quinta-feira, 18 de junho de 2009

Victor Giudice (1934 – 1997)



Victor Marino del Giudice nasceu em Niterói, no dia 14 de fevereiro de 1934. Seus pais eram artesãos: Marino Francisco del Giudice, de origem italiana, fabricava chapéus enquanto ainda se usavam chapéus; Dona Mariannalia del Giudice, católica, era exímia bordadeira, com suas mãos "barrocas" de "fada branquíssima", como o filho a descreveria (ou fantasiaria) no conto Minha mãe. A maneira como se referia aos pais pela ausência, presente também no conto A única vez, este sobre o pai, só faz enfatizar a importância da tia Elza, professora de piano com quem o pequeno Victor convivia mais intensamente e a quem chamava de "mãe".

Quando Victor tinha cinco anos, a família mudou-se para o bairro de São Cristóvão, no Rio, que se tornaria seu "país" ficcional e referência de origem para sempre. "Quando se nasce e se cresce em São Cristóvão, logo se aprende que em São Cristóvão todas as coisas são de São Cristóvão", diria o personagem semi-autobiográfico do seu conto A glória no São Cristóvão. Victor foi um menino popular, que magnetizava os colegas de rua com suas histórias. Começou, portanto, a se desenvolver na infância uma das facetas mais sedutoras de sua personalidade carismática. Com as astúcias de um legítimo entertainer, que mistura lembrança e invenção de maneira indistinguível, ele enredou pela vida afora todos os que cruzaram seu caminho.

Aos cinco anos de idade, ele já aprendia a amar a grande música. O pai o levava ao Teatro Municipal do Rio para ver em ação o célebre maestro Arturo Toscanini. Com a tia Elza iniciou os estudos de piano e canto, que mais tarde aprofundaria com professores renomados. Aos nove anos, frequentava recitais de piano e óperas. Aos 11, leu alguns volumes da censurada Coleção Verde, de romances eróticos, e uma descoberta revolucionou o seu futuro: escrever era um prazer. Foi quando Victor produziu o primeiro dos seus contos, Os três suspiros de Helena.

O gosto pelas letras nunca mais o abandonou. Seguiram-se leituras de Rider Haggard, Conan Doyle, Poe, Camões, Sartre, Machado de Assis. Balzac - cuja obra foi devorada nas incursões de adolescente às estantes da biblioteca do vizinho e futuro sogro, Dr. Azevedo Lima, patriarca de uma família numerosa - tornou-se uma paixão eterna. Aliás, começou ali o namoro com Leda, a filha caçula e hoje professora de literatura, com quem se casaria e teria os filhos Maurício, matemático, e Renata, jornalista. Victor formou-se em Letras pela UERJ em 1975, depois de cursar parcialmente Ciências Estatísticas nos anos 1950 e Direito nos anos 1960. Sua segunda mulher, Eneida Santos, foi uma colaboradora devotada e a primeira leitora de todos os seus rascunhos a partir de 1984.

O Édipo Rei, de Sófocles, lido aos 12 anos, revelou-lhe o fascínio das histórias de mistério. Com os seriados do Cinema Fluminense, compreendeu o valor do suspense e da imprevisibilidade, atributos que iriam impregnar toda a sua obra literária. Os perigos de Nyoka, O Fantasma, Flash Gordon, Capitão Marvel, Império submarino - as chamadas "fitas em série" - figuram entre os primeiros objetos de cinefilia de Victor. Filmes dos franceses Henri-Georges Clouzot e André Cayatte também alinham-se entre suas influências inaugurais.

Por volta dos 13 anos, as visitas freqüentes aos estúdios da Cinédia lhe renderam uma ponta no filme Pinguinho de gente, de Gilda de Abreu. Bem mais tarde, tornou-se aluno da famosa atriz Dulcina, com quem aprendeu os mistérios da interpretação. No entanto, Victor sempre foi um ator nato, além de imitador impagável. Suas performances-relâmpago ou a compenetrada declamação dos poemas do português Antonio Nobre eram um deleite para quem tinha a sorte de estar por perto.

A cinefilia infantil se perpetuaria na vida adulta, com um afeto especial pelo cinema clássico europeu: Visconti, Fellini, os primeiros filmes de Monicelli, os de Totò, Carné, Clouzot, as comédias inglesas dos anos 40 e 50 e a nobreza de Laurence Olivier à frente de adaptações shakespearianas como Ricardo III. Já o cinema americano era capaz de lhe despertar sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que admirava a eficiência e verossimilhança de suas narrativas, abominava seus chavões e a superficialidade na abordagem dos temas. Os filmes de Orson Welles e grandes musicais como O mágico de Oz, Cantando na chuva e Um americano em Paris estavam acima de qualquer restrição. Quanto ao cinema nacional, irritava-se com freqüência diante dos sinais de amadorismo que o infestavam até o final da década de 70.

Apesar de não ter concretizado nenhum projeto nessa área - o final dos 60 e começo dos 70 registram uma obscura experiência de curta-metragem e alguns audiovisuais didáticos - , Victor gostava de rascunhar eletrizantes prólogos de filmes imaginários, capazes de deixar eventuais leitores com água na boca.

O desenho e a fotografia também o atraíram desde muito cedo. A começar pelos ladrilhos da casa, que ele, subversivamente, estimulava os companheiros de infância a decorar com seus próprios traços. Comprava filmes baratos em bobinas e punha-se a fotografar a Quinta da Boa Vista, o Campo de São Cristóvão e principalmente os amigos, naquilo que foi o início de um duradouro culto aos portraits. O amor pela fotografia seria uma constante na vida de Victor. Ele teve fotos publicadas na revista O Cruzeiro (1969) e no semanário Crítica (1974). Durante vários anos, um dos cômodos de sua casa funcionou como laboratório de revelação fotográfica.

Aos 16 anos, Victor perdeu o pai. A família morava então em Macaé (RJ), mas logo voltaria a São Cristóvão. Empregou-se aos 21 anos como artefinalista numa pequena agência de publicidade. Pintou anúncios em cortinas de teatro e, já nos anos 60, formado em Estatística, trabalhou como desenhista de gráficos para órgãos públicos. Mais tarde, ao consagrar-se como escritor, não se furtou ao prazer de criar as capas de seus livros Necrológio, Salvador janta no Lamas e O museu Darbot e outros mistérios, além de uma revista de comércio exterior editada pelo Banco do Brasil. Durante toda a vida, Victor cultivaria na intimidade os retratos e caricaturas de pessoas conhecidas, feitos em bico de pena, o esboço gráfico de personagens, e teve mesmo uma fase de pinturas em aquarela.

Funcionário do Banco do Brasil por mais de 20 anos, Victor se comprazia em transformar os jargões e absurdos reais da burocracia em ficção de sabor kafkiano. O Arquivo, seu terceiro conto, tornou-se um clássico no Brasil e foi publicado em oito países, mostrando um homem que "progride" na empresa à medida que seu salário vai sendo reduzido e ele próprio vai se convertendo num objeto. No ambiente austero do Banco do Brasil, Victor fazia o terror da hierarquia e as delícias dos colegas, com sua irresistível tendência a satirizar o cotidiano, jogar pelos ares as formalidades e se lixar para os imperativos de um mito da época: uma boa carreira no BB. Os formulários burocráticos lhe serviam para fazer intervenções poéticas e a rotina do trabalho lhe inspirava situações de comédia.

O homem e o escritor se confundiam na relação visceral mantida com a cidade do Rio de Janeiro. O tradicional restaurante Lamas, onde se passa a ação do conto Salvador janta no Lamas, era apenas um dos muitos templos gastronômicos cariocas que Victor freqüentava com regularidade e fervor quase religiosos. Ele podia se deliciar tanto com queijos finos e doces sofisticados, quanto com os salgadinhos mal encarados de uma lanchonete de esquina. Domesticamente, sua faceta de chef materializava-se em papas portuguesas, estrogonofes, haddocks ao leite, uma receita própria de "Peixe à Salvador", bolos de chocolate, quindões e manjares marmorizados.

Em Victor Giudice conviviam um intelectual de gosto refinado e um homem simples e popular. Ele mantinha longas relações amistosas não só com artistas e escritores, mas também com guardadores de carro, lanterneiros, porteiros de prédios etc. Na sua teia de laços e afetos, crianças e adultos tampouco recebiam tratamento diferenciado.

Este homem em permanente trânsito social manifestava-se também na relação com a geografia da cidade. Seu coração estava, sem dúvida, na Zona Norte, mas os túneis eram caminho diário rumo a livrarias, lojas de discos e vídeos, restaurantes, casas de amigos etc. Comutar entre as diversas zonas geográficas, culturais e econômicas da cidade era parte do estilo de vida de Victor Giudice, um homem cujo espírito desconhecia fronteiras de qualquer natureza.

A faceta místico-esotérica foi outro traço marcante da personalidade de Victor. Ele aprendeu leitura de mãos na juventude e dizia-se um apaixonado pelo ocultismo. Nos anos 80, estudaria profundamente o tarô e colecionaria dezenas de baralhos, de várias modalidades e procedências. Chegou a "botar" cartas informalmente, e criou o protótipo de uma certa Mandala Divinatória, jogo de números e peças geométricas que conformaria toda a vida do consulente. Existem fortes razões para se suspeitar de que o esoterismo um tanto jocoso era, no fundo, mais uma ferramenta de elaboração ficcional de que Victor lançava mão nas incansáveis peripécias de sua imaginação.

Depois de aposentar-se em 1986, Victor retomaria a carreira de professor de teoria e criação literária, interrompida na década anterior. Os anos 90 estiveram entre os mais produtivos de sua carreira: além de dar aulas, lançou dois livros, escreveu grande parte de outros dois - o romance Do catálogo de flores e um volume de teoria da significação intitulado O que significa isto? -, inspirou admiração e respeito como crítico de música erudita do Jornal do Brasil, ministrou cursos livres sobre ópera e música sinfônica, oficinas literárias e conferências em diversas partes do país, e ainda prestava consultoria à programação de óperas em vídeo do Centro Cultural Banco do Brasil.

Em agosto de 1996, já acometido pelos primeiros sintomas do que seria mais tarde diagnosticado como um tipo raro de tumor cerebral, ele realizou o sonho de comparecer ao Festival de Bayreuth, na Alemanha, para cultuar in loco o ídolo Richard Wagner. Victor, cuja vida fora um incessante diálogo com a cultura internacional, tinha medo de avião. Por isso fez poucas viagens ao exterior: esteve em Buenos Aires, Bogotá, fez três passagens rápidas por Nova York e empreendeu esta derradeira fuga a Bayreuth, com breve escala em Paris, primeiro e último vislumbre de uma Europa mitificada.

Um mês depois, Victor iniciaria seu longo e lento duelo com a morte. Ela sairia vencedora na madrugada de 22 de novembro de 1997. Mas não na clínica da Zona Sul, onde ele havia passado os últimos meses, e sim na Tijuca, bairro onde moravam seus dois filhos, ali bem perto de São Cristóvão. Ou seja, dentro do perímetro mágico da sua lavoura criativa.

Carreira Literária

A personalidade de Victor Giudice pode ser rastreada através dos vestígios autobiográficos deixados em sua obra literária. Ele foi a própria materialização, declarada ou subentendida, de personagens como o ser mutante do conto O homem geográfico, a filha mesmerizada pelos mistérios familiares de Minha mãe, o solitário apaixonado por Haydn em A criação: efemérides, o avô que declamava trancado na sala de banho em Os banheiros ou o narrador do inacabado Do catálogo de flores.

Sua primeira oportunidade de publicação surgiu em 1969, quando o escritor José Louzeiro, que à época editava o Jornal do escritor, publicou O banquete, também o primeiro de seus minicontos, formato que ele iria sofisticar progressivamente nos anos vindouros. Por pouco Louzeiro não teria salvo outras centenas de páginas datilografadas, que Giudice havia deitado fora alguns dias antes, por julgá-las imprestáveis.

