1924), a conflagração assumindo os ares de uma libertação do círculo vicioso das partidas e retornos dos tuberculosos ao sanatório.

Também na Itália de 1915, o futurista Marinetti proclamava: "A guerra é a única higiene do mundo", incitando o povo a participar da matança. Celebração do humano, purificação da cultura ou higiene do mundo, a guerra era saudada com entusiasmo pelos jovens nacionalistas, cantada em verso e prosa por poetas, intelectuais e artistas, vista pelos filósofos como uma necessária queima de energia masculina acumulada, energia cuja verdadeira natureza permanecia obscura, produzindo em alguns visionários expressionistas, como Else Lasker-Schüler, Albert Ehrenstein, Georg Trakl, Jakob von Hoddis, Alfred Lichtenstein ou Franz Werfel, visões transpassadas de horror.

O pacifismo não encontrava qualquer respaldo popular: apenas uma minoria de políticos - como Heinrich Lammasch, que se voltou contra a política guerreira do Partido Católico - posicionava-se contra a guerra. Com sua eclosão, a maioria dos alemães engajou-se voluntariamente. Também para muitos judeus essa foi a ocasião de provar sua fidelidade à pátria: cerca de 12.000 soldados judeus caíram pela Alemanha na Primeira Guerra. Mas será em vão que, mais tarde, combatendo o anti-semitismo dos partidos políticos, a Reichsbund jüdischer Frontsoldaten ("Liga dos Soldados Judeus do Front do Império") lembrará essa estatística, a mais dramática prova de sua assimilação. Tal era a força do mito nacionalista do sangue que mesmo alguns intelectuais judeus deixaram-se impregnar pelo biologismo: nos encontros sionistas da Alemanha de 1910, Hugo Salus recitava uma Lied des Blutes ("Canção do Sangue"), e logo Martin Buber proporia aos sionistas buscar no sangue seu radicalismo, defendendo Jean-Richard Bloch igualmente o princípio biológico: "O sangue é a duração na comunidade dos vivos, dos mortos e dos não-nascidos. Ele forma a substância de nosso ser, a razão de nosso eu, cada inconcebível histórica (ou melhor biológica) memória, que nos ligou a toda cadeia de nossos antepassados, com seus caracteres e seus destinos, com suas ações e sofrimentos, com suas vivências, grandezas e misérias".

Marcado pelos conceitos social-darwinistas da época, o discurso sionista reproduzia-o em pequena escala, substituindo a história pela biologia, a liberdade pelo destino, a educação pelo sangue, a razão pelo mito, o movimento da consciência pelos fluxos do inconsciente. O discurso libertário, pacifista e universalista da vanguarda engajada era considerado tanto pelos nacionalistas anti-semitas quanto, em menor escala, pelos sionistas radicais, uma provocação insuportável. E a provocação era mesmo tremenda. Quando o socialista Friedrich Adler assassinou o Ministro-presidente Stürgkh, em protesto contra a guerra, Karl Kraus, autor do drama expressionista Os Últimos Dias da Humanidade, festejou-o como herói e conseguiu impedir sua execução através de uma campanha desencadeada por sua revista, Die Fackel ("A Tocha", 1899-1936, da qual ele foi, a partir de 1912, o único redator, escrevendo 922 números). O povo só perdeu o gosto pela guerra quando as notícias de derrota no front começaram a chegar e, com elas, a fome.

Em 1917, numa tentativa revisionista, Conrad Felixmüller e Felix Striemer criaram o grupo Der Neue Kreis ("O Novo Círculo"), renegando o pathos do movimento: "Descartemos os passos falsos das expressões psicológicas incompreensíveis". Propunham, em seu lugar, um Synthetischen Kubismus ("cubismo sintético"): "As formas dos objetos permanecem fiéis no sentido material - quer dizer, sem sintomas de transformação, como sol, luz, ar; nunca são portadores de disposições da alma ou de sentimentos. Incessante significação, expressão do ser. A matéria madeira permanece madeira, pedra permanece pedra, cal - cal, cabelo - cabelo, etc. O sentimento somente quando ele for constante. Quando não permanecer apenas como recheio. Quando for existência".

Outra ala do expressionismo abraçou o socialismo como proposta política definida. Considerando-se adolescentes apocalípticos em rebelião contra todos os absurdos, especialmente o da guerra, muitos expressionistas engajaram-se na militância política, distanciando-se dos futuristas, que idolatravam a a civilização técnica. Walter Gropius escreveu que o expressionismo era "uma revolta contra a máquina e tudo o que ela representa de repressivo".

Como observou Luiz Carlos Daher, os expressionistas viam a metrópole como um inferno, a máquina como um Moloch e o robô como um sinistro Golem moderno; se para os futuristas o progresso técnico prometia uma vida liberta dos sentimentalismos passadistas, para os expressionistas o homem encontrava-se alienado num universo estranho e diabólico; a alegria e o vitalismo futuristas chocavam-se com a visão do caos percebida pelos expressionistas; e se para os futuristas a guerra era fonte de exaltação e prazer, os expressionistas legaram seu pacifismo aos sobreviventes da conflagração, depois de sofrê-la na carne: como tantos outros, os pintores Franz Marc, August Macke e Egon Schiele, os poetas Alfred Lichtenstein, Ernst Stadler e August Stramm morreram no front; ao dele retornar, o escritor Ernst Toller organizou com Kurt Eisner o movimento pacifista, e em seu drama Masse Mensch ("Homem-Massa"), a heroína preferia morrer antes que aceitar ser libertada da prisão através do assassínio de um dos guardas.

