quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Carlos Leite Ribeiro (Esta Juventude ...)


(lamentos dos mais velhos...)

Mais velhos, não direi, talvez os mais antigos – de acordo?

No nosso tempo não se via disto – uma frase que se ouve com certa frequência aos mais antigos. Agora, vimos os jovens sempre agarradinhos e aos beijinhos por todo o lado.

No nosso tempo, não se via “esta vergonha” não; tínhamos uma enorme ingenuidade quase a roçar a santidade. Nós quase não olhávamos para as jovens pois tínhamos grande pudor e éramos demasiadamente envergonhados e tímidos. No meu tempo nem tínhamos tentação de saber se as carnes da nossa moça eram rijas ou moles; se ela sabia beijar bem; nem sequer um encosto mais apertado. Nada disso. Éramos uma perfeição. Nos bailes, dançávamos afastados das moças pelo menos um palmo; no escurinho do cinema, ficávamos sempre com as mãos em posição de oração e nunca por nunca a fazer pesquisas por sítios proibidos; para mais, tínhamos sempre a mamã sentada a nosso lado. Nenhuma parte de nosso corpo reagia à aproximação ou quando estamos junto da nossa amada. Nos dias de chuva, nunca procurávamos a entrada de um edifício ou mesmo o vão de uma escada; nunca (o pior era quando esses espaços já estavam ocupados por outro casal).

Nunca por nunca invejámos e muito menos desejámos a namorada dos outros ou mulher casada; nunca!

Rapazes como nós, já não existem.

Um certo colega, o Mário, certa vez foi apanhado por uma vizinha a fazer algo que não “devia” com uma moça. A dita (cuja) vizinha, chamou-o a sua casa para lhe dar uma grande lição de moral e, ao mesmo tempo, dar-lhe umas lições de sexologia prática; no dizer desta senhora já viúva há muitos anos, as lições seriam vinte… Mas o Mário contou a situação aos amigos e, quando a vizinha marcou nova lição, aparecemos a sua porta cerca de dez amigos. Resultado: não passou da primeira lição. O que éramos capazes para perder a nossa ingenuidade para nos integrarmos no mundo dos já muito adultos!

Volto a repetir: rapazes como nós, já não existem…

Também é preciso não esquecer que namorávamos com a moça à janela, mesmo que morasse num 5º andar enquanto o rapaz ficava na rua. Não tínhamos hipóteses nenhumas … Embora há quem diga que nós tínhamos uma “engenharia deveras criativa”; mas isso são boatos!

O caso melhorou (só um pouco) quando apareceram as “lambretas” que só tinham dois lugares e a mamã tinha que ficar de fora. O pior era quando a tal mamã marcava que de dez em dez minutos tínhamos que passar à sua porta ou num local pré-combinado.

E quando apareceram os Volkswagens de três mudanças para a frente e uma para trás? Para “conduzir” era precisa certa “habilidade” pois senão saiam dentro do carro que dolorosos torcicolos.

Rapazes como nós, já não existem…

Em 2001, escrevi este apontamento “MOMENTOS MARCAM UMA ÉPOCA ...”

Há nomes que nos marcam para sempre, principalmente, quando se referem à nossa juventude. Para mim, o nome Nan, traz-me recordações da minha meninice.

Teria uns dez anos, morava num rés-do-chão de um prédio da Pascoal de Melo (Estefânia – Lisboa), e no último andar, por sinal o 4º, morava a Nan, uma moça que na altura teria uns 16 ou dezassete anos. A mãe da moça, de nome Sen, viúva de um obscuro subchefe de uma repartição da função pública, era uma figura muito castiça: Muito magra, não muito alta, sempre vestida de preto e, fosse em que estação do ano fosse, andava sempre de sombrinha. Quando aqui em Portugal passou a telenovela “Tieta do Agreste” (que eu parodiei para a radiodifusão), logo me lembrei da D. Sen, que a vi retratada na “Charifú” desta novela. A Nan era filha única e sua mãe a defendia de todos e quaisquer “Moinhos de Vento” (eram como as mamães tratavam os rapazes). Se a moça lhe ia fazer algum recado (compra) perto de casa, logo a mãe se empoleirava na varanda começando logo a berrar assim que ela saía do prédio: “Nan ! não te demores, olha que eu estou aqui à tua espera !” ; ou “Nan ! estás a demorar muito ! Que estás para aí a fazer ?...”. Se nas traseiras da casa, a moça estava a estender a roupa na varanda, lá estava sua mãe ralhando comigo:

- “Olha lá menino, estás a olhar para as pernas da Nan ... etc ...”.

Recordo-me uma vez minha tia dizer em voz alta para ela ouvir bem:

- “Carlitos, não olhes para cima !Podes estar a cobiçar umas pernas que não valem nada ... “.

Claro que a opinião era de minha tia, porque a minha, embora não me recorde bem, talvez fosse uma “bela panorâmica” !

Mas voltando à Nan, andava num colégio de feiras, onde a mamã a ia levar e trazer. Recordo-me de um carnaval no Clube Estefânia, em que a D. Sen quando notava (?) que o par da filha a estava a agarrar “demais”, levantava-se e o ia afastar do corpo da filha. De tantas vezes que repetiu, que se tornou um escândalo hilariante. Nessa altura, um D. Juan da época, virou-se para a D. Sen, perguntando-lhe:

- “Olhe lá minha senhora, é católica ?”. A senhora olhando-o de frente, replicou-lhe:
- “Sou sim, seu desavergonhado !.

Então o “malandreco” respondeu-lhe perante a hilaridade de todos:

- “Então vá com Deus e deixe sossegada a sua filha!”.

Era assim a vida da Nan ...

Meses depois, a pequena, não se sabendo muito bem porquê, apareceu grávida. É verdade !. Já na gravidez avançada, tanto a mãe como ela, juravam a pés juntos que não sabiam com “aquilo tinha acontecido”. Algumas vizinha, (daquelas mais aconselhadas), aconselharam a D. Sen a ir a uma senhora de grande virtude, que morava na Horta das Tripas (Casal de Santa Luzia – Rua D. Estefânia) para que ela expulsasse o “Mafarrico” do corpo da moça, porque tal só podia ter sido “obra do diabo”. Outras menos “cultas” diziam que tinha era sido “obra e graça do Espírito Santo”...

Fosse como fosse nasceu um bebé que teve como nome Francisco (o Chiquinho).

