sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lima Barreto (O Caçador Doméstico)


Simões era descendente de uma famosa família dos Feitais, do estado do Rio, de que o 13 de maio arrebatou mais de mil escravos.

Uma verdadeira fortuna, porque escravo, naquelas épocas, apesar da agitação abolicionista, era mercadoria valorizada. Valia bem um conto de réis a cabeça, portanto os tais de Feitais perderam cerca ou mais de mil contos.

De resto, era mercadoria que não precisava muitos cuidados. Antes da lei do Ventre Livre, a sua multiplicação ficava aos cuidados dos senhores e depois… também.

Esses Feitais eram célebres pelo sadio tratamento de gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela sua teimosia escravagista.

Se não eram requintadamente cruéis para com os seus cativos, tinham, em oposição, um horror extraordinário à carta de alforria.

Não davam uma, fosse por que pretexto fosse.

Conta-se até que o velho Feital, tendo um escravo mais claro que mostrava aptidões para os estudos, dera-lhe professores e o matriculara na Faculdade de Medicina.

Quando o rapaz ia terminar o curso, retirara-o dela, trouxera-o para a fazenda, da qual o fizera médico, mas nunca lhe dera carta de liberdade, embora o tratasse como homem livre e o fizesse tratar assim por todos.

Simões vinha dessa gente que empobrecera de uma hora para a outra.

Muito tapado, não soubera aproveitar as relações de família, para formar-se em qualquer cousa e arranjar boas sinecuras, entre as quais a de deputado, para a qual estava a calhar, pois de família do partido escravagista-conservador, tinha o mais lindo estofo para ser um republicano do mais puro quilate brasileiro.

Fez-se burocrata; e, logo que os vencimentos deram para a cousa, casou com uma Magalhães Borromeu, de Santa Maria Madalena, cuja família também se havia arruinado com a Abolição.

Na repartição, o Simões não se fez de trouxa. Aproveitou as relações e amizades de família, para promoções, preterindo toda a gente.

Quando chegou, aí, por chefe de seção, lembrou-se que descendia de gente de lavoura e mudou-se para os subúrbios, onde teria alguma idéia da roça, onde nascera.

Os restos de matas que há por aquelas paragens deram-lhe lembranças saudosas da sua mocidade nas fazendas de seus tios. Lembrou-se que caçava; lembrou-se da sua matilha para caititus e pacas; e deu em criar cachorros que adestrava para a caça, como se tivesse de fazer alguma.

No lugar em que morava, só havia uma espécie de caça rasteira: eram preás porém nos capinzais; mas, Simões, que era da nobre família dos Feitais de Pati e adjacências, não podia entregar-se a torneio tão vagabundo.

Como havia de empregar a sua gloriosa matilha?

À sua perversidade inata acudiu-lhe logo um alvitre: caçar os frangos e outros galináceos da vizinhança que, fortuitamente, lhe iam ter no quintal.

Era ver um frango de qualquer vizinho, imediatamente estumava a cachorrada que estraçalhava em três tempos o bicharoco.

Os vizinhos, acostumados com os pacatos moradores antigos, estranharam a maldade de semelhante imbecil que se fazia mudo às reclamações da pobre gente que lhe morava em torno.

Cansados com as proezas do caçador doméstico de frangos e patos, resolveram pôr termo a elas.

Trataram de mal-assombrar a casa. Contrataram um moleque jeitoso que se metia no forro da casa, à noite, e lá arrastava correntes.

Simões lembrou-se dos escravos dos seus parentes Feitais e teve remorsos. Um dia assustou-se tanto que correu espavorido para o quintal, alta noite, em trajes menores, com o falar transtornado. Os seus molossos não o conheceram e o puseram no estado em que punham os incautos frangos da vizinhança: estraçalharam-no.

Tal foi o fim de um dos últimos rebentos dos poderosos Feitais de Barra Mansa.

Fonte:
Covil do Orc

Antonio Cândido (O Escritor e o Público) - Parte II


Quando consideramos a literatura no Brasil, vemos que a sua orientação dependeu em parte dos públicos disponíveis nas várias fases, a começar pelos catecúmenos, estímulo dos autos de Anchieta, a eles ajustados e sobre eles atuando como lição de vida e concepção do mundo. Vemos em seguida que durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios — de igreja, academia, comemoração. O escritor não existia enquanto papel social definido; vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela sociedade pouco diferenciada: sacerdote, jurista, administrador. Querendo fugir daí e afirmar-se, só encontrava os círculos populares de cantigas e anedotas, a que se dirigiu o grande irregular sem ressonância nem influência, que foi Gregório de Matos na sua fase brasileira.

A cerimônia religiosa, a comemoração pública foram ocasião para se formarem os públicos mais duradouros em nossa literatura colonial, dominada pelo sermão e pelo recitativo. As fugazes Academias constituem caso sugestivo, representando, do ponto de vista em que nos colocamos, esforço de criação artificial de um público por parte dos próprios escritores (escritores parciais, como vimos), que eram ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio.

É preciso chegarmos ao fim do século XVIII e à fase que precede a Independência para podermos avaliar como se esboçam os elementos característicos do público e da posição social do escritor, definindo-se os valores de comunicação entre ambos. Como não se pretende aqui uma descrição completa, apenas estes elementos serão destacados, tentando-se avaliar qual foi a sua influência e persistência na evolução posterior.

Destaquemos desse contexto a função de Silva Alvarenga, provavelmente o primeiro escritor brasileiro que procurou harmonizar a criação com a militância intelectual, graças ao senso quase didático do seu papel. Em torno dele formou-se um grupo, o da Sociedade Literária, que se prolongou pelos dos alunos por ele formados como Mestre de Retórica e Poética, entre os quais alguns próceres da Independência. Assim, não apenas difundiu certa concepção da tarefa do homem de letras como agente positivo na vida civil, mas animou um movimento que teve continuidade, suscitando pequenos públicos fechados que se ampliariam, pela ação cívica e intelectual, até as reivindicações da autonomia política e, inseparável dela, da autonomia literária.

Digamos pois que, a exemplo do melodioso Alcino Palmireno, o escritor começou a adquirir consciência de si mesmo, no Brasil, como cidadão, homem da polis, a quem incumbe difundir as luzes e trabalhar pela pátria. Assim tocamos no principal elemento com que se integram aqui, a princípio, a sua consciência grupai e o seu conceito social: o nativismo, logo tornado em nacionalismo, manifestado nos escritos e em toda a sorte de associações político-culturais que reuniram sábios, poetas, oradores e, ao contrário das velhas Academias, os encaminharam para a ação sobre a sociedade, abrindo-se para o exterior por meio da paixão libertária, mesmo quando fechadas sobre si mesmas pelo esoterismo maçônico. Esta literatura militante chegou ao grande público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e o grande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de ordem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem nação que surgia.

Esta união da literatura à política permitiu o primeiro contacto vivo do escritor com os leitores e auditores potenciais; e nada exprime melhor a ardente fé nas luzes do que os cursos organizados na prisão pelos revolucionários de 1817, em proveito dos que esperavam a condenação, talvez a morte, e onde Muniz Tavares ensinava lógica; frei Caneca, português; Basílio Torreão, geografia e história; Antônio Carlos, inglês… Futuros revoltosos de 1824, como Tristão de Alencar Araripe, aí se aperfeiçoaram e ganharam novas razões para lutar.

Ao nativismo e às associações é preciso acrescentar a presença dos religiosos, frades e padres, preeminentes nos dois casos, que vieram trazer o prestígio de uma instituição básica da Monarquia, a Igreja, pondo-a ao serviço das novas idéias e conferindo respeitabilidade à atividade intelectual ilustrada. Um sacerdote, Sousa Caldas, escreveu no último decênio do século XVIII um dos mais vigorosos libelos nativistas e ilustrados, o poema d'As AVES; e as cinco restantes dentre as suas perdidas CARTAS defendem a liberdade de pensamento em face do poder civil e religioso, com um modernismo e um vigor que permitem considerar o extravio das outras como das maiores perdas para a nossa literatura e a evolução do nosso pensamento.