Com total desprezo pela política, Franz Werfel clamou por um levante mundial da amizade contra a devastação do mundo. Em seus poemas, René Schickele condenava a violência, quer viesse dos contra-revolucionários ou dos próprios revolucionários, que sempre acabavam traindo a verdadeira revolução humana.

Espírito prático, Wilhelm Michael propôs a formação de um Congresso Internacional de Intelectuais: cada país elegeria seus poetas, escritores, artistas, sábios e pacifistas e os encarregaria de representá-los. Estes formariam o primeiro Parlamento da Comunidade Universal, reunindo-se a cada ano num país diferente para conferenciar sobre as possibilidades de educar os povos no sentido da amizade e do combate ao ódio, destruindo, sob o fogo do espírito e do amor, o bloco de violência e injustiça que o mundo civilizado representava.

Kurt Hiller foi mais longe e sugeriu a formação de um Partido dos Intelectuais, com o objetivo de conquistar o Paraíso na Terra; seu programa incluía a supressão da guerra; reformas econômicas para garantir o mínimo vital a todo cidadão; ajuda aos desempregados e aos criadores; liberação sexual com o reconhecimento da homossexualidade; racionalização da procriação; abolição da pena de morte; proteção do indivíduo diante do crescente poderio da psiquiatria; transformação das escolas de ensino em escolas de pensar; combate contra as Igrejas e os Parlamentos; estabelecimento de uma aristocracia do espírito; liberdade total de expressão.

Os expressionistas organizaram-se para a revolução fundando, em novembro de 1918, o Novembergruppe ("Grupo de Novembro"), do qual participavam Walter Gropius, Bruno Taut, Heinrich Campendonk e Rudolf Belling, instituindo um Conselho de Trabalho para a Arte. Em dezembro, os espartaquistas e outros grupos revolucionários fudaram o Partido Comunista Alemão, reivindicando todo o poder para os comitês de operários e soldados; mas, após violenta repressão e assassinato dos líderes Karl Liebkenecht e Rosa Luxemburgo por oficiais de direita, uma Assembléia Constituinte, instalada em 19 de janeiro de 1919, elegeu uma maioria conservadora de social-democratas para governar a República de Weimar.

Reagindo à contra-revolução, Hugo Zehder fundou o grupo Dresdner Sezession 1919 e a revista Neue Blätter für Kunst und Dichtung ("Novas Folhas para a Arte e a Poesia"), denunciando a tentativa de apropriação burguesa das formas expressionistas em inócuas "preciosidades engraçadinhas", propondo a retomada do caráter revolucionário e profético do movimento: "Inicialmente cantaremos algumas curtas e claras 'canções para sacudir'. Pois queremos sempre ser muito engraçados e expulsar com o riso aqueles que nos cercam com suas sombrias astúcias: mesmo andando na ponta dos pés, não nos alcançarão".

E protestando contra o esmagamento da revolução, o encenador Leopold Jessner criou uma encenação tão subversiva de Wilhelm-Tell ("Guilherme Tell", 1919) que os atores quase não conseguiram levá-la até o fim. Na noite de estréia, o tumulto reinava na sala, o público dividido entre os esquerdistas que aplaudiam e os direitistas que gritavam "Judeus vigaristas!". Kortner entrava no meio da peça, no papel do sádico Geßler. Mas antes disso, Jessner aproximou-se dele e indicou que, diante daquele tumulto, nem precisava entrar. Mas seu assistente, Albert Florath, aproximou-se, bêbado, e disse: "Vista-se, continuamos a representar. Sob qualquer condição." Os protestos abafaram suas palavras. Alguns atores abandonaram o palco, querendo desistir. Florath os caçava e os obrigava a voltar. Quando a gritaria cresceu, Jessner pediu cortina, a qual desceu até a metade. Florath insistiu: "Deixe pelo menos Kortner enfrentá-los!"

O crítico de teatro Siegfried Jacobson debatia-se furiosamente com a galeria. Espectadores exaltavam-se. Julius Bab pulava da poltrona e gritava. Em meio ao caos, Florath fez subitamente a cortina erguer-se. O golpe produziu um inesperado silêncio. A representação continuou. Mas quando Kortner, vestido e maquiado de vermelho, subiu ao palco, o barulho recomeçou. Arrasado, Jessner previu o fim. Mas o ator Albert Bassermann fez uma cena tão comovente que levou o público às lágrimas. Atrás do palco, Florath dançava de alegria. Logo a tormenta retornou, para atingir o clímax. Esgotado, Bassermann abandonou o palco. Mas teve que voltar para contracenar com Kortner. Com suas vozes possantes, os dois monstros sagrados conseguiram aplacar a gritaria. Só a intervenção da polícia permitiu o prosseguimento da peça. A horda anti-semita foi evacuada e Kortner e Bassermann puderam ser aclamados.

