sábado, 4 de julho de 2009

Trova XXXVI

Edson Jorge Badra (Poesias)


CONFISSÕES DE UMA ALMA DO INFERNO

Quando surgiu em mim, certa manhã de agosto,
Da regeneração a chama que tanto arde,
Embalou-me uma voz a me dizer com gosto:
- “Regenera-te, sim, mas deixa pra mais tarde!”

Deixei-me seduzir, mas estava disposto,
Quando o dia chegasse, a não bancar covarde.
Nova oportunidade. E, com grande desgosto.
Ouvi a mesma voz a me dizer: “Mais tarde!”

Um dia, abandonei o corpo em que habitava.
Enquanto lá no céu eu a entrada implorava,
Ouvi atrás de mim a voz de Satanás,
Dizendo, a gargalhar, bem cínico e medonho:
- “Não hás de alimentar agora nenhum sonho,
Porque, alma imbecil, já é tarde demais!”

Uma outra, carregada de humor em sua mensagem:
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CINISMO

- "Se não me amas, então por que mentiste?
Tão certa estavas do teu grande amor,
que mesmo quando um dia tu partiste
não foi assim tão grande a minha dor.

Imbecil e cretino! o que sentiste,
momentãnea paixão, falso calor,
deixou-me o coração magoado e triste,
que me acompanhará por onde eu for.

- "Que possa eu explicar-te neste instante?
Não desejava provocar-te o pranto,
tu que a mim te entregavas tão confiante!

Então menti. Pior: sofreste mais!
Tua desdita foi amar-me tanto
e o meu defeito foi ser bom demais.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Edson Jorge Badra (1934)



Nasceu em Guajará-Mirim, no dia 12 de junho de 1934, onde viveu toda sua infância.

Seus estudos foram feitos no Colégio Mackenzie, em São Paulo e Gamon, em Lavras-MG.
Concluiu o curso de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais e Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Retornou a Guajará-Mirim onde advogou até 1972 e exerceu o cargo de Defensor Público, Promotor Substituto, Promotor Público e Procurador da Justiça. Foi professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira durante 20 anos.

Emitiu opinião em diversos livros e prefaciou outros.

É membro fundador da União Brasileira dos Escritores de Rondônia, e da Academia Rondoniense de Educação. Foi nomeado por decreto governamental membro do Conselho Estadual de Cultura, chegando ao cargo de Presidente.

Atuou como Vice-Presidente da Academia de Letras de Rondônia, fazendo parte da primeira Diretoria, no biênio 1986/1987.

Possui duas obras publicadas:

"Literatura de Rondônia" - 1987 (ensaio), onde o poeta analisa, opina e traça paralelo sobre as publicações e produtores literários do Estado;e

"Sonhos Prosaicos e Poéticos", onde reúne prosa, poemas e hinos.

Sua obra poética vai do pitoresco ao lírico formal. A forma é original e inteligente; reflete a arte, o conhecimento e o amadurecimento poético do autor.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Cruz e Souza (A Borboleta Azul)


No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fulgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além...

Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma, minha, que alegria a flux!...

No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.

Fonte:
Domínio Público

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Trova XXXV

Monteiro Lobato (Os dois Ladrões)


Dois ladrões de animais furtaram certa vez um burro, e como não pudessem reparti-lo em dois pedaços surgiu a briga.

- O burro é meu! – alegava um – o burro é meu porque eu o vi primeiro…

- Sim – argumentava o outro – você o viu primeiro; mas quem primeiro o segurou fui eu. Logo, é meu…

Não havendo acordo possível, engalfinharam-se, rolaram na poeira aos socos e dentadas.

Enquanto isso um terceiro ladrão surge, monta no burro e foge a galope.

Finda a luta, quando os ladrões se ergueram, moídos da sova, rasgados, esfolados…

- Que é do burro? Nem sombra! Riam-se – risadinha amarela – e um deles, que sabia latim, disse:

- Inter duos litigantes tertius gaudet.

Que quer dizer: quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Fábulas. SP: Brasiliense, 1994.