O segundo conto publicado, In perpetuum, é protagonizado por um funcionário de banco que passa 30 anos procurando uma diferença de 10 centavos. Nascia ali uma das principais vertentes da criação literária de Giudice, alimentada por suas experiências como funcionário do Banco do Brasil por mais de 20 anos (ver A Vida). Esta é a matéria-prima também de O Arquivo, um dos contos brasileiros mais conhecidos internacionalmente, editado em oito países.

O Arquivo abre o primeiro volume de contos de Victor Giudice, Necrológio (1972), começando já na capa do livro. Victor não queria perder tempo nesse fulminante início de carreira como escritor. O livro ganhou uma recepção entusiástica por parte da crítica. Experimental e ousado, submetia o texto a uma feroz segmentação, usava o espaço da página com invenções concretistas e propunha um texto polifônico, onde se podia "ouvir" uma instigante simultaneidade de "vozes". O conto Carta a Estocolmo viria a ser publicado na prestigiosa revista Antaeus (inverno 1983, Nova York), ao lado de um texto de Gabrielle D'Annunzio, e considerado um dos dez melhores relatos de ficção científica aparecidos naquele ano nos EUA.

A afirmação em três livros Apesar do sucesso da estréia, Giudice levaria sete cabalísticos anos para trazer a público o seu segundo livro, Os banheiros, de 1979. O Brasil vivia então o apogeu do contismo. Caio Fernando Abreu saudou, numa resenha da revista Veja, a consagração de Giudice "definitivamente, como um dos nomes mais expressivos da ficção brasileira contemporânea". Esse livro deixava clara a paixão de Giudice pelo conto policial, o seu fascínio pelos mecanismos do gênero. Esta matriz estaria subjacente a grande parte de sua obra. No início da carreira, ele havia publicado contos no Mistério Magazine de Ellery Queen. Foi também organizador da Coleção Enigma, de livros policiais, da Editora José Olympio.

A Narrativa do número um, incluída em Os banheiros, era, na verdade, um trailer do romance Bolero, que Giudice traria à luz em 1985. Um palhaço que consegue produzir esferas de prata somente com a força da imaginação assume ares de metáfora para a força do pensamento contra a ordem opressiva e a dominação. O Brasil começava a sair da ditadura e Giudice nos dava um romance caudaloso (veja trecho), lidando sem panfletarismo com o Brasil do pesadelo militar, das desigualdades profundas e das falsas mudanças. Para o crítico Valentim Facioli, o leitor tinha "diante de si um bizarro logogrifo literário, sério, circense, dramático, histrião; da mais intensa atualidade e permanência enquanto a história for a pré-história do Grande Circo burguês".

Em 1989, Giudice retornou ao terreno dos contos com Salvador janta no Lamas, distinguido com o prêmio anual da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria de ficção. Os contos desse volume apresentam um estilo extremamente visual, nos limites do argumento de cinema. O homem geográfico poderia figurar numa antologia do corte (no sentido cinematográfico do termo); Bolívar nada mais é que um pequeno filme policial em que, significativamente, o cinema é repetidamente citado. As palavras, ali, tinham a generosidade e o desespero de se darem a ver, de se deixarem sentir.Salvador consolidava, ainda, dois traços de estilo que o escritor importava de sua própria vida: as referências recorrentes ao plano concreto da cidade (antecipando, de certa maneira, Paul Auster em relação a Nova York) e, já a partir do desenho da capa - o tarô na mesa de bar -, a atração pelo esoterismo (ver Vida).

Maturidade premiada Estava pavimentado o caminho para aquela que muitos consideram a obra-prima de Victor Giudice: O museu Darbot e outros mistérios (1ª e 2ª edição). Temos aí nove contos primorosos, que revelam um escritor no pleno domínio de seu ofício. Para eles parecem convergir todos os rumos da ficção giudiciana: a fantasia familiar (A única vez, A história que meu pai não contou), as obsessões do culto à arte (A criação: efemérides, O museu Darbot), o mistério introjetado no cotidiano (Cavalos), a narrativa policial (Jurisprudência), a metáfora política (O hotel), a sátira de uma nobreza imaginária (A festa de Natal da Condessa Gamiani) e o miniconto (Relatividade em nome de Borges). O livro mereceu a maior distinção literária do país, o Prêmio Jabuti de 1995, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.

Se Bolero havia sido gestado ao longo de sete anos e tivera vários fragmentos publicados previamente, o segundo romance de Giudice seria escrito num só jato, em não mais que 52 dias. A trama de O sétimo punhal, de 1995, era assim apresentada pela poeta Susana Vargas na orelha do livro: "Uma mulher às voltas com seis crimes (ou seriam quatro?) e um casamento de muitos anos. Um criminoso a bordo de um Monza cinza e a cinzenta história de um estranho namoro". Em O sétimo punhal,, o escritor atinge a maturidade no uso dos ingredientes da história policial, gênero relativamente raro no Brasil, do qual ele se firmou como um dos melhores cultores.

Giudice deixou inacabado o seu terceiro romance, Do catálogo de flores, que colocava um escritor brasileiro septuagenário no centro de uma trama misteriosa na Londres do ano 2018. O escritor tinha sido o único amigo de um certo Pedro Maravella, poeta brasileiro desconhecido que escrevia, no século anterior, uma série de poemas denominada Catálogo de flores. Descobre-se, então, uma estranha relação entre os sonetos de Maravella e as pesquisas científicas desenvolvidas por uma fundação britânica. "A história mostra de que modo uma fraude pode indicar o caminho da verdade", definia o autor numa sinopse.

Poesia, teatro, crítica Os sonetos de Maravella nada mais são que um eco do próprio Victor Giudice poeta. Entre um livro e outro, Giudice mantinha uma produção marginal de sonetos, a maioria desconhecidos do público leitor e mesmo de seus amigos mais íntimos. Nas décadas de 80 e 90, ele participou com amigos de uma espécie de arcádia, em que toda a correspondência se dava em sonetos de versos decassílabos. Seu pseudônimo não escondia eficientemente o autor: Judicis Marinus. A uma série de fundo social ele deu o sonoro título de Sonetos do operário e do patrão.

Giudice produziu também para teatro, refletindo outra de suas grandes paixões. Em 1991, o Centro Cultural Banco do Brasil montou seu monólogo Ária de serviço, com direção de Marco Antonio Braz e a atriz Bete Mendes no papel da dona de casa infeliz que prepara o espírito para receber o marido ao final de um dia de trabalho. Teve seu conto Bolívar encenado por Domingos Oliveira na Biblioteca Nacional dentro do evento Teatro do texto, em 1991, e fez uma adaptação do Don Juan, de Molière, para alunos da Uni-Rio. Exercitou-se, ainda, como compositor de trilhas musicais para teatro (ver A Música). Giudice deixou inédito o texto da peça O baile das sete máscaras, mais uma investida demolidora no universo burguês a que ele próprio pertencia à sua maneira peculiar.

O crítico e ensaísta literário surgiu na década de 1970 em jornais do Rio de Janeiro. Carlos Drummond de Andrade costumava mandar-lhe bilhetes agradecendo suas resenhas. Escritores como Machado de Assis, Arthur Schnitzler e o dramaturgo Nelson Rodrigues foram objeto de iluminados ensaios. Mas esta foi uma carreira bissexta, caracterizada basicamente pelo seu prazer de ler e pela independência de suas opiniões. Esta última qualidade rendeu-lhe, pelo menos uma vez, uma represália. Em julho de 1988, ele publicou em O Globo uma resenha irônica com relação ao sucesso de um best seller da mesma editora que à época examinava seus originais da coletânea de contos O último coração da noite. No dia seguinte, a editora devolveu-lhe os textos com uma carta seca de indeferimento. O livro acabaria saindo no ano seguinte, pela José Olympio Editora, com o título de Salvador janta no Lamas .

Para um escritor que tematizava as hipocrisias e disfunções da sociedade contemporânea, episódios como esse não representavam maior percalço. Pelo contrário, traziam novas idéias que ele rapidamente levava ao papel. Em Victor Giudice, a vida e o ofício bebiam da mesma fonte.

Fontes:
http://www.victorgiudice.com/
Foto de Veronica Peixoto, de O Globo

Nilton da Costa Teixeira (O Poeta de Ribeirão Preto)



Três de Maio:- Dia Municipal da Poesia

O vereador Corauci Neto apresentou em 21 de agosto de 1.997, o projeto a lei 391, que se tornou a lei 8.294/98, Instituindo o Dia Municipal da Poesia, no município de Ribeirão Preto, a ser comemorado a todo Três de maio.

Na justificativa do documento camarista, o vereador Corauci Neto, destaca: " O dia 3 de maio, é a data própria para estimular os poetas da cidade. É a data do nascimento do poeta Nilton da Costa Teixeira, escritor, jornalista, literato, representante da geração de 1.945, com grande destaque nas lides culturais de nossa cidade nos anos sessenta, com o maior número de trabalhos editados pelos jornais: A Cidade, Diário da Manhã, Diário de Notícias e O Diário. Lançou a pedido do ex-prefeito Antonio Duarte Nogueira, em 1.970, Versos à Ribeirão Preto, em homenagem aos 114 anos de nossa cidade, ocasião em que se inaugurava o salão nobre do Palácio Rio Branco. A partir daí com as movimentações com os Jogos Florais, Ribeirão Preto cresceu e hoje pode e precisa prestar uma homenagem a este que foi um baluarte de nossa poesia.”

Nilton da Costa Teixeira, nasceu na cidade de Monte Alto, interior de São Paulo, em 03 de maio de 1920, filho dos portugueses Manoel dos Santos Teixeira e Conceição da Costa Teixeira. Veio com a família para Ribeirão Preto, prosseguindo os estudos no Grupo Escolar Guimarães Júnior, onde concluiu em 1930/31. Trabalhou desde a infância, tendo sido prático de farmácia, depois ser provador de café e, na mesma firma, passou a exercer funções na contabilidade, enquanto prosseguia seus estudos no ginásio do Estado, hoje Otoniel Mota. Na Escola da Biblioteca dos Pobres foi cursar o “guarda livros”, mais tarde na Escola de Comércio São Sebastião, Contabilidade e científico no colégio Progresso.

Dedicou-se à contabilidade e ao comércio. Aposentou-se por tempo de serviço em 1.976. A contabilidade exerceu-a até os últimos dias de sua vida. Era associado do Conselho Regional de Contabilidade e graças ao vasto conhecimento contábil, assessorava colegas nas constantes mutações do setor..

Faleceu a 5 de novembro de 1983; casado com d. Ophélia de Andrade Teixeira.

Carreira Literária

Teve participações esportivas e literárias. Na literatura, 45 anos de atividades. Em 1936, co-fundara o Grêmio Literário Humberto de Campos.

Na imprensa, Nilton sempre editou crônicas, contos, poemas, trovas, sonetos, divulgando parte de sua produção literária, nos jornais de Ribeirão Preto, oferecendo subsídios para que professores e alunos trabalhassem, nas escolas, seus projetos de poesia. Em torno da Fonte Luminosa, da praça XV de novembro, por vários anos, estiveram expostas as trovas dos Jogos Florais de Ribeirão Preto, em placas pintadas, com as trovas vencedores. Nilton sempre tinha alguma premiada.

Como professor, na Escola dos Pobres, estimulava o alunado à vida literária e o que continuou fazendo no correr dos anos. Sua esposa também lecionava na entidade. Prefaciou diversos livros. Gostava de escrever sobre a cidade.

No correr dos anos, durante campanhas eleitorais, à pedido de candidatos compunha “marchinhas” de campanha eleitoral e, num só pleito, viu candidatos eleitos com o apoio suas mensagens poético-eleitorais. Era comum, ao passar por cartórios de paz, ser solicitado a fazer trovas de homenagem a casamento ou nascimento. O poeta gostava do que fazia e fazia com inspiração.