A revolta expressionista não se limitava, contudo, às agitações sociais, atingindo dimensões metafísicas, e até cósmicas. O manifesto de 1919 de Lothar Schreyer sintetizou a radicalização final: "Uma mulher compreendeu que para nada lhe serve usar seus encantos e a isso renuncia. Um outro sabe que a Igreja não faz de ninguém um cristão e recusa batizar seu filho. Um outro vê os malefícios da imprensa a soldo da sociedade e se abstém de lê-la. Tais são os primeiros passos do homem que se afasta do mundo antigo. Vêm em seguida os atos decisivos pelos quais ele o rejeita, o aniquila e o esquece em sua pessoa. Afastar-se radicalmente, interiormente e exteriormente, do mundo antigo e de suas instituições - sociedade, família, Estado, Igreja, arte, ciência, moral e cultura - é a condição da liberdade no mundo novo. A hora das decisões chegou para todos. Todos aqueles que compreenderam que o mundo antigo é um Calvário devem tomar suas responsabilidades. Somos de novo responsáveis pelo destino do mundo: da morte do antigo e do nascimento do novo. É agora que tudo se decide. É agora que nasce o Homem Novo".

Depois de passar das artes plásticas e da arquitetura para a literatura e o teatro, o expressionismo agora estava maduro para chegar ao cinema, e sua primeira realização foi O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Dr. Caligari", 1919), de Robert Wiene, que marcou época, seguido de Da Aurora à Meia-noite ("Von Morgens bis Mitternacht, 1920), de Karl Heinz Martin, que nem chegou a ser lançado. Toda uma nova linguagem cinematográfica será desenvolvida a partir das premissas perturbadoras do caligarismo. A nova indústria de entretenimento, que empresários e artistas em boa parte de origem judaica edificaram na Alemanha, iria agora transformar-se com a infusão de novas formas e valores, transformando o cinema numa verdadeira tribuna de propaganda da arte moderna, e sobretudo do recente legado das artes plásticas e da arquitetura, da literatura e do teatro expressionistas. Aqui o expressionismo encontrou um terreno fértil, ainda aberto a todo tipo de experimentação. Aí os expressionistas puderam criar um mundo tridimensional sustentado apenas por sua própria fantasia, realizando, ainda que dentro dos limites estreitos daquela arte de massa, a maior de todas as suas revoluções estéticas.

De fato, a produção da imagem expressionista em movimento constituirá a idade de ouro do cinema mudo alemão: o triunfo da fantasia em plena crise econômica, quando as massas arruinadas pela desvalorização da moeda não pensavam senão em consumo e diversão. Com a implantação do Plano Dawes, que estabilizou momentaneamente a economia corroída, diminuindo o desemprego e aumentando a produção e os salários, o que favoreceu os partidos de centro e de direita, a indústria do cinema retornou à velha estética do realismo.

Gustav Hartlaub, diretor do Museu de Manheim, criou, em 1924, o termo "Nova Objetividade", para designar essa nova tendência da arte alemã. Logo o realismo triunfará no cinema com a introdução do som e a adoção oficial de estéticas realistas pelos regimes totalitários, que irrompem na década de 30 desterrando as vanguardas modernas na União Soviética e na Alemanha, difamadas como "protofascistas" pelos comunistas e como "degeneradas" pelos nazistas. Sob a influência de Georg Lukàcs, os primeiros historiadores da arte moderna tenderão a ignorar o expressionismo, a despeito de sua grande produção literária e artística: Paul Raabe registrará 2.300 títulos de livros expressionistas de 347 autores, em todos os gêneros, além de 37.000 colaborações literárias e gráficas em 110 periódicos.

Milhares de obras plásticas e projetos arquitetônicos e dezenas de filmes completam esse legado imenso e ainda pouco conhecido: o continente expressionista ainda espera ser redescoberto e devidamente valorizado.

Fontes:
Texto extraído de: Luiz Nazário, A Revolta Expressionista, in As Sombras Móveis. Belo Horizonte: Editora da UFMG/midia@rte, 1999. Revisto e ampliado especialmente para http://www.expressionismo.pro.br/express02.html . Belo Horizonte, 2001.
Pintura = http:// http://www.colegiosaofrancisco.com.br/

sábado, 21 de março de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Certas Palavras)



Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.
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Oswaldo Montenegro (Metade)



Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio…
Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade…
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo…
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão…
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei…
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço…
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção…
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade… também.
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Graciliano Ramos (Baleia)



A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o sacatrapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Fia também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

- Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

- Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.

Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.

Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto, e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Fontes:
MORICONI, Ítalo (seleção). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2000.
Imagem = http://embuscadeumdononobrasil.blogspot.com

Murilo Rubião (Teleco, o coelhinho)


“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.”
(Provérbios, XXX, 18 e 19)

- Moço, me dá um cigarro?

A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.

O importuno pedinte insistia:

- Moço, oh! Moço! Moço me dá um cigarro?

Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:

Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.

- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor; saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.

Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:

- Você não dá é porque não tem, não é, moço?

O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho acrescentei.

A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:

Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta:

- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa.

- A noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?

Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.

Chamava-se Teleco.

Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.

Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.

Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante de si um pacifico coelho:

O senhor viu o que eu vi?

Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de anormal.

O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se despedir, ganhou a porta da rua.

A mim também me pregava peças. Encontrava-se vazia a casa, já sabia que ele andava escondido em algum canto, dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo sob a forma de pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes.

No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave de todas as espécies inteiramente desconhecidas ou de raça já extinta.

Não existe pássaro assim!

Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.

O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha mal-humorado e a cena que deparei ao abrir a porta da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.

O que deseja a senhora com esse horrendo animal? - perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.

- Eu sou o Teleco - antecipou-se, dando uma risadinha.

Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.

Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.

Ante a minha incredulidade, transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo. Lancei-a longe, cheio de asco.

Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar extremamente grave:

- Basta esta prova?

- Basta. E daí? O que você quer?

-De hoje em diante serei apenas homem.

-Homem? - indaguei atônito. Não resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:

- E isso? Apontei para a mulher. É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?

Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:

- É Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?

Sem dúvida, linda. Durante a noite, na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de Teleco em afirmar-se homem.

Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos gracejos do meu companheiro.

Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:

- Vamos, Teleco, chega de trapaça.

Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:

-Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?

Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a cabeça. Explodi, encolerizado:

- Se é Barbosa, rua! E não me ponha mais os pés aqui, filho de um rato!

Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.

Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto me demoveu da decisão anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.

Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, da minha escova de dente e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.

Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios à minha pessoa.

Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de comida com auxílio das mãos.

Talvez por ter-me abandonado aos encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem protesto, a presença incômoda de Barbosa.

Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção desconcertante:

- Ele se chama Barbosa e é um homem.

O canguru percebeu o meu interesse pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.

Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.

Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.

- Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.

Nesse meio tempo, meu amor por Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.

Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:

- A sua proposta é menos generosa do que você imagina. Ele vale muito mais.

As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito às habilidades de Teleco.

Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.

O canguru notou a mudança no meu comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.

Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada pelo som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo o volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.

Indignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:

-É tu, não é um animal?

-Não, sou um homem! - E soluçava, esperneando, morto de medo pela fúria que via nos meus olhos.

A Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:

- Não sou um homem, querida? Fala com ele:

-Sim, amor, você é um homem.

Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.

Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:

- Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.

A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.

Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia não cheguei a enxotá-lo.

- Sou o Teleco, seu amigo, afirmou, com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.

-E ela? Perguntei com simulada displicência.

-Tereza… sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão.

Havia muitas cores… O circo… Ela estava linda… Foi horrível… Prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.

Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:

-O uniforme… muito branco… cinco cordas… amanhã serei homem… - as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.

Por um momento, ficou a tossir Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.

Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos e confusos.

- Pare com isso e fale mais calmo - insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.

-Não posso, tartamudeava, sob a pele de um lagarto.

Alguns dias transcorridos perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.

Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.

Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, triscava.

Por fim, já menos intranqüilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.

Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

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No conto “Teleco, o Coelhinho”, a busca de humanidade esconde o desejo de superar a indiferença e o desprezo dos homens. A narrativa em primeira pessoa nos apresenta o ponto de vista do homem que recebe o coelhinho em sua casa. Encantado pela meiguice de Teleco, o narrador descobre que “a mania de transformar-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar o próximo.” (p. 22).
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Fonte
RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias e outros contos. Editora Companhia dos Livros, 1993.

Folclore Persa (A donzela que era irmã de sete gênios)



Era uma vez, no alto de uma montanha, no antigo Irã, que morava uma donzela que foi adotada por sete gênios que a encontraram na floresta, enquanto caçavam. Levaram-na ao castelo onde viviam e ali foi criada por uma velha ama até fazer 17 anos.

Era o dia de seu décimo sétimo aniversário, e estava tão formosa como a mais adorável princesa da terra. Nesse dia, ao olhar pela janela, viu alguém se aproximando pela pequena estrada que conduzia ao castelo.

Ama! ama! Que coisa é essa que vem subindo pela colina em direção ao castelo? Nunca vi nada parecido em toda minha vida.

– Senhorita Fátima! - gritou a criada, que era uma mulher horrorosa, com uma verruga na cara - Afaste-se da janela. Isso que estás vendo é um ser humano e não deves falar com ele porque teus sete irmãos ficariam furiosos.

– Bobagem ama! - disse Fátima, que era bastante decidida e gostava de fazer coisas à sua maneira. Vou abrir a janela e o chamarei, pois parece cansado. Tenho certeza de que está perdido e faminto.

A criada começou a falar e falar, mas Fátima não lhe prestou a menor atenção e, abrindo a janela, chamou o viajante com melodiosa voz:

Entre no castelo ser humano para que possa descansar e recuperar forças comendo e bebendo algo. Estou só, pois meus irmãos estarão todo o dia caçando.

O estrangeiro era um príncipe chamado Nureddin, que havia perdido seu cavalo ao passear pelas redondezas. Nureddin não pode evitar maravilhar-se com aquela formosa jovem que o convidava do alto do castelo. A criada abriu as portas e, meia hora depois, Nureddin se encontrava sentado com Fátima comendo uvas, queijo e delicioso pão.

Fátima estava encantada com o jovem. Fez centenas de perguntas e ele falou do mundo que havia além do castelo.

Preciso conhecer essas maravilhas - disse ela. Ah... se meus irmãos desejassem partir...!.
De nenhuma forma, jovem ama Fátima - repreendeu a criada que os servia - A senhorita sabe que meus senhores nunca a deixarão partir do castelo, pois eles são muito zelosos e dariam morte a este humano se o virem aqui.

Então eu mesma descobrirei a maneira de fugir do castelo - declarou Fátima. Assim verei as maravilhas do mundo descritas por este jovem.

O príncipe não cabia em si de felicidade e prometeu a Fátima que a levaria ao reino tão pronto tivesse descansado. Porém, antes que Fátima pudesse dizer algo, foram ouvidos gritos que vinham da entrada e latidos de cães, mesclados a relinchos de cavalos.

– Oh, ser humano! - gritou a criada -. Esconda-se nesta arca pois meus senhores voltaram e te farão em pedaços no momento que te virem.

