terça-feira, 16 de junho de 2009

Paulo Corrêa Lopes (Um crime)



Não sei como vim parar nesta pensão. Creio que na tarde em que me mudei estava fora de mim. Não é possível que me acontecesse uma coisa dessas no meu estado normal. Teria bebido? Não acredito. Faz seis anos que não ponho uma gota de álcool na boca. A última vez que bebi dei um escândalo tão grande em casa de um industrial que até hoje sinto calafrios quando me lembro do sucedido.

Quando me embriagava gostava de visitar os conhecidos. Invadia-me uma onda de ternura tão poderosa que não podia me dominar. Tinha que procurar alguém para desabafar. Nesses momentos via tudo envolto em cores róseos. Mas voltemos à casa do industrial. Quando entrei no salão, havia tanta gente e tantas luzes que o meu primeiro ímpeto foi retroceder. Mas já era tarde. O industrial me acenava, com a face risonha, do meio do salão. Estava demasiado feliz para reparar no meu estado.

Quando caminhei em direção do meu amigo, um vulto estranho, com a roupa em desalinho, o cabelo em desordem, estacou diante de mim, com um rictus amargo no canto da boca. Ergui os braços e o vulto também ergueu os braços. Recuei e o vulto imitou o meu gesto. Desconcertado, avancei e dei um soco violento no rosto do meu antagonista e ouviu-se o ruído de cristal que se parte. Ainda com a mão gotejante, retrocedi e ganhei a rua, perdendo-me na escuridão que era profunda.

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Que faço nesta pensão sórdida? Ainda há pouco minha vizinha gritou tanto que parecia estar sendo estrangulada. As vitrolas não me deixam repousar. Preciso dormir, preciso afogar no sono esta lembrança terrível. Por toda a parte o barulho, sempre o barulho. Por que será que os homens procuram se atordoar? Ninguém suporta um minuto de solidão. Parece que todos têm medo de alguma coisa que vai acontecer.

Só neste quarto, escuto o rumor confuso que o vento faz nas árvores. E o rumor do vento me leva novamente para um passado monstruoso. Eu queria esquecer a tragédia e o vento desperta tudo aquilo que eu supunha sepultado no fundo do coração. Por que matei Lídia? Minhas mãos foram apertando, apertando num crescendo doido e quando afrouxei os dedos, um pescoço muito roxo ficou inerte sobre a alvura do lençol. Não porque ainda me lembro da cor do lençol. Talvez o contraste. E foram estas mãos, que um dia se uniram no fervor de uma prece, que estrangularam aquela inocente criança. A sensação de ter matado uma criança aumenta ainda mais a minha desventura. Lídia era uma criança. Tinha o jeito ingênuo de uma criança, E eu que me revoltei contra Otelo, que chorei a morte de Desdêmona como um louco! Ah! como a gente nunca se conhece! Um futuro santo pode estar sorrindo diante do martírio de um Estevão e um futuro criminoso pode estar ajoelhado diante do cadáver de uma criança!

Há quantos dias penso em Lídia! Sua voz era um canto de andorinha. Era uma andorinha que havia perdido a memória de outras regiões e que estava resolvida a esperar o inverno no aconchego de nosso lar. Pobre Lídia! Teria sido Iago o culpado? Creio que nem no inferno há lugar para Iago. A sombra de Iago tapou a luz do sol. Não há mais sol, não há mais luz no mundo. Tudo vai morrer. Minhas mãos estão apertando, apertando, apertando...

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Vesti hoje a última camisa limpa. Há duas semanas que estou dentro deste quarto e ainda não tive coragem de faze a barba. O espelho já não reflete o rosto escanhoado do jovem que gostava de se contemplar por alguns momentos todas as manhãs. Quantas vezes, ainda deitada, Lídia não me disse, com doce ironia, que seus olhos eram um espelho mais fiel que todos os espelhos. Ah! os olhos de Lídia! Mil anos que eu viva não conseguirei esquecer o seu terror quando minhas mãos se crisparam no seu pescoço fino. Parece que suas palavras saíam crivadas de punhais. Cada palavra era um pássaro em revoada alucinante pelo quarto. Só hoje compreendo o sentido do seu grito. Ela gritava por mim. Não era o medo da morte, era o seu amor chorando por mim. Um amor imenso que talvez ainda peça por mim aos pés de Cristo. Se eu pudesse acreditar de novo! Por que não pude perseverar? Como agora compreendo esta passagem: Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos.