Isaac Asimov (Versos na Luz)



A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiaçío da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas jóias, pequena, porém de extremo bom-gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de jóias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com jóias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém ressudava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada freqüentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

- Seria comercialização – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

- Eu não teria coragem de cobrar um centavo – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

- Por favor, Courtney – quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

- Não pode fazer isto – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

- Não exijo rapidez e eficiência – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

- A partir do momento em que o robô está em minha casa – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

- Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

- Absolutamente – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

- Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

- Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

- Mas, se ele está mal regulado – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

- Nunca – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro-chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranqüila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultará num fracasso desa-lentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

- Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

- Aquele é Max – disse a sra. Lardner.

- Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

- Oh, não – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

- De modo nenhum, sra. Lardner – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

- Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

- A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.
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Conto do livro Nós, Robôs (The Complete Robot). É uma coletânea de 31 contos sobre os robôs publicados entre 1939 a 1977, inclusive as histórias reunidas na primeira coletânea, I, Robot(1950) (Eu, Robô).

Contém todas as histórias com a participação de Susan Calvin, e histórias, como por exemplo, 'O Homem Bicentenário', 'Pobre Robô Perdido' e 'Robbie'. 'Robbie' é a primeira história de robôs escrita por Asimov.
Os contos são:

Robôs não humanos
O melhor amigo de um garoto - Um garoto tem um robô cachorro
Sally - Um carro robô
Um dia - Um computador contador de Histórias

Robôs Imóveis

Contos com computadores

Ponto de vista
Pense!
Amor verdadeiro

Robôs Metálicos
Robô AL-76 extraviado
Vitória involuntária
Estranho no paraíso
Versos na luz
Segregacionista
Robbie

Robôs humanóides
Vamos nos Unir
Imagem Especular (Uma história com Elias Baley e Daniel)
O incidente do tricentenário

Powell e Donovan
Primeira Lei
Corre-corre
Razão
Pegue aquele coelho

Susan Calvin
Mentiroso
Satisfação garantida
Lenny
Escravo
O robozinho perdido
Risco
Fuga
Evidência
O conflito evitável
Intuição feminina

Dois clímax
...Para que vos ocupeis dele
O homem bicentenário

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Fontes:
ASIMOV, Isaac. Nós, Robôs. SP: Hemus Editora, 1982.
- Sobre o livro = Wikipedia

Franz Kafka (Poseidon)

Escultura de Poseidon, em Copenhague
Poseidon estava sentado à sua mesa de trabalho e fazia contas. A administração de todas contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho infinito. Poderia dispor de quantas forças auxiliares quisera, e com efeito, tinhas muitas, mas como tomava seu emprego muito a sério, verificava novamente todas as contas, e assim as forças auxiliares lhe serviam de pouco. Não se pode dizer que o trabalho lhe era agradável e na verdade o realizava unicamente porque lhe tinha sido impôsto; tinha-se ocupado, sim, com frequência, em trabalhos mais alegres, como ele dizia, mas cada vez que se lhe faziam diferentes propostas, revelava-se sempre que, contudo, nada lhes agradava tanto como seu atual emprego. Além do mais era muito difícil encontrar uma outra tarefa para ele. Era impossível designar-lhe um determinado mar; prescindindo de que aqui o trabalho de cálculo não era menor em quantidade, porém em qualidade, o Grande Poseidon não podia ser designado para outro cargo que não comportasse poder. E se se lhe oferecia um emprego fora da água, esta única idéia lhe provocava mal-estar, alterava-se seu divino alento e seu férreo torso oscilava. Além do mais, suas queixas não eram tomadas a sério; quando um poderoso tortura, é preciso ajustar-se a ele aparentemente, mesmo na situação mais desprovida de perspectivas. Ninguém pensava verdadeiramente em separar a Poseidon de seu cargo, já que desde as origens tinha sido destinado a ser deus dos mares e aquilo não podia ser modificado.

O que mais o irritava – e isto era o que mais o indispunha com o cargo – era inteirar-se de que como representavam com o tridente, guiando como um cocheiro, através dos mares. Entretanto, estava sentado aqui, nas profundidades do mar do mundo e fazia contas ininterruptamente; de vez em quando uma viagem da qual além do mais, quase sempre regressava furioso. Daí que mal havia visto os mares, isso acontecia apenas em suas fugitivas ascenções ao Olimpo, e não os teria percorrido jamais verdadeiramente. Gostava de dizer que com isso esperava o fim do mundo, que então teria certamente ainda um momento de calma, durante o qual, justo antes do fim, depois de rever a última conta, poderia fazer ainda um rápido giro.