Ainda que ela fosse um gênio e também detestasse os humanos, sabia que a sua jovem ama havia gostado do jovem e por isso queria ajudá-lo.

Imediatamente o príncipe entrou na arca e Fátima o fechou com mão nervosa. Apenas tinha se escondido, a porta se abriu e os sete irromperam na sala.

– Irmã Fátima! Irmã Fátima, que temos para comer? - vociferou um deles, dando inicio a um monumental barulho de vozes e risadas, enquanto tiravam suas enormes botas. Fátima e a criada ajudaram, nervosas, a tirarem os casacos de pele.

- Ama, traga vinho. Estamos ardendo de sede!.

A velha saiu apressada para cumprir a ordem.

De repente os gênios, um depois do outro, começaram a fungar com seus enormes narizes e gritaram enfurecidos:

– Um homem, um homem! sinto o cheiro de um homem!.

Fátima ficou pálida e seu coração bateu violentamente. Dentro da arca o príncipe se moveu e se cobriu com roupas para não ser descoberto.

- Alguém esteve aqui irmã Fátima, onde está?-. Todos os gênios se levantaram e começaram a gritar furiosos. Iniciaram uma febril busca de um quarto a outro, abrindo todas as portas, cheirando e bufando como bestas selvagens.

Estavam tão excitados que não lhes ocorreu, num primeiro momento, olhar a arca e Fátima, aproveitando que estavam noutra sala do castelo, castelo, ajudou o príncipe a sair.

– Depressa, depressa, vou mostrar-te um caminho secreto para sair do castelo. Se não foges, meus irmãos te farão em pedaços!

A noite estava caindo e se ouvia os gênios enfurecidos, verificando sala por sala de todo o castelo. Fátima começou a sentir medo. Os dois correram de mãos dadas em direção ao fogão e ali ela o ajudou a entrar na chaminé.

-Vem comigo Fátima!, vou te libertar deste terrível lugar - sussurrou o príncipe -. Ela assentiu silenciosamente. Assim subiram pelas pedras da chaminé, até que finalmente os recebeu uma noite carregada de estrelas.

- Onde estão os cavalos? - perguntou o príncipe com tom de urgência. Fátima o conduziu ao estábulo. Silenciosamente, como duas sombras, eles deslizaram por detrás do castelo.

Os criados das cavalariças repartiam os dinheiros dos roubos do dia e não viram como um par dos melhores alazões eram retirados por Nureddin.

Quando estavam montados, o barulho dentro do castelo aumentou e os sete gênios viram, à luz da lua, como fugiam os dois jovens, galopando através dos enormes portões de entrada.

- Atrás deles! - rugiu o mais velho - vamos trazê-los vivos e os assaremos como duas galinhas!.

Os cavalos galoparam como o vento, montanha abaixo, como animais encantados que eram. Contudo, logo, vieram os sete gênios montando cavalos igualmente ligeiros e fortes.

– Fátima volta. Perdoamos, porém deixa-nos matar este humano!

A jovem, assustada, podia ouvi-los gritando e sabia que não passaria muito tempo até que os irmãos a alcançassem. Então ela revistou seu bolso e encontrou uma semente mágica, e a lançou por cima de seu ombro esquerdo. No mesmo instante, uma enorme planície de espinhos surgiu entre os gênios e os fugitivos.

Os cavalos dos gênios não puderam correr como antes, pois os espinheiros se enroscavam em suas patas e os atrasavam, mas ao cabo de meia hora já estavam em seu encalço e Nureddin perguntou:

– Fátima! que vamos fazer? Temos que detê-los pois estamos ainda a meio caminho do reino de meu pai, no qual chegaremos ao amanhecer, se os gênios não nos alcançarem.

– Não tenhas medo! - disse Fátima com bravura, e buscando mais uma vez dentro de seu bolso - creio que posso fazer algo -. E lançou por cima de seu ombro esquerdo uma pinha. Imediatamente surgiu um incrível bosque de árvores e os fugitivos puderam galopar sem ser vistos.

Os intrépidos animais os levaram cada vez mais próximos às terras do príncipe. Fátima, com os cabelos flutuando ao vento, começava a sentir-se a salvo quando o príncipe olhou para trás e gritou:

-Ah! Nos alcançam de novo. Nos apanharão dentro em pouco a menos que algo os detenha.

Fátima buscou em seu bolso, e já caía em desespero quando seus dedos se fecharam sobre um grão de sal. Jogou-se para trás e imediatamente um espumoso mar surgiu detrás dos cascos de seu cavalo e nele caíram os gênios e seus cavalos afogando-se, pois os gênios não nadam bem em água salgada.

Fátima e Nureddin cavalgaram um pouco mais e quando o dia estava nascendo chegaram à bela cidade de Nashapur.

Ali o palácio real brilhava com esplendor de ouro e turquesa, com pavões nas alamedas do jardim exibindo cheios de pompa suas esplêndidas plumas.

Então os soldados das muralhas, vendo o príncipe se aproximar, fizeram soar as trombetas de prata incrustadas de raras pedras preciosas.

Fátima foi recebida como uma princesa, e casou-se com o príncipe numa esplêndida festa que durou sete dias e sete noites.

Os cavalos encantados que os levaram até ali desapareceram quando a lua estava cheia. Eles sabiam que sua jovem ama era, apesar de tudo, um ser humano, e preferiam viver a serviço dos gênios, pois esta é a lei mágica estabelecida quando o mundo começou através de Salomão, rei dos magos e das bestas encantadas, sobre quem seja a paz.