Por que não rezei dia e noite para perseverar? Quando falta a oração tudo está perdido.

Fio num domingo de ramos que conheci Lídia. Saía da igreja do Rosário com um sorriso de luz nos olhos. Era toda uma promessa de amor. Como estava linda com aquela rosa muito vermelha na lapela! Quem comparou pela primeira vez a mulher a uma rosa por certo teve a intuição de Lídia naquela manhã.

Domingo de Ramos. Palmas bentas. O Senhor vai entrando em Jerusalém. Por que não clamei as glórias do Senhor? Porque deixei que as pedras falassem por mim?

Lídia, as minhas mãos é que foram mortas. Tu continuas viva, "os meus olhos são mais fiéis que todos os espelhos" parece que estou ouvindo de tua boca, de teus olhos.

Não sei o que pensam de mim nesta pensão. Um maníaco, um misantropo, sei lá. Ontem surpreendi uma nota de ironia na voz da camareira

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De onde vens envolta neste raio de lua? Vens do inferno ou do céu? Não podes ser uma ilusão dos meus sentidos. Vejo no teu pescoço a marca dos meus dedos. Espera. Não te vás. Espera ao menos um minuto. Num minuto a gente pode construir ou destruir um mundo. Eu já tive a tua mocidade nos meus braços. Os teus olhos já foram meus. Como tudo era belo visto através dos teus olhos! Como a vida cantava em teu olhar! Agora que te perdi para sempre, tenho necessidade de tua presença. Ouve. Nem sei como nasceu o meu amor por ti. Quando percebi tinhas tomado de assalto minha vida. Os teus passo não fizeram rumor. Subiste a escada silenciosa como um fantasma. Abriste a porta de minha alma e entraste. Quando despertei estava nos teus braços. Foi assim que tomaste conta de mim. Espera um minuto ao menos. Não te dissipes, visão de amor. Ainda não te disse tudo. Quero confessar tudo. Meus pensamentos se atropelam como recrutas. Estou como alguém que subisse e descesse eternamente a mesma escada. Será que a loucura começa assim? Espera. Não te vás. Há de chegar o momento em que compreenderás. A porta há de se abrir. Espera, por piedade! Que é isso? Uma coisa me dói aqui dentro, aqui bem no coração. Não te vás, Lídia, espera... espera...

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"Tu podes, senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Por que este verso de Claudel despertou dentro de mim? Então é tão imperiosa assim a necessidade de amor em Deus? Recordo-me: no dia em que tive que ficar face a face com Cristo, recuei. Não tive coragem de suavizar as suas chagas com a minha renúncia total das coisas do mundo. Cristo quer de nós um amor absoluto. Quem puser a mão no arado, não deve olhar para trás. Deve olhar para as cinco chagas de Cristo. Em cada chaga cabe toda a nossa miséria, toda a nossa ignomínia.

Outra teria sido a minha vida, se eu não me tivesse acovardado diante das primeiras dificuldades. Lídia muitas vezes teve que lutar comigo para eu não perder a missa, Um amolecimento, um desencanto havia tomado conta de mim, nos últimos tempos. Faltava-me entusiasmo. Às vezes, a simples presença de um sacerdote acordava em mim um mal-estar horrível. Cada padre era um testemunho vivo de que se pode viver em conformidade com os mandamentos de Deus. Cada sacerdote era uma humilhação para meu fracasso. Tentei lutar. Ensangüentei as minhas mãos nas rochas. Ondas enormes, porém, arrastaram-me para o abismo.

"Tudo podes, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Que é o amor? Será que o amor também morre como morre uma coisa viva?! Se eu pudesse reconquistar o amor perdido!

Lídia, por que não despertas e não gritas ao mundo que estás viva, que tudo não foi um pesadelo? Minhas mãos queimam e eu não sei se terei forças para reparar o mal que fiz. Sinto que é preciso reparar. Arrastarei pelo mundo minha miséria, beijarei a chaga dos morféticos, comerei o resto dos mendigos.

"Tudo pode, Senhor, só não podes impedir que eu Te ame". Conceda-me, Senhor, amor para Te amar, amor para morrer!

Fonte:
Revista de Contos

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