De tudo se conclui que no primeiro quartel do século XIX esboçaram-se no Brasil condições para definir tanto o público quanto o papel social do escritor em conexão estreita com o nacionalismo.

Decorre que os escritores, conscientes pela primeira vez da sua realidade como grupo graças ao papel desempenhado no processo da Independência e ao reconhecimento da sua liderança no setor espiritual, vão procurar, como tarefa patriótica, definir conscientemente uma literatura mais ajustada às aspirações da jovem pátria, favorecendo entre criador e público relações vivas e adequadas à nova fase.

A posição do escritor e a receptividade do público serão decisivamente influenciadas pelo fato da literatura brasileira ser então encarada como algo a criar-se voluntariamente para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasilidade. Os jovens românticos da Niterói são em primeiro lugar patriotas que desejam complementar a Independência no plano estético; e como os moldes românticos previam tanto o sentimento de segregação quanto o de missão — que o compensa — o escritor pôde apresentar-se ao leitor como militante inspirado da idéia nacional.

Vemos, então, que nativismo e civismo foram grandes pretextos, funcionando como justificativa da atividade criadora; como critério de dignidade do escritor; como recurso para atrair o leitor e, finalmente, como valores a transmitir. Se as edições dos livros eram parcas, e lentamente esgotadas, a revista, o jornal, a tribuna, o recitativo, a cópia volante, conduziam as suas idéias ao público de homens livres, dispostos a vibrar na grande emoção do tempo.

Tão importante é esta circunstância para a criação e difusão da literatura, que outras tendências literárias buscavam nela razão de ser, como foi o caso das que se designam pelo nome genérico de sentimentalismo. Assim, a melancolia, a nostalgia, o amor da terra foram tidos como próprios do brasileiro; foram considerados nacionais a seu modo, de valor quase cívico, e frequentemente inseparáveis do patriotismo.

Verifica-se, pois, que escritor e público definiram-se aqui em torno de duas características decisivas para a configuração geral da literatura: Retórica e nativismo, fundidos no movimento romântico depois de um desenvolvimento anterior. A ação dos pregadores, dos conferencistas de academia, dos glosadores de mote, dos oradores nas comemorações, dos recitadores de toda hora correspondia a uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos à leitura ("(…) as peças oratórias eram escritas para ser recitadas, mas eram-no com verdadeiro entusiasmo. O povo, que nada lia, era ávido por ouvir os oradores mais famosos (…) Não havia divertimentos públicos, como hoje; o teatro era nulo; as festas de igreja eram concorridíssimas." (Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2a ed., vol. I, Garnier, Rio de Janeiro, 1902-1903, p. 270). Deste modo, formou-se, dispensando o intermédio da página impressa, um público de auditores, muito maior do que se dependesse dela e favorecendo, ou mesmo requerendo, no escritor, certas características de facilidade e ênfase, certo ritmo oratório que passou a timbre de boa literatura e prejudicou entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido. A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som da sua voz brotar a cada passo por entre as linhas.

Esta tendência recebeu incremento do nacionalismo, propenso a assumir o tom verbal e mesmo verboso, que desperta a emoção. Formado sob a sua égide, o escritor brasileiro guardou sempre algo daquela vocação patriótico-sentimental, com que justificou a princípio a sua posição na sociedade do país autonomista, e logo depois independente; o público, do seu lado, sempre tendeu a exigi-la como critério de aceitação e reconhecimento do escritor. Ainda hoje, a cor local, a exibição afetiva, o pitoresco descritivo e a eloquência são requisitos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como cidadão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto a celebrá-la com arroubo, para edificação de quantos, mesmo sem o ler, estavam dispostos a ouvi-lo. Condições todas, como se vê, favorecendo o desenvolvimento, a penetração coletiva de uma literatura sem leitores, como foi e é em parte a nossa.

Sob este ponto de vista, exemplo interessante é o Indianismo, que constitui elaboração ideológica do grupo intelectual em resposta a solicitações do momento histórico e, desenvolvendo-se na direção referida, satisfez às expectativas gerais do público disponível; mas graças ao seu dinamismo como sistema simbólico, atuou ativamente sobre ele, criando o seu público próprio. Não se pode aceitar a opinião de Capistrano de Abreu, para quem ele possui raízes populares, dando forma a certas tendências que, no seio do povo, opunham ao português, o índio, em sentido nativista. A sua raiz é erudita. Mergulha imediatamente no exemplo de Chateaubriand, com uma vitalidade compreensível pela influência mediata de Basílio da Gama e Santa Rita Durão — eles próprios desenvolvendo uma linha de aproveitamento ideológico do índio como protótipo da virtude natural, que remonta aos humanistas do século XVI. Os românticos fundiram a tradição humanista na expressão patriótica e forneceram deste modo à sociedade do novo Brasil um temário nacionalista e sentimental, adequado às suas necessidades de auto-valorização. De tal forma que ele transbordou imediatamente dos livros e operou independentemente deles — na canção, no discurso, na citação, na anedota, nas artes plásticas, na onomástica, propiciando a formação de um público incalculável e constituindo possivelmente o maior complexo de influência literária junto ao público, que já houve entre nós.

Mencionemos agora outra consequência importante da literatura se haver incorporado ao civismo da Independência e ter-se ajustado a públicos mais amplos do que os habilitados para a leitura compreensiva: a sua aceitação pelas instituições governamentais, com a decorrente dependência em relação às ideologias dominantes. Neste sentido, avultam três fatores: o frequente amparo oficial de D. Pedro II, o Instituto Histórico e as Faculdades de Direito (Olinda-Recife e São Paulo). A sua função consistiu, de um lado, em acolher a atividade literária como função digna; de outro, a podar as suas demasias, pela padronização imposta ao comportamento do escritor, na medida em que era funcionário, pensionado, agraciado, apoiado de qualquer modo. Houve, neste sentido, um mecenato por meio da prebenda e do favor imperial, que vinculavam as letras ( os literatos à administração e à política, e que se legitima na medida em que o Estado reconhecia, desta forma (confirmando-o junto ao público), o papel cívico e construtivo que o escritor atribuía a si próprio como justificativa da sua atividade.

À medida, porém, que o século correu, foi-se vendo outro aspecto desta realidade, que a completa e é em parte devida às próprias Faculdades jurídicas: a reação ante essa ordem excessiva por parte do boêmio e do estudante, que muitas vezes eram o escritor antes da idade burocrática. Este elemento renovador e dinamizador acabou por ser parcialmente racionalizado pelas ideologias dominantes, esboçando-se nos costumes certa simpatia complacente pelo jovem irregular, que antes de ser homem grave quebrava um pouco a monotonia do nosso Império encartolado, mas nem por isso perdia o benefício do seu apoio futuro. Conta-se que Guimarães Passos, moço e miserável, sem ter o que almoçar, planejou com um companheiro de boêmia roubar a carne servida às feras que o Imperador mantinha na Quinta da Boa Vista. Tentando retirá-la de uma jaula, foi afugentado pelos rugidos do animal e veio, em carreira desabalada, parar nas janelas da biblioteca. O bibliotecário, com senso de humor, interessou-se pelo caso, e o talentoso gatuno acabou nomeado arquivista do Palácio…

A anedota simboliza admiravelmente a atitude paternal do Governo, numa sociedade em que o escritor esperava acomodar-se nas carreiras paralelas e respeitáveis, que lhe permitiriam viver com aprovação pública, redimindo ou compensando a originalidade e a rebeldia. Por isso mesmo, talvez tenha sido uma felicidade a morte de tantos escritores de talento antes da servidão burocrática.