Muito mais tarde, já a D. Sen tinha entregado a alma a Deus e o corpo à terra fria, a Nan confessou que “talvez fosse obra de um ajudante de limpa-chaminés”. Na altura, existiam em Lisboa o “limpa-chaminés” que subiam aos telhados, ponham uma corda muito comprida dentro das chaminés e tiravam a “ferrugem”; pelo menos faziam muito lixo. Normalmente quem tinha a chave da porta que dava para o telhado era o locatário do último andar. Assim, um dia, a Nan foi abrir a porta ao ajudante de limpa-chaminés, enquanto o mestre ficava junto às chaminés das cozinhas, segurando a corda, o ajudante abanava - a no telhado.
Ainda segundo o relato da Nan “foi tudo muito rápido”. Nós podemos acrescentar: Rápido e Eficiente! Ficámos sem saber se teria sido no abrir da porta, ou, ao abanar da corda. Mas isso também não interessa.

Claro que a moça teve depois vários namorados.

Enquanto estes esperavam pela dama, havia sempre um “malandreco” a avisá-lo:

- “Não cuspas para cima que ela pode engravidar ...”.
E assim, o nome de Nan, ficou sempre gravado na minha memória ...

(von Trina - Março 2001)

Fonte:
Colaboração do Autor.

Graciliano Ramos (Vidas Secas)


A obra começa com a fuga de uma família da trágica seca do sertão nordestino: Fabiano, o pai, Sinhá-Vitória, a mãe, os dois filhos e a cachorra Baleia. Fabiano é um vaqueiro, homem bruto que tem enorme dificuldade em articular palavras e pensamentos, que se sente um bicho e muitas vezes age como tal, grunhindo e se portando como um selvagem. Não tem aspirações e nem esperanças, do mesmo modo como não se tolera e não tolera o mundo em que vive. Sinhá-Vitória, sua esposa, se sai melhor em seus pensamentos e diálogos, apesar de restritos. Seu sonho é uma cama de couro, como a de um homem chamado Tomás da bolandeira. Essa personagem, que nunca aparece a não ser na memória das outras personagens, é também uma espécie de herói e modelo para Fabiano: culto, detentor de sabedoria, da arte da palavra e do pensamento, por isso mesmo admirado. O menino mais novo parece não ter nome e nem uma forma comum de se comunicar. Sua única aspiração é ser como Fabiano. Nas mesmas situações está o filho mais velho, que só quer um amigo, conformando-se com a presença da cachorra Baleia. Esta, muitas vezes, parece ter um pensamento mais linear e humano que o resto da família, portando-se não só como um bicho, mas como um ente, uma companheira que ajuda Fabiano e sua gente a suportar as péssimas condições.

A história se desenvolve com o estabelecimento da família numa fazenda e a contratação de Fabiano como vaqueiro. Este, certa ocasião, vai até a venda comprar mantimentos e se põe a beber. Aparece um policial, chamado por Fabiano de Homem Amarelo, que o chama para jogar baralho com outros. O jogo acontece e, numa desavença com o Soldado Amarelo, Fabiano acaba sendo preso, maltratado e humilhado. Aumenta sua insatisfação com o mundo, com sua própria condição de homem bruto e selvagem do campo, e o desprezo de outras pessoas, encarnadas agora na figura do Soldado Amarelo. Solto nosso herói, a vida segue na fazenda. Sinhá-Vitória começa a desconfiar do patrão, que parece roubar nas contas de Fabiano. Este se aborrece, mas não pode fazer nada. Não entende as complicadas contas que o patrão faz, e não sabe dialogar com ele. A festa de natal na cidade só serve para aumentar o descontentamento de Fabiano e sua família com o resto do mundo. Sentem-se diferentes, inferiores, desprezados e humilhados por milhares de "patrões" e "soldados amarelos". Baleia adoece e Fabiano e vê na árdua tarefa de sacrifica-la.

Fere o pobre bicho com um tiro, mas não consegue matá-lo, já que este foge para longe. Baleia vem a falecer durante a noite, perto da casa, sonhando com um mundo cheio de lebres... Sentindo-se cada vez mais lesado pelo patrão, Fabiano resolve argumentar contra esse, mas, sob ameaça de despejo, resolve deixar o assunto quieto, o que lhe causa uma indignação cada vez maior. Sua indignação com o mundo chega ao extremo quando encontra, na volta da venda após ter tomado alguns goles, o Soldado Amarelo, que estava perdido no mato. Fabiano percebe o seu medo e seu corpo franzino em relação ao seu, e tem a idéia de matá-lo, descontar toda a sua raiva e seu descontentamento. Sentindo-se, entretanto, fraco e impossibilitado, resolve deixar pra lá, ensinando o caminho de volta para a cidade ao soldado. Seu sentimento de revolta é agora intensificado pela impotência... Como não bastasse, a seca atinge a fazenda e faz com que toda a família fuja novamente, só que esta vez para o sul, em busca da cidade grande, sem destino e sem esperança de vida.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.

Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.

Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927. Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro. Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Bernardo, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis. Podemos justificar isto com passagens do texto:

"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."

"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"

"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."

"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores".

ESTUDO DOS PERSONAGENS

Baleia - cadela da família, tratada como gente, muito querida pelas crianças.

Sinhá Vitória - mulher de Fabiano, sofrida, mãe de 2 filhos, lutadora e inconformada com a miséria em que vivem, trabalha muito na vida.

Fabiano - nordestino pobre, ignorante que desesperadamente procura trabalho, bebe muito e perde dinheiro no jogo.

Filhos - crianças pobres sofridas e que não tem noção da própria miséria que vivem.

Patrão - contratou Fabiano para trabalhar em sua fazenda, era desonesto e explorava os empregados.

Outros personagens: o soldado, seu Inácio (dono do bar).

ESTUDO DA LINGUAGEM

Tipo de discurso: indireto livre

Foco narrativo: terceira pessoa

Adjetivos, figuras de linguagem:
Metáfora: " - você é um bicho, Fabiano".

Prosopopéia: compara Baleia como gente

ANÁLISE DAS IDÉIAS

Comentário Crítico: Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.

RESUMO DA OBRA

Mudança

Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa_ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar.

Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta. A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco_ . Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos.

A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem – sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos.

Fabiano

Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele
era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho.

A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinhá Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo
mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.

Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinhá Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado. Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinhá Vitória sobre a educação dos pequenos.

Cadeia

Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinhá Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.

O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.

No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência. Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinhá Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar.

Sinhá Vitória

Naquele dia, Sinhá Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais. Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinhá Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a.

Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe
a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau. Pensou no papagaio e sentiu pena dele. Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe. As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.

O Menino mais novo

A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia. No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.

Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar, mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura. Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.

O Menino mais velho

Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil. Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem. Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.

Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca. Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio.

Inverno

Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira.

Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa. A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.

Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas. A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada. Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo. Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.

Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora.

Festa

A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo.

Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais
ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.

A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga. Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário. Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso. Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.

Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira . Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas?

Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.

Baleia

Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena. Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.

Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente. Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha. Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.

Contas

Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se. Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.

Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos. Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.

As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.

Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.

O Soldado Amarelo

Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás.

O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo. Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior. Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.

O Mundo Coberto de Penas

A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga. Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação. Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os. Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito. Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.

Fuga

O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.

Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade. O vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano. Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinhá Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar. Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação. Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos?

Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinhá Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.

Sinhá Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinhá Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.

Fonte:
Prof. Wagner Lemos

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Trova 110 - Alba Christina Campos Netto (São Paulo/SP)

Andrey do Amaral (O Homem atrás do escritor, O Escritor atrás do homem)


Visando um meio de aproximar o público do escritor ou escritora, de modo a que não enxerguem apenas assim, mas o homem ou mulher que existe atrás dos livros, estou iniciando hoje entrevistas selecionadas, enviadas a diversos escritores/as, que mostrará ao público leitor que atrás de seus livros, é um ser humano com sentimentos, opiniões, lutas, vitórias e derrotas.

O homem atrás do escritor, o escritor atrás do homem.
A mulher atrás da escritora, a escritora atrás da mulher.

São perguntas que abrange basicamente a literatura, não havendo envolvimento político, futebolistico, e qualquer outro ico, um pouco mais extensas que as normais, para dar uma visão mais geral do escritor desde sua infância até os projetos futuros, passando por dicas aos novos escritores, questionamentos sobre literatura, etc., divididos em tópicos para uma melhor orientação do leitor.

Nessa primeira série, o Singrando Horizontes entrevista o escritor, professor e agente literário Andrey do Amaral, 33, do Distrito Federal.

Andrey do Amaral (1976) é graduado em Letras, com especialização em Língua Portuguesa e em Gestão Cultural. Teve seus livros publicados pelas editoras Best Seller, Autodidata, Ao Livro Técnico e Ciência Moderna. Dedica-se à pesquisa da vida/obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos e ao estudo de direitos autorais. É professor de literatura brasileira e agente literário filiado à Câmara Brasileira do Livro (CBL/SP). Dá consultoria a autores, principalmente aos novos que pretendem entrar no mercado editorial. Entre outros, são seus autores agenciados Moacir C Lopes (A Ostra e o Vento), Marcos Kleine e Roger (Ultraje a Rigor), Carlos Maltz (ex-Engenheiros do Hawaii).

INFÂNCIA E PRIMEIRAS LEITURAS

• Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

Nasci, cresci e vivo na Capital Federal. Como aqui há muito militar e professor, o ensino em Brasília se destaca um pouco em relação aos outros Estados. Mesmo no sistema público, a qualidade era bem parecida com as escolas particulares. Lembro-me que haviam muitos projetos literários na escola. O incentivo à leitura era grande. Assim, os alunos tomavam gosto pelos livros.

• Recebeu estímulo na casa da sua infância?

Meus pais são leitores, e acredito que isso me ajudou. Foi um espelho que tive. Dizem que criança copia. Eu copiei o hábito de leitura dos meus pais.

• Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Na sexta série, me lembro de uns livros de contos e crônicas divertidas, dos melhores autores da nossa literatura, com o Drummond e Fernando Sabino. Os alunos gostavam muito. Nossa alegria era fazer teatrinho dos contos. Na oitava série, lemos Memórias Póstumas de Brás Cubas. Quando a professora nos disse que era um morto que escreveu aquelas memórias fiquei bastante curioso. Achei o livro difícil, mas o entendi no todo.

ANDREY DO AMARAL, ESCRITOR

• Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Quando entregava meus textos para os professores de redação, era sempre um problema. Ou eles me elogiavam na frente de todos os outros alunos (e eu morria de vergonha) ou não acreditavam que eu tivesse escrito. Alguns me perguntavam se tinha sido minha mãe que escrevera as redações. Eu negava, mas alguns ainda duvidavam.

• Como foi dar esse salto de leitor pra escritor?

Parece que escrever é uma necessidade para quem lê, independentemente se vai publicar ou não. Como sempre lia as crônicas de humor na escola, escrevi uma proposta de livro para uma editora paulista. Em 1999, publicamos Como Enlouquecer Sua Sogra. O livro foi um sucesso e vende até hoje.

• Tem Home Page própria (não são consideradas outras que simplesmente tenham trabalhos seus)?

Acho que todo autor tem que se profissionalizar e tratar sua carreira como se fosse uma empresa, e seus livros como produtos comerciais. Quem não tem dinheiro para fazer um site, que faça um blog ou similares, mas o autor deve estar na rede. Minha página é http://www.andreydoamaral.com/

• Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Poucos são os autores hoje que vivem de literatura. Nosso consumo ainda é baixo se compararmos a autores americanos, por exemplo.

LIVROS E PRÊMIOS

• Quais foram os livros escritos pelo senhor?

Mercado Editorial – Guia para Autores (2009)
Novo (e Divertido) Acordo Ortográfico (2009)
O Máximo e as Máximas de Machado de Assis (2008)
Cuidado eu te amo – Desautoajuda do Amor (2002)
Como Enlouquecer Sua Sogra (1999)

• Dentre os livros escritos pelo senhor, qual te chamou mais atenção? E por quê?

Estou no mercado desde 1999 como autor. Meus livros foram todos publicados por editoras comerciais e todos, graças a Deus, tiveram ótima vendagem. Em 2009, lançamos o livro Mercado Editorial – Guia para Autores, relatando um pouco o nosso trabalho como agente literário e a maneira correta de o escritor enviar seu original para as editoras. Esse trabalho é um agradecimento por tudo aquilo que conquistei com o livro.

• Que acha de sua obra?

Minha obra é eclética. Escrevo humor e ensaio. Também tenho contos e desenvolvo um romance sobre a vida do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Na hora certa publicarei ficção.

• Qual a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

• A internet é uma excelente forma de divulgação. Encurta distâncias. Encontramos novos leitores e os leitores nos encontram. Os autores devem aprender a usar mais a internet a favor de suas obras.

• Tem prêmios literários?

Prêmio Biblioteca Nacional (2002) por meu ensaio sobre Augusto dos Anjos e o Pontos de Leitura (2008) pelo Ministério da Cultura, entre outros mais regionais.

CRIAÇÃO LITERÁRIA

• Você projeta os seus livros? Como é que você os concebe?

Seja para mim ou para meus autores agenciados, eu penso no livro como um produto que tem que dar lucro, sem perder a qualidade. E qualidade não é só aquele romance profundo e psicológico. Há qualidade em livros de humor, livros engraçados.

• Você acredita que para ser escritor basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial?