Fonte:
Covil do Orc

Franz Kafka (O Abutre)


Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

- É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!

- Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?

- Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue agüentar meia hora?

- Não sei lhe dizer. – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

- De qualquer modo, vá, peço-lhe.

- Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

Fonte:
Covil do Orc
Imagem = D. Afonso Henriques

Franz Kafka (3 Julho 1883 – 3 Junho 1924)


Franz Kafka (língua tcheca: František Kafka)(Praga, 3 de julho de 1883 - Klosterneuburg, 3 de junho de 1924) foi um dos maiores escritores de ficção da Língua alemã do século XX. Kafka nasceu numa família de classe média judia em Praga, Áustria-Hungria (agora República Tcheca). O corpo de obras suas escritas— a maioria incompleta e publicadas postumamente — destacam-se entre as mais influentes da Literatura ocidental.

Seu estilo literário presente em obras como a novela A Metamorfose (1915), e romances incluindo O Processo (1925) e O Castelo (1926) retratam indivíduos preocupados em um pesadelo de um mundo impessoal e burocrático.
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Filho mais velho de Herrmann Kafka, um abastado comerciante judeu, e de sua esposa Julie, nascida Löwy. Nascem depois dele dois meninos, que irão morrer pouco tempo após o nascimento, fato que segundo alguns psicólogos especialistas na obra de Kafka, será um factor determinante para o sentimento de culpa presente nos seus livros; e três meninas, sendo Ottilie a sua irmã favorita, com quem ele chega a morar algumas vezes.

Kafka cresce sob as influências de três culturas: a judaica, a checa e a alemã.

No ano de 1902 conhece Max Brod, seu grande amigo, e no ano de 1922 pedirá a ele para que destrua todas as suas obras após sua morte.

Em 1903, Kafka tem sua primeira relação sexual, o que lhe trará insegurança por toda sua vida. Neste ano também, ele fará sua primeira visita a um sanatório. Teve vários casos amorosos mal resolvidos, uns por intervenção dos pais das moças, outros por desinteresse próprio.

Entre 1914 e 1924, Kafka esteve três vezes perto do casamento. Desistiu sempre. Tentou primeiro por duas ocasiões com Felice Bauer, uma alemã com quem se correspondeu até 1917. A última vez foi com Milena Jesenská, mais nova do que ele.

Kafka falece dia 3 de junho de 1924 no sanatório Kierling perto de Klosterneuburg na Áustria. A causa oficial da sua morte foi insuficiência cardíaca, apesar de sofrer de tuberculose desde 1917.

Educação

Kafka aprendeu alemão como sua primeira língua, contudo era quase fluente em tcheco. Kafka se considerava incapaz nos estudos, tanto que em uma carta a Felice Bauer ele declara que não acreditava que conseguiria concluir o ensino médio. No momento de decidir que carreira seguir, Franz Kafka opta por cursar Filosofia, no entanto é impedido pelo seu pai, com quem não tinha uma relação afetividade. Tendo de decidir entre Química e Direito, Franz opta pela faculdade de Química junto com seu grande amigo Max Brod. Permanece 15 dias no curso e desiste, entrando de vez para a faculdade de Direito, que será tema de boa parte de suas obras. Formado em Direito, em 1906, trabalhou como advogado a princípio na companhia particular Assicurazioni Generali e depois no semi-estatal Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho. Solitário, com a vida afetiva marcada por irresoluções e frustrações, Kafka nunca atingiu fama ou fortuna com seus livros, na maioria editados postumamente. Mesmo assim era respeitado nos círculos de literatura que frequentava.

Obra

O seu livro A Metamorfose (1915) narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco insecto; O Processo (1925) conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora; O Castelo (1926), o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram. O livro Na Colônia Penal (1914) fala sobre uma maquína que tem o poder de executar sentenças. Trata-se de uma história absurda sobre uma Colônia que usa esta máquina para torturar e matar pessoas, sem que estas sequer saibam o porquê de sua morte. O livro é uma crítica aos sistemas despóticos de poder. Essas quatro obras-primas definem não apenas boa parte do que se conhece até hoje como "literatura moderna", mas o próprio caráter do século: kafkaniano.