Não estranha, pois, que se tenha desenvolvido na nossa literatura oitocentista um certo conformismo de forma e fundo, apesar das exceções já referidas. Ele se liga ao caráter, não raro assumido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para submeter sua criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão nas bitolas de gosto. Muitos dos nossos maiores escritores — inclusive Gonçalves Dias e Machado de Assis — foram homens ajustados à superestrutura administrativa. A condição de escritor funcionou muitas vezes como justificativa de prebenda ou de sinecura; e para o público, como reconhecimento do direito a ambas, — num Estado patrimonialista como era o nosso. Ainda depois da Revolução de 1930, certa reforma severa no então recente Ministério da Educação, obrigando os inspetores de ensino a desempenhar efetivamente os cargos, esbarrou em três eminentes escritores e os deixou à margem da exigência, reconhecendo desta forma o direito secular do homem de letras, cuja atividade específica justificava o desleixo das que lhe eram dadas por acréscimo. O Estado e os grupos dirigentes não funcionavam, porém, apenas como patronos, mas como sucedâneo do público; público vicariante, poderíamos dizer. Com efeito, na ausência de públicos amplos e conscientes, o apoio ou pelo menos o reconhecimento oficial valeram por estímulo, apreciação e retribuição da obra, colocando-se ante o autor como ponto de referência.

Note-se, também, que prosseguiu por todo o século XIX, e até o início do século XX, a tradição de auditório (ou que melhor nome tenha), graças não apenas à grande voga do discurso em todos os setores da nossa vida, mas, ainda, ao recitativo e à musicalização dos poemas. Foram estas as maneiras principais de veicular a poesia — tanto a dos poetas oficiais, como Magalhães ou Porto Alegre, quanto a dos irregulares como Laurindo Rabelo ou Aureliano Lessa. Se as edições eram escassas, a serenata, o sarau e a reunião multiplicavam a circulação do verso, recitado ou cantado. Desta maneira, românticos e pós-românticos penetraram melhor na sociedade, graças a públicos receptivos de auditores. E não esqueçamos que, para o homem médio e do povo, em nosso século a encarnação suprema da inteligência e da literatura foi um orador, Rui Barbosa, que quase ninguém lê fora de algumas páginas de antologia.

Como traço importante, devido ao desenvolvimento social do Segundo Reinado, mencionemos o papel das revistas e jornais familiares, que habituaram os autores a escrever para um público de mulheres, ou para os serões onde se lia em voz alta. Daí um amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um tom de crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas literaturas terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta influencia caseira e dengosa, que leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar.

Se for válida esta análise esquemática, devemos concluir que as condições que presidiram, no Brasil, à definição tanto do público quanto do escritor deviam ter favorecido entre ambos uma comunicação fácil e ampla. Mas ficou também visto que o escritor não pôde contar, da parte do público, com uma remuneração que este não era capaz de fornecer, obrigando o Estado a interpor-se entre ambos, como fonte de outras formas de retribuição.

Daí uma situação peculiar no tocante às relações entre o escritor e o grande público — que agora vamos encarar como conjunto eventual de leitores. É que no Brasil, embora exista tradicionalmente uma literatura muito acessível, na grande maioria, verifica-se ausência de comunicação entre o escritor e a massa. O paradoxo é apenas aparente, podendo talvez explicar-se por meio do critério seguido no presente estudo.

Com efeito, o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. Ao mesmo tempo, a pobreza cultural destas nunca permitiu a formação de uma literatura complexa, de qualidade rara, salvo as devidas exceções. Elite literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras.

Correspondendo aos públicos disponíveis de leitores, — pequenos e singelos — a nossa literatura foi geralmente acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal que, justamente porque se deixa vencer logo, tanto agrada aos falsos requintados. De onde se vê que o afastamento entre o escritor e a massa veio da falta de públicos quantitativamente apreciáveis, não da qualidade pouco acessível das obras.

Daí o êxito (dentro das limitações apontadas) de tanto escritor de talento, apesar de muita demagogia romântica em contrário. Nenhum exemplo mais significativo que o de Euclides da Cunha, difícil, afrontando os poderes, fustigando o Exército — e no entanto aceito triunfalmente pelo Exército, pelos poderes, pelos leitores.

Mas, ainda aqui, devemos voltar ao chavão inicial que nos vem guiando, e lembrar que a constituição do patriotismo como pretexto, e a consequente adoção pelo escritor do papel didático de quem contribui para a coletividade, devem ter favorecido a legibilidade das obras. Tornar-se legível pelo conformismo aos padrões correntes; exprimir os anseios de todos; dar testemunho sobre o país; exprimir ou reproduzir a sua realidade, — é tendência que verificamos em Magalhães, Alencar, Domingos Olímpio, Bilac, Mário de Andrade, Jorge Amado. Mesmo quando o grande público permanece indiferente, e ele só conta com os pequenos grupos, o escritor brasileiro permanece fácil na maioria dos casos. Como aconteceu na Rússia e na América Espanhola (isto é, nações visando à ocidentalização rápida), ele sempre reivindicou entre nós tarefas mais largas do que as comumente atribuídas à sua função específica.

Estas considerações mostram por que quase não há no Brasil literatura verdadeiramente requintada no sentido favorável da palavra, inacessível aos públicos disponíveis. A literatura considerada de elite na tradição ocidental, sendo hermética em relação ao leitor de cultura mediana, exprime quase sempre a autoconsciência extrema de um grupo, reagindo à opinião cristalizada da maioria, que se tornou pesada e sufocadora. Entre nós, nunca tendo havido consolidação da opinião literária, o grupo literário nunca se especializou a ponto de diferenciar-se demasiadamente do teor comum de vida e de opinião. Quase sempre produziu literatura como a produziriam leigos inteligentes, pois quase sempre a sua atividade se elaborou à margem de outras, com as quais a sociedade o retribuía. Papel social reconhecido ao escritor, mas pouca remuneração para o seu exercício específico; público receptivo, mas restrito e pouco refinado. Consequência: literatura acessível mas pouco difundida; consciência grupai do artista, mas pouco refinamento artesanal.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Apollo Taborda França (Trovas da Amizade)


AMÁLIA MAX, sublime,
Tem amor à causa nossa...
E na trova bem exprime,
O valor de Ponta Grossa!

(para Argentina de Mello e Silva)
ARGENTINA, poetisa,
Na trova grande demais...
Muito suave, qual a brisa,
Acalenta os seus florais!

Professor ATHOS VELLOZO,
Requintado estilista...
Vive sempre em áureo gozo,
No seu mundo de jurista!

AURORA CURY se empenha
No mister de bem compor...
Seus versos, uma resenha,
De jardim cheio de flor!

AZOR CRUZ, de naipe régio,
Também, médico-escritor...
Sua vida, florilégio,
Alça vôos de condor!

(para Eleonora Brasil Pompeu)
ELEONORA é na trova,
O tino, facilidade...
Assim certo, ela prova
Ser “Poetisa da Cidade”!

(para Emílio de Mattos Sounis)
SOUNIS médico e poeta,
De envolvente inspiração...
Sua trova, bem seleta,
Sempre fala ao coração!

O FRANCISCO FILIPAK
É um mestre de nomeada...
No idioma um destaque,
No soneto uma florada!

HARLEY CLOVIS STOCCHERO
Já surgiu para brilhar....
Põe nos versos bom tempero,
Num estilo peculiar!

É HELENA KOLODY
Notável na poesia...
A grandeza está aí,
No seu verso que extasia!

HILDA KOLLER é de Castro,
Um rincão do Paraná...
Na poesia, rico lastro,
Que se iguale, lá não há!

(para Ladislau Romanowski)
ROMANOWSKI, um artista
De charme bem popular...
Mostra-se puro humanista
E escritor muito exemplar.

(para Lia Sachs Iankilewich)
LIA SACHS, poetisa,
Vai “Dissecando a Agonia”...
Seu cantar é suave brisa,
Exuberante eufonia!

LOURDES STROZZI, que musa,
Ela própria a inspiração...
Sua trova é conclusa,
Nota dez, com distinção!

MOYSÉS PACIORNIK pensa,
Escreve, fluentemente...
Fala suave, jeito leve,
Mas, seu estro uma torrente!