Acredito na vocação. Não sou muito fã de escolas para escritores. De qualquer forma, exercício ajuda sim a melhorar o texto.

• Como surge o momento de escrever um livro?

Penso num projeto e depois desenvolvo cada parte desse projeto. Ofereço o projeto às editoras, vislumbrando o lucro que aquela obra pode dar, além do interesse que o leitor terá com o livro.

• Quanto tempo você leva escrevendo um livro?

Não penso no tempo. Penso que o livro deve estar simplesmente pronto quando tem que estar. Já terminei livros com seis meses e ainda não terminei meu ensaio-biográfico sobre Augusto dos Anjos, o qual está me tomando anos (anos prazerosos).

• No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O que é porcaria? Há críticos que já julgaram de “porcaria” livros de Machado de Assis, de Júlio Ribeiro. Por isso, é que eu penso que o escritor deve ter uma intimidade muito grande com seu texto, e não ter pressa para publicar. Já chamaram meu livro Cuidado Eu Te Amo de porcaria, mas o público-alvo dele adora. Escrevi o Cuidado Eu Te Amo para adolescentes. É claro que se um doutor em literatura começar a ler este livro não vai gostar. São públicos diferentes.

O ESCRITOR E A LITERATURA

• Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós, a quem chega apenas o que a mídia divulga, que autores são importantes descobrir?

É por isso que eu digo que o autor deve tratar o seu trabalho como se fosse uma empresa, detalhando o público-alvo e as estratégias de venda. Imagine montar uma loja de sapatos finos num bairro onde ainda não há pavimentação. Quem vai querer sujar os sapatos novos na lama? Ninguém. O escritor deve focar sua obra no público-alvo. Até hoje tem romancista que envia seu original para editora que só publica livro técnico! O autor deve pensar para se tornar conhecido, ou relativamente conhecido. Quem quer fama vai para o Big Brother; quem quer ser conhecido pelos seus leitores que foque no seu público-alvo.

• Na sua opinião, que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

Quando eu dava aula de literatura, discutia muito esse termo com meus colegas professores. A leitura não pode ser obrigatória, deve ser sugerida. Obrigatório de ser o empenho estatal em dar condições aos professores para que desenvolvam bons projetos de leitura em sala de aula.

• Qual o papel do escritor na sociedade?

Entretenimento e informação. Provocar reflexão nas pessoas, ajudar a pensar, provocar riso, emocionar. Quem lê o romance Maria de Cada Porto, de Moacir C. Lopes não tem como não chorar. Quem não se emociona com o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa?

• Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Só a poesia é que nos alivia desse mundo cruel. Eu amo os poetas.

A PESSOA POR TRÁS DO ESCRITOR

• O que choca o senhor hoje em dia?

Como ser humano está cada vez mais violento. Só a poesia salva!

• 14) O que o senhor lê hoje?

• Como faço agenciamento literário, leio de tudo: romance, conto, poesia, crônica, livros técnicos... Particularmente, gosto de uma boa história. Sempre releio os clássicos realistas e naturalistas.

• Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Quero fazer alguma coisa em comunidades carentes ou cujo acesso ao livro ainda seja difícil.

CONSELHOS AO ESCRITOR

• Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ?

De tanto me perguntarem isso escrevi o Mercado Editorial – Guia para Autores. Os melhores conselhos estão lá, inclusive com os contatos dos melhores agentes literários do mundo.

• O que é preciso para ser um bom escritor?

O bom romancista deve ler muitos e muitos romances. O cronista deve ler muitas e muitas crônicas. O poeta deve sempre ler poesia. O autor técnico deve esgotar a leitura em todas as obras do seu ramo. É isso. A leitura é que faz um bom autor.


E para encerrar a entrevista

Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos, quais seriam?

1) Que as pessoas já nascessem com a vontade de ler;
2) Que houvesse mais livrarias nas ruas e
3) Que os livros tivessem um custo menos para que todos lessem.

Fonte:
Entrevista Virtual realizada por José Feldman, para o Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes.

Moacir C. Lopes (Estante de Livros)

ONDE REPOUSAM OS NAUFRAGOS

Em seu romance de estréia, Maria de cada porto, Moacir C. Lopes conta a pungente história de um grupo de náufragos cinco dias à deriva no mar juntando esforços para continuarem vivos. Em Onde repousam os náufragos, vai além: não é a própria morte que seus personagens precisam evitar, mas o desaparecimento de um navio que deu sentido a suas existências.

O velho cargueiro Jaraguá, há onze anos encalhado no manguezal à margem do delta do Beberibe, além de cargas, transportou passageiros e histórias, algumas comoventes, outras de arrepiar. Quando seu afundamento é decidido, todos os que passaram por suas cobertas se levantam. Não é, como à primeira vista parece, apenas um monte de ferro velho que pretendem defender: é preciso preservar aquela base para o infinito reencontro de desejos e de destinos.

TRECHO DO LIVRO

A beleza é eterna, Lorena, se ela fica gravada em nossa memória, no instante em que a contemplamos, num rosto, num olhar e num sorriso como os seus, ou na tela de um grande pintor, num poema, numa prece, numa página lírica de amor, ou mesmo numa fotografia, eterniza-se no momento em que foi criada. Assim, Dario pensou ao contemplá-la, e até baixou a cabeça para ela não decifrar a intensidade do seu pensamento. Também ela baixara a cabeça, e ainda rolavam uns pingos de lágrimas, porque ambos, agora, voltam a ser a página lírica de amor.
––––––––––––––––––––

POR AQUI NÃO PASSARAM REBANHOS

Sexto e mais alegórico romance de Moacir C. Lopes, Por aqui não passaram rebanhos nos convida a refletir sobre o tempo, a transitoriedade do homem e a eternidade simbolizada pela pedra.

Na linha explícita do realismo mágico, o livro sugere que, enquanto busca sua definição como ser completo, o homem é um monstro em transição. Inspirado no Parque das Sete Cidades, no Piauí, cujas antiqüíssimas formações rochosas lembram seres petrificados, conta a história de um homem despojado do passado que não sabe o que o espera no futuro.

Longe da civilização e em meio a uma região inóspita, Emiliano refugia-se numa caverna onde encontra Selene, jovem bela e sedutora que o espera há três mil anos. Ele se apaixona e tenta a todo custo embarcar no tempo dela para viverem juntos para sempre. No processo, conhece o Sumé, um velho aguadeiro cujo animal carrega tonéis furados no lombo. Por onde vai pingando a água dos tonéis, nasce uma floresta onde crianças se tornam adultos em questão de minutos. Eles dividem o mesmo espaço, mas seus tempos são desencontrados.

No final, de alguma maneira Emiliano se torna eterno, mas nem ele arriscaria dizer se ficou mais próximo da redenção ou da ruína.