Fontes:
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James Joyce (Casa de hóspedes)



Mr. Mooney era filha de um açougueiro, mulher decidida e capaz de tomar a seu cargo qualquer empresa.

Casara com o ajudante de seu pai e abrira um açougue perto de Spring Gardens. Mas logo que o sogro morreu, Mr. Mooney, o marido, começou a pintar o diabo. Bebia, roubava dinheiro da caixa e contraía dívidas. Era inútil correr em seu auxílio, porque dias mais tarde tornava a fazer os mesmos disparates. Altercava com a mulher em frente dos fregueses, comprava carne de má qualidade e, assim, ia arruinando o negócio. Uma noite correu atrás da mulher com um machado, obrigando-a a fugir e a pernoitar em casa de uns vizinhos.

Depois disso, começaram a viver cada um para o seu lado. Ela foi ter com o padre e conseguiu separar-se do marido, ficando com as crianças.

Ele, sem casa, sem comida e sem dinheiro, foi obrigado a transformar-se num dos homens do xerife. Tornou-se bêbado, sempre mal arrumado, de cara pálida, bigode branco e sobrancelhas igualmente brancas, por cima de uns olhos sempre úmidos e raiados de vermelho. Passava todo o dia sentado no quarto do bailio, esperando que o mandassem trabalhar. Mr. Mooney, que havia tirado o que ainda restava do seu dinheiro do açougue, instalara uma casa de hóspedes na rua Hardwicke, cheia de uma população flutuante constituída por turistas de Liverpool e da ilha de Man e, ocasionalmente, de artistas do music-hall. Os hóspedes permanentes eram escrivães da cidade. Mrs. Mooney governava a casa com firmeza e sabia quando conceder créditos. Todos os hóspedes jovens a conheciam como Madame.

Os hóspedes permanentes pagavam quinze shillings por semana, de pensão e aposentos (excluindo cerveja ou vinho, às refeições), possuíam os mesmos gostos e ocupações e, por essa razão, entendiam-se todos muito bem. Jack Mooney filho de Madame, que era escriturário de um agente de comissões em Fleet Street, tinha a reputação de ser um "caso sério". Gostava de dizer obscenidades usadas pelos soldados, e recolhia-se usualmente de madrugada. Quando encontrava os amigos sempre tinha uma boa para contar. Também cantava canções cômicas. Nas noites de domingo havia freqüentemente reuniões na sala de visitas de Mrs. Mooney. Os artistas do music hall prestavam o seu concurso. Sheridan tocava polcas e valsas e fazia acompanhamentos. Polly Mooney, filha de Madame, cantava:

Sou uma travessa mocinha
Não é preciso envergonharem-se
Pois bem sabem que o sou.

Polly era uma moça esbelta de dezenove anos, de cabelo claro e macio e de olhos cinzento-esverdeados. A sua boca era pequena mas carnuda e tinha o hábito de olhar para cima quando falava com alguém. Mrs. Mooney mandara a filha aprender datilografia, mas como um "sheriff" pervertido costumava ir todos os dias procurá-la ao escritório, achou melhor tirá-la de lá e trazê-la para casa. Polly era muito alegre e tornava-se um chamariz para os rapazes; convinha tê-la em casa. Polly certamente flertava com os hóspedes, sob a severa vigilância da mãe, que sabia perfeitamente que eles só faziam aquilo para passar o tempo. Assim iam correndo as coisas até de Mrs. Mooney começou a acarinhar a idéia de mandar novamente a filha para o escritório, porque desconfiava que existia qualquer coisa entre ela e um dos hóspedes. Começou, então, a observá-los.

Polly sabia-se vigiada, mas o persistente silêncio da mãe não podia ser mal interpretado. Não tinha havido nenhum entendimento, nem tampouco cumplicidade entre mãe e filha; apesar de as pessoas da casa começarem a falar, Mrs. Mooney não intervinha; Polly começou a tornar-se um pouco estranha e o rapaz andava evidentemente perturbado. Por fim, quando achou que era oportuno, Mrs. Mooney interveio. Tratava de problemas de moral com a mesma facilidade com que um açougueiro trataria de um assunto de sua especialidade; para aquele caso já tomara uma solução.

Estava-se no verão. Uma alegre manhã de domingo prometendo calor, mas com leve aragem. Todas as janelas da casa de hóspedes estavam abertas e as cortinas de renda balouçavam ao sabor da brisa. O campanário da igreja de S. George enviava constantes chamados e os fiéis solitários ou em grupos, reconheciam-se quando atravessavam o largo, quer pela sua compostura, quer pelos pequenos volumes que levavam nas mãos enluvadas. O almoço terminara e a mesa estava coberta de pratos, onde se vislumbravam ainda restos de ovos e presunto. Mrs. Mooney, sentada numa cadeira de braços, observava a criada, enquanto esta levantava a mesa. Mandou-a guardar todos os restos de pão, que seriam utilizados quando se fizesse o pudim de terça feira. Depois da mesa estar limpa, do pão guardado e da manteiga e do açúcar fechados à chave, começou a reconstruir a entrevista que tivera na véspera à noite, com Polly. As coisas eram tal e qual ela suspeitara; fora franca nas suas perguntas e Polly tinha sido franca nas respostas. As duas sentiam-se acanhadas, é claro. Ela, por não desejar receber as novas de uma forma altiva ou por poder parecer conivente Polly não só porque quaisquer alusões dessa espécie a faziam ficar sempre assim, mas também para não dar a impressão de que compreendia a tolerância da mãe e lhe adivinhara as intenções.