No ano de 1966, foi um dos vencedores dos I Jogos Florais de Ribeirão Preto, numa promoção do Clube dos Antônios com o patrocínio do jornal O Diário, tendo duas de suas trovas premiadas. O tema da promoção era Santos Dumont. A respeito, no dia 6 de novembro de 1967, o dr. Antonio Rocha Lourenço, presidente do Clube, se manifestou: Ao ofertar-lhe o prêmio que sua inteligência conquistou, não deseja o Clube dos Antônios, deixar embora em poucas palavras, de dizer o quanto agradece a sua destacada participação. Foi premiado em diversos concursos de trovas e sonetos. Era considerado uma usina poética e conseguia produzir centenas de trovas de um mesmo assunto ou tema.

Em 1970, a pedido do dr. Antônio Duarte Nogueira, então prefeito, editou Versos à Ribeirão Preto. O historiador Prisco da Cruz Prates, destacava-o em seus textos como o príncipe regional da trova ribeirãopretana. O trabalho literário de Nilton merecia elogios nos mais diferentes recantos do país.

Em 19 de junho de 1977, trovadores de diversas cidades e estados, estiveram reunidos na casa do poeta. Ocasião festiva e literária, onde cada um demonstrava a sua versatilidade. O escritor e acadêmico santista Walter Waeny ao partir deixou em manuscrito a mensagem:

Esta alegria maior,
Sempre guardá-la prometo:
visitei, hoje, o melhor,
poeta de Ribeirão Preto”.

O trovador José Valeriano Rodrigues, mineiro de diversas academias, assim escreveu:

“Senti-me de tal maneira
à vontade neste lar,
como na casa mineira
para a qual eu vou voltar”.

Deixou vários inéditos, mas na imprensa diária divulgada boa parte daquilo que produzia. Suas constantes premiações literárias, perpetuam seus textos em livros de resultados de concursos. A biblioteca municipal e a Casa da Cultura têm as edições dos livros de jogos florais de Ribeirão Preto.

Vem sendo organizada uma antologia com os textos dos escritores da família Teixeira. O poeta Lauro da Costa Teixeira (irmão, freqüentava a Casa do Poeta Lampião de Gás), Nilton Manoel e Ivan Augusto (filhos) e alguns sobrinhos do poeta com prêmios e vida literária.

Nilton fez parte de várias comissões de Jogos Florais de Ribeirão Preto.
Nilton, co-fundador e vice-presidente da seção municipal da União Brasileira de Trovadores, instalada por Luiz Otávio (príncipe dos trovadores). Co-fundador da União dos Escritores de Ribeirão Preto e membro correspondente de academias pelo Brasil. Hoje é patrono de cadeiras acadêmicas.

No decorrer dos anos conquistou prêmios, nos Jogos Florais da Bahia, pela Academia Castro Alves de Letras, Academia Valenciana de Letras, Grupo Alec de Corumbá, Academia Pedralva de Letras e Artes, Sesc Três Rios- RJ, União Brasileira de Escritores, Revista Brasília, centenária Sociedade Legião Brasileira Civismo e Cultura, em Ribeirão Preto, monografia sobre Padre Euclides, Casa da Cultura de Ribeirão Preto, Clube da Velha Guarda, Jogos Florais de Ribeirão Preto, Santos, Rio de Janeiro,etc.

Na antologia Poetas de Ribeirão Preto, terra da poesia, editada por Nilton Manoel, em 1979, figura com um agrupamento de textos sob o título “Encanto dos meus dias” onde são encontrados sonetos, poemas e trovas, concebidos em verdadeiros estados de graça. Foi haicaísta.

A FONTE LUMINOSA

Da fonte luminosa, emergem espargidos,
contínuos jatos de água em cores variantes,
que , em suaves vai-vens, tão sempre repetidos
em mesclas divinais de encantos e corantes.

Seus azuis celestiais, nos jatos expelidos,
parodiam, no céu, os azuis contagiantes,
enquanto pela relva, os grilos escondidos
teimam a musicar esses vai-vens constantes

Sempre a água sobe e desce e sofre mutações,
imita nossa vida onde há tão falsos pomos
colhidos cegamente em muitas ocasiões...

A fonte é um painel de passageiras cores,
a vida é um painel de mentirosos cromos,
dois cromos celestiais, cromos enganadores.

Com a difusão de informativos, jornais, revistas, colunas de poesia em jornais O Diário, Diário de Notícias, Diário da Manhã, A Cidade e em Folha do Subúrbio (do Eduardo Cavalcanti da Silva, Camaçari - BA), a coluna de Trovas da Gazeta Esportiva, assinada pela jornalista Maria Thereza Cavalheiro, Almanaques como o Santo Antonio, da Editora Vozes, a folhinha do Sagrado Coração de Jesus, álbuns e revistas acadêmicas, os poemas de Nilton da Costa Teixeira popularizam-se cada vez mais, principalmente, em volantes, editados para distribuição gratuita a alunos de nossas escolas. O movimento literário de Ribeirão Preto, tomou vulto com as edições diárias do poeta, considerado o marco de nacionalização da literatura ribeirãopretana.

TROVAS DISPERSAS

A vida triste fantasia,
que abriga tanta ilusão,
é o caminhar dia a dia,
para um funéreo caixão.
*
Nossa vida é uma viagem
de turismo e avaliação,
em que o peso da bagagem
é feito no coração.
*
Tenho a casa pobrezinha
Um prato e uma colher,
E a esperança toda minha
De arranjar uma mulher.
*
Durante suas andanças,
Jesus Cristo foi fecundo,
recolocando esperanças,
entre as descrenças do mundo.
*
Quem passar por Ribeirão,
fatalmente,ira deixar,
pedaços do coração,
que um dia virá buscar.
( 1.956 – I Centenário de Ribeirão Preto)
*
Ribeirão - tu sobranceiro,
és do interior, no presente,
o município, primeiro,
porque caminhas à frente...

Nos Jogos Florais de Ribeirão Preto, oficializados pelo executivo, por ser o evento que consagrou a cidade no mundo internacional da literatura, realizados em modalidades: estudantil, municipal, internacional, Nilton conseguiu diversas e boas trovas vencedoras, entre elas:

Neste abraço em que te aperto,
Com a beatitude de um monge,
Sinto meu amor tão perto...
Minha esperança tão longe!

Para salvar aparências,
Nós pela vida, mentindo,
Entre silêncios e ausências,
Sofremos sempre sorrindo.

O Judas de hoje, moderno,
Maneiroso, demagogo,
Não teme os clarões do inferno,
Porque dança sofre o fogo.

Despreocupado com a morte
Para quem tão pouco resta,
Mesmo os rigores da sorte
São verdes sonhos de festa!

Comentários sobre o poeta:

“... vemos o perfil de um homem, que foi inspirado cultor do sonho e requintado burilador do verso. Sei que foi, em sua terra natal, por várias gerações, um dos seus valores mais dignificantes, que, se o presente tanto o admirou, a posteridade saberá respeita-lo”.

Um poeta adormeceu,
e, porque tanto sonhou,
se algo, aqui, se escureceu,
todo o céu se iluminou
”.
Helvécio Barros- Bauru-SP.:

Com profundo pesar recebemos a infausta notícia do falecimento do poeta Nilton da Costa Teixeira, que enluta as letras de Ribeirão Preto e entristece seus irmãos trovadores de todo o Brasil”..
Carolina Ramos, presidente da União Brasileira de Trovadores –secção de Santos-SP

Trovador e poeta que todos aprendemos a estimar e admirar”.
Jornalista Paulina Martha Frank, Campinas,SP.

"O Brasil inteiro precisa ler o que ele escreve, para render homenagem a um talento e a uma versatilidade assim tão grandes”.
Walter Waeny, trovador da Academia Santista de Letras
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Na literatura de Ribeirão Preto sua prosa e poesia fez a nossa história literária e, ficou comprovado nos certames em que foi premiado. Seus livros: A Mansão do Morro Branco, Versos à Ribeirão Preto, Mãe, Minha Trova em Ribeirão Preto, Sonetos de várias datas,Restos de Ventura, entre outros, enriquecem o mundo literário desta cidade que tanto amou.
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Fontes:
- Nilton Manoel.
– Corauci Neto

Glorinha Rattes (Cristais Poéticos)



DESABAFO

Sou uma pessoa querida
pelos recantos da vida
deste mundo encantador.
E por mais que dissimule ou drible,
há sempre os recalques da vida
querendo tornar-me sofredor.
Qual fantasmas de carrascos
seguem perto os meus rastros,
impingindo-me a dor.
Sempre insistem em abrir ferida
no peito da minha vida
e se jogam com furor.
Mas esses fantasmas sem sucesso,
que empurro ao retrocesso,
no vasto mar do vingador,
não conseguem o seu intento,
não me prendem ao sofrimento –
na vida sou vencedor.
Sou guerreiro forte, previdente,
transformo-me em Noé,
embarco na Arca da Vida
e espero baixar a maré.
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ESPELHO

No afã de contemplar minha imagem,
do espelho curiosa me aproximei.
E ao invés de retratar-me, vi miragens
dos anos que passaram e não notei.
Vi minha infância: eu feliz, despreocupada,
brincando de roda, cabra-cega e de pegar.
Corria alegre dando boas gargalhadas
e minha mãe me pedindo para parar.
E o espelho retratando minha vida,
a juventude nele então projetou:
eu era bela, tão alegre, tão querida
que, em minha face uma lágrima rolou.
Enxuguei-a com um lenço todo branco
em homenagem à pureza daquele tempo
que, por um beijo, um abraço, levava um tranco
dos pais que diziam:
- Ele só quer passatempo!
E o espelho minha vida revelava:
momentos de alegrias e tristezas,
mas, a verdade do agora não mostrava
e é esta imagem que eu mostro pra vocês.
=======================

EXEMPLO DE VIDA

Sentindo-me cansada,
triste, desanimada,
sentei-me à beira da estrada
e fiquei a pensar na vida...
Entregue aos meus pensamentos,
senti com o sopro do vento
que estava semi-protegida
pela sombra de uma árvore ressequida
que antes fora frondosa, florida.
E atentamente a observá-la,
vi um viçoso broto surgindo
que me impulsionou a imitá-la;
retomei minhas forças, fiquei sorrindo...
Sorrindo e meditando...
Se, em uma árvore aparentemente ressequida,
ressurge a esperança da vida,
por que julgar-me debilitada,
frágil, perdida?
E analisando o exemplo daquela árvore,
arvorei-me de esperança...
e acreditei na vida!
=======================

O QUE FICA

Oh! Bendito que semeias
e em poesia me enleias
para eu criar e produzir...
E nos meus versos singelos,
decantar tudo que é belo
e do meu jeito colorir...
Sinto que o mundo é encantador...
Mas não posso assim senti-lo
que não plantarei uma flor.
Quando partir deste mundo
rastros deixarei marcados...
Vida se esvai num segundo,
fica o que está comprovado;
filhos, árvores e livros,
são mandamentos que cumpri;
registrei-os nos arquivos
dos tempos em que já vivi.
Sei! Tudo passa na vida...
Passa época, para o tempo,
fica a lembrança contida
no livro do assentamento.
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SUBLIME AMOR
(à minha filha, em 18/06/1987)

Estás junto a mim,
caminhas ao meu lado,
dominas o meu ser!
Não te locomoves do leito,
mas trago teu coração no peito,
sentindo-o fortemente pulsar.
Tua imagem, minha companheira
que me envolve a vida inteira,
desde que entraste no meu mundo!
E quando aqui, não mais eu estiver
e se porventura, permaneceres,
tornar-me-ei uma estrela,
sempre ansiosa por vê-la,
meu brilho a ti refletir.
E os sons desordenados
por ti balbuciados,
chegar-me-ão com clareza
e não terei mais incerteza
de estar te entendendo ou não!
E quando junto de mim estiveres,
gozando as maravilhas do infinito,
não serei mais esta mãe, mulher
que estremece ao som de dilacerante grito.
- Não... Não serei mais uma pecadora qualquer
lá, com você ao meu lado querida!
Serei a mais bela estrela cintilante,
brilhando no universo de qualquer vida.
=================================
Sobre a Autora
Glorinha Rattes, nome literário adotado por MARIA DA GLORIA AVIEIRA DE REZENDE RATTES que, em 1997 foi eleita Rainha dos Trovadores na Convenção de trovadores realizada em Conceição da Barra – ES. Membro titular da Cadeira n.13, da Academia Brasileira de Poesia Casa de Raul de Leoni.