TRECHO DO LIVRO

Emiliano não sabe quanto tempo caminhou. Vem de longes caminhos.

Um dia uma mulher morreu nos seus braços e os habitantes de seu povoado, em bandos de caçadores, com armas e cães, o seguiram até o meio da floresta, como fera que estivesse ameaçando o mundo. E ele era apenas uma criança. Nem trazia o contágio da doença que matara aquela mulher. Arrastava consigo apenas o contágio de sua própria espécie.

Muito depois, outra mulher, jovem, morreu nos seus braços. Também esta o amava, e ofertava-lhe o corpo cada noite. Antes, ela lhe dissera: eu vou morrer. E ele falou: vamos. A minha morte será mais longa que a tua. Assim, a partir desse dia, Emiliano começou a morrer. E não sabe quando completará a sua morte.

A última lembrança foi de uma criança com quem conviveu. Não lhe dera nome, nem sabe se chegou a ser sua filha, esposa ou irmã, só recorda que ela estendia-lhe as mãos porque queria convivência. Quando ficou adulta e julgou que já conhecia o mundo, um dia, na bifurcação de dois caminhos, ela seguiu o outro.

Foi esquecendo os gestos aprendidos, porque não conseguiu mais entender seus semelhantes, se aprendeu a sorrir também não sabe. Surpreendeu-se algumas vezes de mãos estendidas mas logo as contraía, envergonhado de querer, de pedir ou mesmo de ofertar-se. Só restava caminhar.

Lembrou-se que, por onde havia passado, o mundo era todo pertencente, cada metro quadrado de chão fora medido, entre um e outro havia faixas que diziam: passe por aqui, cuidado. E cada pedaço do mundo era de alguém que criara um idioma próprio para poder comunicar-se com os rebanhos que lhe pertenciam. Se ele caminhava por um quadrilátero e sua sombra se projetava no quadrilátero vizinho, taxavam bem caro a invasão de sua sombra.

Então, do alto do promontório, contemplando o vale, disse: por aqui não passaram rebanhos. Seguirei por aqui.

Assim, como se o corpo não lhe pertencesse e fosse trapos que espalhara, as estrelas perto do seu rosto, velando seu cansaço, adormeceu sono profundo
–––––––––––––––-

GUIA PRÁTICO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA

Neste Guia, Moacir C. Lopes refaz parte de sua trajetória literária, ensinando a candidatos a escritores o caminho das pedras. Trata-se de um curso completo, que inclui desde uma breve história da literatura, em que gêneros e estilos são comentados, a dicas de como produzir um texto literário com correção, qualidade e original.

De tudo o que é explicado, são dados exemplos, o que torna o Guia mais prático do que acadêmico. Fundamental para professores de literatura e promotores de oficinas literárias. E imprescindível para quem quer aprender a escrever como um mestre.

TRECHO DO LIVRO

Na verdade, somos descendentes diretos daquele hominídio, caçador, do período Paleolítico Superior (cerca de 50 mil anos) que, ao abater uma fera no campo, resolveu gravar no tronco de uma árvore, raspando-o com presas da própria fera, o seu grande feito. Desenhou a figura representativa da fera e a dele mesmo, empunhando a arma utilizada.

Era a primeira mensagem ideográfica.

Tal representação expressava muitos significados, tanto para ele mesmo , como para outros grupos que por ali passassem, e poderiam raciocinar:

a) Um caçador abatou uma ferra. Neste local existe esta espécie de fera.

b) Ele utilizou uma flecha e com ela a venceu. Portanto, essa espécie de animal pode ser abatida por outro caçador, se utilizar a mesma arma.

c) Se esse caçador teve a idéia de nos transmitir seu feito, nós temos a mesma capacidade de transmitir os nossos.

d) Esse único signo pictográfico e ideológico era também um sinal mágico, por ser capaz de transmitir várias idéias aos outros homens e ensinou que, através de outros desenhos, os homens poderiam transmijtir outras idéias, que se desdobrariam infinitamente.

e) Nascia assim o primeiro texto.

Fonte:
www.moacirclopes.com.br

Moacir C. Lopes (1927)


Com o nome de batismo Moacir Costa Lopes, nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, Ceará. Perdeu o pai aos 2 anos de idade e a mãe aos 11. Fez seus estudos em Quixadá, Baturité, Fortaleza, posteriormente no Rio de Janeiro. Optou por não concluir estudos regulares, para se dedicar inteiramente à literatura, criando seu próprio método de criação literária, do que resultou seu livro de ensaio/didático Guia prático de criação literária, editado em 2001, pela Quartet Editora. Desde criança, leitor compulsivo de Literatura de Cordel e de folhetins literários que chegavam a Quixadá.

Por sofrer constantes maus tratos do tio, com quem foi morar com os irmãos Mário e Maria de Lourdes, foge de casa, em 1942, seguindo para Maranguape, passa a trabalhar e morar numa estalagem, onde faz poesia e escreve cartas por encomenda, a dinheiro, para mercadores em trânsito. Localizado pelo tio, regressa a Fortaleza e ingressa na Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará em dezembro de 1942.

Já como marinheiro, em plena Segunda Guerra Mundial, viaja para a Base Naval de Natal, de lá para Recife, embarcando no encouraçado São Paulo, vindo depois para o Rio de Janeiro. Embarca em vários navios, em missões de comboios e patrulhamentos navais, especializando-se em tática anti-submarina e radar. Viaja por toda a costa brasileira e outros países, como Uruguai, Paraguai, Argentina, Trinidad-Tobago, República Dominicana, Cuba, Estados Unidos, sobe o rio Amazonas, o rio Paraguai, o rio Mississipi, conhece muitas ilhas, duas das quais, o Atol das Rocas e a Ilha das Trindade, o inspirarão no tema de dois de seus futuros romances.

Enquanto embarcado, além de praticar esportes como box e basquetebol, escreve poesias diariamente e entusiasma-se pela literatura, passa a ler em viagem as primeiras obras de ficção, começando pelos clássicos franceses, depois russos, portugueses, ingleses, e por fim os brasileiros antigos e contemporâneos, além de estudos críticos, filosofia, e antropologia e obras de cultura geral. E os poetas. Em todos os navios em que servia criava uma biblioteca com doações de livros pelos colegas. Com intervalos, nos portos, para viver as aventuras comuns de marinheiro e conviver com os mais variados tipos humanos.

Escreve, em 1944, um romance, que não chega a concluir. Viajando a Porto Alegre, procura Érico Veríssimo; na cidade de Natal, em 1946, procura Luís da Câmara Cascudo, que, ouvindo seus planos literários, lhe sugere escrever sobre a vida dos marinheiros. Começa a escrever, em 1949, a bordo do contratorpedeiro Baependi, onde trabalha na secretaria como datilógrafo, o romance Maria de cada porto, com o qual vem a estrear em dezembro de 1959.