(para Nair Cravo Westphalen)
NAIR CRAVO, que poeta,
Em “soneto” foi premiada...
Tem espírito de asceta
E muita luz na jornada!

O NELSON que é SALDANHA
E se aureola D`OLIVEIRA...
É de inspiração tamanha,
Que na trova faz carreira!

WOCZIKOSKI, nosso ORLANDO,
Tem vigor, alacridade...
Trovador que, burilando,
Se engrandece na “saudade”!

TÚLIO VARGAS vai na História,
Onde encontra seus motivos...
Garimpeiro da memória,
Tão valiosos seus arquivos!

É UBIRATAN LUSTOSA
Radialista consagrado...
Se realiza bem na prosa,
“Nosso Encontro” vem premiado!

(ao Vasco José Taborda)
O VASCO, nobre poeta,
Líder da fraternidade...
Tem a luz de grande esteta,
Onde vai prega amizade!

A ZÉLIA SIMEÁO POPLADE
Mostrou cedo a vocação...
Tem seu verso majestade,
Suavidade e erudição!

Fonte:
FRANÇA, Apollo Taborda. 100 Trovas da Amizade. Curitiba: Formigueiro, 1985.

Rubem Alves (Cozinha)


Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.

A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.

As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.

Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)...

Fonte:
Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000. Disponível em http://www.rubemalves.com.br/cozinha.htm

Antonio Cândido (O Escritor e o Público) - Parte I



Frequentemente tendemos a considerar a obra literária como algo incondicionado, que existe em si e por si, agindo sobre nós graças a uma força própria que dispensa explicações. Esta idéia elementar repousa na hipótese de uma virtude criadora do escritor, misteriosamente pessoal; e mesmo quando desfeita pela análise, permanece um pouco em todos nós, leitores, na medida em que significa repugnância do afeto às tentativas de definir os seus fatores, isto é, traçar de algum modo os seus limites.

Por isso, quando investigamos tais fatores e tentamos distingui-los, percebemos, na medida em que é possível, que os mais plenamente significativos são os internos, que costeiam as zonas indefiníveis da criação, além das quais, intacto e inabordável, persiste o mistério. Há todavia os externos, como aqueles de que se ocupará este artigo; secundários, não há dúvida, como explicação; dependendo de um ponto de vista mais sociológico do que estético; mas necessários, senão à sondagem profunda das obras e dos criadores, pelo menos à compreensão das correntes, períodos, constantes estéticas. Um autor alemão chega a dizer, neste sentido, que mesmo considerando-se a priori metafísico o valor artístico, só de modo sociológico é possível elucidá-lo nas suas formas concretas particulares — pois nas sociedades civilizadas a criação é eminentemente relação entre grupos criadores e grupos receptores de vários tipos. Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público.

Mas o panorama é dinâmico, complicando-se pela ação que a obra realizada exerce tanto sobre o público, no momento da criação e na posteridade, quanto sobre o autor, a cuja realidade se incorpora em acréscimo, e cuja fisionomia espiritual se define através dela. Em contraposição à atitude tradicional e unilateral, que considerava de preferência a ação do meio sobre o artista, vem-se esboçando na estética e na sociologia da arte uma atenção mais viva para este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos 84 grupos e definindo relações entre os homens.

A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.

Qual a influência entre eles; como se condicionam mutuamente; que relações humanas pressupõem ou motivam? São questões que o crítico propõe ao sociólogo, ou responde ele próprio colocando-se no ângulo deste. Procuremos falar como ambos, partindo da hipótese que, sob tal ponto de vista, a produção da obra literária deve ser inicialmente encarada com referência à posição social do escritor e à formação do público.
Aquela depende, em primeiro lugar, da consciência grupal, isto é, a noção desenvolvida pelos escritores de constituírem segmento especial da sociedade. Ela se manifesta de maneira diversa conforme o momento histórico (exprimindo-se, por exemplo, como vocação, consciência artesanal, senso de missão, inspiração, dever social etc), permitindo-lhes definir um papel específico, diferente dos demais, e servindo-lhes de identificação enquanto membros de um agrupamento delimitado.

O fato deste grupo configurar-se nitidamente ou permanecer virtual depende em boa parte do segundo fator: as condições de existência que os seus membros, enquanto tais, encontram na sociedade. Decorre ou não daí a profissionalização, que, embrionária noutras épocas, é tendência no mundo moderno, mas não fator essencial para estruturar um grupo de escritores. Com efeito, há diversas formas de remunerar o trabalho de criação literária nas diferentes sociedades e épocas: mecenato, incorporação ao corpo de servidores, atribuição de cargos, geralmente prebendas etc.

Finalmente, a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio. Este fator exprime o reconhecimento coletivo da sua atividade, que deste modo se justifica socialmente. Deve-se notar, a propósito, que, embora certos escritores tenham individualmente alcançado o pináculo da consideração em todas as épocas da civilização ocidental, o certo é que, como grupo e função, apenas nos tempos modernos ela lhe foi dispensada pela sociedade.

Tais fatores aparecem na realidade unidos e combinados, dependendo uns dos outros e determinando-se uns aos outros conforme a situação analisada. Deste modo é que se deve considerá-los, relacionando-os, além disso, ao segundo grupo de fatores, que integram o conceito de público.

Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação. Sem o público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprio. Quando se diz que escrever é imprescindível ao verdadeiro escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente organizado de tal modo que a reação do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através da criação. Escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós mesmos.

Por isso, todo escritor depende do público. E quando afirma desprezá-lo, bastando-lhe o colóquio com os sonhos e a satisfação dada pelo próprio ato criador, está, na verdade, rejeitando determinado tipo de leitor insatisfatório, reservando-se para o leitor ideal em que a obra encontrará verdadeira ressonância. Tanto assim que a ausência ou presença da reação do público, a sua intensidade e qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de um artista. Mesmo porque nem sempre há contacto tangível do escritor com os leitores, e estes nem sempre se ordenam em grupos definidos, podendo permanecer no estado amorfo, isolados uns dos outros, por vezes em estado potencial. Para Von Wiese (a quem devemos a melhor caracterização sociológica deste fenômeno tão mal estudado desde os primórdios da sociologia contemporânea), o público nunca é um grupo social, sendo sempre uma coleção inorgânica de indivíduos, cujo denominador comum é o interesse por um fato. É a "massa abstrata", ou "virtual", da sua terminologia. Entretanto, dentro dela podem diferenciar-se agrupamentos menores, mais coesos, às vezes com tendência a organizar-se, como são os círculos de leitores e amadores entre os quais se recrutam quase sempre as elites, que pesarão mais diretamente na orientação do autor.

De qualquer modo, um público se configura pela existência e natureza dos meios de comunicação, pela formação de uma opinião literária e a diferenciação de setores mais restritos que tendem à liderança do gosto — as elites. O primeiro fator envolve o grau de ilustração, os hábitos intelectuais, os instrumentos de divulgação (livro, jornal, auditórios etc); o segundo e o terceiro se definem automaticamente, e aliás acabam de ser sugeridos.

Para correlacionar (agora em termos práticos) o problema do escritor e do público no quadro da presente análise, lembremos que o reconhecimento da posição do escritor (a aceitação das suas idéias ou da sua técnica, a remuneração do seu trabalho) depende da aceitação da sua obra, por parte do público. Escritor e obra constituem, pois, um par solidário, funcionalmente vinculado ao público; e no caso deste conhecer determinado livro apenas depois da morte do autor, a relação se faz em termos de posteridade. De modo geral, todavia, a existência de uma obra levará sempre, mais cedo ou mais tarde, a uma reação, mínima que seja; e o autor a sentirá no seu trabalho, inclusive quando ela lhe pesa pela ausência.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Vicente Riva Palacio (As Mulas de sua Excelência)


Na grande extensão da Nova Espanha, pode-se afiançar que não existia parelha de mulas como as que puxavam a carruagem de Sua Excelência, o Senhor Vice-Rei. E note-se que eram tão da­dos os conquistadores do México, naquele tempo, à criação de mulas, e tão habituados a usá-las como cavalgaduras, que os reis de Espanha, temendo que tal inclinação fosse causa do abandono da criação de cavalos e do exercício militar, determinaram fossem obrigados os principais habitantes da terra a ter cavalos próprios e disponíveis para o combate. Porém as mulas do vice-rei eram a inveja de todos os ricos e o desespero dos fazendeiros da capital da colônia.