Classificada em diversos concursos, tanto em Petrópolis-RJ, como em várias outras cidades do Brasil. Em 1988 foi classificada com seleto grupo de 10 poetas, sem ordem de classificação, para receber o prêmio de Melhor Poeta do Estado do Rio de Janeiro. É madrinha da Academia Poética da Escola Municipal Vila Felipe – Petrópolis-Rj, pertence ao Clube de Poesia do Petropolitano FC, ao Arte de Poetar, do SESC-Petrópolis-RJ. Tem publicado os livros: Raio de Luz - poemas e trovas; No Jardim dos Trovadores: UBT-Trovas e Recanto e Minhas Lembranças, crônicas.
––––––––––––––––-
Fonte:
Academia Brasileira de Poesia da Casa de Raul de Leoni

Machado de Assis (Hoje avental, amanhã luva)



Publicada originalmente A Marmota, Rio de Janeiro, março de 1860.
Transcrita em Páginas Esquecidas , de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Ed Casa Mandarino, 1939.

Comédia em um ato imitada do francês por Machado de Assis

PERSONAGENS
DURVAL
ROSINHA
BENTO


Rio de Janeiro — Carnaval de 1859.
(Sala elegante. Piano, canapé, cadeiras, uma jarra de flores em uma mesa à direita alta. Portas laterais no fundo.)

Cena I

ROSINHA (Adormecida no canapé);
DURVAL (entrando pela porta do fundo)

DURVAL
Onde está a Sra. Sofia de Melo?... Não vejo ninguém. Depois de dois anos como venho encontrar estes sítios! Quem sabe se em vez da palavra dos cumprimentos deverei trazer a palavra dos epitáfios! Como tem crescido isto em opulência!... mas... (vendo Rosinha) Oh! Cá está a criadinha. Dorme!... excelente passatempo... Será adepta de Epicuro? Vejamos se a acordo... (dá-lhe um beijo)

ROSINHA
(acordando)
Ah! Que é isto? (levanta-se) O Sr. Durval? Há dois anos que tinha desaparecido... Não o esperava.

DURVAL
Sim, sou eu, minha menina. Tua ama?

ROSINHA
Está ainda no quarto. Vou dizer-lhe que V. S. está (vai para entrar) Mas, espere; diga-me uma coisa.

DURVAL
Duas, minha pequena. Estou à tua disposição. (à parte) Não é má coisinha!

ROSINHA
Diga-me. V. S. levou dois anos sem aqui pôr os pés: por que diabo volta agora sem mais nem menos?

DURVAL
(tirando o sobretudo que deita sobre o canapé)
És curiosa. Pois sabe que venho para... para mostrar a Sofia que estou ainda o mesmo.

ROSINHA
Está mesmo? moralmente, não?

DURVAL
É boa! Tenho então alguma ruga que indique decadência física?

ROSINHA
Do físico... não há nada que dizer.

DURVAL
Pois do moral estou também no mesmo. Cresce com os anos o meu amor; e o amor é como o vinho do Porto: quanto mais velho, melhor. Mas tu! Tens mudado muito, mas como mudam as flores em bo­tão: ficando mais bela.

ROSINHA
Sempre amável, Sr. Durval.

DURVAL
Costume da mocidade. (quer dar-lhe um beijo)

ROSINHA
(fugindo e com severidade)
Sr. Durval!...

DURVAL
E então! Foges agora! Em outro tempo não eras difícil nas tuas beijocas. Ora vamos! Não tens uma ama bilidade para este camarada que de tão longe volta!

ROSINHA
Não quero graças. Agora é outro cantar! Há dois anos eu era uma tola inexperiente... mas hoje!

DURVAL
Está bem. Mas...

ROSINHA
Tenciona ficar aqui no Rio?

DURVAL
(sentando-se)
Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam saudades desta boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá dois anos bem insípidos — em uma vida uniforme e matemática como um ponteiro de relógio: jogava gamão, colhia café e plantava ba tatas. Nem teatro lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica! Solidão e mais nada. Mas, viva o amor! Um dia concebi o projeto de me safar e aqui estou. Sou agora a borboleta, deixei a crisálida, e aqui me vou em busca de vergéis. (tenta um novo beijo)

ROSINHA
(fugindo)
Não teme queimar as asas?

DURVAL
Em que fogo? Ah! Nos olhos de Sofia! Está muda da também?

ROSINHA
Sou suspeita. Com seus próprios olhos o verá.

DURVAL
Era elegante e bela há bons dois anos. Sê-lo-á ainda? Não será? Dilema de Hamlet. E como gosta va de flores! Lembras-te? Aceitava-mas sempre não sei se por mim, se pelas flores; mas é de crer que fosse por mim.

ROSINHA
Ela gostava tanto de flores!

DURVAL
Obrigado. Dize-me cá. Por que diabo sendo uma criada, tiveste sempre tanto espírito e mesmo...

ROSINHA
Não sabe? Eu lhe digo. Em Lisboa, donde viemos para aqui, fomos condiscípulas: estudamos no mes­mo colégio, e comemos à mesma mesa. Mas, coisas do mundo!... Ela tornou-se ama e eu criada! É verda de que me trata com distinção, e conversamos às vezes em altas coisas.

DURVAL
Ah! é isso? Foram condiscípulas. (levanta-se) E conversam agora em altas coisas!... Pois eis-me aqui para conversar também; faremos um trio admirável.

ROSINHA
Vou participar-lhe a sua chegada.

DURVAL
Sim, vai, vai. Mas olha cá, uma palavra.

ROSINHA
Uma só, entende?

DURVAL
Dás-me um beijo?

ROSINHA
Bem vê que são três palavras. (entra à direita)

Cena II

DURVAL e BENTO

DURVAL
Bravo! A pequena não é tola... tem mesmo muito espírito! Eu gosto dela, gosto! Mas é preciso dar-me ao respeito. (vai ao fundo e chama) Bento! (descendo) Ora depois de dois anos como virei en­contrar isto? Sofia terá por mim a mesma queda? É isso o que vou sondar. É provável que nada perdes se dos antigos sentimentos. Oh! decerto! Vou começar por levá-la ao baile mascarado; há de aceitar, não pode deixar de aceitar! Então, Bento! mariola?

BENTO
(entrando com um jornal) Pronto.

DURVAL
Ainda agora! Tens um péssimo defeito para bo leeiro, é não ouvir.

BENTO
Eu estava embebido com a interessante leitura do Jornal do Comércio: ei-lo. Muito mudadas estão estas coisas por aqui! Não faz uma idéia! E a política? Esperam-se coisas terríveis do parlamento.

DURVAL
Não me maçes, mariola! Vai abaixo ao carro e traz uma caixa de papelão que lá está... Anda!

BENTO
Sim, senhor; mas admira-me que V. S. não preste atenção ao estado das coisas.

DURVAL
Mas que tens tu com isso, tratante?

BENTO
Eu nada; mas creio que...

DURVAL
Salta lá para o carro, e traz a caixa depressa!

Cena III

DURVAL e ROSINHA

DURVAL
Pedaço d'asno! Sempre a ler jornais; sempre a ta garelar sobre aquilo que menos lhe deve importar! (vendo Rosinha) Ah!... és tu? Então ela... (levanta-se)

ROSINHA
Está na outra sala à sua espera.

DURVAL
Bem, aí vou. (vai entrar e volta) Ah! recebe a caixa de papelão que trouxer meu boleeiro.

ROSINHA
Sim, senhor.

DURVAL
Com cuidado, meu colibri!

ROSINHA
Galante nome! Não será em seu coração que farei o meu ninho.

DURVAL
(à parte)
Ah! É bem engraçada a rapariga! (vai-se)

Cena IV

ROSINHA, DEPOIS BENTO

ROSINHA
Muito bem, Sr. Durval. Então voltou ainda? É a hora de minha vingança. Há dois anos, tola como eu era, quiseste seduzir-me, perder-me, como a muitas outras! E como? mandando-me dinheiro... dinheiro! — Media as infâmias pela posição. Assentava de... Oh! mas deixa estar! vais pagar tudo... Gosto de ver essa gente que não enxerga sentimento nas pessoas de condição baixa... como se quem traz um avental, não pode também calçar uma luva!

BENTO
(traz uma caixa de papelão)

Aqui está a caixa em questão... (põe a caixa so bre uma cadeira) Ora, viva! Esta
caixa é de meu amo.

ROSINHA
Deixe-a ficar.

BENTO
(tirando o jornal do bolso)
Fica entregue, não? Ora bem! Vou continuar a minha interessante leitura... Estou na gazetilha — Estou pasmado de ver como vão as coisas por aqui! — Vão a pior. Esta folha põe-me ao fato de grandes novidades.

ROSINHA
(sentando-se de costas para ele)
Muito velhas para mim.

BENTO
(com desdém)
Muito velhas? Concedo. Cá para mim têm toda a frescura da véspera.

ROSINHA
(consigo)
Quererá ficar?

BENTO
(sentando-se do outro lado)
Ainda uma vista d'olhos! (abre o jornal)

ROSINHA
E então não se assentou?

BENTO
(lendo)
Ainda um caso: "Ontem à noite desapareceu uma nédia e numerosa criação de aves domésticas. Não se pôde descobrir os ladrões, porque, desgraçadamente havia uma patrulha a dois passos dali."

ROSINHA
(levantando-se)
Ora, que aborrecimento!

BENTO
(continuando)
“Não é o primeiro caso que dá nesta casa da rua dos Inválidos." (consigo) Como vai isto, meu Deus!

ROSINHA
(Abrindo a caixa)
Que belo dominó!

BENTO
(indo a ela)
Não mexa! Creio que é para ir ao baile mascarado hoje...

ROSINHA
Ah!... (silêncio) Um baile... hei de ir também!

BENTO
Aonde? Ao baile? Ora esta!

ROSINHA
E por que não?

BENTO
Pode ser; contudo, quer vás, quer não vás, deixa-me ir acabar a minha leitura naquela sala de espera.

ROSINHA
Não... tenho uma coisa a tratar contigo.

BENTO
(lisonjeado)
Comigo, minha bela!

ROSINHA
Queres servir-me em uma coisa?

BENTO
(severo)
Eu cá só sirvo ao Sr. Durval, e é na boléia!

ROSINHA
Pois hás de me servir. Não és então um rapaz como os outros boleeiros, amável e serviçal...

BENTO
Vá feito... não deixo de ser amável; é mesmo o meu capítulo de predileção.

ROSINHA
Pois escuta. Vais fazer um papel, um bonito papel.

BENTO
Não entendo desse fabrico. Se quiser algumas lições sobre a maneira de dar uma volta, sobre o governo das rédeas em um trote largo, ou coisa cá do meu ofício, pronto me encontra.

ROSINHA
(que tem ido buscar o ramalhete no jarro)
Olha cá: sabes o que é isso?

BENTO
São flores.

ROSINHA
É o ramalhete diário de um fidalgo espanhol que viaja incógnito.

BENTO
Ah! (toma o ramalhete)

ROSINHA
(indo a uma gaveta buscar um papel)
O Sr. Durval conhece a tua letra?

BENTO
Conhece apenas uma. Eu tenho diversos modos de escrever.