Mrs. Mooney olhou instintivamente para o pequeno relógio que estava na chaminé, ao deixar de ouvir os sinos da igreja de S. Jorge. Passavam dezessete minutos das onze; tinha tempo mais que suficiente para falar com Mr. Doran e estar ao meio-dia na rua Marborough. Estava certa de que ganharia. Para começar, tinha todo o peso da opinião pública pelo seu lado; era uma mãe ultrajada. Deixara-o viver debaixo do seu teto, tomando-o por um homem honrado e ele simplesmente abusara da sua hospitalidade. Tinha já trinta e quatro ou trinta e cinco anos, de forma que não era possível desculpar-se com a juventude; a ignorância também não podia ser a sua desculpa, visto que era um homem já conhecedor do mundo. Ele havia simplesmente abusado da ignorância e da falta de experiência de Polly: isso era evidente. Tudo estava na reparação que estivesse disposto a prestar.

Tinha que haver uma reparação em tal caso. Tudo ficava bem para um homem, que poderia seguir a sua vida depois de haver desfrutado uns momentos de prazer, como se nada houvesse acontecido; mas a moça era obrigada a aguentar o golpe. Muitas mães ficariam satisfeitas de terminar negócios como aquele com uma boa soma de dinheiro, conhecia vários casos assim. Mas com ela o assunto era diferente. A única reparação para a sua filha seria o casamento.

Passou em revista todos os seus trunfos, antes de mandar a Mary dizer a Mr. Doran que desejava falar-lhe. Tinha certeza de que iria vencer. Ele parecia ser um rapaz sério. Se o caso tivesse acontecido com Mr. Sheridan, Mr. Meade ou Mr. Bautam, tudo seria muito mais difícil.

Mr. Doran não suportaria a publicidade.

Todos os hóspedes da casa sabiam alguma coisa do assunto; e alguns haviam chegado a inventar detalhes. Para mais, ele estava empregado há treze anos num escritório de vinhos, pertencente a um negociante extremamente católico, e a publicidade do caso podia significar a perda do emprego. Pelo contrário, se Mr. Doran concordasse, tudo poderia acabar bem. Ele sabia que Mr. Doran era um pouco avarento e suspeitava que tivesse as suas economias.

Quase meia hora! Levantou-se e olhou para o espelho. A expressão decidida do seu rosto satisfê-la e lembrou-se de algumas mães que conhecia, e que não conseguiam livrar-se das filhas.
Mr. Doran sentia-se inquieto naquela manhã de domingo. Já por duas vezes tentara barbear-se, mas as mãos tremiam tanto que tinha sido obrigado a desistir. Uma barba espessa de três dias cobria-lhe as maxilas, e de três em três minutos uma névoa embaçava-lhe os óculos, de modo que tinha que tirá-los para os limpar com o lenço. A lembrança de sua confissão da noite passada era uma coisa dolorosa para ele; o padre arrancara-lhe todos os detalhes ridículos do caso, e no fim, falara-lhe de tal maneira do seu pecado, q quase ficara agradecido por consentir numa reparação. O mal estava feito. O que poderia agora fazer senão casar ou fugir? O caso seria certamente falado e chegaria aos ouvidos do seu patrão. Dublin é uma cidade pequena onde todos sabem o que se passa com os outros. Sentia um grande calor na garganta quando, na sua excitada imaginação, ouvia Mr. Leonard dizer com a sua voz forte: "Mandem-me cá Mr. Doran, por favor!".

Aqueles longos anos de trabalho para nada. Toda sua habilidade e diligência deitadas fora. Quando rapaz novo, fizera as suas tolices, é claro; tinha-se mostrado livre pensador e negara a existência de Deus. Mas tudo isso era passado. Ainda hoje comprava um exemplar do "Reinolds Newspaper" todas as semanas, cumpria os seus deveres religiosos e durante quase todo o ano levava uma vida regular. Tinha dinheiro suficiente para poder casar. Mas não era isso: sabia que a família não havia de gostar. Primeiro que tudo, havia o desonrado pai de Polly e, além disso, a pensão da mãe estava ficando ultimamente com uma certa fama. Já imaginava os seus amigos falando do caso, rindo e fazendo troça da forma vulgar como ela falava. Mas que tinha a gramática a ver com isso, se realmente gostasse da moça? Não era capaz de decidir se gostava, ou se, pelo contrário, a desprezava pelo que havia feito. Certamente ele não fizera mal. O seu instinto dizia-lhe para ficar livre e não casar. Uma vez casado, tudo se acabaria.

Enquanto estava sentando na borda da cama, em atitude de abandono, Polly bateu levemente na porta e entrou. Contou-lhe tudo, que tinha dito à mãe e que a mãe iria falar com ele naquela mesma manhã. Chorou, deitou-se com as mãos em volta do pescoço e disse:

– Ai Bobo! Bob! Que hei eu de fazer? Poderia acabar comigo...

Ele confortou-a sem interesse, dizendo-lhe que não chorasse, que tudo acabaria bem, que não tivesse receio. Sentia de encontro à sua camisa a agitação dos seios da moça.