Altas, de peito largo como o potro mais possante; com as quatro pernas finas e nervosas como as de uma rena; cabeça descarna­da, e as móbeis orelhas e os negros olhos como os de um veado. Tinham a cor tirante ao castanho, embora com alguns reflexos dourados; trotavam com tamanha rapidez, que mal poderia acompanhá-las um cavalo a galope.

Ademais, eram de tanta nobreza e tão boas de rédea que, no dizer do cocheiro de Sua Excelência, poderiam ser guiadas, se não com duas teias de aranha, pelo menos com dois leves cordéis de seda.

Todos os dias o vice-rei se levantava mal nascia o sol; esperava o coche ao pé da escada do palácio, descia vagarosamente; contemplava orgulhoso a sua incomparável parelha; entrava na carruagem; persignava-se com devoção; e lá se iam as mulas, tirando chispas das poucas pedras que encontravam no caminho.

Depois de largo passeio pelos arredores da cidade, parava o vice-­rei, pouco antes das oito da manhã, em frente à catedral, que a esse tempo, e com grande atividade, se estava construindo.

Ia muito adiantada a obra, e nela trabalhavam numerosas turmas, que, em geral, se dividiam por nacionalidades — uma de espanhóis, outra de índios, outras de mestiços e outras de negros —, com o fim de evitar choques, muito comuns, infelizmente, entre operários de raças diversas.

Havia, entre aquelas turmas, duas que se distinguiam pela prontidão e esmero no desempenho das mais delicadas tarefas que lhes confiavam; e o curioso é que uma delas se compunha de espanhóis e a outra de índios.

Era capataz da espanhola um vigoroso asturiano, aí dos seus quarenta anos de idade, chamado Pedro Noriega. O homem de pior caráter, mas de melhor coração, que se poderia encontrar nessa época entre os colonos.

Luís de Rivera dirigia como capataz a turma dos índios, por­que tinha mais aparência de índio que de espanhol, apesar de mestiço do primeiro cruzamento, e falava com muita facilidade a língua dos castelhanos e o idioma nauatle ou mexicano.

Tampouco era Luís de Rivera uma índole angelical; turbulento e brigão, já por mais de uma vez dera que fazer aos aguazis.

Por desgraça, tiveram as duas turmas de trabalhar muito per­to uma da outra, e, quando Pedro Noriega se agastava com os seus, o que se dava muitas vezes por dia, gritava-lhes com voz de trovão:

— Que espanhóis mais brutos! Parecem índios!

Mal, porém, havia terminado aquela frase, e Rivera, viesse ou não viesse ao caso, gritava para os seus:

— Que índios mais estúpidos! Parecem espanhóis!

Como é fácil imaginar, as conseqüências disso tinham de ser fatais. Os diretores da obra não trataram de separar aquelas turmas, e, amiudando-se os insultos, uma tarde Noriega e Rivera foram, não às mãos, e sim às armas, porque cada um deles já vinha preparado para o que desse e viesse; e coube a parte pior ao mestiço, que ali caiu morto, de uma punhalada.

O caso degenerou em tumulto, e para acalmá-lo foi necessário se recorresse à justiça e viesse tropa de palácio.

Apartaram os contendores, apanharam o cadáver de Luís de Rivera, e de braços atados saiu dali o asturiano, entre os aguazis, para o cárcere da cidade.

Como o vice-rei estava muito indignado, como os senhores do tribunal ardiam em desejo de dar um exemplo e ao mesmo tem­po de agradar ao vice-rei, e como existia um edito real dispondo que os crimes de espanhóis contra filhos da terra fossem castiga­dos com severidade maior, antes de quinze dias estava o processo concluído e Noriega condenado à forca.

Baldados foram todos os esforços para se obter o indulto; nem as ternuras da vice-rainha, nem os memoriais das damas, nem o prestígio do Senhor Arcebispo, nada: firme e resoluto, o vice-rei a tudo se negava, dando como razão a necessidade de um singu­laríssimo e notável escarmento.

A família de Noriega, que se reduzia à mulher e a uma vistosa moça de dezoito anos, todos os dias, desolada, andava, como vul­garmente se diz, de Herodes para Pilatos, e passava largas horas ao pé da escada do palácio, tentando incessantemente abrandar com o seu pranto o empedernido coração de Sua Excelência.

Muitas vezes esperavam junto ao coche em que o vice-rei ia montar, e contavam suas aflições, que a desgraça sempre conta, ao cocheiro do vice-rei, um andaluz moço e solteiro.

Como era natural, àquele jovem andaluz enterneciam tanto as lágrimas da mãe como os negros olhos da filha. No entanto, não ousava ele falar ao vice-rei, compreendendo que o que tantas personagens não haviam conseguido, ele não deveria sequer tentar.

Nada obstante, ainda na véspera do dia marcado para a execução dizia às mulheres, entre convicto e pesaroso: "Deus ainda pode obrar um milagre! Deus ainda pode obrar um milagre!"

E as pobres mulheres viam um raio de esperança; pois, nos grandes infortúnios, os que não acreditam nos milagres sonham sempre com o inesperado.

Chegou por fim a manhã terrível da execução. Coberto de escapulários o peito, os olhos vendados, arrimando-se no braço dos sacerdotes, que aos brados o exortavam naquele transe fatal, causando pavor até aos próprios espectadores, saiu Noriega do cárcere acompanhado de imensa multidão, que marchava lenta e silenciosa, enquanto o pregoeiro gritava em cada esquina: “Esta é a justiça que se manda fazer com este homem, por homicídio cometido na pessoa de Luís de Rivera. Seja enforcado. Quem assim faz, que assim pague".

Naquela manhã subiu o vice-rei à carruagem preocupado, e sem se deter, como de hábito, a examinar a sua parelha de mulas; tal­vez se debatesse na incerteza sobre se aquilo era um ato de energia ou de crueldade.

O cocheiro, que já sabia o caminho que tinha de seguir, mo­veu de leve as rédeas da mula, e os animais partiram a trote. Cerca de um quarto de hora passou imóvel o vice-rei no fundo do coche, entregue às suas meditações; porém de súbito sentiu violenta sacudidela, e a rapidez da marcha aumentou de maneira notável. A princípio deu pouca atenção ao caso, mas a cada momento era mais rápida a carreira.

Sua Excelência pôs a cabeça de fora de uma das janelinhas e perguntou ao cocheiro:

— Que é isso?

— Senhor, estes animais se espantaram e não querem obedecer.

E o coche atravessava ruas, vielas e praças, e dobrava esqui­nas, sem nunca se chocar de encontro às paredes, mas como se não levasse rumo certo e fosse caminhando à toa.

Era o vice-rei homem animoso, e resolveu esperar o resultado daquilo, tratando de colocar-se em um dos ângulos da carruagem e cerrar os olhos.

De repente as mulas estacaram. Tornou o vice-rei a pôr a cabeça fora da janelinha, e viu-se rodeado de uma multidão de homens, mulheres e crianças que gritavam alegremente:

— Indultado! Indultado!

O coche do vice-rei acabava de encontrar-se com a comitiva que acompanhava Noriega ao patíbulo; era de lei que, se o monarca na metrópole ou os vice-reis nas colônias encontrassem um homem que ia ser executado, isto implicava o indulto. Noriega, com esse encontro feliz, ficou indultado.

Tornou o vice-rei ao palácio, não sem experimentar certo contentamento por haver salvado a vida de um homem sem prejuízo de sua energia.

Reconduziram ao cárcere o indultado Noriega.