ROSINHA
Pois bem; copia isto. (dá-lhe o papel) Com letra que ele não conheça.

BENTO
Mas o que é isto?

ROSINHA
Ora, que te importa? És uma simples máquina. Sabes tu o que vai fazer quando o teu amo te indica uma direção ao carro? Estamos aqui no mesmo caso.

BENTO
Fala como um livro! Aqui vai. (escreve)

ROSINHA
Que amontoado de garatujas!...

BENTO
Cheira a diplomata. Devo assinar?

ROSINHA
Que se não entenda.

BENTO
Como um perfeito fidalgo. (escreve)

ROSINHA
Subscritada para mim. À Sra. Rosinha. (Bento escreve) Põe agora este bilhete nesse e leva. Voltarás a propósito. Tens também muitas vozes?

BENTO
Vario de fala, como de letra.

ROSINHA
Imitarás o sotaque espanhol?

BENTO
Como quem bebe um copo d’água!

ROSINHA
Silêncio! Ali está o Sr. Durval.

Cena V

ROSINHA, BENTO, DURVAL

DURVAL
(a Bento)
Trouxeste a caixa, palerma?

BENTO
(escondendo atrás das costas o ramalhete)
Sim, senhor.

DURVAL
Traz a carruagem para o portão

BENTO
Sim senhor. (Durval vai vestir o sobretudo, mirando-se ao espelho) O jornal? Onde pus eu o jornal? (sentindo-o no bolso) Ah!...

ROSINHA
(baixo a Bento)
Não passes na sala de espera. (Bento sai)

Cena VI

DURVAL, ROSINHA

DURVAL
Adeus, Rosinha, é preciso que eu me retire.

ROSINHA
(à parte)
Pois não!

DURVAL
Dá essa caixa a tua ama.

ROSINHA
Vai sempre ao baile com ela?

DURVAL
Ao baile? Então abriste caixa?

ROSINHA
Não vale a pena falar nisso. Já sei, já sei que foi recebido de braços abertos.

DURVAL
Exatamente. Era a ovelha que voltava ao aprisco depois de dois anos de apartamento.

ROSINHA
Já vê que andar longe não é mau. A volta é sempre um triunfo. Use, abuse mesmo da receita. Mas então sempre vai ao baile?

DURVAL
Nada sei de positivo. As mulheres são como os logogrifos. O espírito se perde no meio daquelas combinações...

ROSINHA
Fastidiosas, seja franco.

DURVAL
É um aleive: não é esse o meu pensamento. Contudo devo, parece-me dever crer, que ela irá. Como me alegra, e me entusiasma esta preferência que me dá a bela Sofia!

ROSINHA
Preferência? Há engano: preferir supõe escolha, supõe concorrência...

DURVAL
E então?

ROSINHA
E então, se ela vai ao baile é unicamente pelos seus bonitos olhos, se não fora V. S., ela não ia.

DURVAL
Como é isso?

ROSINHA
(indo ao espelho)
Mire-se neste espelho.

DURVAL
Aqui me tens

ROSINHA
O que vê nele?

DURVAL
Boa pergunta! Vejo-me a mim próprio.

ROSINHA
Pois bem. Está vendo toda a corte da Sra. Sofia, todos os seus adoradores.

DURVAL
Todos! Não é possível. Há dois anos a bela senhora era a flor bafejada por uma legião de zéfiros... Não é possível.

ROSINHA
Parece-me criança! Algum dia os zéfiros foram estacionários? Os zéfiros passam e mais nada. É. o símbolo do amor moderno.

DURVAL
E a flor fica no hastil. Mas as flores duram uma manhã apenas. (severo) Quererás tu dizer que Sofia passou a manhã das flores?

ROSINHA
Ora, isso é loucura. Eu disse isto?

DURVAL
(pondo a bengala junto ao piano)
Parece-me entretanto...

ROSINHA
V. S. tem uma natureza de sensitiva; por outra, toma os recados na escada. Acredite ou não, o que lhe digo é a pura verdade. Não vá pensar que o afirmo assim para conservá-lo junto de mim: estimara mais o contrário.

DURVAL
(sentando-se)
Talvez queiras fazer crer que Sofia é alguma fruta passada, ou jóia esquecida no fundo da gaveta por não estar em moda. Estais enganada. Acabo de vê-la; acho-lhe ainda o mesmo rosto: vinte e oito anos, apenas.

ROSINHA
Acredito.

DURVAL
É ainda a mesma: deliciosa.

ROSINHA
Não sei se ela lhe esconde algum segredo.

DURVAL
Nenhum.

ROSINHA
Pois esconde. Ainda lhe não mostrou a certidão de batismo. (vai sentar-se ao lado oposto)

DURVAL
Rosinha! E depois, que me importa? Ela é ainda aquele querubim do passado. Tem uma cintura... que cintura!

ROSINHA
É verdade. Os meus dedos que o digam!

DURVAL
Hein? E o corado daquelas faces, o alvo daquele colo, o preto daquelas sobrancelhas?

ROSINHA
(levantando-se)
Ilusão! Tudo isso é tabuleta do Desmarais; aquela cabeça passa pelas minhas mãos. É uma beleza de pó de arroz: mais nada.

DURVAL
(levantando-se bruscamente)
Oh! Essa agora!

ROSINHA
(à parte)
A pobre senhora está morta!

DURVAL
Mas, que diabo! Não é um caso de me lastimar; não tenho razão disso. O tempo corre para todos, e portanto a mesma onda nos levou a ambos folhagens da mocidade. E depois eu amo aquela engraçada mulher!

ROSINHA
Reciprocidade; ela também o ama.

DURVAL
(com um grande prazer)
Ah!

ROSINHA
Duas vezes chegou à estação do campo para tomar o wagon, mas duas vezes voltou para casa. Temia algum desastre da maldita estrada de ferro!

DURVAL
Que amor! Só recuou diante da estrada de ferro!

ROSINHA
Eu tenho um livro de notas, donde talvez lhe possa tirar provas do amor da Sra. Sofia. É uma lista cronológica e alfabética dos colibris que por aqui têm esvoaçado.

DURVAL
Abre lá isso então!

ROSINHA
(folheando um livro)
Vou procurar.

DURVAL
Tem aí todas as letras?

ROSINHA
Todas. É pouco agradável para V. S.; mas tem todas desde A até o Z.

DURVAL
Desejara saber quem foi a letra K.

ROSINHA
É fácil; algum alemão.

DURVAL
Ah! Ela também cultiva os alemães?

ROSINHA
Durval é a letra D. — Ah! Ei-lo: (lendo) “Durval, quarenta e oito anos de idade...”

DURVAL
Engano! Não tenho mais de quarenta e seis.

ROSINHA
Mas esta nota foi escrita há dois anos.

DURVAL
Razão demais. Se tenho hoje quarenta e seis, há dois tinha quarenta e quatro... e claro!

ROSINHA
Nada. Há dois anos devia ter cinqüenta.

DURVAL
Esta mulher é um logogrifo!

ROSINHA
V. S. chegou a um período em sua vida em que a mocidade começa a voltar; em cada ano, são doze meses de verdura que voltam como andorinhas na primavera.

DURVAL
Já me cheirava a epigrama. Mas vamos adiante com isso.

ROSINHA
(fechando o livro)
Bom! Já sei onde estão as provas. (vai a uma gaveta e tira dela uma carta) Ouça: — "Querida Amélia...

DURVAL
Que é isso?

ROSINHA
Uma carta da ama a uma sua amiga. "Querida Amélia: o Sr. Durval é um homem interessante, rico, amável, manso como um cordeiro, e submisso como o meu Cupido..." (a Durval) Cupido é um cão d'água que ela tem.

DURVAL
A comparação é grotesca na forma, mas exata no fundo. Continua, rapariga.

ROSINHA
(lendo)
“Acho-lhe contudo alguns defeitos...

DURVAL
Defeitos?

ROSINHA
“Certas maneiras, certos ridículos, pouco espírito, muito falatório, mas afinal um marido com todas as virtudes necessárias...

DURVAL
É demais

ROSINHA
“Quando eu conseguir isso, peço-te que venhas vê-lo como um urso na chácara do Souto.

DURVAL
Um urso!

ROSINHA
(lendo)
"Esquecia-me de dizer-te que o Sr. Durval usa de cabeleira." (fecha a carta)

DURVAL
Cabeleira! É uma calúnia! Uma calúnia atroz! (levando a mão ao meio da cabeça, que está calva) Se eu usasse de cabeleira...

ROSINHA
Tinha cabelos, é claro.

DURVAL
(passeando com agitação)
Cabeleira! E depois fazer-me seu urso como um marido na chácara do Souto.

ROSINHA
(às gargalhadas)
Ah! ah! ah! (vai-se pelo fundo)

Cena VII

DURVAL
(passeando)
É demais! E então quem fala! uma mulher que tem umas faces... Oh! é o cúmulo da impudência! É aquela mulher furta-cor, aquele arco-íris que tem a liberdade de zombar de mim!... (procurando) Rosinha! Ah! foi-se embora... (sentando-se) Oh! Se eu me tivesse conservado na roça, ao menos lá não teria dessas apoquentações!...Aqui na cidade, o prazer é misturado com zangas de acabrunhar o espírito mais superior! Nada! (levanta-se) Decididamente volto para lá... Entretanto, cheguei há pouco... Não sei se deva ir; seria dar cavaco com aquela mulher; e eu... Que fazer? Não sei, deveras!

Cena VIII

DURVAL e BENTO (de paletó, chapéu de palha, sem botas)

BENTO
(mudando a voz)
Para a Sra. Rosinha. (põe o ramalhete sobre a mesa)

DURVAL
Está entregue.

BENTO
(à parte)
Não me conhece! Ainda bem.

DURVAL
Está entregue.

BENTO
Sim, senhor! (sai pelo fundo)

Cena IX

DURVAL
(só, indo buscar o ramalhete)
Ah!ah!flores! A Sra. Rosinha tem quem lhe mande flores! Algum boleeiro estúpido. Estas mulhe res são de um gosto esquisito às vezes! — Mas como isto cheira! Dir-se-ia um presente de fidalgo! (vendo a cartinha) Oh! que é isto? Um bilhete de amores! E como cheira! Não conheço esta letra; o talho é rasga do e firme, como de quem desdenha. (levando a cartinha ao nariz) Essência de violeta, creio eu. É uma planta obscura, que também tem os seus satélites. Todos os têm. Esta cartinha é um belo assunto para uma dissertação filosófica e social. Com efeito: quem diria que esta moça, colocada tão baixo, teria bilhetes perfumados!... (leva ao nariz) Decidida mente é essência de magnólias!

Cena X

ROSINHA (no fundo) DURVAL (no proscênio)

ROSINHA
(consigo)
Muito bem! Lá foi ela visitar a sua amiga no Botafogo. Estou completamente livre. (desce)

DURVAL
(escondendo a carta)
Ah! és tu? Quem te manda destes presentes?

ROSINHA
Mais um. Dê-me a carta.

DURVAL
A carta? É boa! é coisa que não vi.

ROSINHA
Ora não brinque! Devia trazer uma carta. Não vê que um ramalhete de flores é um estafeta mais segu ro do que o correio da corte!

DURVAL
(dando-lhe a carta)
Aqui a tens; não é possível mentir.

ROSINHA
Então! (lê o bilhete)

DURVAL
Quem é o feliz mortal?

ROSINHA
Curioso!

DURVAL
É moço ainda?

ROSINHA
Diga-me: é muito longe daqui a sua roça?

DURVAL
É rico, é bonito?

ROSINHA
Dista muito da última estação?

DURVAL
Não me ouves, Rosinha?

ROSINHA
Se o ouço! É curioso, e vou satisfazer-lhe a curio sidade. É rico, é moço e é bonito. Está satisfeito?

DURVAL
Deveras! E chama-se?...