Não fora só por culpa dele que aquilo acontecera. Lembrava-lhe perfeitamente das primeira carícias casuais, que os vestidos dela, a respiração e os seus dedos, lhe tinham dado. Depois, uma noite, já tarde, quando se despia para se meter na cama, ela batera-lhe levemente na porta. Queria acender a sua vela, porque a dela apagara-se com o vento. Fora a sua noite de banho, vestia um longo roupão de flanela florida. O peito do pé muito branco aparecia nas suas chinelas abertas, e o sangue corria-lhe, quente, sob a pele perfumada. Também das suas mãos e pulsos, enquanto acendia a vela, subia um perfume suave.

Nas noites em que vinha para casa tarde, era ela que lhe esquentava o jantar. Ele quase nem percebia o que estava comendo, sentindo-a só a seu lado, de noite, naquela casa adormecida. E que cuidados Polly tinha! Se a noite estava fria, úmida ou ventosa, era certo encontrar um copo de "punch" preparado, a sua espera. Talvez pudessem ser felizes juntos...

Costumavam os dois subir as escadas nos bicos dos pés, cada um com a sua vela e, no terceiro andar, trocavam uns relutantes boas-noites. Costumavam beijar-se. Bob lembrava-se bem dos olhos dela, das suas carícias e do seu delírio...

Mas os delírios passavam. Repetiu como um eco a frase de que ela se servira, mas, agora, referindo-se-lhe: "Que hei de eu fazer?". O instinto do celibato prevenia-o de que recuasse. Mas o pecado ali estava e a sua honra dizia-lhe que a reparação era necessária.

Enquanto permanecia sentado com Polly a seu lado, na borda da cama, Mary bateu à porta e disse que a senhora lhe desejava falar. Bob levantou-se para enfiar o paletó. Sentia-se mais desamparado do que nunca. Quando acabou de se vestir, voltou-se para Polly a fim de confortá-la. Tudo havia de correr bem, que não tivesse medo. Deixou-a chorando em cima da cama, resmungando:

– Ai, meu Deus!

Enquanto descia as escadas, os óculos ficaram de tal maneira embaçados que teve de tirá-los para limpar. O que ele mais desejava era fugir, fugir pelo telhado, e voar para outra terra onde nunca mais ouvisse falar daquelas coisas e, no entanto, uma força o puxava para baixo, degrau em degrau. As caras implacáveis do seu patrão e de Madame estavam à frente da sua derrota. Nos últimos lances passou por Jack Mooney que vinha da copa com duas garrafas de cerveja nos braços. Cumprimentaram-se friamente; e os olhos do apaixonado pousaram, por um instante, na cara de buldogue e nos braços fortíssimos do outro. Quando chegou ao fundo da escada, voltou-se e viu que Jack o olhava lá de cima.

De repente, lembrou-se de uma noite em que uma das artistas do music-hall, uma loirinha de Londres, fizera uma alusão desagradável a respeito de Polly. A reunião quase tinha acabado por causa da fúria de Jack. Todos tiveram de o sossegar. A moça do music hall, um pouco mais pálida do que de costume, continuara sorrindo e dissera que não havia maldade naquilo. Mas Jack continuara gritando que se qualquer rapaz se metesse com a irmã, ele ferrar-lhe-ia os dentes na garganta...

Polly deixou-se ficar, durante um pouquinho, em cima da cama chorando. Depois enxugou as lágrimas e foi ver-se ao espelho. Molhou uma ponta da toalha no jarro da água e refrescou os olhos. Viu-se também de perfil e arranjou um gancho do cabelo que estava caindo, ao lado da orelha.

Em seguida, voltou de novo para a cama e sentou-se. Olhou por um momento as almofadas e isso acordou nela lembranças secretas e agradáveis. Deixou cair o pescoço contra o ferro frio da cama e começou a sonhar. Já não se notava perturbação alguma em seu rosto.

Ficou esperando pacientemente, quase satisfeita, sem nenhum alarme os seus pensamentos traziam-lhe gradualmente esperanças e visões para o futuro. As esperanças e visões eram de tal modo intrincadas que já não via claro nem se lembrava de que estava esperando alguma coisa.

Por fim, ouviu sua mãe chamar. Pôs-se de pé rapidamente e correu para as escadas.

– Polly! Polly!
– Que é mamã?
– Vem cá abaixo, querida. Mr. Doran quer falar contigo.

E só então se lembrou do que estava a sua espera.

Fontes:
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Helen De Rose (Lançamento do Livro Um Coração no Oceano)

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Helen De Rose (1964)

Helen De Rose nasceu em Piracicaba/SP. Hoje reside em Sorocaba/SP. Formada em Educação Física pela FEFISO, faculdade da ACM de Sorocaba. Trabalha como Terapeuta Holística no alinhamento dos Chakras e Radiestesia. Instrutora de Yôga, Meditação, Alongamento Passivo, Pilates com bola, Streching Global Ativo, na sala Zen da Academia Evolução em Sorocaba-SP. Numeróloga, Taróloga, estuda Astrologia, Esoterismo, Simbologia, Cabala da Pirâmide Invertida e Oráculos. Moderadora dos Consagrados no site Luso Poemas. Participante do site da Câmara Brasileira de Jovens Escritores e do site Recanto das Letras. Criadora da rede social Poetas da Lua: http://poetasdalua.ning.com/

Fontes:
http://helenderose.blogspot.com/
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Fotomontagem = José Feldman