Não se sabe se o cocheiro acreditava em milagre. O que se pôde averiguar, isto sim, foi que três meses depois ele se casou com a filha de Noriega, e que Sua Excelência lhe fez um grande presente de núpcias.

Acrescenta a tradição haver sido aquele acontecimento que deu motivo ao real edito que ordenava não saíssem do palácio os vice-­reis em dia de execução judicial.

Ora vejam lá de que são capazes as mulas!

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 7.

Vicente Riva Palácio (1832– 1896)



Vicente Florencio Carlos Riva Palácio Guerreiro (Cidade de México; 16 de outubro de 1832 - Madri, Espanha; 22 de novembro de 1896). Político, militar, jurista e escritor mexicano.

Nasce na Cidade de México o 16 de outubro de 1832, sendo filho de Dores Guerreiro e Mariano Riva Palácio, o advogado defensor de Maximiliano I durante sua captura em Querétaro. Neto direto do General Vicente Guerreiro. Estuda direito no Colégio de San Gregorio e forma-se em 1854. Deputado nacional em duas ocasiões, 1856 e 1861.

A seus quinze anos, em plena invasão norte-americana, faz parte de uma guerrilha contra os invasores.

Mais adiante, sendo liberal durante o século XIX, participa nos jornais A Orquestra e A Chinaca, opostos à perspectiva conservadora. Trabalha durante 1855 como escrivão, em 1856 como secretário da prefeitura da cidade de México e entre 1856 e 1857 como deputado suplente ao Congresso Constituinte (mesmo congresso que formula a Constituição do 57).

Durante a Segunda Intervenção Francesa em México arma uma guerrilha por sua própria conta com o fim de se unir à luta com o General Ignacio Zaragoza. Toma parte em várias ações militares, entre elas, a batalha de Barranca Seca e a queda de Povoa. Em 1863 segue a Juárez a San Luis Potosí e é nomeado governador do Estado de México, se reagrupa e reúne tropas para realizar as tomadas de Tulillo e Zitácuaro. Em 1865 é nomeado governador de Michoacán.

Após a morte do general José María Arteaga se lhe confere o comando de general em chefe do Exército Republicano do Centro e ao termo da campanha republicana em Michoacán, entrega as tropas a seu comando ao Genera. Nicolás Régules. Consegue organizar uma nova brigada, com a que toma e sitia a cidade de Toluca e com a que depois participa no lugar de Querétaro.

Simultaneamente de sua atuação militar edita os jornais O Monarca (1863) e O Pito Real. Compõe os versos do hino burlesco Adeus, mamãe Carlota (uma paráfrase de Adeus, oh pátria minha, de Ignacio Rodriguez Galván).

Com a vitória juarista, renuncia ao comando de todas suas tropas e ao governo do estado de Michoacán. Pede anistia para os intervencionistas e, na esfera política, fica derrotado por José María Iglesias na candidatura para a vice-presidencia. Atua como magistrado da Suprema Corte de Justiça entre 1868 e 1870.

Em 1874 publica os jornais satíricos O ahuizote, O Constitucional e O Radical, nos quais critica o trabalho do governo de Sebastián Lerdo de Tejada.

Apoia Porfirio Díaz no plano de Tuxtepec e é recompensado com o ministério de Fomento em dois primeiros períodos de governo de Díaz e com Juan N. Méndez. Resgata as ruínas de Palenque, estabelece o Observatório Astronomico Nacional e termina de construir o Passeio da Reforma.

Em 1883 é detido pelo governo e levado à prisão de Santiago por ir contra o governo de Manuel González, presidente de México. Na prisão escreve grande parte do segundo tomo de sua obra "México através dos séculos".

Em 1885, depois da publicação de seu livro Os Zeros, dá-se a perda de seu prestígio pessoal e desaparecem as aspirações presidenciais que tinha, fica desterrado "honoravelmente" por Porfirio Díaz e nomeia-se-lhe ministro de México em Espanha e Portugal.

Morre em Madri em 22 de novembro de 1896 e repatríam seus restos em 1936.

Carreira literária

Jornalista de sucesso com uma assinalada e pessoal atitude crítica e satírica; marcada em periódicos como A Orquestra e O Ahuizote. Riva Palácio participa como um ativo literato mexicano nos tempos entre guerras.

O gênero que mais o sorri sempre em popularidade é a novela. Realiza a maioria de sua obra novelesca entre 1868 e 1870. Teve à sua disposição a maioria dos arquivos da Santa Inquisição, o que lhe brinda uma grandíssima quantidade de informação que plasma em suas novelas. Só uma de suas novelas, (Calvario e Tambor), é de toque militar, o resto delas se localizam na época colonial.

Junto com Juan A. Mateos co-escrevee zarzuelas e sketches teatrais satirizando a política mexicana. Em 1870, junto com Juan A. Mateos, Rafael Martinez da Torre e Manuel Payno publica O livro vermelho, um breviario da violência dentro da história nacional.

Junto com Juan de Deus Peza narra lendas em verso sobre Tradições e lendas mexicanas (1917) e criam para a imaginaria poetisa romântica Rosa Espino para publicar Flores da alma (1875).

Dirige a obra México através dos séculos, trabalho enciclopédico, encarregando-se ele mesmo do segundo tomo, dedicado a Colônia.

Em sua obra Os Zeros critica e polemiza a classe política mexicana, o que o identifica como uma personagem virulento para o regime porfirista.

O conto "A Máquina de Coser" inclui-se no livro Contos do Geral (que aparece postumamente em Madri no ano de sua morte), uma coleção de vinte e seis relatos que apresentam características comuns: brevidade no título, a ação e a descrição das personagens.

Obras

Teatro
O tirano doméstico (1861)
Uma tormenta e um íris (1861)
O incêndio do portal (1861)
A lei do um por cento (1861)
Borrascas de um sobretudo (1861)
Ódio hereditario (1861)
As liras irmãs (1861)
A politicomanía (1862)
A filha do cantero (1862)
Temporário e eterno (1862)
Martín o demente (1862)
A Catarata de Niagara (1862)
Nadar e na orla afogar (1862)
Um drama anônimo (1862)
A polícia caseira (1862)

Novelas
Freira , casada, virgem e mártir (1868, reeditada em 1986)
Martín Garatuza (1868)
Calvario e Tabor (1868)
As duas emparelhadas (1869)
Os piratas do golfo (1869)
A volta dos mortos (1870)
Memórias de um impostor, dom Guillén Lombardo , rei de México (Origem do Zorro e ancestral de Diego Da Vega) (1872)
Um segredo que mata (1917)

Ensaio
História da administração de dom Sebastián Lerdo de Tejada (1875)
História da guerra de intervenção em Michoacán (1896)
México através dos séculos, tomo 2 História da dominação espanhola em México desde 1521 a 1808 (1884-1889)
Os Zeros, Galería de Contemporâneos (1882)

Contos
Contos de um louco (1874)
Contos do geral (1896)

Poesia
Flores da alma (1875, sob o pseudônimo de Rosa Espino
Meus versos (1893)
Páginas em verso (1885)

Fonte:
http://pt.wikilingue.com/es/Vicente_Riva_Pal%C3%A1cio

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Trova 162 - Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Apollo Taborda França (As Quatro Raças)


Modelando à sua imagem,
Deus soprou, todo carinho...
No acalanto dessa aragem,
Surgem RAÇAS no cadinho.

Fez do barro o grande elo,
Constituindo a humanidade...
Homem branco, amarelo,
Preto, vermelho: acuidade.

Deu início à povoação
Desta terra, ao confim....
Juntou Eva com Adão,
Nas delícias de um jardim.

E cresceu tudo em beleza,
Colorido e muito amor...
Completou-se a natureza,
Aplaudindo o Criador!

HOMEM BRANCO

Talhado pra dominar,
Surge o BRANCO, criativo...
Assumiu bem seu leu lugar,
Disse: - Sou substantivo!

Ninguém sabe a certa origem,
Muito hábil, audacioso....
Num assomo de vertigem,
Se deslumbra em áureo gozo.