ROSINHA
Chama-se... Ora eu não me estou confessando!

DURVAL
És encantadora!

ROSINHA
Isso é velho. E o que me dizem os homens e os espelhos. Nem uns nem outros mentem.

DURVAL
Sempre graciosa!

ROSINHA
Se eu o acreditar, arrisca-se a perder a liberda de... tomando uma capa...

DURVAL
De marido, queres dizer (à parte) ou de um urso! (alto) Não tenho medo disso. Bem vês a alta posição... e depois eu prefiro apreciar-te as qualidades de fora. Talvez leve a minha amabilidade a fazer-te um madrigal.

ROSINHA
Ora essa!

DURVAL
Mas, fora com tanto tagarelar! Olha cá! Eu estou disposto a perdoar aquela carta; Sofia vem sempre ao baile?

ROSINHA
Tanto como o imperador dos turcos... Recusa.

DURVAL
Recusa! É o cúmulo da... E por que recusa?

ROSINHA
Eu sei lá! Talvez um nervoso; não sei!

DURVAL
Recusa! Não faz mal... Não quer vir, tanto melhor! Tudo está acabado, Sra. Sofia de Melo! Nem uma atenção ao menos comigo, que vim da roça por sua causa unicamente! Recebe-me com agrado, e depois faz-me destas!

ROSINHA
Boa noite, Sr. Durval.

DURVAL
Não te vás assim; conversemos ainda um pedaço.

ROSINHA
Às onze horas e meia... interessante conversa!

DURVAL
(sentando-se)
Ora que tem isso? Não são horas que fazem a conversa interessante, mas os interlocutores.

ROSINHA
Ora tenha a bondade de não dirigir cumprimentos.

DURVAL
Mal sabes que tens as mãos, como as de uma patrícia romana; parecem calçadas de luva, se é que uma luva pode ter estas veias azuis como rajadas de mármore.

ROSINHA
(à parte)
Ah! Hein!

DURVAL
E esses olhos de Helena!

ROSINHA
Ora!

DURVAL
E estes bravos de Cleópatra!

ROSINHA
(à parte)
Bonito!

DURVAL
Apre! Queres que esgote a história?

ROSINHA
Oh! não!

DURVAL
Então por que se recolhe tão cedo a estrela d'alva?

ROSINHA
Não tenho outra coisa a fazer diante do sol.

DURVAL
Ainda um cumprimento! (vai à caixa de papelão) Olha cá. Sabes o que há aqui? um dominó.

ROSINHA
(aproximando-se)
Cor-de-rosa! Ora vista, há de ficar-lhe bem.

DURVAL
Dizia um célebre grego: dê-me pancadas, mas ouça-me! — Parodio aquele dito: — Ri, graceja, como quiseres, mas hás de escutar-me: (desdobrando o do minó) não achas bonito?

ROSINHA
(aproximando-se)
Oh! decerto!

DURVAL
Parece que foi feito para ti!... É da mesma altura. E como te há de ficar! Ora, experimenta!

ROSINHA
Obrigado.

DURVAL
Ora vamos! experimenta; não custa.

ROSINHA
Vá feito se é só para experimentar.

DURVAL
(vestindo-lhe o dominó)
Primeira manga.

ROSINHA
E segunda! (veste-o de todo)

DURVAL
Delicioso. Mira-te naquele espelho. (Rosinha obedece) Então!

ROSINHA
(passeando)
Fica-me bem?

DURVAL
(seguindo-a)
A matar! a matar! (à parte) A minha vingança começa, Sra. Sofia de melo! (a Rosinha) Estás esplêndida! Deixa dar-te um beijo?

ROSINHA
Tenha mão.

DURVAL
Isso agora é que não tem grata!

ROSINHA
Em que oceano de fitas e de sedas estou mergulhada! (dá meia-noite) Meia-noite!

DURVAL
Meia-noite!

ROSINHA
Vou tirar o dominó... é pena!

DURVAL
Qual tirá-lo! Fica com ele. (pega no chapéu e nas luvas)

ROSINHA
Não é possível.

DURVAL
Vamos ao baile mascarado.

ROSINHA
(à parte)
Enfim. (alto) Infelizmente não posso.

DURVAL
Não pode? e então por quê?

ROSINHA
É segredo.

DURVAL
Recusas? Não sabes o que é um baile. Vais ficar extasiada. E um mundo fantástico, ébrio, movediço, que corre, que salta, que ri, em um turbilhão de harmonias extravagantes!

ROSINHA
Não posso ir. (batem à porta) [à parte] É Bento.

DURVAL
Quem será?

ROSINHA
Não sei. (indo ao fundo) Quem bate?

BENTO
(fora com a voz contrafeita)
O hidalgo Don Alonso da Sylveira y Zorrilla y Guclines y Guatinara y Marouflas de la Vega !

DURVAL
(Assustado)
É um batalhão que temos à porta! A Espanha muda-se para cá?

ROSINHA
Caluda! Não sabe quem está ali? É um fidalgo da primeira nobreza de Espanha. Fala à rainha de chapéu na cabeça.

DURVAL
E que quer ele?

ROSINHA
A resposta daquele ramalhete.

DURVAL
(dando um pulo)
Ah! Foi ele...

ROSINHA
Silêncio!

BENTO
(fora)
É meia-noite. O baile vai começar.

ROSINHA
Espere um momento.

DURVAL
Que espere! Mando-o embora. (à parte) É um fidalgo!

ROSINHA
Mandá-lo embora? Pelo contrário; vou mudar de dominó e partir com ele.

DURVAL
Não, não; não faças isso!

BENTO
(fora)
É meio-noite e cinco minutos. Abre a porta a quem deve ser teu marido.

DURVAL
Teu marido!

ROSINHA
E então!

BENTO
Abre! abre!

DURVAL
É demais! Estás com o meu dominó... hás de ir comigo ao baile!

ROSINHA
Não é possível; não se trata a um fidalgo espanhol como a um cão. Devo ir com ele.

DURVAL
Não quero que vás.

ROSINHA
Hei de ir.(dispõe-se a tirar o dominó) Tome lá...

DURVAL
(impedindo-a)
Rosinha, ele é um espanhol, e além de espanhol, fidalgo. Repara que é uma dupla cruz com que tens de carregar.

ROSINHA
Qual cruz! E não se casa ele comigo?

DURVAL
Não caias nessa!

BENTO
(fora)
Meia-noite e dez minutos! então vem ou não vem?

ROSINHA
Lá vou. (a Durval) Vê como se impacienta! Tudo aquilo é amor!

DURVAL
(com explosão)
Amor! E se eu te desse em troca daquele amor castelhano, um amor brasileiro ardente e apaixona do? Sim, eu te amo, Rosinha; deixa esse espanhol tresloucado!

ROSINHA
Sr. Durval!

DURVAL
Então, decide!

ROSINHA
Não grite! Aquilo é mais forte do que um tigre de Bengala.

DURVAL
Deixa-o; eu matei as onças do Maranhão e já estou acostumado com esses animais. Então? Vamos! Eis-me a teus pés, ofereço-te a minha mão e a minha fortuna!

ROSINHA
(à parte)
Ah... (alto) Mas o fidalgo?

BENTO
(fora)
É meia-noite e doze minutos!

DURVAL
Manda-o embora, ou senão, espera. (levanta-se) Vou matá-lo; é o meio mais pronto.

ROSINHA
Não, não; evitemos a morte. Para não ver correr sangue, aceito a sua proposta.

DURVAL
(com regozijo)
Venci o castelhano! É um magnífico triunfo! Vem, minha bela; o baile nos espera!

ROSINHA
Vamos. Mas repare na enormidade do sacrifício.

DURVAL
Serás compensada, Rosinha. Que linda peça de entrada! (à parte) São dois os enganados — o fidalgo e Sofia (alto) Ah! ah! ah!

ROSINHA
(rindo também)
Ah! Ah! Ah! (à parte) Eis-me vingada!

DURVAL
Silêncio! (vão pé ante pela porta da esquerda. Sai Rosinha primeiro, e Durval, da soleira da porta para a porta do fundo, a rir às gargalhadas)

Cena última

BENTO
(abrindo a porta do fundo)
Ninguém mais! Desempenhei o meu papel: estou contente! Aquela subiu um degrau na sociedade. Deverei ficar assim? Alguma baronesa não me desdenharia decerto. Virei mais tarde. Por enquanto, vou abrir a portinhola. (vai a sair e cai o pano)

FIM

Fonte:
Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Trova XXII

Emilia Pardo Bazán (Oito Nozes)



Ela escreveu todos os gêneros, num total de quase cinqüenta títulos, mas ficou conhecida como contista: durante anos, escrevia uma média de um conto por semana, textos que eram disputados por periódicos do Espanha e da América Hispânica. De origem aristocrata, chegou a catedrática de Literatura Comparada da Universidade de Madri, mas, por ser mulher, não conseguiu ingressar na Academia Espanhola. Junto com Sexta-feira Santa e Neto de Cid, este Oito Nozes é considerado um dos seus melhores contos, com situações cotidianas e personagens comuns de uma aldeia ao Norte da Espanha.
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Todas as noites depois do jantar o senhor das Baceleiras recebia em sua desconjuntada mesa da sala seus fiéis parceiros de jogo; o médico, Dr. Juan da Mata; o padre, Padre Serafim; e o mestre-escola, Sr. Dionísio. Chegavam os três ao mesmo tempo e saudavam-no com idênticas palavras, viravam o mesmo cálice de vinho que D. Ramón das Baceleiras lhes oferecia. E limpavam a boca com as costas da mão, à falta de guardanapos. Em seguida, Padre Serafim, que era serviçal e hábil, acendia as velas, não sem antes arrumar o pavio com a espevitadeira prateada, e até às dez e meia disputavam, eles quatro, o ganho de alguns centavos. A essa hora os jogadores apanhavam sala de entrada os tamancos, se a noite era chuvosa ou havia lodo nos caminhos esburacados, e dirigia-se cada qual pacificamente para seu canto.

Duravam cinco anos estes encontros para o mais inofensivo dos passatempos, e já eram o único prazer do velho e bolorento senhor da aldeia, que passava a metade da vida pregado em sua poltrona pela gota e pelo reumatismo. Aquelas horinhas de jogo e de bate-papo davam algum interesse ao dia, que deslizava lento, interminável, prolongado pela solidão, pela quietude dominante e pelo tédio da velhice sem família, sem obrigações e sem ter o que fazer. Os três homens que vinham jogar com D. Ramón não eram nem sábios nem eloqüentes no dedo de prosa, e nem sequer estavam a par do que ia pelo mundo; mas mesmo assim traziam notícias, boatos, opiniões, brincadeiras, manias e humorismo deste ou daquele; o Dr. Juan da Mata, por sua profissão, recolhia aqui e ali a crônica do lugar, o mexerico das pessoas de roupa simples e das de jaquetas de rico - que o têm, e muito picante; o Padre Serafim se encarregava da política maior, porque lia o "Correio espanhol" e estava a par dos pensamentos do Czar da Rússia e do imperador da Áustria; e quanto ao Sr. Dionísio, ele discordava enfaticamente do divino e do humano, e pelas malditas eleições conhecia de cor e salteado a política local. O senhor das Baceleiras tomava parte na conversa, tão à vontade que seus pareceres eram ouvidos com respeito pelos três companheiros, habituados a nele ver o senhor - um ser superior, pois que nada fazia e vivia de rendas.