Residindo no Rio de Janeiro desde 1944, passa a colaborar no jornal Humaitá, da Associação dos Marinheiros, com poemas e crônicas, jornal embargado em 1949, e definitivamente fechado em 1964. Mesmo sendo os marinheiros proibidos de estudar, por ordem do então Ministro da Marinha, estudou música no Liceu de Artes e Ofícios, por pretender ser também violinista, e fez o curso completo de Inglês, no Westminster English Course, e a extensão de outros cursos de humanidades. Dá baixa da Marinha de Guerra em novembro de 1950, por conclusão do tempo de serviço.

Passa a trabalhar no comércio, inicialmente como datilógrafo, depois como gerente de compras, gerente de vendas, professor de vendas e de Relações Públicas, fez traduções de obras de alguns autores do idioma inglês para a Seleções Reader’s Digest. Ainda trabalhando no comércio, publica os romances Maria de cada porto (1959), obtendo os prêmios “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras, e “Fábio Prado”, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, Chão de mínimos amantes (1961), Cais, saudade em pedra (1962), A ostra e o vento (1964), Belona, latitude noite (1968), todos eles com grande repercussão no Brasil e no exterior, além de traduções na Tchecoslováquia, na Rússia, na Bulgária, na Itália, radioteatralizações na Polônia e em Portugal.

Deixando de trabalhar no comércio, foi colaborador da Enciclopédia Delta Larousse, sob a direção de Antônio Houaiss. Passa a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e na Faculdade Hélio Alonso, nas áreas de Comunicação Social, Jornalismo, Relações Públicas. Em 1969, funda a Editora Cátedra, com a escritora Eduarda Zandron, editora pela qual publicam cerca de mil autores nacionais, a maioria estreantes.

Casa-se com a escritora Eduarda Zandron, nascendo-lhes os filhos Fábio Martins Lopes, em 1968, e Saulo Martins Lopes, em 1973. Seu filho Fábio, que aos dez anos publicou o livro de poesia, Da janela do quarto andar, e, aos quinze anos, a minibiografia Montezuma, o Imperador Asteca, já advogando enquanto cursava Direito na UERJ, professor de Inglês aos dezoito anos, vem a falecer em janeiro de 1989, aos 20 anos, cuja doença e falecimento originou o livro de sua mãe Eduarda Zandron, Ninguém me disse que ia ser fácil (Relato de uma mãe sobre 87 dias de tortura de seu filho condenado por leucemia), publicado em 1990.

Continuou a construir sua obra literária, hoje com vários volumes e reedições (ver adiante, “Edições e reedições de seus Livros”). Além de fartamente adotada em colégios, é estudada nos meios universitários brasileiros e estrangeiros, de que resultaram teses de doutoramento no Brasil e nos Estados Unidos. Em 1978, foi realizado, com sua presença para dissertações e debates, um Simpósio sobre toda sua obra, na Universidade do Arizona, e palestras nas universidades de Santa Bárbara, San Diego, na University of California at Los Angeles – UCLA, e University of Southern California – USC, também em Los Angeles, California, Estados Unidos.

Tem participado de congressos, simpósios e conferências sobre literatura em todo o País, jurado de concursos literários, inclusive do “V Cine Ceará – Festival Nacional de Cinema e Vídeo”, em 1995. Presidente do Sindicado dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro, de 1994 a 1997, reassumiu a presidência para a gestão 1998/2001, onde presidiu também o Conselho Editorial do jornal Tribuna do Escritor.

Seu romance A ostra e o vento, que, desde seu aparecimento, despertou grande interesse em vários cineastas brasileiros e estrangeiros, foi adaptado para o Cinema, em 1997, sob o mesmo título, com roteiro e direção de Walter Lima Jr.

Lança, pela Quartet Editora, no ano 2000, seu novo romance O Almirante Negro (Revolta da Chibata – A Vingança), além da sétima edição brasileira de A ostra e o vento. Em 2001, além da oitava edição de A ostra e o vento, pela Quartet Editora, sai a sua edição italiana, L’ostrica e il vento, em tradução de Gian Luigi De Rosa, Salerno, Itália. Também em 2001, é editado seu livro Guia prático de criação literária, ensaio/didático, pela mesma Quartet Editora, que lança também, em 2002, a nona edição de Maria de cada porto, e, em 2003, seu nono romance, Onde repousam os náufragos. Lançou, em 2006, As fêmeas da Ilha da Trindade, e, em 2007, A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos, além da reedição de outras obras suas atualmente esgotadas, como, em 2009, a terceira edição do seu romance Cais, saudade em pedra. Tem escritos, para publicação oportuna, dois volumes de suas reminiscências, ainda sem título definitivo, e prepara seu décimo segundo romance, a ser editado em 2010, entre vinte e um livros já editados, incluindo ensaios e literatura infantil.

Livros
A Ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos
Por aqui não passaram rebanhos
As fêmeas da Ilha da Trindade
Onde repousam os náufragos
Guia prático de criação literária
A Ostra e o Vento
Maria de Cada Porto
O Almirante Negro – Revolta da Chibata , A Vingança
Calígula – Minibiografia desse imperador romano. (1982, 72 pgs.)

A Dança do Tarô – Texto teatral-poético, encenado com coreografia de Clarice Pinto Lopes, utilizando a simbologia de cada carta do Tarô, com dança acompanhada de texto. (1994, 44 pgs.)

Antologia de Contistas Novos (Seleção, apresentação e notas), edição do Instituto Nacional do Livro, 1971, 2 volumes, 432 pgs., em formato de bolso.

O Capital ao alcance de todos – Texto resumido de O Capital de Karl Marx, mantendo a essência e a súmula das idéias contidas na obra original, inclusive adaptando seus cálculos à moeda brasileira corrente. (1986, 212 pgs.)

Chão de mínimos amantes, romance, 1961
Cais, saudade em pedra, romance, 1963
Belona, latitude noite, romance, 1968
O navio morto in Os Dez Mandamentos, novela, 1968
As viagens de Poti, o Marujinho, infanto-juvenil, 1974
A pedra das sete músicas, infanto-juvenil, 1976
A situação do escritor e do livro no Brasil, ensaio, 1978
O passageiro da Nau Catarineta, romance, 1982
O navio morto e outras tentações do mar, contos, 1995
Moacir C. Lopes e sua obra - 40 anos de literatura, biobibliografia, 2000

Fonte:
http://www.moacirclopes.com.br/

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Trova 109 - Héron Patrício (São Paulo/ SP)


Vicência Jaguaribe (Minipoemas)



A ESPERANÇA

A esperança é a última que morre.
A minha nasceu prematura
E foi a primeira a morrer.