Elegante, aventureiro,
Estendeu-se mundo afora...
Fez da Europa o paradeiro,
Onde se plantou na aurora.

Tem estirpe requintada,
Vencedor da incerteza...
Faz do Cosmo a nova estrada,
Consagra sua grandeza!

HOMEM AMARELO

O AMARELO das estepes,
Da Mongólia milenar...
Envolvido em suaves crepes,
É de casta singular.

Homem reto, aprimorado,
De índole contemplativa...
Tem costume delicado,
Que surpreende e que cativa.

Oriental, tem olho oblíquo,
Traz as gamas do mistério...
É humilde, mas conspícuo
E domina um hemisfério.

Ritualista, espiritual,
Não se entrega na voragem...
É poder no mundo atual,
Sua mística a coragem!

HOMEM NEGRO

Homem NEGRO vem, desfila,
Em perene vibração...
E se amolda qual argila,
Na busca de afirmação.

Sempre grande no esporte,
Sonha com áureo troféu...
Hoje no mundo, suporte,
Já não é o grande réu.

Amoroso e sensível,
Só lhe trai a tez escura...
Faz-se nobre no possível,
Se aprofunda na cultura.

Pelo dom se fez artista,
É humano a não poder...
Se consagra “africanista”,
No atavismo do seu ser!

HOMEM VERMELHO

AMERÍNDIO destemido,
Povoador de vastidões...
Tem as nuances de um brasido,
Como a lava dos vulcões.

Viveu bem no solo pátrio,
Terras ricas de esplendor...
Sucumbiu depois seu átrio,
Sanha do conquistador.

Já livrou-se do extermínio,
Do fuzil e da chibata...
Recupera o seu domínio,
Seu direito está em Ata.

Sobranceiro, dia-a-dia,
Busca os louros da vitória...
Temperou a rebeldia,
Liberdade dá-lhe a glória!

Fonte:
FRANÇA, Apollo Taborda. O nosso mundo colorido. Curitiba: O Formigueiro, 1986.

Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso (Voar)


Antes que Thor, Mercúrio e mais distantes
Deuses do povo grego, antigamente -
Que nem Dédalo e Ícaro -, em rasantes,
Voassem, triunfantes, entre a gente.

Antes que Santos desse vôos brilhantes,
E dois irmãos roubassem-lhe a patente
Do primeiro avião... Antes, bem antes,
Voava um coração, de tão contente.

Entre imaginações ele subia;
Em passos, saltos, vôos, em quedas rasas,
Voando sobre o céu de tantas casas

Que, vindo o super-homem, logo via:
Seu dom do vôo nem era primazia;
O amor já conferia aos homens asas.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/trancoso.htm

Eduardo Campos (O Enterro ou a Casa sem Cão)

Desenho de Gilberto Queiroz
A mulher, à pressa, já segurava a bolsa para sair, depois de verificar atenta se o fogão a gás não ficara com alguma boca acesa; e se voltou para o pai idoso, recomendando:

Estou de partida. Tenha cuidado na casa. Demoro pouco.

Ia acrescentar que por urgente necessidade tinha de se ausentar, pois precisava ganhar uns trocados a mais para dobrar a resistência do bodegueiro sem mais querer fiar... Parou. O outro dizia-lhe decidido:

– Vou sair também. Cadê o meu paletó?

Ela estacou surpresa:

– Sair? sair pra onde?

A voz do homem soou enérgica e resoluta:

– Você estava na cozinha, nem prestou atenção. Deu a notícia no rádio...

– Que notícia, pai?

– Você conhece, não... Era meu grande amigo. Morreu. Coitado do Belisário.

– Tão importante assim para merecer registro em programa de rádio? Não, papai, o senhor se confundiu...

Ele insistiu, a cobrar:

– Cadê o meu paletó?!

Seu paletó foi comido pelas traças... Tinha virado peça de museu.

Me parecia ainda bom de uso. A última vez...

Ela interrompeu-o:

– Isso foi há doze anos, quando faleceu o vizinho.

– Sei disso não. Bom, só sei que vou ao enterro do meu amigo Belisário. Sem paletó. Todo mundo vai reparar. É que nunca vesti silaque em cerimônia social.

– Papai, não quero teimar, mas tudo não passa de um equívoco. O locutor...

– ... o locutor falou bem duas vezes o nome dele, o endereço, deu tudo! Meu amigão! E você não sabe...

– Não sabe o quê?

– Tínhamos um pacto. Ele jurou, eu jurei também: se um dos dois morresse primeiro, o que ficasse estaria obrigado a ir ao enterro, estivesse onde estivesse. Assim vai ser... Deus o chamou em primeiro lugar, tocando a mim, agora, cumprir a palavra empenhada.

– Que palavra empenhada! Isso passou! E por favor vá sossegar tenho de ganhar o meu dinheiro.

– Ah, então é desse modo? Muito bem! Não causa admiração que o mundo esteja – me deixe dizer um nome feio – nessa esculhambação de hoje. Não! Sou de ontem, de tempo em que as pessoas possuíam palavra, cumpriam o trato. Cedia o lugar de sentar nos bondes a uma dama, ajudava a idosos...

– Papai, escute bem. Os seus netos já foram trabalhar, e eu só vou sair por extrema necessidade. Dessa forma o senhor não pode comparecer ao sepultamento do seu grande amigo. Por isso, é melhor se contentar com uma oração...

– Oração é coisa de protestante. Eu rezo.

– Pois então reze. Dá tudo igual. Contanto que fique em casa. A nossa, repare, não pode ficar sem ninguém, principalmente com a onda de ladrões solta no bairro...

– ... ladrões aqui ?!

– É onde dá mais.

Ele ficou pensativo. Depois de um momento, lembrou:

– Deixe o cachorro botando sentido. Você pode ir pegar os seus trocados, como falou, e eu sigo para cumprir o meu acordo...

Paciente, ela explicou:

– O senhor deve estar esquecendo as coisas... O Japi morreu... morreu de velhice. E nós não tivemos condições de adquirir outro animal de guardar a casa.

– Agora deu ruim! Eu não posso desfazer o trato com o falecido. O Belisário se estivesse em meu lugar, com paletó ou sem paletó ia acompanhar o meu enterro. Foi o melhor amigo que tive, marido exemplar.

Ela moveu a cabeça, aborrecida:

– E tem mais, papai, o dinheiro que vou receber é importante para pagar a mercearia. De outro jeito, se duvidar, vamos ter de passar fome... E mesmo...

– Mesmo o quê?

– O senhor, aos oitenta, não tem mais condições para sair de casa, desacompanhado.

– Minha companhia é Deus. Me considero forte, me levanto sozinho de noite para ir ao banheiro... e...

– Mas não pode.

– Alugo um menino do vizinho. Ainda tenho uma pontinha de dinheiro da aposentadoria.

– Compreenda, papai! A família do tal Belisário na certa nem sabe se o senhor existe. Bem, a hora está passando e preciso, agora digo como o senhor, preciso cumprir meu trato.

– Meu Deus, a que ponto cheguei na vida! Minha própria filha quer que eu fique desmoralizado. Contando não tem quem acredite!

– Ela tornou a insistir em tom amável:

– Papai, vá sentar-se na sua cadeira de vime, perto da porta... Prometo, prometo de verdade! Vou ficar atenta aos jornais! Podemos ir juntos à missa de sétimo dia.

– Missa de sétimo dia não é enterro. Não aceito esse tipo de solução.

E com convicção, exaltando-se:

– Vou ao enterro, VOU!

– Papai...

– VOU, VOU!

Foi só um instante, tempo em que ela apreensiva consultou o relógio, a ver que horas davam, e decidiu:

– Não tem acordo, não tem paletó, não tem enterro! Vá sentar na cadeira como estou mandando, que preciso ganhar o meu dinheiro. É isso!

– Deus castiga a quem maltrata os pais.

– É sentar bem direitinho e não deixar a casa só. Os ladrões, repito, andam por aí. Se duvidar vão entrar aqui e carregar o seu rádio. Vá, vá, vá, me obedeça!