O senhor de Baceleiras era dono de muitas terras na aldeia e arredores. Se é verdade que se nasce proprietário, e que o instinto de conservação e defesa do adquirido é tão forte quanto a morte, desde os primitivos alvores do mundo, este instinto em ninguém se revelou mais vigoroso, nem arraigou-se com mais profundas raízes do que em D. Ramón. Amava com exagero e defendia com raiva a sua propriedade, como se tivesse uma prole considerável a quem transmiti-la e não estivesse, pelo inexorável decreto dos anos, prestes a deixar tudo o que tinha para a alegria de uns sobrinhos que viviam em Mondoñedo e não tinham visto o tio nem uma só vez na vida. Apesar de que o momento em que se abandona a fazenda com a vida se aproximava, D. Ramón, sempre que a gota e a maldita perna permitiam, saía para examinar suas fazendas mais próximas, ver como o milho espigava, como a grama havia agradecido à rega, se os pinheiros medravam e se a nogueira estava mais carregada do que no ano anterior.

O dono tinha posto seus olhos e coração nesta nogueira. Árvore como aquela não se encontrava num raio de quilômetros. Crescia o formoso exemplar à beira do caminho, em frente à taipa da casa dos Baceleiras e nas imediações de uma quinta semeada de batatas pertencente ao Dr. Juan da Mata, o médico. Por que, sendo a quinta do médico, o limite e a árvore eram de D. Ramón? Que o verifique quem conseguir desenrolar o inextricável emaranhado da subdividida propriedade rural galega.

Ora, o caso foi que uma certa manhã, uma manhãzinha radiante de outubro em que tudo no campo era paz e sossego, o senhor das Baceleiras, arrastando a perna mas cheio de ânimo, parou diante da nogueira e deslumbrou-se ao vê-la tão carregada de frutos. Em certos galhos ao sol do meio-dia, viam-se mais nozes do que folhas, e sobre a erva que amaciava o limite de D. Ramón, algumas nozes já caídas, gordas e luzentes. Tentado esteve a apanhá-las, mas não o fez, por causa da perna. "Alberto me trará essas nozes mais tarde", pensou; e chegando em casa ordenou ao criado, satisfeito:

- Hoje no jantar, sobremesa de nozes frescas.

E como no jantar as nozes não apareceram, ele interpelou Alberto. Alberto respondeu que foi apanhar as nozes caídas, mas não encontrou nenhuma no chão.

- Mas como se eu mesmo vi as nozes, e elas eram pelo menos uma dúzia! desabafou, desanimado, o senhor de Baceleiras.

- Pois então as crianças devem ter apanhado... - respondeu Alberto, com a satisfação velhaca dos camponeses quando acontecem coisas que contrariam seus amos.

À hora do voltarete, o primeiro a chegar foi D. Juan da Mata. Ao entrar tirou um embrulho do bolso de sua velha jaqueta.

- Nozes frescas - murmurou ele com um sorriso triunfal, oferecendo a dádiva ao senhor, que ficou gelado.

- Nozes frescas! - murmurou. - E colheu-as de qual nogueira?

- Da nossa - reagiu o médico com a maior fleuma, colocando-as num prato, pois elas já vinham limpas e descascadas.

- Da nossa? Nossa qual, pode me dizer?

- Essa é boa! O Sr. D. Ramón não a conhece! Da grande, aquela do caminho... a que me faz sombra à plantação de batatas... e até que chega a prejudicá-las.

- Mas Dr. Juan, essa nogueira.... é tão sua quanto do Papa. Essa nogueira não é de outra pessoa que não esta aqui que está falando consigo.

Caiu das nuvens o Dr. Juan da Mata ao escutar aquelas frases e o tom em que elas eram ditas. Era um velhinho seco como bacalhau, ágil e conservado por milagre, a despeito dos seus muitos anos, grande andarilho, carinhoso e sensível, embora gasto e contido à sua maneira; e o tom inesperado de D. Ramón sugeriu-lhe esta resposta ferina:

- Quer dizer que eu roubei as nozes que nem eram minhas? Então não é meu o que cai na minha propriedade, em cima das minhas batatas? Quer dizer que eu sou um ladrão?

Existe um ditado árabe muito sábio, evangelho do laconismo, que reza assim: "Antes de falar, a língua dá quatro voltas na boca." D. Ramón, para azar seu, esqueceu-se do provérbio naquela hora, se é que o conhecia, coisa que não posso afirmar; e dando rédeas à impaciência e à irritação, respondeu com o ar mais agressivo do mundo:

- O senhor pode me dizer como se chama alguém que se apodera do alheio sem o consentimento do dono? As nozes não eram suas; portanto, tire sua própria conclusão.

- Dr. Juan da Mata recalcitrou e, levantando-se num ímpeto e jogando as nozes, não na cara, mas na barriga e nas pernas de D. Ramón, gritou fora de si:

- Pois fique com essa porcaria das suas oito nozes... Que raios me partam se eu voltar alguma vez a pôr os pés onde me tratam de ladrão, seu... alma danada! Fique com Judas e que só venham aqui seus escravos, que eu sou uma pessoa tão decente quanto o senhor!

Ao sair como um foguete, o médico se encontrou na escada de pedra com o Sr. Dionísio, o mestre-escola, a quem contou o que acabara de acontecer, gaguejando de raiva.

O mestre-escola entrou no refeitório com cara muito comprida, guardando um silêncio diplomático, a princípio. Mas D. Ramón deu logo vazão ao seu mau humor, contando-lhe o caso, e qual não foi a sua surpresa ao constatar que o Sr. Dionísio, com argumentações pedantes e desatinadas, e com argúcias e circunlóquios, vinha a dar toda a razão ao médico.

- Em meu humilde e meio eclipsado ponto de vista, desde logo - dizia o Sr. Dionísio, apertando os lábios - tenho de me inclinar a reconhecer que, se a terra ou a propriedade onde as nozes foram apresadas ou colhidas pertenciam por justa causa ao Dr. Juan da Mata, pois ele era respectiva e colegamente dono dos frutos.

Ao notar D. Ramón que também o mestre-escola o contradizia, fico mais bravo e novas palavras imprudentes emitiu ele:

- Como? Então o Dr. Juan estava lá no seu direito? Pois vamos ver como sustenta ele este argumento perante os tribunais, caramba, vamos ver! Para mim, aqueles que defendem um ladrão de sua casta são.

Sr. Dionísio enrubesceu. Toda a dignidade profissional subiu-lhe com o ao rosto e, com a língua emperrada de pura indignação, conseguiu balbuciar-.

- Mais... devagar... mais... devagar... Modere-se, meu senhor... Eu me retiro desta casa!

O padre, que cruzava a porta quando o mestre-escola ia saindo, encontrou o fidalgo chispando e rugindo como cratera de vulcão em plena ebulição. Que logo no dia seguinte iria interpor uma acusação judicial, e o médico que se virasse, pois que iria dar com os costados na cadeia! Frente ao arrebatamento do fidalgo, o Padre Serafim, excelente homem, um santo varão em toda a extensão da palavra, mas desses que, como se diz, vivem no mundo da lua, caiu na tolice de pespegar ao furibundo D. Ramón uns textos ascéticos e morais que tinham tanto a ver com as nozes como com as estrelas no céu; e os nervos já esticados do senhor - que era do tipo colérico, defeito de quase todos que sofrem de gota por terem o sangue muito ácido - simplesmente não suportaram o sermão do pároco. Desatinado e cego, D. Ramón tomou de seu cajado semimuleta e levantou-o contra o pregador, que, espavorido, saiu escada abaixo como um foguete, oferecendo aquele transe a Deus em resgate de suas culpas...

E assim acabou e se dissolveu, como sal na água, a tradicional partida de voltarete de D. Ramón das Baceleiras. Mas não acaba aqui a história das oito nozes, que mais não eram as que, despojadas da casaca verde e partidas para maior facilidade de comê-las, em má hora presenteou o médico.

Irritado mais ainda pelo aborrecimento de ter passado a noite inteira sozinho, e desejoso de vingança, D. Ramón entrou no dia seguinte com a acusação judicial contra o Dr. Juan da Mata, por motivo de roubo dos frutos. O médico suportou com brio a iniciativa; advogados e procuradores foram consultados; não houve acordo no julgamento e a cúria de Brigâncio apoderou-se do assunto e fez o fidalgo gastar um despropósito de dinheiro durante os anos que durou a pendenga: milhares de pesetas suficientes para carregar de nozes um par de navios. E como o despeito e o pesar do fastio e da solidão produzissem em D. Ramón um ataque de gota mais forte dos que lhe eram comuns, e tivesse ele de chamar o Dr. Juan da Mata para lhe atender, este se negou, alegando que poderiam imputar-lhe a morte do seu adversário e inimigo. Com a falta do socorro oportuno, o fidalgo piorou e terminou entregando a alma muitíssimo a contragosto. O ano de sua morte foi de grande alegria para os meninos herdeiros da aldeia que comeram toda a colheita da venerável nogueira.

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Emilia Pardo Barzón (1851 – 1921)

Tradução José Feldman
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Emilia Pardo Bazán, condessa de Pardo Bazán, (Corunha, 16 de setembro de 1851 — Madrid, 12 de maio de 1921) foi uma escritora e nobre espanhola.

Conjugou realismo e naturalismo na sua literatura. Mulher de grande peso intelectual, tocou muitos gêneros literários desde a novela até ao ensaio, passando pelos livros de viagens. Foi das primeiras espanholas a mostrar-se ativa no campo dos direitos da mulher. O seu cosmopolitismo assentou sobre uma intensa vinculação à sua cidade natal.
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Emilia Pardo Bazán nasceu em 16 de setembro de 1851 na Coruña , uma das cidades principais de Galicia, España. Seu pai, Don José Pardo Bazán, era uma figura política. Estimulava a leitura e os estudos em sua filha Emilia. Sua mãe, Amalia de la Rúa lhe ensinou a ler e mais tarde lhe ajudaria a livrar-se de muitas tarefas domésticas para que Emília pudesse dedicar mais tempo a leitura e à escrita. Pouco depois do nascimento de Emília, a família havia se mudado para uma casa em um bairro aristocrático e tranquilo na Calle de las Tabernas. Possuiam outras duas residencias, uma perto de Sangenjo, um povoado de pescadores e a outra na zona rural de La Coruña, o Pazo de Meirás, que foi residencia boa parte do verão do ditador Franco.

A biblioteca de seu pai lhe proporcionava o acesso a uma grande variedade de leituras. Na casa de Sangenjo encontrou Don Quixote e a Bíblia. Na casa de La Coruña leu a conquista de México de Solís e Homens ilustres de Plutarco. Os livros sobre a revolução francesa lhe fascinavam e seus preferidos eram Don Quixote, a Bíblia e A Ilíada.

Aos nove anos, Emilia começa a demonstrar interesse pela escrita. Ela mesmo recorda, “Minha primeira lembrança literária remonta a uma data histórica assinalada e já distante: o término da Guerra da África, acontecimento que rendeu o início de minha inspiração… e vendo que não me faziam caso algum, nem tinha com quem desafogar o meu entusiasmo, me refugiei em minha casa e garatujei meus primeiros versos."

Na adolescência escreveu mais versos e os publicou no Almanaque de Soto Freire.

Quando a família ia a Madrid durante os invernos, Emília frequentava um colégio francês protegido pela Casa Real, onde foi introduzida a obra literária de La Fontaine e Racine. Aos doze anos, a família decide ir a La Coruña durante os invernos y alí Emilia estuda com professores particulares. Sai do ritual da educação feminina ao negar-se a tocar piano e aprender música. Dedica todo o tempo possível a sua verdadeira paixão, a leitura.

Em 1868, ano da revolução que acabaría com o reinado de Isabel II, se casa aos 17 anos com José Quiroga. Viveram em Santiago entre o inverno de 68 e 69; Emilia ajudava seu marido con seus estudos de direito. Quando o pai foi nomeado Deputado de Cortes, toda a familia se muda para Madrid, inclusive seu marido.

Em Madrid assistem a concertos e a festas populares e Emilia chega a conhecer a cidade e o ambiente madrileno. Após a investida de Amadeo de Saboya e a guerra carlista, José Pardo Bazán se desiludiu com a política e toda família foi para a França. Viajaram por Europa-Inglaterra, Italia, Alemanha... donde Emilia aprende inglês e alemão. Ademais, descobre a literatura francesa que deixar um grande impacto nela.