Autor de várias coletâneas de contos, Kafka escreveu também a avassaladora Carta ao Pai (1919) e centenas de páginas de diários. Deixou inacabado o romance Amerika.

Morreu num sanatório perto de Viena, onde se internou com tuberculose. Desde então, seu legado - resgatado pelo amigo Max Brod - exerce enorme influência na literatura mundial.


Bibliografia

A escrita de Kafka é marcada pelo seu tom despegado, imparcial, atenciosa ao menor detalhe, e que abrange os temas da alienação e perseguição. Os seus trabalhos mais conhecidos abrangem temas como as pequenas histórias A Metamorfose, Um artista da fome e os romances O Processo, América e O Castelo. Os seus contos são julgados como verdadeiros e realistas, em contato com o homem do século XXI, pois os personagens kafkanianos sofrem de conflitos existenciais, como o homem de hoje. No mundo kafkaniano, os personagens não sabem que rumo podem tomar, não sabem dos objetivos da sua vida, questionam seriamente a existência e acabam sós, diante de uma situação que não planejaram, pois todos os acontecimentos se viraram contra eles, não lhes oferecendo a oportunidade de se aproveitar da situação e, muitas vezes, nem mesmo de sair desta. Por isso, a temática da solidão como fuga, a paranóia e os delírios de influência estão muito ligados à obra kafkaniana, sendo comum a existência de personagens secundários que espiam, e conspiram contra o protagonista das histórias de Kafka (geralmente homens, à exceção de alguns contos onde aparecem animais e raros onde a personagem principal é uma mulher). No fundo, estes protagonistas não são mais que projeções do próprio Kafka, onde ele expõe os seus medos, a sua angústia perante o mundo, a sua solidão interior.

A obra sobre Kafka é já de maior dimensão do que o trabalho próprio do autor, e vai desde estudos literários sérios até análises psicológicas do autor, a quem já foram atribuídos todos os tipos de complexos e traumas concebíveis. A própria sexualidade de Kafka chegou a ser discutida, apesar de que para muitos de seus leitores o desejo por mulheres estar evidente na maioria de suas principais obras, e o próprio Kafka não ter dado em vida nenhuma razão para que alguém afirmasse que ele era homossexual. No entanto, a obra de Kafka tem despertado enorme interesse entre os leitores gays pois, de acordo com Ruth Tiefenbrun, a maior parte dos seus personagens são homens homossexuais, que simultaneamente exibem a necessidade de se esconder e de se exibir. Já Gregory Woods refere que, mesmo que a sexualidade de Kafka seja controversa, tal não deve impedir a apreciação dos seus textos no âmbito da literatura gay, e que as histórias de homens isolados, forçados a não ter certezas na vida, que estão em constante perigo de ser descobertos, tocam fortemente na sensibilidade de todos os gays.

Livros e Contos

Cenas de um Casamento no Campo (1907)
Considerações (1908)
Aeroplano em Brescia (1909)
Amerika (1910,1927)
O Veredicto (1912)
A Metamorfose (1912, 1915)
A Sentença (1912, 1916)
Meditação (1913)
Contemplação: O Foguista (1913)
Diante da Lei (1914, 1915)
A Colônia Penal (1914, 1919)
O Processo (1914,1925)
Um Relatório para a Academia (1917)
A Preocupação de um Pai de Família (1917)
A Muralha da China (1917, 1931)
Carta ao Pai (1919)
Um Médico Rural (1919)
Poseidon (1920)
Noites (1920)
Sobre a Questão das Leis (1920)
Primeiro Sofrimento (1921)
Cartas a Milena (1920, 1923)
Investigações de um Cão (1922)
Um Artista da Fome (1922, 1924)
O Castelo (1922, 1926)
Uma Pequena Mulher (1923)
A Construção (1923)
Josefina, a Cantora ou O Povo dos Ratos (1924)
Sonhos

Fonte
Wikipedia