Fê-lo arriar-se na cadeira de vime, nervosa, considerando que se não partisse quanto antes não teria como passar a roupa, tarefa a que se obrigara de véspera.

– Não deixe ninguém entrar. Ninguém mesmo!

Ele esteve para altear o tom da voz e protestar mais uma vez, chutar os móveis da sala, gritar palavrão, chorar, até chorar...

Mas se reconheceu trêmulo, esmorecido, e na realidade sucumbido por não poder, como prometera, honrar o compromisso com o Belisário.

E se deixou ficar batendo o pé no chão, perdidamente magoado.

Dolorosamente cão.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Eduardo Campos (1923)



Eduardo Campos (Manuel EDUARDO Pinheiro CAMPOS), nasceu em Guaiúba, então distrito de Pacatuba (Ceará), no dia 11 de janeiro de 1923, filho de Jonas Acióli Pinheiro e Maria Dolores Eduardo Pinheiro.

Órfão de pai, aos 4 meses, foi entregue aos cuidados dos tios João Pereira Campos e Isabel Eduardo Campos (Irmã de Maria Dolores).

Até 7 anos de idade viveu ao sopé da Serra da Aratanha, em Pacatuba. Pelos 8 anos, em companhia dos pais adotivos, foi morar na Rua do Imperador, 90, em Fortaleza (1930), circunstância que o inspirou, já adulto, ao resgate da memória desses idos, quando a sala de visita das casas ia parar virtualmente nas calçadas, os vizinhos aí reunidos depois do jantar.

Eduardo Campos jamais se distanciaria da moldura ecológica da Serra, nem da paisagem rural desse território geográfico, com ares de sertão.

Estreou em 1943, com o livro de contos Águas Mortas.

Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito.

Tem também peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias, memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio.

Durante dez anos dirigiu a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará.

Figura em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro.

Sua peça O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados, A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas.

Tem pequenas histórias incluídas em dez antologias, das quais duas no Uruguai e uma na Alemanha.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Artur Azevedo (Morta que Mata)



(CONTO MEIO PLAGIADO E MEIO ORIGINAL)

Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de repartição, queixou-se da mesquinhez dos ordenados.

- Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente.

- Nada sofro?! Ora esta! Por quê?!.

- Porque és rico!

- Rico, eu?!...

- Naturalmente. Se não fosses rico, tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes!

O Barreto soltou uma gargalhada.

- Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher são falsos, são baratinhos, não valem nada!

- Não parece.

- Não parece, mas são. Minha mulher é de uma economia feroz, e tudo quanto economiza emprega em toilettes e jóias... mas que jóias!... Falsas, falsas como Judas... Já lhe tenho dito um milhão de vezes que se deixe disso; que não use jóias uma vez que não pode usá-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridícula aos olhos do mundo; mas não há meio: aquilo é mania! Tirem tudo, tudo à Francina, mas deixem-lhe as suas jóias de pechisbeque!...

Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes ou um colar de pérolas, que produziam o mais deslumbrante efeito, mas não passavam de jóias de teatro, compradas com os vinténs que ela poupava nas despesas da copa.

Barreto, que fora sempre um pobretão, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no íntimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina.

- Os que sabem que essas jóias são falsas, pensava ele, hão de me achar ridículo; os que as supõem verdadeiras poderão fazer de mim um juízo ainda mais desagradável. Toda a gente sabe quanto ganho: os meus vencimentos figuram na coleção de leis, na tabela anexa ao regulamento da minha repartição...

O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse Francina.

Um dia o fracalhão percebeu - com que alegria! - que ela estava no seu estado interessante.

Eram casados havia oito anos e só agora se lembrava o céu de abençoar a sua união, mandando-lhes um filho! Ele esperava que os cuidados maternos modificassem o que sua mulher tinha de ridícula e vaidosa.

Mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade: a criança, extraída a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia.

O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu também.

Havia um mês que era viúvo quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital.

O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita.

- É muito simples. A falecida sua senhora tinha jóias. É natural que o senhor não precisando delas pretenda desfazer-se de algumas, senão de todas. Venho pedir-lhe que me dê a preferência.

- Preferência para quê?

- Para comprá-las.

- Mas, meu caro senhor, as jóias de minha mulher são falsas.

- Falsas? Ora essa! E é a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de pôr uma jóia falsa!

- O senhor engana-se!

- Tanto não me engano, que lhe ofereço por essas jóias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de réis!

O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pôde a comoção, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja.

Logo que ficou só, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a cômoda onde se achavam as jóias; mas ao vê-las sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás.

Quando lhe acudiram estava morto.

Fonte:
CD Rom Livros Eletronicos. Digerati.
Imagem = http://www.territoriofeminino.blogtv.uol.com.br/

terça-feira, 13 de julho de 2010

Rubem Alves (Jardim)


Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria.

Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.

O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.

Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.

Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.

Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!

Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...

Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:

Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.

Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:

"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."

Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso." (O retorno eterno, p 65).

Fonte:
Casa de Rubem Alves.

domingo, 11 de julho de 2010

Luis Fernando Verissimo (Clic)



Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher.

— Aloa.

— Quem fala?

— Com quem quer falar?

— O dono desse telefone.

— Ele não pode atender.

— Quer chamá-lo, por favor?

— Ele está no banheiro. Eu posso anotar o recado?

— Bate na porta e chama esse vagabundo agora.

Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.

— Aloa.

— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.

— Ele já vai sair do banheiro.

— Você é a...

— Uma amiga.

— Como é seu nome?

— Quem quer saber?

O cidadão inventou um nome.

— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.

— Primo do Amleto?

Amleto. O safado já tinha um nome.

— É. De Quaraí.

— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.

— Pois é.

— Carol.

— Hein?

— Meu nome. É Carol.

— Ah. Vocês são...

— Não, não. Nos conhecemos há pouco.

— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto. De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço.

— Eu também não sei o endereço dele.

— Mas vocês...

— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.

— Ah.

— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-comprou.

— Ele disse que comprou?

— Por que?

O cidadão não se conteve.

— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim!

— Não acredito.

— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta.

— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.

E Carol desligou de novo.

O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois ligou.

— Aloa.

— Carol, é o Tobias.

— Quem?

— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.

— Ele continua no banheiro.

— Em que motel vocês estão?

— Por que?

— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto...

— Recém nos conhecemos.

— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?

— Esta é a primeira vez.

— Vocês nunca tinham se visto antes?

— Já, já. Mas, assim, só conversa.

— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre ele. Não sabia que ele é de Quaraí.

— Pensei que fosse goiano.

— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...

— Não, não. Eu é que pensei.

— Carol, ele ainda está no banheiro?

— Está.

— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol!

— Mas...

— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.

— Ele esta saindo do banheiro.

— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde você está.

Clic.

Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.

— Aloa.

— Carol, onde você está?

— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.

— Carol, eu...

— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira. Jurou que não vai fazer mais isso.

O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:

— Como ele vai devolver o telefone?

— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.

— Carol, não...

Mas Carol já tinha desligado.

O cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra vez.

—Aloa.

Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento.

— Carol, é o Torquatro.

— Quem?

— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular!

— Mas ele disse que vai devolver na...

— Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol.

— Então você também mentiu!

— Carol...

Clic.

Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem.

— Amleto?

— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.

— Olha aqui, seu...

— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela era?

— Só quero meu telefone.

— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular. Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?

— Quero meu celular de volta!

— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...

— Ladrão

— Executivo

— Devolve meu...

Clic.

Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. Telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.

— Ahn?

— Quem fala?

— É o Trola.

— Como você conseguiu esse telefone?

— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.

— Onde você está?

— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é. Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.

— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me diga onde você está que eu vou buscar.

— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...

— Onde você está? Eu quero saber onde!

— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...

Fontes:
VERÍSSIMO, Luis Fernando. As Mentiras que os Homens Contam. RJ: Objetiva, 2000.
Imagem = http://doisdedosdeprosa.wordpress.com