Seu inicio no mundo literário começa em 1876 ao ganhar o primeiro prêmio pelo Estudo crítico de Feijoo. Neste mesmo ano dá a luz o seu primeiro filho, a quem lhe dedica um livro de poemas., com seu próprio nome, Jaime, que resultaria ser seu único livro de poesia.

Escreveu sua primeira novela, Pascual López, no ano que nasceu seu segundo filho, Blanca. Uma doença hepática em 1880 obrigou a escritora a ´passar algum tempo em Vicky. Durante este período descobre o naturalismo de Zola, conhece pessoalmente Victor Hugo e começa a interessar-se nesta nova tendência literária.

O periódico madrilenho, "La época" publica “Uma viagem de Noivos”, que era um relato novelesco de suas próprias memórias da viagem à Vicky. Sua última filha, Carmen, nasce em 1881.

Naturalismo

No periódico madrilenho mencionado acima publica alguns artigos que haveriam de integrar-se no livro A Questão Palpitante, no qual explica o movimento literário do naturalismo. Seu propósito era o seguinte: "Meu objetivo era dizer algo, em forma clara e amena, sobre o realismo e ol naturalismo, coisas que se falava muito, mas com rapidez e sem que nada houvesse tratado o propósito do assunto....Sempre me surpreenderá o extraordinario dinamismo daquele libreto tratando ao correr da pena, no que o único previsto é a impremeditacão e espontaneidade, que procurei dedicar-lhe em todo sabor didático."

A publicação de A Questão Palpitante criou um grande escândalo e seu marido, horrorizado pela situação exigiu que Emília parasse de escrever e que se retrata-se publicamente sobre seus escritos. Em consequência destes problemas matrimoniais, decide separar-se de seu marido dois anos mais tarde, em 1884. Neste ano publicou A Jovem Ama, que trata sobre crises matrimoniais.

Sua terceira novela, La Tribuna, publicada em 1882 é considerada como sua primeira obra naturalista. Nesta obra, Emília estuda o ambiente e os tipos de cigarreiras na fábrica de tabacos em La Coruña. Benito Pérez Galdós também obteve informação documentada sobre a mendicância madrilenha para sua obra Misericordia. Estes dois escritores tiveram uma relação amorosa que durou mais de vinte anos.

Em 1886 conheceu Zola e nessa viagem à França descobre a moderna novela russa. Essas leituras lhe impulsionam a apresentar no Ateneu de Madrid um trabalho sobre a revolução e a novela na Rússia, em 1887.

Continua escrevendo continuamente e nos anos '86 e '87 produz os Os Paços de Ulloa e A Mãe Natureza..

Em 1890 morre seu pai e aproveita a herança para criar uma revista escrita somente por ela, El Nuevo Teatro Crítico, nome que recorda a obra de Feijoo, Teatro crítico universal.

Assiste a congressos como o Congresso Pedagógico onde denuncia a desigualdade educativa entre o homem e a mulher. Ainda que consciente da discriminação sexual dentro dos círculos intelectuais, propõe a Concepción Arenal (escritora feminista), à Academia Real de Letras, mas é rechaçada. A Academia tampouco aceitaria a Gertrudis Gómez de la Avellaneda nem ela.

Contudo, em 1906 chegou a ser a primeira mulher a presidir a Seção de Literatura do Ateneu de Madrid e a primeira em ocupar uma cadeira de literatura na Universidad Central de Madrid, ainda que só teve um estudante na aula.

Morreu em 12 de maio de 1921, em Madrid.
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Fonte:
Michigan State University

Paulo Corrêa Lopes (Um crime)



Não sei como vim parar nesta pensão. Creio que na tarde em que me mudei estava fora de mim. Não é possível que me acontecesse uma coisa dessas no meu estado normal. Teria bebido? Não acredito. Faz seis anos que não ponho uma gota de álcool na boca. A última vez que bebi dei um escândalo tão grande em casa de um industrial que até hoje sinto calafrios quando me lembro do sucedido.

Quando me embriagava gostava de visitar os conhecidos. Invadia-me uma onda de ternura tão poderosa que não podia me dominar. Tinha que procurar alguém para desabafar. Nesses momentos via tudo envolto em cores róseos. Mas voltemos à casa do industrial. Quando entrei no salão, havia tanta gente e tantas luzes que o meu primeiro ímpeto foi retroceder. Mas já era tarde. O industrial me acenava, com a face risonha, do meio do salão. Estava demasiado feliz para reparar no meu estado.

Quando caminhei em direção do meu amigo, um vulto estranho, com a roupa em desalinho, o cabelo em desordem, estacou diante de mim, com um rictus amargo no canto da boca. Ergui os braços e o vulto também ergueu os braços. Recuei e o vulto imitou o meu gesto. Desconcertado, avancei e dei um soco violento no rosto do meu antagonista e ouviu-se o ruído de cristal que se parte. Ainda com a mão gotejante, retrocedi e ganhei a rua, perdendo-me na escuridão que era profunda.

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Que faço nesta pensão sórdida? Ainda há pouco minha vizinha gritou tanto que parecia estar sendo estrangulada. As vitrolas não me deixam repousar. Preciso dormir, preciso afogar no sono esta lembrança terrível. Por toda a parte o barulho, sempre o barulho. Por que será que os homens procuram se atordoar? Ninguém suporta um minuto de solidão. Parece que todos têm medo de alguma coisa que vai acontecer.

Só neste quarto, escuto o rumor confuso que o vento faz nas árvores. E o rumor do vento me leva novamente para um passado monstruoso. Eu queria esquecer a tragédia e o vento desperta tudo aquilo que eu supunha sepultado no fundo do coração. Por que matei Lídia? Minhas mãos foram apertando, apertando num crescendo doido e quando afrouxei os dedos, um pescoço muito roxo ficou inerte sobre a alvura do lençol. Não porque ainda me lembro da cor do lençol. Talvez o contraste. E foram estas mãos, que um dia se uniram no fervor de uma prece, que estrangularam aquela inocente criança. A sensação de ter matado uma criança aumenta ainda mais a minha desventura. Lídia era uma criança. Tinha o jeito ingênuo de uma criança, E eu que me revoltei contra Otelo, que chorei a morte de Desdêmona como um louco! Ah! como a gente nunca se conhece! Um futuro santo pode estar sorrindo diante do martírio de um Estevão e um futuro criminoso pode estar ajoelhado diante do cadáver de uma criança!

Há quantos dias penso em Lídia! Sua voz era um canto de andorinha. Era uma andorinha que havia perdido a memória de outras regiões e que estava resolvida a esperar o inverno no aconchego de nosso lar. Pobre Lídia! Teria sido Iago o culpado? Creio que nem no inferno há lugar para Iago. A sombra de Iago tapou a luz do sol. Não há mais sol, não há mais luz no mundo. Tudo vai morrer. Minhas mãos estão apertando, apertando, apertando...

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Vesti hoje a última camisa limpa. Há duas semanas que estou dentro deste quarto e ainda não tive coragem de faze a barba. O espelho já não reflete o rosto escanhoado do jovem que gostava de se contemplar por alguns momentos todas as manhãs. Quantas vezes, ainda deitada, Lídia não me disse, com doce ironia, que seus olhos eram um espelho mais fiel que todos os espelhos. Ah! os olhos de Lídia! Mil anos que eu viva não conseguirei esquecer o seu terror quando minhas mãos se crisparam no seu pescoço fino. Parece que suas palavras saíam crivadas de punhais. Cada palavra era um pássaro em revoada alucinante pelo quarto. Só hoje compreendo o sentido do seu grito. Ela gritava por mim. Não era o medo da morte, era o seu amor chorando por mim. Um amor imenso que talvez ainda peça por mim aos pés de Cristo. Se eu pudesse acreditar de novo! Por que não pude perseverar? Como agora compreendo esta passagem: Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos.

Por que não rezei dia e noite para perseverar? Quando falta a oração tudo está perdido.

Fio num domingo de ramos que conheci Lídia. Saía da igreja do Rosário com um sorriso de luz nos olhos. Era toda uma promessa de amor. Como estava linda com aquela rosa muito vermelha na lapela! Quem comparou pela primeira vez a mulher a uma rosa por certo teve a intuição de Lídia naquela manhã.

Domingo de Ramos. Palmas bentas. O Senhor vai entrando em Jerusalém. Por que não clamei as glórias do Senhor? Porque deixei que as pedras falassem por mim?

Lídia, as minhas mãos é que foram mortas. Tu continuas viva, "os meus olhos são mais fiéis que todos os espelhos" parece que estou ouvindo de tua boca, de teus olhos.

Não sei o que pensam de mim nesta pensão. Um maníaco, um misantropo, sei lá. Ontem surpreendi uma nota de ironia na voz da camareira

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De onde vens envolta neste raio de lua? Vens do inferno ou do céu? Não podes ser uma ilusão dos meus sentidos. Vejo no teu pescoço a marca dos meus dedos. Espera. Não te vás. Espera ao menos um minuto. Num minuto a gente pode construir ou destruir um mundo. Eu já tive a tua mocidade nos meus braços. Os teus olhos já foram meus. Como tudo era belo visto através dos teus olhos! Como a vida cantava em teu olhar! Agora que te perdi para sempre, tenho necessidade de tua presença. Ouve. Nem sei como nasceu o meu amor por ti. Quando percebi tinhas tomado de assalto minha vida. Os teus passo não fizeram rumor. Subiste a escada silenciosa como um fantasma. Abriste a porta de minha alma e entraste. Quando despertei estava nos teus braços. Foi assim que tomaste conta de mim. Espera um minuto ao menos. Não te dissipes, visão de amor. Ainda não te disse tudo. Quero confessar tudo. Meus pensamentos se atropelam como recrutas. Estou como alguém que subisse e descesse eternamente a mesma escada. Será que a loucura começa assim? Espera. Não te vás. Há de chegar o momento em que compreenderás. A porta há de se abrir. Espera, por piedade! Que é isso? Uma coisa me dói aqui dentro, aqui bem no coração. Não te vás, Lídia, espera... espera...

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"Tu podes, senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Por que este verso de Claudel despertou dentro de mim? Então é tão imperiosa assim a necessidade de amor em Deus? Recordo-me: no dia em que tive que ficar face a face com Cristo, recuei. Não tive coragem de suavizar as suas chagas com a minha renúncia total das coisas do mundo. Cristo quer de nós um amor absoluto. Quem puser a mão no arado, não deve olhar para trás. Deve olhar para as cinco chagas de Cristo. Em cada chaga cabe toda a nossa miséria, toda a nossa ignomínia.

Outra teria sido a minha vida, se eu não me tivesse acovardado diante das primeiras dificuldades. Lídia muitas vezes teve que lutar comigo para eu não perder a missa, Um amolecimento, um desencanto havia tomado conta de mim, nos últimos tempos. Faltava-me entusiasmo. Às vezes, a simples presença de um sacerdote acordava em mim um mal-estar horrível. Cada padre era um testemunho vivo de que se pode viver em conformidade com os mandamentos de Deus. Cada sacerdote era uma humilhação para meu fracasso. Tentei lutar. Ensangüentei as minhas mãos nas rochas. Ondas enormes, porém, arrastaram-me para o abismo.

"Tudo podes, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Que é o amor? Será que o amor também morre como morre uma coisa viva?! Se eu pudesse reconquistar o amor perdido!

Lídia, por que não despertas e não gritas ao mundo que estás viva, que tudo não foi um pesadelo? Minhas mãos queimam e eu não sei se terei forças para reparar o mal que fiz. Sinto que é preciso reparar. Arrastarei pelo mundo minha miséria, beijarei a chaga dos morféticos, comerei o resto dos mendigos.

"Tudo pode, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Conceda-me, Senhor, amor para Te amar, amor para morrer!

Fonte:
Revista de Contos