SONHO

Alguns metros de tule
Um espaço aberto
Passos de balé clássico.
Toca estridente o despertador.

REMORSO

Ânsia de vômito
Tontura
Dor de cabeça
- Uma enxaqueca psicológica.

DESILUSÃO

Dançarinos de tango no salão.
Bandoneon tocando Por una cabeza.
Tomba a cabeça do bandoneonista.

DOR FÍSICA

A sensação da impotência.
A certeza da dependência.
Um esgar e um gemido.
A vida suspensa por algum tempo.

A DOR PSICOLÓGICA

A dor entalada na garganta
exige uma providência.
Como foi parar na garganta
esta dor que nasceu
em um momento impróprio?
E existe momento próprio
Pra dor nascer e florescer?

O DIA SEGUINTE

O dia seguinte...
Há dias para os quais
não deveria haver um dia seguinte:
o da morte de uma pessoa amada,
o de uma derrota ou o de uma decepção,
o do Natal.
O dia seguinte é avassalador
como um tsunami.

A INFÂNCIA

Um à vontade
uma espontaneidade
com tempo marcado
uma eterna brincadeira.

Então, digam por que
existem traumas de infância?

ESCÁRNIO

Arrancaste de mim a alegria.
Amputaste-me a vontade de viver.
Decepaste-me a confiança.
O corpo esquartejado
expuseste ao escárnio público.
Ao menos deste aos restos mortais
a bênção de uma sepultura?
––––––––
Fonte:
Colaboração da autora.

Moacyr Scliar (Cego e Amigo Gedeão à Beira da Estrada)


— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?

— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.

— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.

Este que passou agora não foi um Ford?

— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.

— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.

É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?

— Não, Cego. Foi uma lambreta.

— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.

Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!

Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho?

— Não, Cego. Foi o ônibus.

— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.

Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?

— Não. Foi um Volkswagen 1964.

— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?

— Não, Cego, não foi um Candango.

— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.

Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!

— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.

— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?

— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.

— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:
"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"

— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.

Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?

— Não, Cego. Foi um Volkswagen.

— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?

— Não, Cego. Foi um Chevrolet.

— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?

— Não, Cego. Foi um Ford 1956.

Fontes:
Para Gostar de Ler. V. 9 . SP: Editora Ática, 1984.
Imagem =
http://antigosverdeamarelo.blogspot.com

Moacyr Scliar (O Escritor em Xeque)



Entrevista dada ao Jornal Estado de Minas

1) Então você leu muitos livros sobre a história de Minas para escrever na noite do ventre, o diamante? Como se deu este processo?

Li, sim, muitos livros. Mas é importante notar que a pesquisa para fins de um trabalho científico (coisa que, como médico, também escrevo) é diferente da pesquisa para um trabalho ficcional. No primeiro caso trata-se de transmitir informações, com referência bibliográfica inclusive; mas, se o escritor de ficção fizer isso, será uma chateação. Portanto, na hora de escrever, trato de "esquecer" tudo o que li. A informação histórica deve estar diluída no romance, como um pano de fundo. A prioridade cabe à ficção.

2) Quando você recebeu o convite para participar da Coleção Cinco Dedos de Prosa, a história do diamante, que o "perseguia", já estava mais ou menos delineada na sua cabeça?

Já estava bem delineada. Eu havia partido de um episódio histórico; quando os hebreus estavam cercados pelos romanos muitas vezes engoliam moedas para evitar que o dinheiro caísse nas mãos do inimigo. Daí veio a idéia de um diamante que é engolido por um menino, membro de uma família judia que está fugindo da Rússia para o Brasil. Àquela altura veio o convite da Editora Objetiva. Meu primeiro impulso foi de recusá-lo, mas, antes de desligar, resolvi perguntar qual era o dedo que faltava. Era o anular. Instantaneamente o diamante "instalou-se" num anel e ali estava a história, praticamente pronta.

3) Você tem participado de várias iniciativas que mostram a profissionalização do mercado para a literatura no Brasil (coletâneas, coleções, contos para livros teóricos como A história da cidadania). Existe um mercado sustentável para a literatura no País?

Existe um mercado em expansão que cresce sobretudo graças ao público juvenil. As escolas hoje estão trabalhando, e com muita criatividade, autores contemporâneos e isto aumentou substancialmente o número de leitores. Mas ainda é difícil viver exclusivamente só de literatura no país. É mais fácil viver de escrever - livros, e também artigos, crônicas, roteiros... Porém não creio que seja decisivo para um escritor viver só de literatura. Kafka, por exemplo, tinha um emprego de tempo integral, mas isso não impedia que à noite e nos horários de folga produzisse grande literatura.

4) É possível perceber, de uns anos para cá, o fortalecimento dos mercados regionais, sobretudo do Sul do País. Pode-se falar em "literatura gaúcha" como um capítulo específico da moderna literatura brasileira?

Certamente, mas dentro de literatura gaúcha temos de diferenciar a literatura regionalista (aquela de um Simões Lopes Neto, por exemplo) que utiliza sobretudo o linguajar da fronteira e a literatura histórica, como a feita por Érico Veríssimo em "O Tempo e o vento". É uma literatura de grande vitalidade, porque a história do Rio Grande não raro passa por momentos dramáticos e também porque o gaúcho é um personagem muito característico. Por último, mas não menos importante, é um Estado de gente culta, que lê bastante, o que ajuda a formar um público leitor.

5) Em alguns dos seus romances há a mescla de personagens históricos como fictícios (Oswaldo Cruz, Noel Nutels, Espinosa).A História ainda reserva boas histórias?

E como! É um filão inesgotável. Agora: é importante visitar a História com o olhar ficcional de hoje. Não se trata de "recuperar" o passado - isto é coisa para historiadores; trata-se de recria-lo ficcionalmente. Não é a História que foi, é a História que poderia ter sido. São as emoções do passado transpostas para o presente.

6) A tradição da literatura judaica está presente em muitos países, em alguns, como os EUA, de forma significativa. Como vê a situação no Brasil, que outros autores podem ser alinhados no que se convencionou chamar de literatura judaica (Samuel Rawet, Clarice Lispector?)

No Brasil, a literatura inspirada na tradição judaica é menos presente nos Estados Unidos, pela simples razão de que naquele país o número de judeus é várias vezes maior. Mas nós também tivemos a experiência da emigração. E esta experiência, nos dois países, é muito parecida. A propósito, lembro um encontro que tive com o Saul Bellow, recentemente falecido, na Universidade de Chicago, onde ele lecionava. A conversa, que começou difícil, por causa do meu embaraço, acabou tomando um rumo inesperado. Bellow, um homem elegante, amável, quis saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem. Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915, radicando-se depois nos Estados Unidos.

Claramente era um escritor que, sendo profundamente americano (um escritor de Chicago, para ser mais preciso), valia-se de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores, Norman Mailer, Bernard Malamud, Philip Roth, que inauguraram, nas palavras do crítico Irving Howe, um novo tipo de regionalismo, não geografico, como aquele através do qual William Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas sim étnico. A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal da cultura; ele é dono de um olhar privilegiado, um olhar que lhe permite enxergar a realidade do país de maneira diferente. Muitos descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e social: o caso dos imigrantes que criaram a indústria cinematográfica; outros tornam-se revolucionários e outros ainda enveredam pelo caminho da literatura e da arte. De qualquer modo é uma situação original, que serve como fonte de inspiração. A isto deve-se juntar a tradicional veneração judaica pela palavra escrita e o peculiar humor - aquele humor melancólico, filosófico, que serviu, para um grupo perseguido e amaeaçado, como defesa contra o desespero.

7) Você é um dos escritores brasileiros que mais andam por aí participando de palestras, seminários, congressos, etc. Como faz para administrar tantos compromissos e ainda continuar com o mesmo ritmo de produção?

Organização é fundamental. Na ficção a imaginação pode, e deve, voar solta; mas a vida real tem calendário, tem horários. Compatibilizar essas coisas às vezes dá muito trabalho, mas eu o faço com prazer, mesmo porque escrever é um ato eminentemente solitário. O teclado do computador é diferente do teclado do piano: não dá uma resposta imediata sob a forma de música. Com os leitores um diálogo é possível. Eles tem uma curiosidade que se traduz em numerosas perguntas: de onde surgem as idéias para os textos? Como se escreve um romance, planejando a história, ou deixando que os personagens tomam as rédeas da ação? Você tem horário para escrever?

Para os escritores, por outro lado, o contato com leitores, sobretudo jovens, pode ser muito gratificante. Não é, claro, essencial para o ofício da literatura, ainda que desses encontros possam nascer idéias para textos. É outra coisa. Sobretudo em países como o nome o escritor desempenha papel importante como intelectual, como pessoa que procura entender o seu tempo e transmitir o resultado desse entendimento a seus contemporâneos. Mas o contato com o público não deve ser visto só como uma tarefa intelectual. É antes de mais nada um encontro agradável; e exatamente por ser agradável desmistifica o escritor, mostra que este é um ser humano igual a todos os outros, com as mesmas preocupações e as mesma emoções. O papo leitor-escritor é uma troca emocional. A pergunta fundamental a um jovem que leu um texto não é: "O que quis o autor dizer?", mas sim: "O que sentiste lendo esse texto?". A emoção abre caminho para o entendimento. E emoção, ao menos em minha experiência, é o que não falta nos encontros com o público.

Leia sobre Na noite do Ventre, o Diamante, em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/moacyr-scliar-na-noite-do-ventre-o.html

Fonte:
http://scliar.org/moacyr/

Alberto de Oliveira (Caderno de Poesias)


O ÍDOLO

Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.

E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.

Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.

E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.

(Canções românticas, 1878.)

VASO GREGO

Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia
Então, e, ora repleta ora esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

(Sonetos e poemas, 1886.)

VASO CHINÊS

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o.
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,
Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura;

Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,
Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.

(Sonetos e poemas, 1886.)

A JANELA E O SOL

"Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende."

E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: "Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!"

(Sonetos e poemas, 1886.)

ASPIRAÇÃO

Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;

Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
e estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só

Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais - homem - dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
- Poeta - bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!

E isto que aqui não digo então dizer: - que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremedas;

E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti!

(Versos e rimas, 1895.)

SOLIDÃO ESTRELADA

Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,

Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?

Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!

Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...

Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.

Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!

E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?

Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!

(Poesias, 2a série, 1906.)

O PIOR DOS MALES

Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.

O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.

Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana...

Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.

(Poesias, 2a série, 1906.)

CHEIRO DE ESPÁDUA

"Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.

Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.

E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!"

(Poesias, 3a série, 1913.)

SONETO

Agora é tarde para novo rumo
Dar ao sequioso espírito; outra via
Não terei de mostrar-lhe e à fantasia
Além desta em que peno e me consumo.

Aí, de sol nascente a sol a prumo,
Deste ao declínio e ao desmaiar do dia,
Tenho ido empós do ideal que me alumia,
A lidar com o que é vão, é sonho, é fumo.

Aí me hei de ficar até cansado
Cair, inda abençoando o doce e amigo
Instrumento em que canto e a alma me encerra;

Abençoando-o por sempre andar comigo
E bem ou mal, aos versos me haver dado
Um raio do esplendor de minha terra.

(Poesias, 4a série, 1928.)

VESTÍGIOS DIVINOS

(Na Serra de Marumbi)

Houve deuses aqui, se não me engano;
Novo Olimpo talvez aqui fulgia;
Zeus agastava-se, Afrodite ria,
Juno toda era orgulho e ciúme insano.

Nos arredores, na montanha ou plano,
Diana caçava, Actéon a perseguia.
Espalhados na bruta serrania,
Inda há uns restos da forja de Vulcano.

Por toda esta extensíssima campina
Andaram Faunos, Náiades e as Graças,
E em banquete se uniu a grei divina.

Os convivas pagãos ainda hoje os topas
Mudados em pinheiros, como taças,
No hurra festivo erguendo no ar as copas.

(Poesias, 4a série, 1928.)

DENTRO DO SONHO

Tanto de sonho lhe hão chamado a vida
Que por sonho eu a tenho e me convenço
Que tudo nela é sonho, breve ou extenso,
Pouco importa, querida.
Foi sonho aquela vez primeira que nos vimos,
A última sonho foi; sonho o primeiro abraço
Em que os dois nos unimos;
Sonho o dia em que tu entraste por meu braço
Num templo, e logo após na casa que foi nossa;
Sonho o ver-me então moço e o ver-te também moça...
Vinte anos todos de felicidade!
E de improviso tudo acaba, tudo...
Mas esta dor sem fim, esta saudade,
Aquele golpe rudo,
Tredo e medonho,
- Devo-me conformar - não passou tudo
De um sonho que sonhei dentro do grande Sonho.

(Poesias, 4a série, 1928.)

A CASA DA RUA ABÍLIO

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.

(Poesias, 4a série, 1928.)

A ALMA DOS VINTE ANOS

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos...

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.

(Poesias, 4a série, 1928.)
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